Um mundo que pretendeu ser uma imensidão, mas do qual restou um detalhe ridículo, como acontece com tudo.
THOMAS BERNHARD, O náufrago
Numa longa entrevista à rádio BBC, em julho de 2006, no programa Desert Island Discs, Hanna Segal listou o que mais gostaria de ter consigo se resistisse a um naufrágio e chegasse até uma ilha selvagem: o Quarteto de cordas em C menor de Mozart, seu livro favorito de Marcel Proust, snorkel e óculos de sol. Indagada pela entrevistadora se conseguiria viver isolada nesse lugar, confessou que não. Dependia de vários medicamentos cuja falta, em poucos dias, tornaria inviável a sobrevivência. Então, a entrevistadora prosseguiu: “E supondo que seu corpo aguentasse?”. Hanna Segal respondeu que, provavelmente, seria capaz de suportar todas as ausências - seus três filhos, seus amigos, seus pacientes, seus escritos - a despeito do terrível pesar que tais separações lhe causariam. Afinal, quando era criança, perdeu sua única irmã. Na adolescência, viu arrastar-se a depressão do pai e suas tentativas de suicídio. Jovem, enfrentou uma sucessão de exílios. Sim, se levantaria dessa tragédia, mas “apenas se houvesse a esperança de, ao menos, uma relação humana”. Sem ninguém até o fim de seus dias, confessou, descobriria um jeito eficaz de acabar com sua vida (Lawley, 2006).
Ao som das músicas que mais fortemente marcaram a própria história, ela nos convida a pensar nas experiências desoladoras que não podemos evitar. Por exemplo, ninguém ganha para sempre a luta contra a velhice, bem o lugar existencial que habitava quando concedeu a entrevista, pouco tempo antes de morrer, aos 93 anos. Todavia, defendeu ela, nada poderia assolar a constelação de bons objetos que trazia em si: o ressoar sinfônico de Mozart, a atração pela exuberância da natureza e, sobretudo, o prazer da intimidade com outra mente.
Memórias, uma infinidade delas, essas também iriam com ela. Será por isso, então, que respondeu Em busca do tempo perdido - risonha, mas firmemente - no instante em que a entrevistadora perguntou se ela desejaria ter algum livro na ilha? “Quem sabe a Bíblia ou as peças de Shakespeare…”, tentou antecipar a escolha da convidada do programa. Surpreendentemente, e sem hesitar, Hanna Segal elegeu os sete volumes que atravessaram a existência adulta do escritor francês. “Tudo o que Freud estudou aparece em Proust”, afirmou a psicanalista sobre o autor ficcional que tanto iluminou a extensão inesgotável da subjetividade, para alguns chegando a ser considerado o sensibilíssimo pensador que representou o que a psicanálise começava a investigar no alvorecer do século 20. Ao se debruçarem sobre o mistério infinito do humano, Proust chamou-o de lago desconhecido, e Freud, de inconsciente (Tadié, 2012; Willemart, 2000).
Quando nada subsiste de um passado antigo, depois da morte dos seres, depois da destruição das coisas, sozinhos, mais frágeis, porém mais vivazes, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, o aroma e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, chamando-se, ouvindo, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, levando, sem se submeterem, sobre as gotículas quase impalpáveis, o imenso edifício das recordações. (Proust, 1913-1927/2016, p. 53)
Mas e quando nos debatemos contra as águas do mar, de olhos fixados numa terra exótica e fascinante aonde jamais chegaremos, uma vez que é tão somente uma miragem e não uma ilha onde fazer morada? E quando o naufrágio foi não um acidente, mas uma catástrofe precoce que incitará um obstinado anseio de salvação - a busca do tempo nunca vivido?
Uma devastadora fantasia
Não conhecia O náufrago (1983/2006a), nem nenhuma outra obra de Thomas Bernhard, até que uma paciente trouxe aquele narrador sem nome para algumas sessões. Ela própria tentara ser uma paciente sem nome, aliás. Quando chegou à entrevista inicial, começou pedindo que não a chamasse pelo nome, nem pelo sobrenome. Era sempre intolerável ouvir o som das palavras que a nomeavam, de tal modo que lhe soava uma maldosa provocação se alguém as pronunciasse. Para vê-la exaltada, num misto de ira e aflição, bastava repetir um daqueles vocábulos infames.
