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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.57 no.3 São Paulo  2023  Epub Nov 04, 2024

https://doi.org/10.69904/0486-641x.v57n3.15 

Resenha

Perto das trevas: A depressão em seis perspectivas psicanalíticas

Filipe Pereira Vieira1 

Thiago Pereira Vieira2 

1Psicanalista. Psicólogo. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor universitário, São Paulo. filipepevi@hotmail.com

2Psicanalista. Formado pelo curso superior de audiovisual da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Aluno ouvinte do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da USP e da PUC-SP. Professor universitário, São Paulo. thiagopevi@hotmail.com

Almeida, Alexandre Patricio de; Naffah Neto, Alfredo. Perto das trevas: A depressão em seis perspectivas psicanalíticas. Blucher, 2022. p. 288


A meio do caminho desta vida achei-me a errar por uma selva escura, longe da boa via, então perdida.

Ah! Mostrar qual a vi é empresa dura, essa selva selvagem, densa e forte, que ao relembrá-la a mente se tortura!

Ela era amarga, quase como a morte! Para falar do bem que ali achei, de outras coisas direi, de vária sorte,

que se passaram. Como entrei, não sei; era cheio de sono àquele instante em que da estrada real me desviei.

DANTE ALIGHIERI, A divina comédia

Você alguma vez já se perguntou sobre as delícias da vida dos grandes romancistas do presente e do passado? Já se imaginou no lugar de um deles, navegando os mares em um iate milionário? Ou então fantasiou ser o anfitrião de festas de grande fausto e opulência, levadas a cabo em propriedades medidas em acres, e não em metros quadrados? Escrever um best-seller não é para qualquer um. No entanto, em grande parte dos casos, o idílio descrito pode não passar disto: uma fantasia.

Muitos são os relatos de profissionais ligados às artes que subvertem a expectativa de uma existência paradisíaca, frequentemente nos lançando à imagem de um inferno na terra. No mundo do cinema, Hollywood mostra a sua face mais chã e visceral na biografia de astros e estrelas, muito além do brilho ofuscante dos cliques dos paparazzi; o mundo da música, com seus deuses contemporâneos, é pródigo em despedidas a jovens talentos; a arte literária já sepultou mais de um grande poeta.

Paralelamente a esses eventos trágicos, há sempre o interesse de nós, meros mortais, em saber o que se passa nas entranhas desse mundo tão pródigo em produzir sucessos e fracassos. Como alguém que tem fama e riqueza pode se permitir ser triste e deprimido? Confirmando essa aparente contradição, pode-se citar como exemplo a narrativa biográfica de profissionais ligados às artes: Matthew Perry, astro da série Friends, em publicação recente escancara sua infância problemática e sua dependência química em álcool e opioides, o que quase o levou à morte; Robin Williams tem sua trajetória descrita entre o elogio e o relato de sua depressão e consequente suicídio; Kurt Cobain, vocalista da banda Nirvana, tem sua vida contada num percurso que o leva à depressão e ao suicídio; Virginia Woolf e Ernest Hemingway, grandes expoentes das artes literárias, também mergulharam nas trevas da depressão e fatalmente tiraram a própria vida; Clarice Lispector é outra grande escritora que conheceu o demônio do meio-dia. A lista poderia continuar a perder de vista.

Ainda que o pendor artístico prescinda de justificava, o poder de atração que o campo artístico exerce é tamanho que arrebata o coração de aspirantes ao estrelato, com a promessa de uma vida preenchida de amor, atenção e cuidado. Muitas vezes são essas as lacunas que se procura preencher no calor dos holofotes. No entanto, é frequente vivenciar a desilusão. O sonho desvanece e leva consigo a promessa.

Com o escritor William Styron não foi diferente. No livro Perto das trevas (1990/1991), ele narra a desventura que o acompanha desde os mais tenros anos, quando presenciou a morte da mãe e a depressão do pai, até o despertar de seu estado depressivo patológico grave. Ainda que, em décadas anteriores, tivesse alcançado sucesso de crítica, tendo vendido milhões de exemplares de seus livros (é notável a fortuna crítica de A escolha de Sofia, cuja adaptação cinematográfica auferiu tanto prestígio quanto o romance que lhe serviu de base, ou até mais), Styron precisou batalhar por longos anos com uma depressão que o levou à beira do precipício - por vezes, chegou próximo do ato suicida.

Perto das trevas, que conta de seu mergulho nas águas lamacentas da depressão - cabe perguntar se se trata de um mergulho ou de um inundar-se -, é o ponto de partida para um grupo de pesquisadores do campo psicanalítico empreender um projeto de alto valor pedagógico: cotejar a depressão com o olhar de seis grandes teóricos da psicanálise. Como adverte Renato Mezan em O tronco e os ramos,

o fato é que existem várias escolas de psicanálise. … Uma experiência frequente o confirma: para alguém formado numa dada tradição, o primeiro contato com alguma das outras perspectivas costuma suscitar um choque de consideráveis proporções, pois efetivamente são muito diversos os referenciais do que é a psicanálise, de como se deve praticá-la e pensá-la. (2014/2019, p. 24)

