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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.57 no.3 São Paulo  2023  Epub Nov 04, 2024

https://doi.org/10.69904/0486-641x.v57n3.11 

Artigos

Nossos dias com Pituta: Comentários sobre crueldade e restauração

Nuestros días con Pituta: comentarios sobre la crueldad y la restauración

Our days with Pituta: comments on cruelty and restoration

Nos journées avec Pituta : commentaire sur la cruauté et la restauration

Cátia Deon Dall’Agno1 

1Psicanalista de crianças e adolescentes. Membro efetivo da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA), Caxias do Sul. catiadall@terra.com.br


Resumo

Partindo de sua experiência clínica durante os anos de pandemia, período em que trabalhou em consultório privado contíguo à sua casa em companhia da gatinha Pituta, a autora tece comentários a respeito da crueldade e da necessidade de restauração do ego após este ter sido experimentado como danificado pelos ataques do sujeito aos próprios objetos internos. Para comentar tais temas, utiliza-se de sua experiência pós-pandemia, quando, em muitos dos atendimentos presenciais, incorporou concretamente a presença de Pituta, sempre e quando o paciente assim o desejasse. Relata o caso clínico de uma criança de 10 anos com sintomas fóbicos surgidos durante a pandemia, caso em que a presença da gatinha mostrou-se de grande auxílio para a projeção dos aspectos internos do paciente, que se derramavam na transferência.

Palavras-chave: desamparo; solidão; crueldade; restauração; sobrevivência do objeto

Resumen

A partir de su experiencia clínica durante los años de la pandemia, período en el que trabajó en un consultorio particular contiguo a su casa en compañía de su gatita Pituta, la autora formula observaciones sobre la crueldad y la necesidad de restauración del yo tras este haber sido vivido como dañado por los ataques del sujeto a sus objetos internos. Para comentar estos temas, recurre a su experiencia postpandemia, cuando, en muchas de las consultas presenciales, incorporó concretamente la presencia de Pituta, siempre que el paciente así lo deseaba. Relata el caso clínico de un niño de 10 años con síntomas fóbicos que surgieron durante la pandemia, caso en el que la presencia de la gatita resultó de gran ayuda para la proyección de aspectos internos del paciente, que se desbordaban en la transferencia.

Palabras clave: desamparo; soledad; crueldad; restauración; supervivencia del objeto

Abstract

Drawing on her clinical experience during the pandemic years, a period in which she worked in a private office adjacent to her home in the company of her kitten Pituta, the author comments on cruelty and the need of ego restoration after it has been experienced as damaged in consequence of the subject’s attacks to their own internal objects. To comment on these themes, the author uses her post-pandemic experience, when, in many of her face-to-face appointments, she concretely incorporated the presence of Pituta, whenever the patient so wished. She reports on a clinical case of a 10-year-old child with phobic symptoms that emerged during the pandemic, in which the presence of the kitten proved to be of great help in the projection of the patient’s internal aspects, which were overflowing in transference.

Keywords: helplessness; loneliness; cruelty; restoration; object’s survival

Résumé

En s’appuyant sur son expérience clinique pendant les années de pandémie, période dans laquelle elle a travaillé dans un cabinet privé adjacent à son domicile en compagnie de son chaton Pituta, l’autrice commente la cruauté et la nécessité de restaurer le moi après qu’il ait été vécu comme endommagé par les attaques du sujet contre ses propres objets internes. Pour commenter ces thèmes, elle s’appuie sur son expérience post-pandémique, où, à plusieurs de ses consultations en face à face, elle a incorporé concrètement la présence de Pituta, chaque fois que le patient le souhaitait. Elle rapporte le cas clinique d’un enfant de 10 ans présentant des symptômes phobiques apparus pendant la pandémie, cas dans lequel la présence du chaton s’est avérée très utile pour la projection des aspects internes du patient, qui débordaient dans le transfert.

Mots-clés: impuissance; solitude; cruauté; restauration; survie de l’objet

Introdução

Durante o período pandêmico vivido por toda a humanidade, nós, psicanalistas, fomos obrigados, no atendimento online, a organizar e tolerar uma série de diferenças em relação ao setting. Entre elas, pudemos constatar a presença dos mais variados animais de estimação, não somente na casa dos analisandos, mas também em nossa casa, uma vez que foi necessário permanecer em isolamento e trabalhar a partir de nosso lar. Não raro, tais animais eram incorporados à compreensão metapsicológica do funcionamento psíquico do paciente e da dupla, daquilo que se passava dentro do campo analítico, pois, naqueles tempos terríveis, esse espaço acabou se configurando de maneira totalmente nova e inusitada em comparação às regras utilizadas em tempos normais.

