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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.57 no.3 São Paulo  2023  Epub 04-Nov-2024

https://doi.org/10.69904/0486-641x.v57n3.14 

Resenhas

Do niilismo ao amor à vida: Ser ou não ser

Denir Camargo Freitas1 

Psicóloga. Mestre em psicologia clínica pela Universidade de São Paulo (USP).

1Membro filiado do Instituto Durval Marcondes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), São Paulo. decafrei@uol.com.br

Trinca, Walter. Do niilismo ao amor à vida: Ser ou não ser. Blucher, 2022. p. 248


Nenhum psicanalista pode pretender trazer a felicidade, mas o que é certo é que a psicanálise está ao lado da vida.

JEAN-PIERRE WINTER

O que teria a psicanálise a oferecer diante do desalento sistemático e da falta de encantamento? É o que se pergunta Walter Trinca neste seu novo livro, que oferece preciosos insights sobre dois temas: a compreensão de pacientes de difícil acesso, os negativistas e pessimistas, nos quais predomina o nada do ser; e a relação com a imaterialidade no encontro da profundidade da mente com a profundidade do mundo.

Por meio da psicanálise compreensiva, Trinca evidencia alguns dos fatores que desempenham papel significativo no sofrimento psíquico. Esta é sua proposta: um movimento em direção à afirmação do ser e à expansão da consciência, propiciando a harmonização psíquica com o contato do ser interior com o self, conceitos amplamente discutidos no livro. O autor põe uma lente de aumento na experiência de existência em confronto com a experiência de inexistência. Seus conhecimentos psicanalíticos, baseados numa clínica consistente e longa, interagem entre si - particularmente os relacionados a Winnicott e Bion - para pensar a questão do ser.

Começa a obra pelo desenvolvimento do pensamento pessimista na história, desde a Antiguidade greco-romana, passando pela modernidade, até chegar à pós-modernidade, mostrando como e por que sempre foi uma grande preocupação lidar com a dor mental. Com um intercâmbio entre filosofia e psicanálise, apresenta ideias sobre a visão trágica do mundo que se volta contra a natureza, a vida e o universo. Em diferentes épocas, essa tendência se desdobrou em múltiplas variantes, tornando-se concepções estruturadas do mundo. No entanto, segundo Trinca, o que aparece substancialmente é, em geral, a predominância da visão catastrófica, do pessimismo e da destrutividade.

Ao confrontar-se com os sofrimentos, as incertezas e as dificuldades que a vida impõe, o ser humano sempre construiu formas sistemáticas de pensar, alimentadas por carências, desgraças, indiferença, desesperança, horror e morte. É este o recorte que Trinca explora: formas sistemáticas de pensar de egrégios pensadores, que de um modo ou de outro nos influenciaram desde tempos remotos. Montaigne, Pascal, Schopenhauer, Freud, Sartre e Camus estão no rol dos pensadores do negativismo. A poesia de Mallarmé, o budismo, o taoísmo e o sofismo também fazem parte da trama de suas reflexões sobre o pensamento trágico, que pode afetar em maior ou menor grau a interioridade. O autor, porém, procura abrir espaço ao bem-estar, à alegria e até à felicidade, compondo seções como “O horizonte da superação”, em que tenta a reconciliação entre os princípios de vida e morte, fala da paixão pela vida e da incrível sinfonia universal, que, do caos, faz surgir a harmonia.

Em “A base de sustentação”, reforça o aspecto central da existência e a ação do ser interior na busca de raízes e significados para o encontro de si mesmo.

Ao lermos o livro, também somos embalados por textos como “A realidade como sonho”, “O mundo como imagem artística”, “A vida como expressão de alegria” e “A mente como alargamento”. Neles, o autor se refere à experiência da imaterialidade enquanto uma expressão vivencial intimamente associada à alegria. Ao lê-los, somos alertados a valorizar momentos que vivemos sem perceber sua grandeza e importância, tanto em nós como em nossos pacientes. Numa noite, por exemplo, lendo o livro ao ar livre, me dei conta de que estava envolvida por uma singela noite bucólica - o perfume acentuado da terra molhada, o canto de pássaros noturnos, a luz das estrelas -, o que me proporcionou uma forte emoção de bem-estar, alegria e paz interior. Para o autor, essa emoção foi propiciada porque o espaço mental estava isento de saturações pela sensorialidade, o que permitiu um encontro comigo mesma, com meu ser interior.

Enfim, este livro oferece uma contribuição inédita para pensar a questão do alcance pelo ser da visão binocular mental, como diz Bion, que dá profundidade e ressonância às experiências vividas e que está além dos pensamentos e emoções terrificantes. Trinca enfatiza o vazio como consequência da angústia de dissipação do self que aparece nas fobias e no pânico. Pacientes com esses quadros “costumam se perguntar se a realidade existe como um fato, dado que o mundo externo lhes parece ser um espetáculo de silêncio e morte, do qual a vida se apaga, exaurindo-se lugubremente” (p. 116). Diante de uma forma de viver sentida como tarefa ingrata e penosa, o autor alerta para os fatores e elementos que desempenham papel relevante no sofrimento psíquico e apresenta uma proposta de superação do afastamento do contato com a realidade externa e interna.

Last but not least, chama a atenção o uso poético das palavras pelo autor, para descrever fenômenos e expressar seus conhecimentos filosóficos e psicanalíticos, generosamente compartilhados neste livro, o qual, além de ter profundidade teórica, é encantador e vale muito a pena ser lido. Um breve exemplo:

A claridade diurna, como uma imagem da mente, penetra-nos com suas cores, brilhos e vibrações, por isso nos sentimos participantes da majestade da natureza com alegria e vigor. A radiância mostra-se em profundidade e, com ela, a alegria de fazer parte da vida extraordinária que nos inclui em seu seio. (p. 197)

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