Por alguma captação intuitiva, e não uma decisão técnica, jamais a chamei senão por seu nome próprio. Era possível que me corrigisse, reiterando o pedido inicial. Ou que se irritasse comigo. Nada disso aconteceu, entretanto. Cogito que talvez não fosse uma solicitação, mas uma forma de comunicar que eu estava frente a uma pessoa que reescreveria sua gênese, desde as experiências mais primitivas, se conseguisse. “Não podemos escolher o lugar em que nascemos, pensei. Mas podemos ir embora dele quando ele ameaça nos sufocar” (p. 107), diz o narrador a quem ela me introduz. Podemos mesmo? Será? Era o que ela parecia desejar: nascer outra vez, recordar outro passado, carregar outra mente, apagar a sina de criança desprezada (e ser humano desprezível) e conceder a si própria outro destino. Outros pais, outro país. Outro idioma - não é à toa que ela se dedicara a aprender latim e grego. Quando decidiu estudar inglês, era para que viesse a ler William Shakespeare e os poetas românticos ingleses dos séculos 18 e 19: Samuel Coleridge, Lord Byron, John Keats. “Só me interessam as velharias”, dizia. E, quando se cercou dessa literatura, agarrou-se a Frankenstein (1818/2015), de Mary Shelley, a história do ser bizarro originado de cadáveres retalhados. Um menino gerado na mesa cirúrgica de um laboratório científico, fora do corpo materno. Um desamparado indivíduo sem nome, dou-me conta agora. Talvez fosse a revolta contra sua história que a ligasse a esses protagonistas anônimos concebidos por Bernhard, autor holandês que se considerava austríaco embora reiteradamente enxovalhasse, em suas obras, as cidades, os hábitos e as pessoas da Áustria. Um homem que odiou sua origem, chamando-a de “solo mortífero” e “região letal” em Origem (2006b), autobiografia que reúne cinco livros antes publicados separadamente, entre 1975 e 1982: A causa, O porão, A respiração, O frio e Uma criança.
Tenho vontade de pedir que você leia Thomas Bernhard, mas é um escritor amargurado e repetitivo, que anda em círculos, feito eu. Ninguém que conheço gostou realmente dele. Desistem… Você, não duvido que chegue até o fim, por ser psicanalista…
De fato, não desistimos uma da outra; nem desistimos do autor, esse difícil porta-voz escolhido por ela. Ser impactada pelas angústias insistentes que pulsam sob as frases de uma obra literária, sentindo o que a boa ficção consegue emanar, pode ser uma experiência que cobra de nós uma custosa hospitalidade interna. Não há apelo estético na escrita de Bernhard, nenhuma beleza poética em suas frases cortantes. Somos capturados pela eloquência de um sofrimento pervasivo e resistente, que jamais recua para que outras emoções possam surgir. Li alguns títulos do autor porque apresentavam a voz ficcional que ela própria usava para descrever a si, frequentemente buscando personagens dessas obras, às vezes citando parágrafos inteiros que sabia de cor. Os seres humanos retratados por Bernhard condensavam-se, portanto, num duplo autobiográfico que reunia deprimidos crônicos, exilados de seus países, deserdados por genitores, hospitalizados em manicômios, suicidas potenciais a ensaiarem a própria morte - incluindo aqueles que conseguiram, por fim, materializar o intento autodestrutivo mais drástico. De algum modo, estão todos mergulhados num lugar de onde enxergam, ao longe, a vida que poderia ter sido - e da qual precisaram desistir.
Um ensaio de Orhan Pamuk parece sintetizar a convicção fundamental a perpassar as narrativas do autor de que a paciente me falava: “Por que a leitura de Bernhard em época de infelicidade teve o efeito de um elixir? Talvez o ar de renúncia. Talvez eu tenha sido acalmado por uma visão moral, a sugerir que é melhor não esperar muito da vida…” (2010, p. 193).
Os personagens de Bernhard se isolaram, ensimesmando-se, fugindo de relações e, inclusive, de convívios ocasionais. Se jamais se tornarão o que precisariam ser para que tivessem importância, então é melhor a solidão resoluta - ou a morte. É verdade que perderam a fé, como escreveu Pamuk, mas não antes de buscarem redenção.
Tudo ou nada
Em O náufrago, acompanhamos o narrador que volta à Áustria para o funeral de um colega dos tempos em que, jovens pianistas, estudaram no Mozarteum, em Salzburgo. Glenn Gould (livre referência ao pianista canadense homônimo) morrera recentemente, acometido por um mal súbito. Agora era a vez de Wertheimer, mas não devido a um colapso orgânico: o suicídio que anunciava havia décadas tornara-se, então, um fato consumado - uma revanche derradeira e implacável, voltada para si próprio, encerrando velhos tormentos (Cassorla, 2021). Quem sabe foi a morte de Gould o que estimulou o ato radical do amigo, supõe o narrador, já que o talento supremo de Gould e, depois, sua trajetória de consagração internacional soterraram as carreiras de ambos.