Como analista de crianças e adolescentes, vivi essa situação em muitos momentos. Por um longo período, trabalhei em meu consultório, contíguo à minha casa, acompanhada por Pituta, uma gatinha que permanecia deitada na poltrona ou no divã enquanto eu procurava fazer o melhor com as telas à minha frente. Bem, apesar de ser uma gatinha calma e saudável, nem sempre Pituta ficava quieta, deitada… Por vezes, ela miava, subia no balcão, aparecia na tela. As tentativas de mantê-la dentro de casa eram inúteis: ela conseguia burlar os limites, vindo miar na janela do consultório, até receber permissão para entrar.

Pituta chegou durante o período pandêmico. Era uma gatinha de rua, já adulta, e visitava o pátio em frente à minha casa e ao meu consultório todos os dias. Minha filha, na época estudante de medicina veterinária, realizava suas aulas também em formato online, e passou a atrair Pituta com comida e carinho. A gatinha rapidamente afeiçoou-se à família, em especial a mim, que me transformei em sua tutora natural. Talvez tenhamos nos unido em nosso desamparo, ela com suas vivências de rua, eu com a intensidade do vivido com meus pacientes dentro da situação pandêmica, em que a ameaça de uma aterradora morte por sufocamento e em isolamento pairava como uma possibilidade sobre a vida de todos nós. Além da concreta ameaça à existência, a maneira pela qual muitos dirigentes - não somente em nosso país, mas no mundo inteiro - lidavam com a questão fazia com que sentíssemos, de forma clara, como a crueldade pode vir a se exacerbar em situações de crise. Muitas dessas atitudes deixaram-nos em desamparo, à mercê não apenas de um vírus predador, mas também da possibilidade de falta de cuidados e de continência em um momento de altíssima vulnerabilidade.

Assim se passaram meus dias pandêmicos com Pituta, que, deitada tranquilamente enquanto eu tentava compreender os pacientes, deixava-me também mais calma, sentindo a continência que seu ronronar alheio a tudo me proporcionava.

Sabemos que Freud, enquanto analisava os pacientes, permanecia com uma fiel companheira aninhada junto à sua poltrona. Era a cadela Jofi, da raça chow-chow, que costumava afastar-se quando o paciente estava tomado de angústia e aproximar-se quando este estava deprimido. Era comum também que ela se levantasse no término da sessão.

Em 1926, em entrevista realizada com Freud, o jornalista norte-americano George Sylvester Viereck afirmou pensar que nós, seres humanos, não nos tornamos mais alegres descobrindo que abrigamos o criminoso e o animal. Freud contestou-o, particularmente em relação à sua fala sobre os animais. Disse-lhe que preferia a companhia dos animais à dos humanos,

porque são tão mais simples. Não sofrem de uma personalidade dividida, da desintegração do ego, que resulta da tentativa do homem de adaptar-se a padrões de civilização demasiado elevados para o seu mecanismo intelectual e psíquico. O selvagem, como o animal, é cruel, mas não tem a maldade do homem civilizado. A maldade é a vingança do homem contra a sociedade, pelas restrições que ela impõe. As mais desagradáveis características do homem são geradas por esse ajustamento precário a uma civilização complicada. É o resultado do conflito entre nossos instintos e nossa cultura. Muito mais agradáveis são as emoções simples e diretas de um cão, ao balançar a cauda, ou ao latir expressando seu desprazer. (Viereck, 1926/1988, pp. 56-57)

Terminado o período pandêmico, vi-me às voltas com um problema em relação à permanência de Pituta na sala de análise. Naturalmente, tentei confiná-la em casa, não sem alguma dificuldade. Ela, de maneira instintiva, queria permanecer ao meu lado, mantendo a rotina que ambas tínhamos estabelecido, e lutou um pouco contra meus limites. Acontece, porém, que as crianças que haviam tido alguma convivência com ela nas telas perguntavam onde estava a gatinha, e então passei a permitir a sua entrada na sala quando o paciente assim o desejasse.

