A palavra atravessa o espaço, procura e pousa.
Ela pousou em mim.
MARGUERITE DURAS
Introdução
Como Freud deu conta das suas teorias?
Foi pelo phármakon,2 quando criou uma terminologia científica para a psicanálise. Freud se utilizou do recurso das palavras em sua prosa até que adquirissem uma dimensão insuspeita que, ao crescer, tornou-se um método ambicioso, que apresentava um novo enfoque de todos os aspectos da vida psíquica do homem.
A psicanálise enfrentou críticas ferozes na caminhada do século passado, sendo a maior delas a dos intelectuais marxistas, e nunca foi considerada uma moda fugaz de uma época, mas uma profunda expressão burguesa: “Nenhuma pessoa que deseje compreender em profundidade a feição espiritual da Europa pode ignorar a psicanálise: ela se tornou um traço demasiadamente característico e indelével da atualidade” (Bakhtin, 2001, p. 4).
Um frasco com sangue da Medusa recém-decapitada foi ofertado pela deusa Atena a Asclépio, que mais tarde se tornaria o deus da medicina e da cura: “Dê a eles gotas deste phármakon. Isso mitigará suas dores ou os matará”. Freud também usou o termo phármakon pela sua ambiguidade, pois pode ser traduzido por remédio, veneno ou palavra.
Neste trabalho, propõe-se uma reflexão sobre o phármakon freudiano, que suscita discussões entusiasmadas e, até agora, envolve questões não solucionadas, talvez pela tendência de alçar certas palavras à condição de termos muito específicos, separando-as do uso comum. Isso foi feito com inúmeras palavras. Assim, muitos vocábulos adquiriram usos bastante técnicos, sendo empregados apenas por psicanalistas.
Como Freud poderia explicar seu modo de investigar, tratar e teorizar o funcionamento do aparelho psíquico sem recorrer a termos novos? Seu engenho necessitava de palavras próprias. Ele teve que criar um glossário, precisou formular novas designações, uma vez que a linguagem comum não tinha palavras para denominar estruturas ou lugares. Com as descobertas que fazia, foi preciso inventar novos termos. Segundo Laplanche e Pontalis (1967/2001), cerca de 300 palavras enriqueceram a terminologia.
Ambiguidade
Freud nunca teve a preocupação de definição. Mesmo assim, o avanço e a organização em seus modelos surgiam espontaneamente. Foram as traduções sucessivas que alteraram a posologia dos phármaka. De certa forma, Freud desconstruía a compreensão das palavras, dando-lhes novos significados em textos instáveis pela abordagem em outra costura. Com isso, expôs suas ideias e sua teoria em uma linguagem, mesmo corrente, não amplamente compreendida. Essa façanha, em 24 volumes, denominada Obras completas, exige a necessidade de ler e reler com cuidado, pois sempre há algo por vir. Na escrita do autor, há uma indeterminabilidade que reúne muitos elementos num empenho pedagógico. Trata-se de um conjunto de artigos, conferências e concepções inovadoras, que trouxeram consigo um lugar muito especial no pensamento ocidental, pois implicam ou propõem modos distintos de pensar a representação. Freud concedeu à escrita uma superioridade em relação à fala. Seus intérpretes e tradutores não entendiam o nível da ambiguidade que ele manuseava tão bem.
Enquanto Freud concebia a psicanálise, não percebia sua repercussão no futuro, não tinha noção do espanto e fascínio contido na subversão de suas palavras. De dentro as alargava às dimensões da cultura. Por exemplo, quando formulou o neologismo psicanálise, inventou e apresentou um nome para aquilo que estava criando, uniu duas palavras que produziram um novo termo, registrado originalmente em alemão em 1906 - em português, segundo o Dicionário Houaiss (Instituto Antonio Houaiss, 2001), a palavra apareceu em 1914, por influência francesa.
Adições e revisões frequentes tornaram a obra mais uma colcha de retalhos do que um projeto, assunto de comentários ocasionais. A teoria psicanalítica contém uma unidade de estrutura acentuada, escondida sob as múltiplas camadas de modificações ainda pouco explícitas. Os inúmeros revisores de Freud obscureceram ainda mais a ambiguidade do phármakon, cada um deles elaborando teorias independentes, ora atacando, ora negando, ora substituindo as teorias originais por outras.
Por que a obra completa de Freud passou a contar com melhores traduções somente 50 anos após ter sido escrita? Por que muitas edições mantinham uma infinidade de erros e omissões? Qual era a dificuldade? A amplitude do projeto?
As novas traduções das Obras completas buscaram maior proximidade com o texto, restituindo as inflexões e particularidades estilísticas e semânticas originais. Isso demorou para ser conquistado pelos diversos tradutores. Há compromisso com a literalidade freudiana, pois as concepções do autor nem sempre são as mesmas e até se contradizem. Trata-se de compreender de que modo a teoria se constituiu, de encarar a teoria de Freud em seu contexto, em seu phármakon articulado.