Gould fora agraciado por espantoso dom musical. Ele que era “o virtuose do piano mais importante no mundo todo” (p. 8), um “assombro pianístico” (p. 50), “uma pessoa tão grandiosa que sua grandiosidade aniquilava” (p. 70), finalmente, era coroado por uma morte instantânea, no auge do sucesso. Isso o perpetuaria como o maior pianista da história, um tímido garoto prodígio que, em 50 anos de existência, viria a traçar uma linha divisória no registro dos virtuoses. Antes de Gould, ninguém executara as Variações Goldberg com tamanha originalidade e perfeição. Caso nunca mais tivesse gravado qualquer outra coisa, bastaria essa obra para imortalizá-lo. Antes de Gould, ninguém se debruçara sobre o piano, tocando Bach enquanto cantarolava frases inaudíveis, de olhos semicerrados, tão absorto no som que era como se o teatro inteiro estivesse vazio, nada existindo além de um homem e seu piano, fundidos numa espécie de cópula transcendente. Sequer via o público que o admirava - centenas ou milhares de voyeurs excitados. Por isso, vendeu milhares de discos, mesmo recluso, avesso que era a apresentações. Por isso, também, suas músicas foram escolhidas para tocarem ininterruptamente nos satélites Voyager, da Nasa, sob o intuito científico de que seres extraterrestres conheçam a potência criativa do ser humano logo nos primeiros instantes de uma eventual sintonização com tais espaçonaves. Glenn Gould gravitando sobre o planeta, à espera de contato alienígena, dispondo-se a fazer esses seres compreenderem até que ponto chega a sofisticação para a qual a humanidade é vocacionada. Aqui na superfície da Terra, enquanto isso, os ex-colegas do Mozarteum viveriam desprezados, usufruindo de heranças advindas de quem nunca os amou e, a contragosto, deixou-lhes sobras da fortuna não exaurida numa geração. À distância, restaria admirarem Gould em grandes concertos televisionados, o êxtase mudo da plateia cortado apenas pelo som das mãos a freneticamente deslizarem, isso durante os anos em que eles próprios seriam comuns professores, entre outros tantos, dedicados a carreiras inexpressivas e fraudulentas.
Instaura-se, então, uma polarização extremada: lá adiante, a figura magnífica - o gênio; aqui, todos aqueles para quem não sobrou alternativa. Estes apagam-se sob o brilho da luz irradiada pelos escassos artistas que são inequivocamente talentosos. Morrem aos poucos, em vida, quando deparados com um dom esplêndido que lhes é alheio. Nesses graves casos, o sublime exerce um “efeito devastador”, diz o narrador. “De um momento para o outro passei a odiar o piano, o meu próprio; não podia mais me ouvir tocar; não queria mais errar” (p. 10). “Eu queria ser o melhor de todos - ou nada” (p. 72). E, com isso, o desvalimento, que na esfera imaginária poderia ser mitigado quando o indivíduo fizesse algo excepcional, torna-se uma ferida sem cura.
“Somos tão arrogantes que acreditamos estar estudando música, quando na verdade não somos capazes nem sequer de viver, somos incapazes até de existir, e afinal não existimos: somos existidos!” (p. 43) - ouve-se aqui um pungente insight sobre o que ele próprio chama de “mecanismo de becos sem saída” (p. 121) ou “mecanismo de náufragos” (p. 122). Tenta-se escapar do sofrimento impondo-se uma odisseia delirante, sustentada pelo investimento maciço num rigoroso ideal do eu. Sob esse ímpeto triunfante, que nega as reais potencialidades e limitações individuais, fatalmente chega-se a lugar nenhum. “O virtuosismo pianístico tinha sido para mim apenas uma saída, uma manobra para retardar algo que, no entanto, nunca soube com clareza o que era e até hoje não sei” (p. 71). Ele percebe que traz, em si, uma pungência inominada.
