O livro Psicanálise: uma atividade autobiográfica, de Anne Lise Di Moisè S. Silveira Scappaticci, apresenta a incansável busca da autora por palavras que, como ela sugere, expressem as vivências mais profundas do ser humano, ao “abrir as janelas da alma”. Enfatiza a importância de publicar o pensamento clínico entre os pares, na procura de uma linguagem pessoal - seja qual for o nome que lhe demos: de êxito, de consecução, de emoção - que alcance o outro e seja expressiva do nosso próprio outro, apenas intuído, estranho e desconhecido, alcançado transitoriamente num movimento do conhecer ao ser.
Anne se utiliza de modelos e narrativas, mostrando sua clínica com crianças e adultos, transitando entre a catástrofe e a fé no método psicanalítico, afastando-se de um referencial psicopatológico, e aprofundando-se apaixonadamente no estudo do pensamento de Bion. O livro, uma linda coleção de artigos escritos por Anne ao longo de muitos anos, revela seu interesse pelo funcionamento dos grupos, pelo grupo interno de cada um de nós, e pela experiência emocional vivida no nosso trabalho clínico cotidiano, em busca do objeto psicanalítico, do não audível e não visível.
No artigo “Vínculos e a odisseia do indivíduo no grupo”, a autora esclarece que ingressar no grupo é fundamental, “mas sempre acompanhados por nós mesmos, em parceria com nosso próprio grupo interno” (p. 34). Ressalta a impossibilidade de separar interno de externo, e expressa sua apreensão da teoria das transformações, de Bion.
Em “Agruras na busca da experiência emocional da análise de uma criança”, a autora reflete sobre a busca do analista pela apreensão da experiência emocional e sua comunicação no trabalho analítico. Considera a importância de levar em conta o grupo familiar e as turbulências em relação à análise da criança, e vice-versa, o que vemos claramente na análise de Tom, seu paciente de 4 anos. Descreve a maneira como, com sua reverie, num momento de muita angústia, pôde acolher os gritos de Tom, que aos poucos foram se transformando em música para ninar. O relato mostra várias situações dessa natureza, em que a analista é convocada e pressionada, “voando baixo” para se manter bem próxima da experiência emocional vivida .
Em “Das nuvens e dos relógios: uma reflexão pessoal acerca do método psicanalítico”, a analista discorre sobre o método enfatizando o papel da investigação, do desconhecido, da dúvida e da personalidade do analista, afastando-se da noção de neutralidade do analista e pondo em cena a noção de infinitude da realidade psíquica, tão cara a Bion. Encarece a observação da experiência emocional como elemento fundamental do método psicanalítico e a presença de aspectos indiferenciados da mente primordial, acessíveis apenas por meio da intuição analiticamente treinada, em particular no processo de atravessar cesuras da mente multidimensional. Deixa clara a importância da análise do analista em sua formação, pois vê a psicanálise como atividade autobiográfica para ambos os membros da dupla, comportando uma epistemologia pessoal do analista, no trânsito entre conhecer e ser, ilustrado pelo caso clínico de Ana, em que uma música lembrada pela analista permite um encontro genuíno entre ambas, evidenciando o método psicanalítico como “atitude ética diante do sentido inapreensível de nossa existência” (p. 88). Destaca sua fé no método psicanalítico e a importância da observação psicanalítica, da intuição, da imaginação e da personalidade do analista.
Em “The nebulous domain: dos fantasmas à psicanálise, eis a nossa questão!”, a autora faz profundas reflexões sobre o objeto psicanalítico, enfatizando sua relação com a personalidade do analista e seu caráter ao mesmo tempo material e imaterial, elementos inseparáveis e sempre presentes na clínica. Apresenta contribuições e aproximações entre Bion e Matte Blanco, especialmente na consideração pela vivência da emoção, fundamental para pensar e compor o objeto psicanalítico. Essas reflexões sobre o objeto psicanalítico se ampliam no capítulo seguinte, “Notas sobre o objeto psicanalítico na obra de Wilfred Bion”, em que a autora examina o conceito - em Freud, em Klein, até se deter em Bion - associando-o ao funcionamento grupal e à tensão permanente entre o indivíduo e o establishment, personagens do grupo interno. Acompanha as várias fases do pensamento de Bion, do qual emerge um objeto complexo e não linear, problematizando a continuidade entre as fases ou propondo uma mudança de vértice entre elas. A complexidade se associa à dupla face entre o conhecer e o “ir sendo ou tornar-se a realidade psíquica no trabalho analítico” (p. 109). O comovente caso de Evita ilustra com êxito o movimento da dupla, que parte de algo próximo a uma tela beta - sem emoção, um lixão, uma matraca -, atravessa a cesura e encontra a ternura, a beleza e uma forte emoção: “Puxa, você espalhou choro por toda a minha sala!” (p. 113). Anne usa sua intuição analiticamente treinada e privilegia as transformações em O, propondo um movimento contínuo entre as transformações em K e em O.