A linguagem de Freud geralmente é complicada, ou pouco familiar, aos leitores cujo contato com a matéria é superficial, pois entremeia frases e parágrafos extensos para concluir seu raciocínio. Mas essas são as fontes da psicanálise: foram elas que deram forma à teoria tal como se nos apresenta. Eis alguns exemplos de palavras do léxico de Freud: metapsicologia, pulsão (também traduzida por instinto ou por impulso), clivagem, conversão, tópica, entre outras.
Este artigo se limita a preconizar o interesse de Freud nas questões literárias entre os fatores que concorreram para sua formação como autor. A influência da literatura não é difícil de estabelecer. Foi ela que ofereceu a forma apropriada ao padrão dos instrumentos que até então os casos clínicos não tinham, nem mesmo os de Charcot. A devoção por Goethe fez Freud merecer o Prêmio Goethe em 1930. Em suma, a influência das palavras favoreceu a sensibilidade freudiana em perceber sutilezas para comunicar-se e a aptidão para caçar significados escondidos sob outros significados. O gosto pelas metáforas o levou à escrita de concepções além do Zeitgeist do século 20, tornando-o um desobediente do establishment limitante sobre a sexualidade. Como Einstein, ele disse que a observação do mundo é relativa à posição de quem observa.
Foi a palavra fora do lugar que fez Freud escrever o “Projeto para uma psicologia científica” (1950[1895]/1969). As palavras usadas por ele passam por uma revisão interdisciplinar. Assim, o autor propõe novos termos na psicanálise para a amplitude da argumentação. Nem sempre o raciocínio dos casos descritos foi indicador de legitimidade. Lentamente, Freud se transformou num mestre da arte literária alemã e, em seguida, num psicanalista procurando, nos sonhos e no território da magia, o núcleo do conhecimento.
Em 1920, Freud dá um salto e não age com prematuridade ao recriar sua teoria. Dessa criação, surgem curiosas consequências, como novos modelos de ponto de vista, os quais, embora ligados por conceitos semelhantes, não estão inter-relacionados - por exemplo, quando acrescenta a pulsão de morte, que estabeleceu uma inquietação em seus seguidores.
A primeira das dificuldades não está em abordar Freud como literato nem como autor científico, mas como autor que cria um mundo próprio chamado psicanálise. Diríamos que ele escreveu uma forma de ficção em que entrariam fatos, associações e ambiguidades, na qual a prosa tende a ser ciência, como em Júlio Verne. O autor busca envolver o leitor, seduzi-lo. Seu estilo tem algo muito peculiar: o ato de sempre estar cuidando desse leitor. Ao ler Freud, temos a impressão de que o texto está sendo formulado naquele instante. Isso acontece porque o uso das palavras varia conforme o contexto, tornando o texto móvel e flexível.
A intenção de Freud era modesta. Queria transmitir conhecimento apelando para seu leitor por meio da clareza. Entretanto, na obra freudiana, a linguagem não constitui um todo com o sentido, parece pertencer mais ao âmago da imaginação do leitor do que ao do autor.
Ao abordar um texto literário com instrumental psicanalítico, Freud não tinha a ambição de propor uma interpretação global ou dar conta de qualidades estéticas do objeto, apenas tomava em consideração dois ou três elementos da obra, como fez com a novela Gradiva, de Jensen, ou quando se ateve a poucos traçados do quadro Sant’Ana com a Virgem e o Menino, de Leonardo da Vinci. De Shakespeare, comenta modestamente duas cenas, mas seus pontos de vista residem numa palavra nova, metapsicologia, o sistema que estabelece com nitidez a distinção entre a clínica e a psicologia, um ponto de vista globalizante e ordenado.
Supomos que a psicanálise tenha sido escrita seguindo o método da livre fantasia das imagens latentes do sonho objeto de análise. Freud deu plena liberdade ao psiquismo, atenuou as instâncias que o inibiriam e deixou vir à tona a ambiguidade captada pela atenção em tudo que surgia por essa via. Foi assim que a cabeça da Medusa adquiriu independência quando foi decepada, ficando livre das amarras que a prendiam às tenebrosas profundezas. Há um paradoxo em que o monstro se torna ativo depois de morto. Na Antiguidade, essa cabeça tinha a função de máscara apotropaica (amuleto que tanto salva como mata); o ambíguo é típico do sagrado. O paradoxo, com efeito, é típico do mito no tocante ao fascínio pela mistura de beleza e horror. À medida que o trato do sagrado evolui em cada época, compete à literatura interrogar o fascinante olhar da Medusa. As palavras do pai da psicanálise também são interrogadas, pois encerram algum segredo do sagrado. Assim, se considerarmos Freud um mito, ele tem a função de criar diferenças e separar as faces do sagrado.
