Depois do armistício de 1918, Fritz Haber foi declarado criminoso de guerra pelos aliados. … Ele teve que escapar da Alemanha para se refugiar na Suíça, onde recebeu a notícia de que tinha obtido o Prêmio
Nobel de Química por uma descoberta que fizera pouco antes da guerra, e que nas décadas seguintes alteraria o destino da espécie humana.
BENJAMÍN LABATUT, Quando deixamos de entender o mundo
O phármakon de Platão
Em 1978, eu tive a oportunidade de participar do Projeto Xingu, um projeto de extensão universitária da Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo (epm-Unifesp). Essa foi uma experiência singular, pois estive locada na aldeia Kamaiurá, por ocasião do Kwarup, festa em homenagem aos mortos, o que me permitiu participar de um encontro das diversas tribos da região (Kuikúro, Waurá, Yawalapíti, entre outras), um verdadeiro acontecimento. No dia seguinte, houve outros rituais, dessa vez dos jovens: a luta Huka-Huka entre os índios e a saída das jovens índias púberes após um período de reclusão, quando são novamente apresentadas à tribo, possibilitando também o casamento. Confluíram nessa grande festa eventos significativos da vida de forma simbólica. Tive também a possibilidade de conhecer o pintor dos mitos da tribo, que estava recluso devido a uma doença reumatológica e não tomava sol. Fiquei impressionada com a semelhança dele com uma pessoa da minha família, o que me fez pensar sobre as nossas origens ancestrais.
Mas a cena que gostaria de destacar aqui, e que tem sido motivo de constante revisitação no meu consultório com os pacientes, foi um dia observando distraidamente um grupo de crianças indígenas brincando à beira do rio. Naquele lugar, de uma natureza exuberante, com água límpida, que permitia às crianças mergulhar e brincar no rio, um pequeno índio, de uns 2 anos e meio, estava no meio de uma revoada colorida de insetos, um móbile vivo que ele tentava alcançar com as mãos. De repente, um movimento brusco, um susto, e ele cai em prantos. Com certeza, fora picado inadvertidamente por um dos insetos. Uma índia aparece não sei de onde e acolhe o menino, que continua em prantos. Pensei na ocasião na tarefa que esse indiozinho teria pela vida: a de discriminar, entre tanta diversidade, onde está o veneno, o mel (alimento) e, além da beleza, o perigo.
Essa cena bucólica me serviu para introduzir o diálogo Fedro (século 4 a.C./2020), de Platão, texto em que o tema phármakon é discutido. Sócrates é levado para fora da cidade, segundo ele interessado no phármakon que está no bolso do casaco de Fedro. Trata-se de um discurso, uma escrita (o phármakon) de Lísias.2 Eles se sentam na beira de um riacho, o Ilisso, fora dos muros de Atenas. É nesse cenário que o mito do rapto da ninfa Orítia pelo vento norte, Bóreas, é lembrado por Fedro. Sócrates confirma que foi ali, enquanto a ninfa brincava com Farmaceia, que o vento boreal a atirou do penhasco, precipitando-a no abismo de onde surgiu a lenda do seu rapto por Bóreas. Segundo Derrida, essa evocação não está ali por acaso: “Farmaceia (Pharmákeia) é também um nome comum que significa a administração do phármakon, da droga: do remédio e/ou do veneno” (1968/2005, p. 14). E mesmo essa lenda não está nesse diálogo por acaso: ela antecipa que é a escritura - o phármakon a ser examinado - que atrai Sócrates.
Sócrates: Perdoa-me, boníssimo. Sou amigo do aprender; os campos então e as árvores nada me querem ensinar, mas sim os homens da cidade. Tu entretanto pareces ter encontrado a droga [phármakon] que me faz sair; pois, como os que levam as criações famintas agitando diante delas um ramo ou um fruto, assim tu, estendendo-me discursos em folhetos, visivelmente me farás percorrer toda a Ática e onde mais quiseres. (20Platão, século 4 a.C./20, p. 33)
É o discurso escrito de Lísias que atrai Sócrates para fora dos muros da cidade e que se torna o motivo desse diálogo. E é Sócrates quem apresenta o mito mais famoso desse diálogo, bem no fim dele, como que por acaso: “Ouvi dizer que em Náucratis, no Egito, viveu um dos velhos deuses de lá, … e o nome do próprio deus era Theuth” (p. 191).
Theuth ou Thoth, deus da escritura ou das letras, oferece ao rei de todo o Egito, Thamous, a escritura, um “conhecimento que tornará os egípcios mais sábios e mais lembrados: pois de memória e de sabedoria foi encontrado o medicamento [phármakon]” (p. 193). A escritura é então oferecida ao rei como phármakon. A resposta do rei vem a desfazer a noção de phármakon como medicamento, pois, como alerta o rei, Thoth lhe oferece algo por afeição tendenciosa, mas é o contrário o que a escritura produz:
Pois este conhecimento terá, como resultado, naqueles que o terão adquirido, tornar suas almas esquecidas, uma vez que cessarão de exercer sua memória: depositando, com efeito, sua confiança no escrito, é do fora, graças a marcas externas, e não do dentro e graças a si mesmos, que se rememorarão das coisas. Não é, pois, para a memória, mas para a rememoração que tu descobriste um remédio. Quanto à instrução, é a aparência dela que ofereces a teus alunos, e não a realidade: quando, com efeito, com tua ajuda, eles transbordarem de conhecimentos sem terem recebido ensinamento, parecerão bons para julgar muitas coisas, quando, na maior parte do tempo, estarão privados de todo julgamento; e serão, além disso, insuportáveis, já que terão a aparência de homens instruídos em vez de serem homens instruídos. (Platão, citado por Derrida, 1968/2005, p. 49)3
O phármakon encontra sua outra face: não é apenas como remédio que ele se apresenta, mas também como veneno. O rei Thamous, igualmente identificado como o deus Amon, deus dos deuses, dá sua resposta iluminada, trazendo à luz questões tão relevantes quando se trata do phármakon: a tendenciosidade de quem o oferece, as precipitações no julgamento, a aparência em oposição à realidade de quem o toma ingenuamente. São questões muito atuais, que nos abrem para esse importante tema.
