Pode algum método de comunicação ser “suficientemente penetrante” para atravessar a cesura na direção do pensamento consciente pós-natal e de volta ao pré-natal, no qual pensamentos e ideias possuem sua contraparte em “tempos” ou “níveis” onde eles não são pensamentos ou ideias?
WILFRED R. BION
Introdução
É frequente observarmos em alguns de nossos jovens pacientes um enorme sofrimento pela pressão que sentem para corresponder a alguma imagem que julgam ser esperada deles, sem terem, entretanto, desenvolvido uma condição interior correspondente. Sentem-se sempre falhando.
O corpo é um dos principais focos de interesse desses jovens. Muitos dedicam-se com afinco à prática de exercícios físicos, à musculação e a outros tipos de atividade nessa área. O corpo pode acabar tornando-se um meio através do qual constroem a imagem de um personagem forte, musculoso, poderoso, sem uma contraparte interna que o acompanhe.
Esse corpo musculoso pode adquirir a função de uma armadura protetora diante da vulnerabilidade a que ficam expostos pela ausência de uma estrutura interna sólida. Essas seriam manifestações da mente primordial, em que a consciência da separação corporal do objeto não foi estabelecida. Sentem-se especialmente atraídos pelas sensações corporais que obtêm do contato, e não pelas fantasias que podem surgir.
O corpo é o principal meio de expressão desses indivíduos. Queixam-se com frequência de que se sentem desconfortáveis no próprio corpo, um corpo composto por partes separadas, esparramadas, que não formam um todo e não estão conectadas à mente.
Em uma de suas sessões, Pedro, de 20 anos, diz:
Eu estava pensando na série de exercícios desta semana. Eu quero trabalhar minha força. … Fiz um bom treino com a parte superior do corpo, com meus braços, mas a força das minhas pernas diminuiu em comparação com o resto do meu corpo. Quero equilibrá-las agora, a parte superior com a parte inferior.
Poderíamos perguntar: de qual equilíbrio Pedro estaria falando? De que parte superior ou inferior ele está falando? Pedro demonstra uma noção do eu em pedaços - em partes que não podem se unir e não podem produzir um todo. Ele não desenvolveu uma linguagem que possa conectar o seu corpo à sua mente.
O meu propósito neste artigo é investigar o papel do corpo nos estados mentais primordiais. Considero que o corpo nesses estados é um “corpo desabitado” (Maiello, 2011), sem um eu interior que o habite. Desenvolvo ideias sobre o funcionamento da mente primordial e examino a linguagem utilizada pelo analista para auxiliar o paciente a tornar-se corpo, ser um corpo, de modo a conectar o corpo à mente. Apresento o material clínico de Pedro para ilustrar essas ideias e abrir o tópico à discussão.
Mente primordial
Em sua prática clínica, o psicanalista deve se perguntar, a cada movimento da sessão, quem é o paciente com quem se encontra e em que nível mental está operando - em nível neurótico, psicótico, ou primordial, autístico e não integrado. As regras que operam em níveis neuróticos ou psicóticos são bastante diferentes daquelas que operam nos níveis primordiais (Korbivcher, 2010).
Freud é o autor que apontou a continuidade entre a vida pré e pós-natal. Segundo ele, “há muito mais continuidade entre a vida intrauterina e a primeira infância do que a impressionante cesura do ato do nascimento nos levaria a acreditar” (1926[1925]/1976b, p. 162).
Essa afirmação de Freud deu início a um amplo campo de investigação sobre o psiquismo pré-natal na psicanálise contemporânea.
Em seus últimos trabalhos, Bion (1976/1987 a 1997) demonstrou grande interesse pelo funcionamento dos estados mentais embrionários e dos fenômenos mentais primordiais, assim como por seus efeitos nas comunicações infantis pós-natais e suas relações.
Apresentarei algumas noções sobre a mente primordial já apontadas em trabalhos anteriores, de modo a poder circunscrever o campo em que estou operando (Braga & Korbivcher, 2018; Korbivcher, 2020).