Na segunda parte do livro, a autora aborda ainda mais de perto a questão da autobiografia, do entrelaçamento de vida e obra, mergulhando com paixão nas autobiografias de Bion, especialmente The long weekend, War memories, Taming wild thoughts e Uma memória do futuro. Mergulha também em sua própria autobiografia, contando lindas vivências de infância, numa atividade poética e estética que nos toca profundamente.
No capítulo “Taming: transitoriedade entre si mesmo e o grupo”, a autora retoma os escritos autobiográficos de Bion, especialmente Taming, escrito no final da vida, em que Bion oferece sua própria experiência ao leitor, caçando e domesticando pensamentos selvagens, explicitando a incompletude do humano, separando sílabas de palavras desgastadas a fim de revitalizá-las, tal como faz a autora à procura de expressão para a essência da condição humana, num movimento contínuo entre consciente e inconsciente, isto é, transitando pela barreira de contato. Por meio de alguns trechos de War memories e The long weekend, ilumina a constante busca de Bion por palavras que expressem uma aproximação com as emoções vividas e a realidade psíquica, bem como sua manifestação em Transformações e Uma memória do futuro. Mostra como Bion retoma, nesses escritos, seu primeiro livro sobre grupos, evidenciando a tensão permanente entre o indivíduo e o grupo, seja este a família, a escola, a Igreja, o exército ou a própria instituição psicanalítica: “O autor descreve o crescimento na desidealização, na desilusão e na saída da indiferenciação grupal” (p. 132).
Em “M’illumino d’immenso: ficções e narrativas da autobiografia”, vários desses temas são retomados e aprofundados, sendo a psicanálise vista como uma segunda chance de nascimento psíquico, uma descoberta para a dupla analítica, uma epistemologia pessoal para o analista, em contato com sua autobiografia, e portanto com sua realidade psíquica, embora esse contato seja sempre incompleto e fugaz. A autora retoma a questão do objeto psicanalítico, insaturado e inacessível por completo, em busca de realização pelo resto da vida. Transcreve vários trechos de The long weekend e destaca os objetos escolhidos por Bion para escrever sua narrativa - o trem elétrico, a caçada ao tigre, o luto da tigresa -, que produziam profunda ressonância emocional no menino Bion, e o binômio solidão e dependência, que mais tarde ele revisita ao pensar a mente primordial. Retoma também as vivências de guerra, ressaltando a dor mental vivida e a procura de vitalidade ao lidar com tantas mortes: “Como os mesmos ossos mortos podem dar vida/fazer nascer uma mente?” (p. 148). Dessa forma, propõe a psicanálise como uma segunda chance que podemos ter na vida. No último capítulo, “Autobiografia e poética”, a autora cita Chuster, ao ver a psicanálise como uma preconcepção do self: “Ir em busca de quem somos nós, uma habilidade humana em potencial” (p. 157), que pode desenvolver a função psicanalítica da personalidade, que todos temos. Em seguida, discorre sobre as origens literárias do pensamento de Bion, apresentando vários escritores e poetas, e enfatizando o caráter autopoiético da atividade analítica, “que se vale de vivências e narrativas da infância, como num processo onírico” (p. 163). Diz ela: “O registro autobiográfico é infinito como o inconsciente, e suas possibilidades permanecem como esperança, como mola propulsora para nova investigação do indivíduo. É a fé no psiquismo” (p. 166).
Concluo com palavras da autora:
Portanto, a narrativa autobiográfica é como contar um sonho ou uma sessão. Está comprometida com a busca de verdade e não segue as regras do senso comum, a cronologia, a lógica ou a razão, a resolução de conflitos ou o pressuposto de eliminar e evitar a tensão. A tensão é uma condição intrínseca ao viver. A ansiedade, embora sem possuir atributos sensoriais, é a mola propulsora da vida. É preciso aprender a lidar com a própria personalidade. … A vida mental é fluida, efêmera e nos priva de certezas e, por isso, em algum momento, os psicanalistas odeiam o real da vida psíquica; sua existência se impõe, independe do próprio sujeito; desconcerta, apavora. (pp. 136 e 167)
Acredito que este é um livro vivo, cuja leitura nos toca; um livro que produz uma experiência emocional significativa, que nos apresenta uma psicanálise viva e atual, nos auxilia no trabalho clínico e nos põe em contato com aspectos importantes do pensamento de Bion.