Vale considerar que essa dinâmica perturbadora não deveria acusar o ideal do eu de intrínseca malignidade. Para Freud, o ideal do eu é a “expressão dos mais importantes destinos libidinais do id”. E completa: “Estabelecendo-o, o eu assenhorou-se do complexo de Édipo e, ao mesmo tempo, submeteu-se ao id” (1923/2011, p. 45). Com literária concisão, Freud faz-nos lembrar que o filho, ao descobrir que não é capaz de atrair para si a totalidade dos investimentos libidinais dos adultos de quem ele depende, pode continuar sua empreitada narcísica ao deslocar “esse algo elevado” (no original alemão, ein höheres Wesen) em prol da formação de ideais de eu - o “algo elevado” que um dia o bebê sentiu ter em si ou, ao contrário, o sentimento de extraordinário valor de que foi privado. Dessa “terra incógnita” que constitui o id, a “Atlântida afundada” de cada um de nós (Souza, 2010, p. 94), levanta-se a coisa perdida, ou nunca vivida, que se tentará recuperar.
“O que é mais profundo na vida psíquica de cada um”, já preconizava Freud, originará “o que é mais elevado na alma humana” (1923/2011, p. 46). Bem aqui há um perigo à vista: o narcisismo primário desvalido pode cobrar do sujeito uma imensa elevação compensatória, um acerto de contas imaginário, um duelo com o passado. E, por ser um ímpeto nascido de traumatismo, o ideal do eu trará consigo a destrutividade de que foi precoce vítima - tal como um jovem delinquente incitado a compulsivamente vingar as agressões e abandonos a que foi submetido. Notemos que a noção de ideal do eu, já consolidada pelo menos desde “À guisa de introdução ao narcisismo” (1914/2004), não se manteve incólume à teorização de Freud sobre as vicissitudes pulsionais, uma vertente de pensamento que culminaria na publicação de Além do princípio do prazer (1920/1996). O texto seminal de 1923 chegou aos leitores, portanto, marcado por essa compreensão ampliada, que ousadamente tentava lidar com dimensões psíquicas já descritas na primeira tópica (inconsciente, pré-consciente, consciente), articulando-as com instâncias da personalidade (id, eu, supereu) e pulsões antagônicas (pulsão de vida e pulsão de morte).
Com isso, o ideal do eu firma-se enquanto conceito desidealizado. Não traz em si a delicadeza da inspiração, um almejar de virtudes. Se o ideal do eu é, visceralmente, um precipitado de identificações e sublimações, há de possuir as feições das experiências originárias, localizadas nos primeiros tempos da vida. “A luta que já se deu nas camadas mais profundas, e que não chegou ao fim”, afirma Freud (1923/2011, p. 49), “prossegue numa região mais elevada”. A alegoria usada por ele é uma pintura de Wilhelm von Kaulbach, A batalha dos hunos (c.1850), um extenso mural que representa os guerreiros vencidos na sangrenta batalha acontecida no ano de 451, agora lutando no além-morte. Na parte inferior da obra, vemos a destruição causada pelo conflito. Na parte superior, onde pensaríamos encontrar diáfanas nuvens, há um campo no qual soldados teimam em reivindicar - pela eternidade - a glória que a guerra lhes roubou.

Wilhelm von Kaulbach, A batalha dos hunos, c.1850, óleo sobre tela, 137,5 × 172,5 cm. Staatsgalerie Stuttgart, Stuttgart, Alemanha.
Com frequência as observações na clínica sugerem que o terrorismo exercido pelo ideal do eu tende a ressurgir, em alguns pacientes, quando a mente está aterrorizada. Voltemos a Segal (1998), aqui para retomar a ideia essencial do artigo intitulado “Um sistema delirante como defesa contra a recorrência de uma situação catastrófica”: se o eu é inundado por impulsos destrutivos e autodestrutivos, a criança pode se lançar a restabelecer um mundo em que, onipotentemente, exerce um sádico controle sobre a realidade imediata e, ao mesmo tempo, estabelece uma relação idealizada com elementos salvadores. Para que não afunde no vórtice que a ameaça, projeta no mundo externo, ou dentro de si, algum tipo de incomum grandiosidade que, uma vez alcançada, mitigaria o crônico sentimento de humilhação.
Uma fantasia destinada à falência, por certo, enquanto imperar o “prazer masoquista de triunfar sobre a parte de si que deseja viver e crescer” (Segal, 1988, p. 38).