Tal tarefa é capitaneada por Alexandre Patricio de Almeida e Alfredo Naffah Neto, que, além de organizarem o conjunto da obra, participam na escrita de alguns capítulos. Eis que surge Perto das trevas: a depressão em seis perspectivas psicanalíticas. Ao se proporem a analisar a narrativa do autor norte-americano, eles se amparam em seis perspectivas psicanalíticas distintas: Freud, Ferenczi, Klein, Bion, Winnicott e Lacan. Trata-se, pois, de um trabalho de monta, que se alivia diante da capacidade de síntese do ensamble. Para isso, Almeida e Naffah Neto contam com o auxílio de outros autores, que enriquecem o conjunto com um olhar afeito, cada qual, às suas especialidades teóricas. Somos, assim, envolvidos, capítulo a capítulo, na reincidência da trajetória de Styron, em trechos-chave de sua infância, de sua depressão, de suas ideações suicidas e de sua internação em uma clínica, de onde sai vitorioso - da batalha, mas não da guerra propriamente dita.

O capítulo dedicado ao olhar de Sigmund Freud sobre a depressão é conduzido por Almeida, que organiza sua elaboração partindo de dados biográficos do pai da psicanálise, até desembocar em “Luto e melancolia”, de 1917. Nesse ponto de sua argumentação, o autor coteja o texto freudiano com descrições e interpretações que o estado melancólico recebeu ao longo dos séculos. Por fim, traça a sua leitura do mal que afligiu Styron.

O olhar ferencziano atribuído a Styron ganha corpo na escrita de Almeida e de Paula Regina Peron, que salientam o fato de o autor húngaro nunca ter desenvolvido escritos dirigidos ao tema específico da depressão. Desse modo, formulam a sua elaboração revisitando a teoria do trauma proposta pelo enfant terrible da psicanálise. Mediante o mergulho em situações-chave da narrativa de Perto das trevas, os autores pensam os elementos subversivos que notabilizaram Sándor Ferenczi e sua clínica amparada na ética do cuidado. Assim, retomando sua maneira de pensar a clínica, Almeida e Peron elaboram em quais pontos do tratamento de Styron as fugas à regra podem tê-lo auxiliado em seu processo de recuperação.

A grande dama da psicanálise é trazida à baila na escrita de Almeida, que, com delicadeza e brilhantismo, mostra a trágica familiaridade que Melanie Klein tinha com o luto e a depressão. Revisitamos, então, o seu registro biográfico, marcado pela trágica perda de familiares, e somos convidados a pensar em como isso atravessou o seu pensamento e a sua escrita. Klein é criadora de um dos conceitos-chave da psicanálise, a posição depressiva, que difere da depressão patológica, conforme explicação muito bem conduzida por Almeida.

O capítulo dedicado a Wilfred Bion é redigido por Claudio Castelo Filho, que apresenta um viés dissonante na apreciação do relato de Styron. Segundo Castelo Filho, a explicação do estado do escritor encontra respaldo no entendimento que temos de estados psicóticos. O autor do capítulo procede a uma abordagem da teoria bioniana, de maneira clara e didática, mostrando como a depressão pode ser pensada sob essa perspectiva.

Em seguida, somos agraciados com a perspectiva winnicottiana, apresentada por Naffah Neto, que sintetiza a teoria de Donald Winnicott de forma primorosa, para então embarcar na análise da narração de Styron. O autor inicia o texto lançando um olhar teórico para a mais tenra infância, para os momentos iniciais da dependência absoluta, e somos cuidadosamente conduzidos ao entendimento que o pediatra britânico tinha do que seria uma “depressão saudável” - emergida do stage of concern -, para nos aproximarmos de Styron e tentar compreender as raízes do seu adoecimento.

Finalmente, temos a escrita a quatro mãos do capítulo dedicado à análise da narrativa de Styron sob o olhar do pensamento de Jacques Lacan. Marcos Paim Caldas Fonteles e Rosângela de Faria Correia apresentam, nas palavras dos próprios autores, “um arranjo de hipóteses ficcionais para um exercício acadêmico e reflexivo sobre a teoria psicanalítica” (p. 227). Com esse argumento, eles sintetizam de modo muito apropriado o exercício a que se propõem, em que pensam sobre os mais diversos conceitos, como a função do pai, da mãe, o complexo de castração, o gozo e as vicissitudes do desejo - para citar apenas alguns dos pontos que sustentam a sua reflexão.

Como arremate a esse passeio por tantas searas, no capítulo final Almeida e Naffah Neto procuram fazer uma recapitulação de tudo o que foi elaborado e advertem sobre os perigos que subjazem às visões unívocas e ao dogmatismo acadêmico. Por muito tempo, cisões das mais variadas intensidades romperam as fibras do grande manto que é o pensamento psicanalítico. Entretanto, muito mais que campos inconciliáveis, podemos vislumbrar os pensamentos psicanalíticos como um campo do saber que se apresenta como um mosaico de diferentes peças, formas e cores, cujo norte é ajudar no entendimento e apaziguamento do sofrimento humano.

Referências

Mezan, R. (2019). O tronco e os ramos. Blucher. (Trabalho original publicado em 2014) [ Links ]

Styron, W. (1991). Perto das trevas (A. S. Rodrigues, Trad.). Rocco. (Trabalho original publicado em 1990) [ Links ]

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