Para Bion, a mente primordial é o ponto de partida da atividade psíquica:
É possível para nós, como psicanalistas, pensar que ainda pode haver vestígios no ser humano que sugerem uma sobrevivência na mente humana, análoga à do corpo humano, de evidências no campo da óptica de que antigamente existiam as fossas ópticas, ou no campo da audição de que antigamente existiam as fossas auditivas? Existe alguma parte da mente humana que ainda apresenta sinais de uma intuição “embriológica”, seja visual, seja auditiva? (1977, p. 44)
Bion relaciona a mente primordial a um tipo de embriologia imaginária da mente. Para ele, os equivalentes mentais dos resquícios embrionários são aparentes mesmo em indivíduos civilizados e cultos que exercem a função desenvolvida da fala. Sugere que as sensações pré-natais podem ser a origem das protoemoções, incluindo estados de terror subtalâmico. Esse tipo de medo não é controlado pela mente e, portanto, não adquire significado. Expressa-se por intensas manifestações corporais de resquícios de partes pré-natais, envolvendo as glândulas adrenais e a secreção de adrenalina, que são ativadas em determinado momento (Braga & Korbivcher, 2018).
Como diz Bion, “o mais próximo que posso chegar de lhe dar um título provisório é de estados inacessíveis da mente” (1997, p. 50).
A mente primordial contém resquícios embrionários não nascidos, que não foram transformados e que permanecem presentes mesmo na mente dos indivíduos neuróticos ao longo de sua vida. A ênfase de Bion na mente primordial favorece o reconhecimento do indivíduo dessas manifestações sem representação, transitando por elas e, eventualmente, transformando-as em algo significativo, que possa ser pensado e nomeado.
Uma das descobertas fundamentais da psicanálise, segundo Bion, seria o contato com estados mentais arcaicos, com padrões primitivos de comportamento que podem ser detectados mesmo nos indivíduos mais civilizados e cultos.
Mas a pergunta é: “Como poderíamos penetrar na cesura do nascimento?” (Bion, 1977, p. 46).
Para o analista, o ponto crucial em sua prática é como transpor a cesura que separa os universos pré e pós-natal e estabelecer uma comunicação entre esses dois mundos.
As manifestações desses estados mentais arcaicos podem ser identificadas pelo analista por suas características: “estar só e dependente”, “urge por existir” e “consciência moral primitiva” (Bion & Bion, 1981; Braga & Korbivcher, 2018; Mattos & Braga, 2013).2 Na prática clínica, os estados mentais primordiais podem ser reconhecidos por transformações não integradas e transformações autísticas (Braga & Korbivcher, 2018).3
A tarefa do analista seria desenvolver uma linguagem que permita ao paciente estabelecer uma comunicação com sua mente primordial, ou seja, estabelecer um contato entre seu corpo e sua mente, ou entre as sensações e a psique, e eventualmente criar um eu interior que habite seu corpo.
Corpo
Como Freud afirma, “no início da vida o ego é antes de tudo um ego corporal” (1923/1976a, p. 41). Isso significa que, desde o início, o indivíduo tem um senso de identidade derivado da consciência de que ele tem um corpo, que ele é esse corpo e que esse corpo tem alguma percepção de si próprio. Isso também lhe permite reconhecer a presença do outro separado e, dessa forma, começar a estabelecer relações (Maiello, 2011).
Maiello escreve:
É difícil imaginar um corpo vivo sem uma consciência sequer fugaz de si mesmo. Ser o próprio corpo e saber sobre ser esse corpo parece estar no cerne do senso de identidade e da capacidade de se relacionar com outros seres vivos. (2011, p. 112)
Isso sugere que todo corpo vivo tem uma consciência de existência de curta duração desde muito cedo na vida. Essa consciência se desenvolve através da relação individual com o próprio corpo pela noção de ter um corpo e de ser aquele corpo.