É sabido que a análise de crianças impõe ao analista enormes desafios, assim como uma necessidade de flexibilidade extrema, em especial no que diz respeito à manutenção do setting, do número de sessões, da neutralidade. Não é incomum sermos surpreendidos por comportamentos absolutamente inusitados das crianças nas sessões de análise, como dependurar-se nas portas ou janelas (colocando-se em evidente situação de risco), tentar derrubar ou destruir nossos objetos ou móveis, correr pela sala ou lançar-se para fora dos limites do consultório, trazer brinquedos, utensílios e animais para a sessão, e assim por diante. No relato pessoal de colegas, e até mesmo na literatura (Carneiro, 2019), encontramos a informação de que as crianças são capazes de integrar na sessão a presença concreta dos mais variados representantes da fauna e da flora, como aranhas, cobras, cachorros, gatos, gafanhotos, libélulas ou plantas em geral. Certa vez, João, o menino sobre quem falarei mais adiante, trouxe um pedaço de cebolinha verde para a sessão, a qual foi incorporada às nossas brincadeiras, surgindo a partir dela um significado simbólico muito relevante.

Desejo, portanto, comunicar aqui como Pituta, a gatinha, acabou integrada em muitas das sessões de análise com meus pequenos pacientes, sempre e quando eles assim o desejassem. Por ser um animal pertencente às ruas e adotado por pessoas que residem em uma casa, Pituta tem a mais absoluta liberdade de ir e vir. Além disso, durante muito tempo, os gatos viveram na natureza na condição dúplice de predadores solitários de animais menores e presas de carnívoros maiores; por isso, a sua necessidade de permanecerem livres é muito grande, e não raras vezes Pituta era encontrada caminhando, brincando ou simplesmente tirando uma soneca ao sol no jardim de meu consultório, comportamento que sempre encantou e seduziu os pacientes, em particular as crianças. Estas, por sua vez, acabavam interagindo com ela e solicitando que entrasse na sala. A interação da gatinha com os pacientes mostrou-se de uma riqueza muito grande, e ela passou, em vários momentos, a configurar-se como uma verdadeira auxiliar no tratamento.

Como disse Freud na entrevista a Viereck, o comportamento dos animais é mais previsível se comparado ao comportamento humano e, assim, é muito mais fácil de ser compreendido, conforme demonstram alguns livros dedicados ao tema (Faraco et al., 2009; Faraco & Soares, 2013; Gray, 2022; Van Blerk, 2021). No passado, como predadores e presas, a sobrevivência dos felinos dependia de comportamentos instintivos cruciais que ainda observamos atualmente, tanto em gatos selvagens quanto em domésticos. Isso faz com que eles demonstrem um comportamento que parece peculiar, “amalucado” (Van Blerk, 2021): em um minuto estão correndo pela casa, atacando qualquer coisa que se mova; no momento seguinte, ficam encolhidos dentro de uma velha caixa de papelão. Um aspecto que vou ressaltar neste trabalho diz respeito à questão da crueldade inerente a todo ser humano, a qual, nos gatos, expressa-se de maneira simples e direta, dentro de seu comportamento instintivamente predatório. No entanto, os felinos domésticos demonstram também uma tendência ao aconchego e à busca de continência, o que comparo ao movimento humano de busca de restauração do ego quando percebido como danificado pela crueldade, restauração essa necessária à conquista da saúde mental. Tentarei fazer isso através da apresentação de um caso clínico ilustrativo, no qual contamos, o paciente e eu, com a presença de Pituta como companheira e auxiliar.

A criança, os pais e a gatinha

João, de 10 anos, é trazido pelos pais para tratamento porque, após a pandemia, desenvolveu o medo de dormir sozinho, indo para a cama dos pais todas as noites, o que não acontecia antes desse período. Além disso, os pais se preocupavam porque o percebiam frágil, extremamente tímido, não conseguindo defender-se das maldades perpetradas por outras crianças.

Ao eclodir a pandemia, João e seu irmão Augusto permaneceram confinados em casa, estudando de forma online, como aconteceu com a grande maioria das crianças. Nas primeiras entrevistas, a mãe classificou essa experiência como “horrível”, não conseguindo, no entanto, explicar com maiores detalhes como percebeu ou sentiu esse horror. Faltavam-lhe palavras, o que me fez pensar que tamanha ameaça estava se conectando a possíveis traumas anteriores pouco simbolizados.