Derrida apresenta Sócrates como pharmakeús - mágico, feiticeiro. E sua magia ocorre por sua voz, na sua fala, sem qualquer outro instrumento: “O phármakon socrático também age como veneno, um tóxico, uma picada de víbora. E a picada socrática é pior do que aquela das víboras, pois seu rastro invade a alma”. Ele cita o diálogo Mênon, de Platão, do qual extraio a seguinte frase de Mênon diante de Sócrates: “Agora mesmo, vejo perfeitamente, por não sei qual magia e quais drogas, por teus encantamentos, me enfeitiçaste tão bem que tenho a cabeça repleta de dúvidas” (p. 66)
Creio que, através do que nos pica e invade a alma, nos aproximamos do phármakon psicanalítico. Tomaremos Freud como pharmakeús, que inocula a dúvida no espírito, no lugar das certezas absolutas.
Freud pharmakeús
Freud nasceu em 1856, na década da Segunda Revolução Industrial. Devo me ater aos momentos iniciais da trajetória de Freud, os quais considero que darão o embasamento para a construção da psicanálise.
Começo com a viagem que ele empreendeu a Manchester em 1875 para visitar seus meios-irmãos. Essa viagem aguçou o foco de seus interesses, que se deteve em particular nos livros científicos: Darwin, Lyell, entre outros (Gay, 1988/1989). Imaginei que Freud, com 19 anos, poderia ter se encontrado com Darwin. Isso aconteceu com um botânico holandês, Hugo de Vries, que aos 30 anos, em 1878, viajou à Inglaterra para ver Darwin. Saiu transformado desse encontro, passando a dedicar suas investigações ao mistério da hereditariedade. Darwin tinha publicado A origem das espécies em 24 de novembro de 1859, mas faltava a ele uma teoria da hereditariedade, peça-chave para sua teoria da evolução. Na mesma época, um personagem desconhecido, Gregor Mendel, debruçava-se sobre as ervilhas e apresentou um artigo em 8 de fevereiro de 1865, trabalho que ficou esquecido por mais de três décadas. Apenas em 1900 De Vries teve contato com esse artigo fundamental sobre o cruzamento entre ervilhas e seus descendentes híbridos. Com ele, pôde formular suas hipóteses sobre as plantas híbridas. Mas foi William Bateson, biólogo inglês, quem levou adiante e difundiu esse trabalho fundamental de Mendel. Foi ele que, em 1905, cunhou o nome genética para o estudo da hereditariedade e sua variação (Mukherjee, 2016/2021). Penso que Freud, indiretamente, estava em contato com todos esses eventos que iriam modificar a nossa história científica.
Freud, no retorno a Viena, aluno do segundo ano de medicina, foi convidado por Carl Claus, professor do Instituto de Zoologia e Anatomia Comparada, a empreender uma pesquisa em Trieste sobre a possibilidade da existência de gônadas masculinas nas enguias. Parece que esse professor ficara impressionado com o talento de Freud como cientista e com seu conhecimento da teoria darwiniana, da qual era adepto. O sexo das enguias, se masculino, feminino ou hermafrodita, era um mistério, um problema deixado em suspenso por séculos, desde Aristóteles. Em dois meses, Freud disseca cerca de 400 enguias, e o resultado dessa pesquisa é apresentado em 15 de março de 1877 com o título: “Observações sobre a configuração e a estrutura fina dos órgãos lobados, descritos como sendo os testículos das enguias”.
César Ades (1943-2012), professor titular do Departamento de Psicologia da Universidade de São Paulo, um dos maiores especialistas brasileiros em etologia, leu esse artigo de Freud em francês e escreveu que era como se estivesse consultando um artigo recente de biologia. Chamou-lhe a atenção a observação acurada do jovem cientista, distinguindo as estruturas daquele órgão em estágios diferentes de desenvolvimento. O mais surpreendente para esse professor é uma página onde percebe que Freud começa a discutir consigo mesmo, posicionando-se em um lado e depois em outro, até considerar que, no estágio de desenvolvimento pesquisado, às vésperas da sua viagem para o mar, as enguias não estariam maduras do ponto de vista reprodutivo, e daí a dificuldade de diferenciação das gônadas (Ades, 2001).
Destaquei esse momento, que considero importante para o futuro psicanalista, porque, diferentemente de Darwin, que embarcou em um navio pelo mundo, Freud embarca no microscópio para descobrir o sexo da enguia, esta sim pronta a sair pelo mundo. Além do mais, com esse experimento inicial, ele é desafiado a adentrar o mistério do sexo e das origens, não só das espécies.
O momento seguinte se dá no laboratório de Brücke, onde conhece entre outros Breuer e Flechsig, dedicando-se à histologia por 10 anos, de 1876 a 1886. Segundo Peter Gay,
o Freud zoólogo, que estudava as gônadas das enguias, o Freud fisiologista, que estudava as células nervosas de lagostins, e o Freud psicólogo, que estudava as emoções dos seres humanos, estavam todos empenhados num único empreendimento. Na rigorosa pesquisa histológica sobre o sistema nervoso que realizou para Brücke, Freud estava participando do imenso esforço coletivo a fim de demonstrar os caminhos da evolução. (1988/1989, p. 49)
Freud faz ciência e desabrocha no laboratório de Brücke, e junto desse fisiologista compartilha o “juramento solene” de “ultrapassar a aparência dos fenômenos para descobrir a natureza essencial deles. Compreender a essência das coisas requer que se encontre uma forma de olhar mais profundamente dentro delas; discernir o que não é aparente a olho nu” (Gamwell & Solms, 2008, pp. 30-31).