De acordo com Winnicott (1945/2000), no início da vida, a integração é tão importante quanto o desenvolvimento do sentimento do que está dentro do próprio corpo. Para o autor, a natureza humana é psicossomática: psique e soma tendem a integrar-se progressivamente em uma unidade, de tal forma que a psique reside no corpo. Para que isso aconteça, afirma Winnicott, “deve haver uma presença viva e contínua de alguém para segurar e cuidar do bebê, proporcionando-lhe a experiência de estar junto através do olhar de uma mãe e estar em seus braços” (1988/1990, p. 29). Podemos supor que, com essa experiência, estabelece-se uma ligação íntima entre soma e psique, em que a psique se aloja no corpo.
Seguindo o mesmo conceito, Bick (1986, 1968/1991) introduz a noção de pele psíquica como um dos rudimentos da noção do eu. Afirma que a partir da introjeção de um objeto externo, interagindo continuamente com a superfície do corpo do bebê, vai se formar uma pele psíquica, movendo-se em direção às fantasias do espaço interno e externo. Observa que, caso esse processo falhe por qualquer motivo, uma segunda pele com características autísticas será desenvolvida com a função de proteger o bebê de experiências não integradas intoleráveis. A ameaça de cair em um espaço sem fim, de se dissolver e se derramar, é expressão desses estados não integrados - ou seja, a ameaça de perder a noção de sua própria existência (Bick, 1968/1991; Tustin, 1990).
Pacientes que operam em estados autísticos relacionam-se por adesividade (Bick, 1986; Meltzer, 1975/1986), sem haver qualquer espaço entre o eu e o outro, entre um interior e um exterior. O indivíduo nesses estados nutre, por meio de atividades autossensuais, experiências de continuidade com o objeto, evitando sentimentos intoleráveis de terror diante da consciência da separação do corpo. O corpo corresponde a um exoesqueleto patológico, sem conter em seu interior um endoesqueleto que lhe propicie a sensação de existência psíquica. Nos termos de Maiello (2011), trata-se de um corpo desabitado.
Para a autora, ser um corpo e ter um corpo estão ligados à consciência de habitar o próprio corpo, o que permite ao indivíduo desenvolver um sentido de alteridade. Maiello pergunta: “Qual é a experiência que se pode esperar de uma criança autista de seu próprio corpo, se não há sujeito, nenhum ego capaz de experimentar a si próprio como eu e, portanto, o corpo como meu corpo?” (p. 110).
Podemos dizer que uma criança autista vivencia seu corpo como um não-corpo, como não ser um corpo. É um corpo plano, sem volume e sem forma definida, sem delimitação, que se espalha em pedaços, em partes que não se encaixam. Para obter um estado mais coeso, a criança adere a outro corpo, ou permanece recolhida no interior de uma concha protetora, absorta por atividades autossensuais.
Pedro
Pedro, 20 anos, estudante de engenharia, está em análise comigo há aproximadamente dois anos. É um rapaz não muito alto, forte, musculoso. Seu olhar é distante e um tanto inexpressivo. A marcha é arrastada, parecendo carregar um enorme peso em seu corpo. A voz é baixa e a fala é monótona, sem nenhuma modulação afetiva, o que dificulta identificar o que está comunicando. Queixa-se de uma grande falta de motivação para os estudos. O maior foco no momento está em seu corpo e nos treinos na academia.
Uma sessão
Ao chamar Pedro para a sessão, encontro-o absorto em seu celular, com fones de ouvido na orelha. Quando me vê, rapidamente tira os fones, se levanta, estende a mão flácida para me cumprimentar e lança um olhar fugaz em minha direção, fazendo um aceno com a cabeça. Caminha com um andar desarticulado para a sala, deita-se e, assim como em muitas sessões, pergunta de forma rápida, silenciosa e tímida: “Oi, tudo bem?”.
Eu sou enfática ao retornar a ele: “Tudo bem aí?”.
Pedro não reage, permanecendo em silêncio por longo tempo.
Mais adiante, indago sobre o que está pensando, e com a sua voz grave, monótona e sem emoção, como se falasse sozinho, diz que está pensando em seu plano de exercícios para a semana, que está pensando em adicionar mais exercícios para as pernas, porque acha que elas estão muito fracas e finas.