De forma gradativa, com muito cuidado, fui ajudando os pais a me contar sobre esse período tão sofrido. Ambos profissionais da área da saúde, eles saíam para trabalhar todos os dias, enquanto os meninos ficavam em casa com uma cuidadora. João tentava concentrar-se nas tarefas escolares, mas seu irmão, na época com 4 anos, agitava-se muito, o que dificultava seus estudos.

Esse relato me pareceu bastante representativo da agitação interna ligada ao intenso temor da morte que se instalou no seio de toda a família. Durante as sessões, o terror foi sendo significado como um medo horripilante de perda, tanto dos pais quanto dos avós (a quem as crianças não podiam visitar), bem como da própria vida. Em uma tentativa desesperada de conter essas angústias sem nome (Bion, 1962/1994), João passou a buscar a cama dos pais, situação que perdurou mesmo após a pandemia perder força.

Investigando a história de vida do menino, os pais relataram ter passado por uma gestação e um parto tranquilos, porém a amamentação foi difícil, não ocorrendo no seio. A mãe contou que tinha leite, “mas ele não descia”. Aliviou-se com a introdução da mamadeira. Em relação ao sono, o bebê inicialmente foi colocado próximo da cama dos pais durante a noite, mas estes consideraram insuportáveis seus movimentos e sons, retirando-o do quarto do casal após alguns dias e pondo-o em seu próprio quarto, quando, então, puderam dormir de forma mais sossegada.

Esses relatos deixaram-me inquieta quando os escutei, pois os pais falavam sobre eles com alguma culpa, mas, ao mesmo tempo, com certa frieza, demonstrando a dificuldade que sentiram no contato íntimo com seu bebê. Imaginei o recém-nascido João, sozinho com suas angústias em um quarto escuro, à mercê de fantasmas que não compreendia, distante do corpo e da mente materna, que deveriam ser naturalmente responsáveis pela recepção, contenção e metabolização das protoemoções que chegavam ao seio da dupla em estado bruto.

Protoemoções estão sempre se apresentando à mente sob a forma de sensorialidades difusas, as quais necessitam de diferentes graus de elaboração (Ferro, 2011). Mesmo nas mentes que funcionam bem, conter e transformar as emoções em estado bruto exige esforço do aparelho psíquico, e penso que essa capacidade deve ser desenvolvida a partir do encontro rítmico coerente dentro da dupla mãe-bebê (Dall’Agno, 2021). Em situações de extrema vulnerabilidade, no entanto, até as pessoas que passaram por uma maternagem rítmica razoavelmente adequada poderão experimentar uma falha nesse processo, como atestam alguns trabalhos desenvolvidos sobre o tema da crueldade (Bollas, 1995; Caron et al., 2000; Maia & Santos, 2022).

Para Cláudia, mãe de João, foi difícil apresentar-se ao seu bebê como um objeto interno-externo com o qual ele pudesse se relacionar, que ele pudesse destruir e sentir que sobreviveu aos seus ataques (Winnicott, 1969/1975), pois, durante a infância, ela própria tivera uma relação extremamente ambivalente com os pais, em especial com a mãe. Eles foram vividos como abandonantes e pouco continentes, uma vez que trabalhavam em demasia, e Cláudia sentia-se muito só. No entanto, ela acabou por identificar-se com tal aspecto, o que a levou a atuar esse abandono com o próprio filho, sentido como um bebê exigente, perseguidor, do qual ela deveria afastar-se, evitando uma maior proximidade íntima para melhor se defender.

Ao receber João em meu consultório, deparei-me com um menino ansioso, cheio de medos e muito necessitado. Costumava entrar na sala e, ao mesmo tempo que tentava brincar, falava e falava sem parar, contando-me histórias confusas e mórbidas sobre mulheres mortas, transplantes de coração de peixes que eram realizados por ele e gangues que sequestravam cadáveres para então esquartejá-los e costurar partes de uns em partes de outros. Enquanto falava, mexia com massinha de modelar e muita tinta vermelha, criando pessoas disformes, cujo interior era aberto e ensanguentado. A mesa de trabalho da sala de análise transformava-se em uma mesa que lembrava uma chapa de açougue ou um matadouro, com papel molhado, massa de modelar e tinta vermelha espalhados de maneira caótica. Sua caixa de brinquedos pessoal, na qual eu colocara materiais que sabia que gostava, no início parecia algo semelhante a um contêiner cheio de lixo e, aos poucos, suas laterais foram ficando totalmente destruídas. Foi quando substituí a caixa de João por outra, de plástico resistente, onde colocávamos o material quase que completamente destruído.