No livro Da neurologia à psicanálise (2008), de Gamwell e Solms, dedicado aos desenhos neurológicos e diagramas da mente por Sigmund Freud, podemos acompanhar Freud no seu trabalho como histologista. E ele novamente mostra sua genialidade. Segundo os autores, nos seus estudos Freud “cimentou o caminho para a doutrina do neurônio” (p. 83) e antecipou o conceito de sinapse. Mas o que gostaria de destacar são os desenhos feitos por Freud tendo ao microscópio células “vivas”. Na preparação das lâminas descritas, ele utiliza corante dourado. Isso em 1878.
Siddhartha Mukherjee (2010/2020) relembra o período da Segunda Revolução Industrial (1850), quando a indústria têxtil na Inglaterra floresce. Escreve que, em 1856, William Perkin, um estudante de 18 anos, consegue sintetizar uma substância química, um produto colorido, barato, que poderia substituir os corantes vegetais. Abre-se espaço para a produção de corantes sintéticos para o tingimento de tecidos. E é a Alemanha que consegue alavancar o crescimento da indústria química. Em 1878, Paul Ehrlich propõe o uso de corantes de tecido para colorir tecidos animais, pensando que isso facilitaria visualizar o tecido biológico ao microscópio. Para sua surpresa, os corantes mancham apenas partes do interior da célula, delineando a silhueta de certas estruturas e deixando outras intactas.
Pensei em como Freud poderia estar usufruindo essas descobertas em primeira mão, uma vez que, em alguns de seus desenhos, diz ter usado corante dourado. Talvez tenha sido um momento singular: colocar sob o microscópio uma célula nervosa viva de lagostim e visualizar o seu núcleo se movimentando. Nesses desenhos de 1882, ele não especifica o corante,4 mas consegue ir além e observar os movimentos dentro do núcleo. Essa técnica lhe permite visualizar o funcionamento interno da célula, com suas estruturas internas antes invisíveis; ele percebe a movimentação nuclear dos neurônios, o que captura em seus desenhos, em que também aparece uma estrutura que viria a ser chamada microtúbulos (Gamwell & Solms, 2008). Por pouco, ele não antecipa a biologia molecular, identificando a cromatina e capturando a divisão celular, com seus dnas.
Em 1886, Freud abandona a histologia, após sua estadia em Paris, onde entrara em contato com Charcot. Ele inicia o estágio no Hospital da Salpêtrière em outubro de 1885, permanecendo 19 semanas em Paris. Fica entusiasmado com a concepção da histeria de Charcot e com o tratamento hipnótico. Seu interesse volta-se para a psicopatologia e para a clínica neurológica. Ele já tinha entrado em contato com o caso Anna O., de Breuer, e é através das histéricas que abre um caminho novo na clínica neurológica.
Em 1891, Freud publica Sobre a concepção das afasias, dedicado a Breuer. Podemos ver nessa publicação a influência dos anos passados com Brücke, a influência de Meynert, a presença de Breuer e Charcot, e a exuberância de Freud como neurologista. Solms comenta um desenho de Freud de 1886, feito após a estadia com Charcot, pensando em estruturas neuropatológicas novas. Nesse esquema,
a novidade mais importante foi a ideia de que a periferia do corpo não se projeta sobre o córtex de maneira simples e direta, como o professor de Freud, Theodor Meynert, havia suposto que acontecesse, e sim ela é representada lá. Em outras palavras, a relação entre corpo e córtex não é topológica, porém funcional. (Gamwell & Solms, 2008, p. 105)
E é essa ideia que Freud defende na sua concepção sobre as afasias, em que o vemos discutindo com os luminares da neurologia, como Broca e Wernicke, introdutores da teoria localizacionista, que buscavam no cérebro áreas específicas de funcionamento. Até hoje as afasias são definidas como afasia motora, que atinge a área de Broca na região frontal, ou afasia sensorial ou de Wernicke, que atingiria a área temporal. Mas Freud busca as alterações funcionais da linguagem, as parafasias observadas nas histéricas. Ele se pergunta num certo momento, de forma irônica, se no caso de uma pessoa poliglota haveria uma lesão específica para o francês e outra para o alemão (Freud, 1891/2013).
Mas o que considero importante nesse livro de Freud é ele se interessar pelo aparelho de linguagem, a função mais complexa do cérebro, de cunho psicológico e simbólico. O ponto que quero destacar é a indagação que ele se faz de como se dá essa passagem do físico para o psíquico. A discussão é emocionante de acompanhar. Ela é feita no estilo que impressionou o professor Ades. Freud aqui se contrapõe ao grande Meynert, que considerava haver uma continuidade dos processos fisiológicos que redundaria na representação verbal em nível cortical, e as representações estariam localizadas nas células nervosas.
Freud se opõe a essa doutrina e se posiciona assim:
A cadeia dos processos fisiológicos no sistema nervoso provavelmente não se encontra em relação de causalidade com os processos psíquicos. Os processos fisiológicos não cessam assim que os psíquicos tenham começado; ao contrário, a cadeia fisiológica prossegue, só que, a partir de um certo momento, a cada membro dessa cadeia (ou membro isolado dela) corresponde um fenômeno psíquico. Assim sendo, o psíquico é um processo paralelo ao fisiológico (“um concomitante dependente”). (p. 78)
Essa é a proposta de Freud do paralelismo psicofisiológico, sendo o psíquico um concomitante dependente. Ele também considera que esse salto do físico para o psíquico seria da ordem de um processo, nada estático. No fim desse processo, ocorre uma modificação no córtex, “a possibilidade de uma lembrança” (p. 79). Quando novamente esse processo é ativado, surge o psíquico em forma de lembrança. E aqui mais uma surpresa: como essa lembrança acontece e se mantém em separado e dentro de uma especificidade, Freud se lembra “dos espermatozoides” (p. 80), que podem fazer isso, mas ele ainda não sabe como. É como o caso da enguia: ele deixa a questão em aberto. É bastante curioso o fato de ele conceber algo que está contido no espermatozoide - um código genético?