Eu quero trabalhar minha força para melhorar o meu jogo de vôlei, para ficar mais saudável. Eu só queria ficar mais forte. Eu pensei mais na minha aparência e não trabalhei minhas pernas. Fiz um bom treino com a parte superior do corpo, com meus braços, mas a força das minhas pernas diminuiu em comparação com o resto do meu corpo. Quero equilibrá-las agora, a parte superior com a parte inferior.
Acompanho essa fala concreta, sobre pernas, braços e partes inferior e superior. Sinto-me imersa num estado mental disperso, sem qualquer vinculação afetiva com o momento. Escuto apenas sons desarticulados, sem qualquer emoção. De repente, ao despertar desse estado, me dou conta de que Pedro, à sua maneira, está me apresentando a sua autoimagem: um corpo em pedaços, partes que não se juntam - pernas, braços -, sem um eu interior que o habite. Compartilho com ele algo próximo a essa ideia.
Ele diz: “Se eu pudesse equilibrar tudo isso, uma parte seria capaz de ajudar a outra”.
Pedro mergulha novamente em um longo período de silêncio…
Sinto-me isolada, sem um interlocutor com quem me comunicar. Minha tendência seria me refugiar em meus próprios pensamentos e me evadir do contato. Ao me dar conta disso, no entanto, recobro minha função e convoco Pedro para nos comunicarmos. Caso contrário, ambos permaneceríamos nesse estado por longo tempo.
Digo-lhe que talvez ele não esteja apenas falando sobre braços e pernas, mas que parece não ter encontrado dentro de si o equilíbrio que lhe dê alguma sustentação interior e uma orientação sobre como se comunicar comigo. Digo que está falando do equilíbrio do corpo, da parte superior e da parte inferior, mas pergunto se o equilíbrio que busca não seria entre o seu corpo e a sua mente.
Fica surpreso. Um tanto perplexo, pergunta: “O que é isso? Isso é emoção?”. Depois de algum tempo, diz pensativo: “Acho que a minha emoção está ligada ao meu corpo porque, depois de malhar, me olho no espelho e me sinto satisfeito, de bom humor quando vejo meu corpo”.
Respondo que talvez os exercícios lhe ofereçam a ideia de ter algum contorno em volta do corpo, dando-lhe a sensação de ter pelo menos uma existência no corpo, como essa que vê no espelho.
Nesse momento, noto uma mudança naquele clima estagnado e sem emoção. Pedro parece estar mais presente e vivo. Ele diz:
Acho que meu constrangimento ao falar, ao começar a falar, melhorou pela forma como me vejo fisicamente. Isso tira meu constrangimento. Quando as pessoas falam sobre política, eu me sinto um pouco tonto. … Mas em geral, depois dessa mudança física, estou me sentindo um pouco mais seguro.
Digo que talvez algo tenha sido construído dentro dele ao longo dessa nossa conversa, dando-lhe mais confiança para se comunicar. Pedro afirma que ultimamente está mais confiante para se expor, sem precisar mais fingir ser invisível, como às vezes fazia durante a faculdade, sentando no fundo da sala de aula e olhando para o chão, e não para frente. Diz que agora está olhando para frente, fazendo contato visual com quem vem em sua direção, e está presente mesmo quando não tem nada a dizer.
Sinto-me tocada por seu sofrimento diante do terror causado pela consciência do outro separado e das manobras que necessita fazer para enfrentar essa situação. Transmito-lhe essa ideia e acrescento que manifesta com o corpo aquilo com o que lida internamente. Observo que sente que esses pedaços espalhados ao seu redor - parte superior, parte inferior, pernas, braços - não lhe dão a ideia de ter uma existência própria. Há apenas pedaços, partes espalhadas. Pedro responde:
Sim! Quanto mais pedaços há, mais envergonhado eu me sinto. É difícil quantificar essas coisas emocionais. Com a imagem corporal é mais fácil. Podemos ver as mudanças em tudo - no físico e no emocional. Sinto-me mais satisfeito recentemente, com o meu desempenho. Eu posso ver uma melhora!