Eu percebia essa caixa como dura, sem vida, representando o mundo interno frio, caótico e despedaçado do menino. Com frequência me perguntava se conseguiria suportar e sobreviver aos esquartejamentos realizados pelo paciente durante a sessão. Ao mesmo tempo, sabia que era esse o caminho que a análise precisava seguir. Era absolutamente necessário que eu suportasse e sobrevivesse aos ataques que João realizava aos seus objetos primordiais, os quais eram reeditados na transferência, objetos esses possivelmente percebidos como passíveis de não sobrevivência (Abram, 2023; Roussillon, 2009; Winnicott, 1969/1975).

Creio que um dos elementos responsáveis por nos ajudar a tolerar o terror que se instalava nas sessões foi a presença da gatinha. Desde o início, João encantou-se com ela, solicitando que o animalzinho entrasse na sala. De maneira desajeitada, ele tentava segurá-la no colo e, apesar de estar em posição pouco confortável, estranhamente Pituta tolerava e não fugia das investidas do menino. Por vezes, ele se mostrava muito agitado e a machucava, quando então ela fugia pela janela. Mas, após algum tempo, retornava. Parecia querer dizer a todos que João, apesar dos modos desajeitados oriundos de seu caos interno, necessitava de uma presença confiável que não temesse sua agressividade. Quando João abria a sua caixa-lixo para procurar materiais, Pituta caminhava lentamente sobre a mesa, aproximando-se de forma vagarosa da caixa até se instalar dentro dela, sobre papéis picados e brinquedos quebrados, ronronando sem parar. Enquanto isso, João construía bonequinhos de massa de modelar, em seguida preenchia-os de sangue-tinta vermelha e depois esquartejava-os, sujando toda a mesa, o chão e o banheiro, tendo a garantia de um clima de afeto que eu e Pituta conseguíamos lhe proporcionar. O comportamento da gata, que, com seu instinto felino, procurava uma caixa quentinha para deitar-se e aconchegar-se, ajudava-me a manter a mente também aconchegante e receptiva aos terrores contidos na caixa-mente de João. Dessa forma, foi possível a instalação no campo analítico de um clima de afeto e compreensão que levaria a movimentos de restauração do caos instalado dentro da mente do menino.

Na medida em que eu, muito auxiliada pela gatinha, conseguia fornecer esse espaço, gradativamente foi se criando um clima propício ao surgimento de brincadeiras mais integradas, menos agressivas e caóticas. Certo dia, em uma das sessões que ocorriam no horário vespertino, João solicitou que brincássemos de esconde-esconde no escuro. Depois de desligarmos as luzes, percebi que ele pegava Pituta no colo, apesar de minha proibição quanto a isso, pois temia pelo bem-estar da gatinha. Assim, ele repetia na sessão, em um clima de prazer e muita angústia, aquilo que acontecia em suas investidas noturnas, quando transgredia os frouxos limites dados pelos pais em relação à cama do casal. A linguagem pôde, então, ser instalada, viabilizando que falássemos a respeito de seus ataques aos pais e à sua fertilidade, do ódio que sentia pelo fato de ter um irmãozinho e do intenso temor de que surgissem outros mais.

A linguagem, nascida do vínculo (Dall’Agno, 2021; Golse & Desjardins, 2005) que foi permitindo ataques e restaurações com a presença de afeto e limite, aos poucos instalou-se com toda a sua força simbólica, possibilitando lentamente a elaboração de fantasias cruéis. Tais fantasias levavam à tentativa de matança de objetos internos sentidos como pouco continentes, pouco presentes, muito permissivos e, por isso mesmo, altamente vulneráveis, estando em permanente risco de morte. Devido a essas fantasias cruéis e despedaçadoras, João desenvolvia-se como um menino frágil, vulnerável, que atacava suas capacidades. Era cruel consigo mesmo como produto da culpa pelos ataques fantasiados aos pais, ataques sentidos por ele como despedaçadores, que poderiam levar à não sobrevivência psíquica de seus objetos internos (Abram, 2023). Assim, no decorrer da análise, era fundamental que eu, acompanhada de Pituta, sobrevivesse a tais ataques, para que o menino pudesse evoluir de uma relação com o objeto para uma outra, de uso do objeto (Winnicott, 1969/1975).