O diagrama mais lembrado pelos psicanalistas é a representação da palavra a partir da imagem acústica da palavra e em conexão com as associações de objeto, percebido por vários elementos sensoriais, mas apresentado de forma principalmente visual. Esse diagrama servirá de base para criar o aparelho psíquico na representação de coisa e representação de palavra, processo primário e secundário, mas é concebido a partir desse aparelho de linguagem.
O texto seguinte baseado na neurologia, mas onde Freud já envereda para a psicologia/psicanálise, é o “Projeto para uma psicologia científica”, de 1895. Encontro nesse escrito rejeitado por seu autor os fundamentos de todo o arcabouço psicanalítico. A metáfora neurológica será usada magistralmente. Freud é um conhecedor das vias nervosas. Ele dissecara as fibras nervosas do tronco cerebral humano, fazendo seus estudos primeiro com o cérebro de fetos, depois com o de crianças e adultos, acompanhando as formas evolutivas. Também dissecara a inserção do nervo acústico. Creio que o laboratório de Brücke lhe deu elementos para empreender essa nova proposta, que será de novo um salto do físico para o psíquico.
Desse texto, devo privilegiar três aspectos de forma bem sintética: a questão de Q, o elemento quantitativo da excitação neuronal; a questão do complexo do outro semelhante (Nebenmensch); e a introdução ao ego.
No “Projeto”, o primeiro postulado principal se refere à concepção quantitativa, decorrente da observação da clínica dos neuróticos, pacientes que apresentam ideia copiosamente intensa, em que a questão quantitativa se mostra mais evidente do que seria normal. É de dentro da clínica que Freud se vale de Q, uma concepção quantitativa, mais próxima da excitação neuronal. Ele também concebe uma tendência do organismo a se livrar de Q, uma descarga neuronal, tendo como modelo o arco reflexo: o estímulo sensorial tende à descarga motora. E já no “Projeto” ele lança mão das chamadas “exigências da vida”, estímulos que se originam no interior do organismo, como fome, respiração e sexualidade, e dependem de uma ação específica, provenientes do mundo externo. Em função disso, o sistema nervoso deve demandar um acúmulo de Qή (quantidade interna) para satisfazer a exigência da ação específica. Parece que, ao diferenciar Q de Qή, ele estaria tentando discriminar o que seria a energia psíquica da energia geral.
Erwin Schrödinger, em palestras proferidas em Dublin, em 1943, sobre o tema O que é vida?, considera que apresenta ali “ideias de um físico ingênuo sobre organismos” (1997, p. 19). Ele se pergunta: qual a característica particular da vida? Como um organismo se mantém vivo? A resposta óbvia é: comendo, bebendo, respirando. O termo técnico é metabolismo, que ele lembra vir da palavra grega que significa troca ou câmbio. Ele então considera que o organismo vivo atrasa o decaimento termodinâmico, que é a tendência à entropia, ou seja, à morte, pois segundo a lei da termodinâmica há sempre uma tendência à desordem - que seria a máxima entropia positiva. Observa que, para evitar a entropia positiva, nos alimentamos de entropia negativa, ou seja, de outro organismo vivo - nos alimentamos de ordem para deter a desordem.
É essa capacidade energética no interior do organismo que permitirá uma complexidade maior do funcionamento neuronal. Mas podemos seguir o pensamento desse físico para buscar o outro organismo vivo, que Freud no “Projeto” designará como “o complexo do outro semelhante - Nebenmensch”. (1950[1895]/1977, p. 438). Esse será o primeiro objeto da ação específica, “salvador” do desamparo inicial, fornecedor do alimento e dos cuidados, e será também o primeiro objeto hostil.
Como objeto da ação específica, esse outro (a mãe, o cuidador) proporciona a experiência de satisfação, sendo uma via da descarga do desprazer (propicia uma diminuição em Qή). Freud lembra que o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais. Mais do que isso, essa experiência de satisfação produz uma imagem motora, uma facilitação (inscrição) em ψ, tendo uma importantíssima função secundária da comunicação. De acordo com Gabbi Jr. (2003), nessa ideia de Freud estaria presente o associacionismo de Stuart Mill, concepção utilitarista segundo a qual o trajeto percorrido na experiência seria facilitado numa segunda vez, já que se tornou preferencial. Isso teria como consequência a noção de que, diante de uma nova ativação do desejo, o caminho percorrido levaria à alucinação do objeto, devido à facilitação pela vivência de satisfação.
Mas a amarga experiência da vida mostra que a alucinação não tira o desconforto. O desconforto e a dor implicam aumento em Qή. A dor pode também se tornar um evento traumático, gerando facilitação em ψ. No entanto, Freud precisa explicar a formação da memória de experiências dolorosas. E nesse caso não se trata mais de um evento externo que já foi eliminado, mas da irrupção de um afeto doloroso de origem interna. Para isso, Freud concebe neurônios secretores no interior do corpo, que influenciam a produção de Qή. A vivência da dor ativaria a imagem do objeto hostil e a liberação de substâncias internas, produtos químicos que deixariam facilitações abundantes. Depreendemos daí o efeito traumático da dor, que pode atingir o corpo a posteriori, deixando como marca um sintoma neurótico.
Nesse texto, podemos ver Freud tentando, com seus conhecimentos, encontrar as especialidades neuronais. Ele cria o neurônio φ (phi), mais ligado ao meio exterior, que recebe estímulos sensoriais do mundo externo, recebe uma Q externa elevada, e essa quantidade deverá ser reduzida pelos para-estímulos para que o organismo a tolere. Freud concebe esses neurônios como totalmente permeáveis para a energia, e sua tendência seria a descarga.