Observo que ele, aparentemente, ao longo da sessão, deixou de ser invisível como estava no início. No começo, falava sobre seus exercícios da academia, fortalecer a parte de baixo, mas conforme conversamos surgiu o prenúncio em sua mente de algum equilíbrio entre mente e corpo, ao se olhar no espelho e enxergar o contorno de uma pessoa satisfeita com a própria imagem.
Percebo Pedro entusiasmado, mais vivo, curioso, mostrando mais emoção do que eu já havia observado antes.
PACIENTE: Outra coisa que posso observar no físico e no emocional é que eu achava que não conseguiria aumentar meu físico muito magro. Achei que sempre seria tímido em qualquer situação. Eu rapidamente desisti de falar. Essa percepção também mudou. Achei que não precisava continuar sendo tímido. Agora tenho o desejo de me afirmar. Eu pensei que sempre seria assim, mas agora vejo que pode ser diferente.
ANALISTA: Para alguém que falou que não tinha nada a dizer hoje… como está sendo essa conversa para você?
PACIENTE: No começo, eu estava me sentindo mais reservado, como na sessão de ontem. Agora isso mudou. Eu não estou tão hesitante. Hoje a conversa foi mais fluida, mais direta.
Digo-lhe que está de fato mais presente, não precisando se esconder ou permanecer invisível.
A sessão termina. Pedro se levanta e, desta vez, aperta minha mão com certa firmeza. Ele me olha nos olhos, me dá um sorriso sutil e sai.
Comentários
Pedro opera predominantemente em estados primordiais da mente. Ele manifesta importantes barreiras autísticas. Seu olhar sem emoção e distante, as mãos flácidas, o tom de voz baixo, além de seu silêncio e reclusão nas sessões, são sugestivos desse estado. O cabelo comprido e oleoso que cobre seu rosto remete à uma máscara que o protege diante da presença do outro. Pedro busca refúgio em seu abrigo, distanciando-se do universo humano, de modo a não desenvolver recursos para compartilhar experiências vivas com os demais.
Na sessão descrita, ao nos encontrarmos, Pedro põe em prática o seu ritual, estendendo a sua mão mole para mim e a sua pergunta habitual: “E aí?”. Ele recorre a essas manobras autísticas com a intenção de se proteger das ameaças experimentadas diante da presença da analista como pessoa separada.
Depois de um tempo, a analista o convida a se comunicar. Ele rapidamente fala sobre aumentar a quantidade de exercícios para o corpo. Fala de um corpo em pedaços, com partes que não se juntam: pernas, braços desarticulados, parte superior, parte inferior. Fala sobre a falta de equilíbrio em seu corpo. Com a concretude dessa narrativa e a falta de emoção, a analista tende a evadir-se, mas é capaz de recuperar seu posto e dar sentido ao que está presenciando: a descrição da autoimagem de Pedro - um eu em pedaços, sem um contorno que forme um todo, sem um equilíbrio entre as partes que permita sustentá-las.
Pedro apresenta dor ao perceber essa condição e tenta reunir esses pedaços e encontrar “um equilíbrio”. Esse cenário comove a analista, e estando em unicidade com o estado mental de Pedro, convida-o a abandonar seu refúgio autístico e compartilhar com ela o seu desconforto, a sua dor.
Pedro sente-se acolhido e contido pela analista, tornando-se mais vivo, curioso, o que lhe acarreta a noção de ter um contorno em seu corpo - sua imagem corporal refletida no espelho. A analista lhe sugere que o equilíbrio que estava buscando poderia ser entre sua mente e seu corpo. Pedro sente-se atraído por essa formulação, tornando-se curioso e estimulado a vivenciar os primórdios da presença de um eu que habite o seu corpo. A partir desse momento, Pedro deixa de ser invisível e demonstra interesse em manter contato com a analista.