Comentários finais

Uma razão mais fundamental que levou os seres humanos a aceitarem os gatos em seus lares é que os gatos os ensinaram a amá-los.

Esta é a verdadeira base da domesticação dos felinos. Os gatos são tão atraentes que foram vistos muitas vezes como seres humanos vindos de outro mundo. Os humanos precisam de alguma coisa além do mundo humano, ou ficam loucos.

JOHN GRAY, Filosofia felina

Creio que essa afirmativa de John Gray não se aplica somente aos gatos, mas a todos os animais de estimação. Freud já pontuava, na entrevista para Viereck (1926/1988), o sofrimento dos seres humanos por necessitarem dividir sua personalidade para se adaptar à cultura, evitando assim ficar loucos, à mercê de suas pulsões. Ferro (2011) fala acerca de protoemoções em estado bruto que, se não forem adequadamente domesticadas, acabam por se transformar em potencial material para as atuações mais diversas e para a loucura. Os animais, cujos instintos levam a comportamentos simples e diretos, podem vir a ser eficientes e tranquilizadores companheiros, pois servem como tela de projeção de diferentes aspectos internos, desde os mais cruéis, vingativos, hostis e temerosos, até os mais amorosos, construtivos e propiciadores de amparo psíquico.

Como antes realçado, Freud, durante os terríveis tempos vividos sob a ameaça nazista e de seu cancro na boca, duas situações que deviam levar a temores como desamparo e morte, tinha uma companhia inseparável em seu cão da raça chow-chow, que talvez lhe proporcionasse aconchego e sentimentos de restauração. Assim aconteceu comigo e com Pituta, que chegou durante a pandemia, um momento em que eu precisava conter e auxiliar, através de compreensão e transformação, o terror das ameaças de morte que pairavam sobre todos nós.

Logo que se sentiu cuidada, alimentada e amparada, ela seguiu fazendo o mesmo que todos os gatos: caçar passarinhos e trazê-los até mim, bem como gafanhotos e baratas que encontrasse por aí, exercendo seu instinto naturalmente predador. No entanto, ela também se aconchegava em meu colo ou em um sofá próximo, nos intermináveis dias de atendimento em celulares e computadores. Creio que a sensação de bem-estar, aconchego e tranquilidade proporcionada por Pituta ajudava-me na conexão com partes minhas humanizadas e restauradas, as quais me habilitavam a estar presente como uma mente disponível para os pacientes, ainda mais no momento repleto de crueldade e morte que estávamos vivendo.

Cláudio, um médico que, em sua prática clínica, costumava perder um ou dois pacientes por ano, contava-me em todas as sessões sobre as mortes por ele presenciadas dentro do hospital durante o período pandêmico, as quais passaram a ser uma ou duas diariamente, referentes aos pacientes que estavam sob seus cuidados. Com o retorno das sessões presenciais, deparou-se com Pituta na janela do consultório e fez questão de que eu permitisse a sua entrada. A gatinha rodeou a poltrona do paciente, depois dirigiu-se a mim, andou pelo divã e, ao final da inspeção, aconchegou-se em meu colo. Enquanto isso, Cláudio comentava, encantado e nada surpreso, sobre como ela gostava de estar comigo, de se aconchegar, de estar perto e receber calor. Ele, evidentemente, falava também de nossa relação, de como minha mente foi um colo fundamental para que tivesse forças a fim de tolerar o horripilante período que agora retrocedia.

Como vimos, João viveu uma cota de horror dentro de si ainda bebê, um horror pouco significado no seio da dupla mãe-bebê. A pandemia fez eclodir esses sentimentos, provocando sintomas bastante difíceis de serem contidos. Era necessário que ele encontrasse um espaço onde pudesse atacar seus objetos internos, que deveriam sobreviver a ele para então serem restaurados dentro de si. Tolerar esse processo, atravessando junto com o paciente o caminho do caos e da destrutividade, foi-me possível graças aos meus aspectos-Pituta, aspectos agressivos, mas também, e fundamentalmente, aspectos amorosos, criativos, continentes e tolerantes. Para nós, psicanalistas, todos os dias de trabalho junto aos pacientes devem ser, necessariamente, nossos dias com Pituta.

Referências

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Recebido: 16 de Março de 2023; Aceito: 18 de Setembro de 2023

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