Os neurônios ψ seriam os neurônios impermeáveis, ou seja, eles conteriam a energia neuronal e teriam nas suas terminações o que Freud denominou barreiras de contato. Essa seria uma maneira de armazenar a energia dentro do organismo. Mas as barreiras de contato, se fossem sempre impermeáveis, não permitiriam o fluxo de energia quando necessário. Daí surgem as chamadas facilitações, e o neurônio, a partir de certo nível de energia, torna-se permeável, permitindo o escoamento da energia. Esses neurônios seriam diferenciados, sendo encarregados da memória, com capacidade de serem permanentemente modificados. Se fossem totalmente impermeáveis, eles apenas acumulariam Qή. Mas a “memória está também representada pelas facilitações existentes entre os neurônios ψ” (Freud, 1950[1895]/1977, p. 401). As facilitações criariam caminhos preferenciais entre os neurônios ψ. Temos então uma rede neuronal que vai ficando cada vez mais complexa - um trilhamento, com caminhos que se tornam mais facilmente percorridos, mas sempre com possibilidade de novos percursos; e neurônios ψ, que tendem a impedir o escoamento da energia, por haver a inscrição do desprazer ou dor.
Chegamos ao ponto de falar sobre a introdução do ego (eu). Freud concebe que em ψ se estabelece uma organização que se chama ego, um grupo de neurônios que é catexizado constantemente, sendo o portador da reserva decorrente das exigências da vida. Esse é um sistema no interior de ψ, não a totalidade de ψ, e representa as experiências vividas pelo indivíduo. Eu pensaria que essa organização permitiria a construção de uma identidade, em função dos trilhamentos, os caminhos facilitados e os que foram impedidos. Freud afirma que o ego se organiza em torno da “atração desiderativa” e da propensão à repressão. No desenho famoso, vemos como os neurônios ψ lidam com a ameaça da estimulação excessiva, criando uma catexia colateral.
Assim, uma Qή que de fora (φ) atinge a, é impedida de atingir β (um neurônio-chave para o desprazer - uma maneira de o eu inibir processos psíquicos primários). Essa Qή então encontra uma via colateral a, α, β, γ, δ. A inibição e as facilitações se tornam vantajosas para o eu.
Encontrei em André Green (2001) uma aproximação ao tema que me foi estimulante. Ele usa essa configuração para pensar o discurso associativo na sessão. É como se a associatividade nos desse, através das vias colaterais permitidas, indícios daquela que foi impedida. O discurso associativo seria marcado pelo que ele chama de efeitos de irradiação, portadores de efeitos dinâmicos, permitindo que se criem ecos retroativos, aquilo que permanece de algo já enunciado, ou anunciação antecipatória, uma apreensão que será percebida apenas a posteriori pelo analista. Essa associatividade nos leva a acompanhar uma estrutura temporal complexa, uma temporalidade tanto progressiva como regressiva, que toma uma forma arborescente. É essa arborescência, essa bifurcação ou poda de caminhos, sem uma linearidade discursiva, que me faz entender essa estrutura de ego proposta aqui por Freud, que considero das mais ricas para refletir sobre a clínica, o universo mental do paciente e a constituição do sujeito. Penso que essa seria a temporalidade da memória.
Devo acrescentar mais um neurônio, o ω (ômega), um terceiro sistema de neurônios, que nos dará a consciência, sensações diferentes numa ampla gama de variedades e diferenças, em função de suas relações com o mundo externo (Freud, 1950[1895]/1977). Esses neurônios nos dão a qualidade e são excitados junto com a percepção. Eles funcionariam com uma quantidade ainda menor de energia, seriam excitados por carga mínima, recebendo estímulo de índole temporal; assumiriam o período de excitação e, com isso, nos dariam a qualidade, a possibilidade da consciência.
Há no “Projeto” uma proposta para o desenvolvimento do pensamento e a aquisição da linguagem, através das inscrições em ψ da passagem da imagem sonora para a imagem verbal, tendo o grito do bebê como uma inscrição primeira que levaria à linguagem, com participação também de ω. Novamente são passagens importantes de como se daria o salto do físico para o psíquico. Mas me vi perdida e acho que, identificada com Freud (que pretensão!), resolvi abandonar o “Projeto”.5
Ades (2001) afirma que, com a “desneurologização” de seu pensamento e a criação de um campo próprio onde impera a causação psicológica, Freud produziu uma ruptura epistemológica, aparentemente sem retorno conciliador. E ele lamenta essa ruptura.
Vamos encontrar Freud como o fundador da psicanálise, por meio da sua obra A interpretação dos sonhos (1900/1972) e dos futuros desenvolvimentos mais conhecidos por nós, psicanalistas. De fato, ao final do sonho da injeção de Irma, ele escreve: “Quando o trabalho de interpretação fica concluído, percebemos que um sonho é a realização de um desejo” (p. 130). E em carta a Fliess ele imagina uma plaqueta de mármore:
Nesta casa, em 24 de julho de 1895, o segredo dos sonhos foi revelado ao Dr. Sigm. Freud
Freud então envereda pela psicanálise, tornando-se o investigador da alma humana. Como Sócrates, torna-se pharmakeús. E desenvolve um novo phármakon, a escuta analítica, uma clínica da interioridade, e não mais da exterioridade (Roudinesco, 2014/2016).
Psico-phármakon
Na epígrafe cito Fritz Haber, Prêmio Nobel de Química de 1918. Em 1907, Haber foi o primeiro a extrair nitrogênio do ar, o primeiro fertilizante produzido em laboratório. Junto com Carl Bosch, engenheiro da Basf, ele produziu toneladas de nitrogênio, o que permitiu tirar milhões de pessoas da fome, causando uma explosão demográfica - tudo graças a esse homem que “extraiu pão do ar”. Esse químico, de origem judaica, um verdadeiro gênio, foi quem conduziu o primeiro ataque com os gases sarin, mostarda e cloro, arrasando as tropas francesas e argelinas na Batalha de Ypres, na Bélgica, no dia 22 de abril de 1915. Sua esposa, Clara Immerwahr, a primeira mulher a receber um doutorado em química numa universidade alemã, o acusou de ter pervertido a ciência e criado um método de exterminar humanos em escala industrial. O marido a ignorou completamente, e Clara acabou se suicidando. Foi o mesmo Haber quem produziu um pesticida de gás que recebeu o nome Zyklon A, para ajudar no controle de pestes. Após sua morte, em 1934, esse gás, transformado em Zyklon B, foi usado nos campos de extermínio para matar judeus (Labatut, 2020/2022).