Veneno ou remédio
Todos nós ligados à psicanálise não temos um conhecimento imediato e pessoal dos eventos da vida de Freud. Somos como historiadores que relatam batalhas às quais não assistiram ou vastos conhecimentos sobre importantes personagens históricos, porém tratamos Freud, um homem que nunca vimos, de modo familiar. Não podemos esquecer que ele despertou a violência do sagrado, condenando-se a um destino quase maldito, opondo-se à ordem e vendo-se sob a máscara da Medusa, que o converteu em bode expiatório de uma sociedade que, depois de sua morte, iria torná-lo um mito, culto de uma razão fascinada.
Segundo Ernest Jones, Freud se pronunciou contra o fato de vir a ser objeto de estudo biográfico. Entre as alegações estava a de que a única coisa importante acerca de sua pessoa eram suas ideias, ou sua singularidade como autor que organizou todos os conceitos da psicanálise por si mesmo. No entanto, é difícil reconstruir a nitidez das construções freudianas. É preciso libertá-lo de partidos, comentários, escolas, críticas e interpretações que o encobrem e o mascaram; considerar primeiramente aquilo que ele escreveu, não a erudição posterior de seus seguidores; não tomar partido em relação às laboriosas explicações complementares de tradutores. Enfim, temos que livrá-lo desse aprisionamento, temos que usar sua apothéke (farmácia antiga, botica) para tirar lições dessa espantosa aventura intelectual, com agudo sentido de luta. Freud era um polêmico apaixonado pela alegria de criar, ou Freude (alegria), presente em seu próprio nome.
Para ilustrar essa proposta, faço uma rápida analogia entre a psicanálise e a história da Biblioteca Warburg, fundada em Hamburgo por Aby Warburg em 1901, com o intuito de estabelecer as bases de uma biblioteca para as gerações futuras. A ideia de fundar uma biblioteca decorreu de uma experiência: o autor trabalhava na Universidade de Estrasburgo em duas obras sobre um tema mitológico de Botticelli, e concluiu que seria vão buscar entender a mentalidade de um pintor do Renascimento limitando-se a uma abordagem formal. Tentando decifrar aquelas pinturas, Warburg passava muito tempo indo de uma biblioteca a outra, seguindo os indícios religiosos, literários e filosóficos, e assim pensou numa biblioteca única, que reunisse e unificasse os diversos ramos culturais e associasse as várias estantes. Mas a biblioteca cresceu muito. Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, mudou-se para Londres, como a psicanálise. Concluindo a analogia: a psicanálise é como a Biblioteca Warburg porque apresenta um conjunto de problemas que se define com base no próprio modo científico-cultural de trabalhar, relacionando os múltiplos saberes da ciência da cultura.
A transformação da biblioteca era algo desafiador. Ela tinha um enorme terreno cultural comum, ocupava temas diversos, era muito ampla. Mesmo depois de transformada num instituto, não cabia na Universidade de Hamburgo. Todavia, Warburg, como Freud, “ensinou a seus continuadores uma absoluta e incondicional submissão às instâncias do saber” (Saxl, 1943/2018, p. 233).
A luta pela autonomia da psicanálise e o esforço por entendê-la, protegê-la, são enormes, sem necessitar tantos dados adicionais para seu desenvolvimento - pelo contrário, a quantidade de dados é ampla como a Biblioteca Warburg. Ela não precisa de mais dados clínicos disfarçados; necessita de dados que corroborem ou refutem teorias e propiciem o surgimento daquilo que ainda não está solucionado. Parafraseando Derrida (1968/1997), a nocividade do phármakon é acusada no momento preciso em que todo o contexto parece autorizar sua tradução por “veneno” em vez de “remédio”.
Graças à psicanálise, a investigação científica é considerada uma arte, elaborar uma teoria é visto como um trabalho imaginativo. O método científico tem o papel de preparar relatos, projetar testes. Contudo, o ingrediente essencial da psicanálise continua sendo o engenho capaz de ministrar o phármakon, ou seja, capaz de inventar o método que relaciona os fenômenos psíquicos com a teoria.
Será preciso escrever muito mais para avaliar criticamente todas as pesquisas que a psicanálise suscita?
A psicanálise chamou a atenção da psiquiatria clínica, promoveu investigações psicossomáticas, e inspirou instrumentos de pesquisa que avaliam os fundamentos de proposições psicanalíticas e percepções. A teoria psicanalítica também tem o mérito de ser responsável pelo interesse renovado em aprofundamentos no âmbito da linguística, da estética e da teoria dos símbolos. Conceitos e métodos foram tomados emprestados da psicanálise, assim como ela o fez com outras ciências. Aproveita-se da psicanálise o que ela produz, mas ela tem um grande mérito: não considera uma traição qualquer conquista aparentemente nova. Este é o segredo contido no frasco do phármakon: saber tirar valor do procedimento da ambiguidade e suportar não saber de onde veio.
Este artigo, uma reflexão sobre o phármakon freudiano, foi escrito para compreender Freud e exposto de maneira muito subjetiva. Sem citar comentadores nem assinalar um itinerário, é um texto simples, informal, impressionista, situado na poética de um ponto de vista pessoal, ciência sem prova explícita, esperando que cada leitor acrescente nele seu grão de sal.