Discussão
Como Maiello (2011) enfatiza, os estados mentais primordiais carecem de um sentido de existência, inclusive de existência do corpo. O indivíduo não é capaz de desenvolver a noção de um corpo, a noção de que ele tem um corpo.
Pedro expressa de maneira incisiva aquilo que significa um corpo desabitado. Trata-se de um corpo em pedaços: pernas, braços, parte superior, parte inferior, ausência de equilíbrio entre as partes, ou melhor, ausência de equilíbrio entre mente e corpo, os quais não chegam a constituir um todo.
Resta uma questão: como o analista é capaz de proporcionar ao paciente uma comunicação entre a mente e o corpo - ou, nas palavras do próprio Pedro, entre o corpo e a emoção? Como o analista pode penetrar na cesura do nascimento (Bion, 1977)?
Pedro desenvolve manobras autísticas diante de um desamparo extremo, diante da consciência da separação corporal do objeto. O corpo é o seu principal meio de comunicação. É através do corpo que ele expressa com o que está lidando. Permanece no interior de uma concha e ali fica protegido, invisível e insensível à troca viva entre as pessoas. Torna-se desse modo suficiente para si mesmo, evitando ter que lidar com sua vulnerabilidade em face da alteridade.
Pedro desenvolveu um exoesqueleto patológico, sem conter um endoesqueleto, que lhe permitiria ter a noção de uma existência interior. O paciente depende da adesividade ao objeto como forma de obter um estado mais coeso, por meio do qual entretém um estado de continuidade e um sentido de existência ao menos em nível corporal.
A situação mental de Pedro chega a ser comovente e, em unicidade com esse estado doloroso, um corpo em pedaços, a analista tenta reunir tais pedaços, convidando-o a compartilhar com ela a sua dor. A analista diz que Pedro talvez não estivesse interessado em pernas e braços, mas provavelmente estava procurando algum suporte interno para sustentar todas essas partes juntas, para permitir-lhe estar com o outro, inclusive com a própria analista. Este seria o equilíbrio que estava procurando: um equilíbrio entre sua mente e seu corpo. Pedro demonstra surpresa diante dessa formulação e, em tom de espanto, pergunta: “O que é isso? Isso é emoção?”.
Pedro parece atraído pela emoção da analista expressa nessa comunicação. Trata-se de uma linguagem de emoção (Korbivcher, 2020),4 em que a analista, em unicidade com o estado mental do paciente, torna-se a emoção do momento, uma emoção expressa pela modulação da sua voz, pela sua expressão facial, e não pelo conteúdo das palavras. É essa emoção que convoca o paciente a entrar em contato.
Pedro demonstra curiosidade ao perceber que sente emoção ao olhar a imagem do próprio corpo no espelho da academia e fica feliz com o que vê. Nesse momento, pode enxergar o contorno da sua imagem, do seu corpo, possivelmente refletido no olhar da analista, um olhar atento, interessado, pleno de emoção. Essa imagem, como ele diz, o agrada. Parece ter se sentido estimulado a considerar os primórdios de uma mente emergindo de seu corpo desabitado. Deixa de ser invisível na sessão, tornando-se mais vivo e interessado no contato com a analista.
Podemos supor que esse seja o início do desenvolvimento de uma linguagem entre Pedro/corpo e Pedro/mente. Seria esse o equilíbrio que ele buscava, o nascimento de um Pedro “tornando-se um corpo”?
Nosso desafio como psicanalistas que trabalham com pacientes como Pedro é estimulá-los a constituir uma mente, de forma que os elementos mentais primordiais ainda não nascidos se convertam em elementos psíquicos passíveis de habitar aquele não-corpo, de modo que este possa eventualmente tornar-se um corpo.
Ou seja, estabelecer uma comunicação entre “o que está enterrado em um passado esquecido e em um futuro por vir” (Bion, 1977, p. 125). Em outras palavras, estabelecer uma comunicação entre os estados mentais ainda não nascidos da mente e a mente pós-natal.