Mas esse não foi o único caso de um produto químico, antes de uso terapêutico, que passou a ser usado como veneno. Falei de corantes para tecidos de algodão e depois de corantes para tecido animal. As indústrias de corante, entre elas a Bayer e Hoechst, passaram a produzir substâncias químicas que foram precursoras da guerra de gases. Foi novamente a cidade de Ypres, em 12 de julho de 1917, que se tornou alvo do gás mostarda, o qual não só provocou morte instantânea como deixou sequelas a longo prazo (Mukherjee, 2010/2020).
Mas, como disse Paracelso, todo remédio é um veneno disfarçado. E Mukherjee acrescenta: “Todo veneno pode ser um remédio disfarçado” (p. 115). Em 1942, o mesmo gás mostarda foi considerado um tratamento para o linfoma, pois em doses pequenas dizimava as células brancas. Infelizmente, a melhora inicial nos casos em que foi usado não perdurou, mas isso abriu uma brecha para a busca de um tratamento que bloqueasse o crescimento das células cancerosas.
O fato mais impactante da Segunda Guerra Mundial foi o lançamento da bomba atômica sobre Hiroshima e Nagasaki em 6 e 9 de agosto de 1945, o que levou à rendição incondicional do Japão e ao término da guerra. Em 1942, os britânicos tinham alcançado um considerável avanço na pesquisa pela bomba atômica, mas em função da guerra na Europa, houve um acordo para que os cientistas britânicos e europeus cruzassem o Atlântico e trabalhassem com os americanos. A partir daí, os “Estados Unidos tornaram-se brutalmente ciosos da condição de donos da bomba” (Hastings, 2011/2012, p. 670).
Mesmo que essa seja a visão de um historiador britânico, o determinismo tecnológico tornou-se uma característica do mundo pós-guerra, assim como a emergência dos Estados Unidos com seu novo status de país mais rico e poderoso do planeta.
É nesse cruzamento do Atlântico que vamos situar o surgimento do psico-phármakon.
André Green escolhe a imagem do quiasma para falar das relações entre histeria e casos-limite, e lembra que a “palavra ‘quiasma’ contém a ideia de uma mudança de direções opostas em que, a priori, se pensaria num paralelismo” (2002, p. 465). Retomo aqui essa imagem, que tem a sua origem na letra grega χ (qui), a qual lembra também o crossing-over da genética e que já usamos em outro trabalho, “Histeria e borderline: mo(vi)mentos da clínica psicanalítica” (Nishikawa et al., 2017). Tínhamos escrito sobre a origem da psicanálise com as histéricas na França e depois em Viena. Mas o surgimento dos termos caso-limite, borderline e fronteiriço acontece do outro lado do Atlântico. No ponto do cruzamento de χ, também inspirados por Green, consideramos o ano de 1953. Por que 1953?
Green (1988) diz que 1953 foi importante para ele: iniciou o seu treinamento psiquiátrico, deu-se a introdução dos psicotrópicos e foi quando ocorreu a cisão na Sociedade Psicanalítica de Paris, com a saída de Jacques Lacan e outros.
É a França (e Paris) o nosso local de partida. A clorpromazina, considerada o primeiro medicamento psicotrópico, foi usada pela primeira vez com essa finalidade no Hospital Saint-Anne, o maior hospital psiquiátrico de Paris, tendo à frente Jean Delay, diretor do hospital, e Pierre Deniker, pesquisador da nova droga. Entre 1952 e 1956, eles escreveram a avaliação dos casos em que utilizaram a droga. Mostravam-se bastante cautelosos, apontando que a droga produzia sedação, diminuição da agitação e melhora da confusão. Por outro lado, afirmavam que a clorpromazina poderia desenvolver sintomas extrapiramidais, como tremores e rigidez muscular.
Em 1953, a clorpromazina foi licenciada pela Rhône-Poulenc para a Smith, Kline & French e lançada também nos Estados Unidos. O artigo de Heinz Lehmann, publicado em 1954, com uma avaliação da nova droga mereceu o Prêmio Lasker em 1957, por apresentar “um modelo clínico para aplicação da clorpromazina, explicitando os benefícios e as dificuldades com a droga e minimizando seus riscos” (Caponi, 2021, p. 671). Posteriormente, em 1974, esse autor disse que a clorpromazina tinha revolucionado o campo da psiquiatria, tornando-a uma verdadeira especialidade médica. Numa leitura crítica do livro Chlorpromazine in psychiatry: a study of therapeutic innovation, de Judith Swazey, Caponi observa que ele apresenta uma história coerente e pertinente, no entanto mostra uma história sem problemas. A clorpromazina é vista como forma de romper a barreira ideológica retrógrada, representada pela psicanálise freudiana, que dominava os consultórios americanos por meio século. Trata-se de uma narrativa triunfalista. Segundo a avaliação de Caponi, porém, que funciona aqui como o rei Thamous, essa medicação, apresentada como “revolução psicofarmacológica”, não passa de uma continuidade dos mesmos procedimentos anteriores, como lobotomia e eletrochoque, no sentido de “conquistar a indiferença, a calma e o silêncio necessários para permitir a gestão da loucura” (p. 681).
Podemos pensar 1953 também como marco na relação entre psiquiatria e psicanálise. Nesse ano foi editado o Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (dsm-1), pela Associação Americana de Psiquiatria. Esse é um manual que ainda se baseia na noção psicodinâmica, ressaltando-se a oposição entre neurose e psicose (Dunker & Kyrillos Neto, 2011).
Dentro desse contexto, é igualmente nesse ano que, com o trabalho “Borderline states” (1953/1989), de Robert Knight, o termo borderline ganha importância no meio psiquiátrico e psicanalítico, para se referir a casos intermediários entre a neurose e psicose. Esse autor considera mais importante que o diagnóstico a compreensão psicodinâmica de tais pacientes, principalmente em relação à estruturação do ego.
E foi em março de 1953 que Watson e Crick construíram o modelo completo do dna, com sua dupla hélice. Eles publicaram o artigo “Molecular structure of nucleic acids: a structure for deoxyribose nucleic acid” na revista Nature, em 25 de abril de 1953 (Mukherjee, 2016/2021). Essa descoberta marcou o término de uma jornada na investigação dos genes, mas abriu a possibilidade de novas descobertas. “O dna, como Schrödinger havia predito, era uma substância que desafiava os químicos, uma molécula com gritantes contradições: monótona, mas infinitamente variada, repetitiva ao extremo, mas muitíssimo idiossincrática” (p. 260). Antecipo aqui a revolução do século 21.
Voltando aos psicofármacos. Em 1954, a Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos realizou uma conferência que deu origem ao Serviço Central de Psicofarmacologia do Instituto Nacional de Saúde Mental, que na ocasião recebeu 2 milhões de dólares do Congresso americano para avaliar novos tratamentos medicamentosos além da clorpromazina, consolidando a psicofarmacoterapia nos Estados Unidos. A imipramina, considerada um antidepressivo tricíclico, foi lançada na Suíça em 1957, e nos Estados Unidos e outros países do mundo, em 1958. Em 1960 foi lançado o primeiro benzodiazepínico, o Librium, e em 1963 surge o diazepan, comercializado como Valium. Em 1987 foi lançado o primeiro inibidor seletivo de recaptação de serotonina (isrs), a fluoxetina, conhecida como Prozac, um novo antidepressivo que popularizou o uso e o conhecimento dos psicofármacos entre o público leigo.
Segundo Aguiar e Ortega (2017), foi em 1980, com a publicação do dsm-3, que aconteceu a ascensão da psiquiatria biológica e o declínio da psicanálise. O dsm-3 tem como critérios diagnósticos os sinais e sintomas dos distúrbios mentais, sem se preocupar com a etiologia, o que permitiria validar os diagnósticos em diferentes países ao redor do mundo. De acordo com os autores do artigo consultado, o formato de diagnóstico proposto pelo dsm-3 favorece as demandas da indústria farmacêutica para a reprodução de pesquisas dentro dos chamados ensaios clínicos randomizados (estudos em que os participantes são escolhidos sem prévio conhecimento), exigidos pela Food and Drug Administration (fda).
Essas pesquisas clínicas são muito dispendiosas. Com isso, a pesquisa científica se torna também uma questão de Estado, e o governo americano passa a investir maciçamente nesse setor. A indústria farmacêutica, por sua vez, procura manter o monopólio da pesquisa, produção e difusão dos medicamentos psicotrópicos, investindo maciçamente em propaganda e contrato de pesquisadores e consultores pela própria indústria.
Aguiar e Ortega, por outro lado, afirmam que os psicofármacos são empregados por psiquiatras do mundo todo, a despeito de sua filiação teórica, demonstrando eficácia no cotidiano da prática clínica. Entendo isso como efeito da globalização. Mas não há como negar a presença dos novos medicamentos e dos novos desafios para a clínica psiquiátrica e psicanalítica.
Concordo com os autores que há uma dicotomia na prática clínica: o psiquiatra psicanalista ou o psiquiatra de vertente social, mesmo utilizando os psicotrópicos na prática, acabam não discutindo isso abertamente, discorrendo em público apenas sobre questões psicanalíticas e sociais. É um alerta importante, pois essa atitude só aumenta o monopólio da indústria farmacêutica e da psiquiatria biológica sobre o conhecimento acerca dos medicamentos, dificultando a discussão das questões éticas implicadas na produção de pesquisa em psicofármacos, assim como de seu valor de uso na clínica psiquiátrica.
E-phármakon
Como disse William Blake em 1794,
a pequenina mosca mostrou ser “um homem como eu”.
SIDDHARTHA MUKHERJEE, O gene: uma história íntima
O sequenciamento do genoma humano foi uma verdadeira corrida armamentista. De um lado, o Projeto Genoma Humano, com participação do Estado americano, a ele se juntando colaboradores internacionais, primeiro britânicos, e depois franceses, chineses, japoneses e alemães. Do outro lado, Craig Venter propôs um atalho para o sequenciamento do genoma, visando também as patentes dos genes sequenciados; ele acabou criando seu próprio instituto, a Celera, recebendo verbas de empresas privadas. Essa corrida acabou “empatada” por interferência da Casa Branca, com Bill Clinton à frente e Tony Blair, que participou da reunião via satélite no dia 26 de junho de 2000. “Em 15 e 16 de fevereiro de 2001, o consórcio do Projeto Genoma Humano e a Celera publicaram seus artigos na Nature e na Science, respectivamente” (Mukherjee, 2016/2021, p. 379).
Creio que esse fato abre as portas para o século 21, mostrando o lado belicoso da ciência, mas não há como negar a importância da genética no nosso século.
Vamos reencontrar Freud nas descobertas da neurociência e no enfoque da “psicofarmacologia moderna, que é a própria história da neurotransmissão química” (Stahl, 2021, p. 1).
Stahl lembra que, do ponto de vista anatômico, a neurotransmissão é constituída pelos neurônios, e as conexões entre eles são as sinapses. Isso se torna um complexo de conexões, como milhões de “fios telefônicos” reunidos dentro de milhares e milhares de cabos, formando um intrincado diagrama de “fios”. Esses fios transportam impulsos eletrônicos, mas a neurotransmissão interneurônios nas sinapses acontece por fenômenos químicos bastante sofisticados.
Alguns neurotransmissores já são conhecidos no nosso meio, como a serotonina, a noradrenalina, a dopamina e a acetilcolina. Outros nem tanto, como o glutamato e o Gaba (ácido γ-aminobutírico). Stahl observa que alguns fármacos foram descobertos antes dos neurotransmissores naturais do cérebro. Por exemplo: a morfina, usada antes da descoberta da β-endorfina; a maconha, usada antes da descoberta dos receptores canabinoides; e a fluoxetina, usada antes da elucidação molecular do sítio transportador de serotonina. Portanto, “alguns neurotransmissores são muito semelhantes aos fármacos e foram chamados ‘farmacopeia de Deus’” (p. 6).
Mas o mais interessante na nova psicofarmacologia é que a neurotransmissão pode ser considerada um fenômeno mais complexo, pois também se trata da comunicação do genoma do neurônio pré-sináptico para o genoma do neurônio pós-sináptico e, em seguida, do genoma do neurônio pós-sináptico de volta ao genoma do neurônio pré-sináptico, por transmissão retrógrada. Esse processo envolve longas fileiras de mensagens químicas dentro dos neurônios tanto pré-sinápticos quanto pós-sinápticos, denominadas cascatas de transdução de sinais. É uma verdadeira troca de mensagens, envolvendo várias moléculas, uma corrida de revezamento, até que a mensagem chegue ao destinatário, como a expressão gênica ou a ativação de moléculas inativadas ou “dormentes”.
A expressão gênica pode tanto ativar como desativar as moléculas que vão produzir mudanças nas conexões.
Quantos genes potenciais podem ser alvo de neurotransmissão? Estima-se que o genoma humano contenha, aproximadamente, de 20 mil a 30 mil genes, localizados dentro de 3 milhões de pares de bases de dna em 23 cromossomos. … O fator importante na regulação da função neuronal não parece ser apenas o número de genes que temos, mas se, quando, com que frequência e em que circunstâncias eles são expressos. (p. 18)
Neste momento, retomo o “Projeto” de Freud, com seus neurônios φ e ψ, que criam rotas de conexão com áreas de facilitação (que ganham em complexidade) ou repressão (que levam ao bloqueio neuronal). Podemos ver essa rede neuronal de forma dinâmica, criando ou desfazendo conexões. E aqui entra a epigenética. Segundo Stahl, a aprendizagem e o meio ambiente podem, de fato, alterar os tipos de gene que serão expressos e, assim, produzir mudanças nas conexões neuronais. “Dessa maneira, as experiências humanas, a educação e, até mesmo, a psicoterapia podem modificar a expressão de genes que alteram a distribuição e a ‘força’ de conexões sinápticas específicas” (p. 23). É muito interessante essa abordagem da moderna psicofarmacologia.
Outra questão apresentada no “Projeto” se relaciona à energia Q. Silvia Laurentino e Suzana Boxwell escreveram um artigo intrigante, “Psiquismo fetal: bases neurodinâmicas e psicanalíticas” (2022), considerando a existência de um aparelho psíquico rudimentar já no feto, com intensa atividade funcional e sinaptogênica no último trimestre gestacional, o que torna o cérebro humano uma grande fonte criadora de energia, ao mesmo tempo que se revela extremamente vulnerável.
O ponto que gostaria de destacar no artigo é a contribuição da física quântica para o entendimento do problema mente-cérebro no que diz respeito à questão da consciência. As autoras citam trabalho de Beck e Eccles, que propuseram a existência das microestruturas neocorticais, compostas de fibras muito finas, que operariam nas sinapses por meio de processos quânticos. Tais vesículas sinápticas têm cerca de 40 nm de diâmetro e estariam sujeitas à relação de incerteza quântica. Essa ideia me fez pensar na situação paradoxal deixada em aberto por Freud, para o desenvolvimento do pensamento e para a consciência, na qual supõe “um estado de vinculação nos neurônios que, embora na presença de uma catexia elevada, permite apenas uma corrente pequena”; em seguida, ele repete: “Assim, o processo de pensamento ficaria mecanicamente caracterizado por esse estado de vinculação que liga uma catexia elevada com uma corrente pequena” (Freud, 1950[1895]/1977, pp. 483-484). Freud estaria se referindo a esses processos quânticos?
Para trazer mais um elemento a esse momento de passagem para o campo do pensamento, nesse salto quântico, recorro a Cassirer, no livro Linguagem e mito (1925/2003). O autor se vale da pesquisa de Hermann Usener sobre os nomes divinos. Busca através dele a “origem”, não a histórica, mas o ponto em que o deus e seu nome brotaram primeiramente na consciência. Para a pessoa envolta nessa intuição mítico-religiosa, é como se o mundo inteiro afundasse. Sua mente está concentrada num só ponto, e o homem assim “possuído” é acometido pelo
afeto do medo ou da esperança, do terror ou dos desejos satisfeitos e libertos, então, de alguma forma salta a faísca: a tensão diminui a partir do momento em que a excitação subjetiva se objetiva, ao se apresentar perante o homem como um deus ou um demônio. (p. 53)
A mesma conformação Cassirer confere à linguagem: a palavra, o deus ou o demônio se apresentam como uma realidade objetiva, e esta surge num ponto em que o afeto se concentra, gerando uma “peripécia” do espírito, fazendo desabrochar no mito ou na linguagem.
São muitos os pontos que nos conectam com os phármaka e e-phármaka - lembrando o nosso mundo digital. E o phármakon de Platão continua a nos instigar.
Para encerrar, retomo a cena do Xingu. Vejo-me agora ao lado de um rio poluído, contaminado pelo mercúrio dos mineradores, a floresta em chamas, os índios ameaçados, assim como o planeta. Eu, com um celular na mão, me vejo como aquele indiozinho, no meio de uma parafernália de objetos voadores, quem sabe algum novo vírus, diante de escrituras digitais vindas das mais diversas fontes, verdadeiras ou falsas, perigosas ou úteis, e sem saber se haverá ou não um objeto-salvador-do-nosso-desamparo-essencial.
Mas continuo acreditando que a psicanálise pode ser um instrumento importante nestes nossos tempos de tantas conquistas, tantos desafios, pensando principalmente na nossa clínica contemporânea, da qual destaco o traumático.