Grandiosidade como pesadelo
Sofria de obstruções que levavam a uma ciranda de médicos e tratamentos. Chamava-me a atenção que seus problemas orgânicos fossem todos retentivos. Ardia a micção, o que intrigava os urologistas, que nada diagnosticavam para justificar tal sintoma. Usara variados laxantes, sem que tivessem efeito, até um proctologista explicar-lhe que o intestino pode desaprender o movimento de expelir, tornando-se um órgão flácido e passivo. Respirava melhor somente com a ajuda de descongestionantes. As menstruações, por sua vez, tardavam a acontecer. “Nada pode sair de você?”, perguntei. “Coisas espontâneas precisam ser impedidas?” Naturais e ordinárias, substâncias corporais eram detidas. Ressecavam. Inflamavam. Contaminavam. Geravam torpor nesses lugares viscerais ocos que, em condições normais, são intermitentemente preenchidos e esvaziados.
Não conseguia escrever, nem mesmo quando seu trabalho demandava. Doía-lhe o corpo todo frente à tela do computador. Arranhava-se. Puxava os cabelos. Tinha vontade de chorar e gritar. Cansada de tentar finalizar ao menos uma página, escondia-se na cama, sob a penumbra da colcha. Pedia que prorrogassem os prazos, envergonhada, para depois perdê-los de novo quando chegavam a um limite inelutável.
Gostava de ler obras clássicas até que já não podia mais - ao passar os olhos por uma ideia bem elaborada, comparava-se a quem a expressara e notava que ela própria tinha idade suficiente para ter escrito tal formulação; contudo, não o fizera. O autor, sem que pudesse supor tal dano, a castigava oferecendo um pensamento eloquente, complexo e inusitado a quem sentia escrever nada além de obviedades, que logo tratava de apagar ou, se impressas, amarfanhar em gavetas.
As lombadas dos livros, vislumbradas de relance, tinham o poder de atormentá-la. Decidiu que encaixotaria os volumes preferidos. Movia-se por entre vãos, de um cômodo a outro, como quem caminha entre jazigos. O apartamento fora transformado num “cemitério de papéis”, ela dizia. Não que tivesse o impulso de exterminar as milhares de páginas confinadas - “Aqueles que queimam livros, que banem e matam poetas, sabem exatamente o que fazem. Seu poder é incalculável” (Steiner, 2021, p. 7). O que fazia, sem que soubesse, era deixar as palavras dormindo no breu, prontas a ressuscitarem quando pudesse admirá-las e aprender com elas, num tempo em que a pujante voz do escritor não a aviltasse. Enquanto isso não acontecia, percebia-se alérgica vivendo junto a amontoados de caixas empoeiradas que havia anos não abria.
Uma vida de insucessos, de projetos interrompidos antes do fim. Um inventário de fracassos que confirmava sua desprezibilidade: se não conseguia um feito excepcional, preferia desistir. E, se desistira em tantas ocasiões, era porque realmente não tinha valor algum. A antecipação do fracasso incitava a paralisia, que, por sua vez, confirmava sua vocação para o fracasso - movendo um ciclo maligno autoperpetuador.
Era, contudo, hábil em criar pesadelos.
Sonhava com eventos cerimoniosos: entregas de prêmios, noites de autógrafos, estreias de óperas, ritos em catedrais medievais. Ou halls de embaixadas e consulados. Ela sempre em filas, fechada do lado de fora ou perdida na aglomeração. Ou trazendo um passaporte vencido, ou falando uma língua ininteligível. Ou constrangida ao ser retirada do camarote de teatro - interpelada por um segurança, percebera que não tinha ingresso algum. Ou sozinha num banquete onde pessoas se deliciavam com pratos sofisticados, enquanto sua refeição se limitava a pedregulhos sujos e um punhado de folhas secas.
Houve uma sessão em que o sonho levou-nos a um palácio da realeza - “mistura de Buckingham e Versailles”, explicou -, ambiente reinventado por ela. Juntas percorremos imensos cômodos recobertos de tapetes persas, espelhos bisotados, obras de arte, móveis de nobres madeiras, banheiras de porcelana chinesa, privadas esculpidas em raro mármore. Não havia camas nos quartos, mas berços lindíssimos em que bonecas pareciam repousar, aninhadas em delicados travesseiros. Não havia teto, mas uma cúpula de vitrais no topo. Não havia ninguém ali, exceto ela. Ao tentar sair, percebeu que as escadarias tinham desaparecido, abrindo fossos vazios onde, havia pouco, ela subira pelos degraus circulares. De nada adiantaria romper as janelas, pois uma queda daquela altura seria fatal. “O palácio era, na verdade, uma armadilha”, concluiu.
Sonhava reincidentemente com um ônibus que a conduzia para o mesmo ponto de onde partira - a cidade estava lotada de ferozes animais, ou labaredas de um incêndio, ou multidões humanas exaltadas, de modo que era mais seguro permanecer no ônibus até chegar ao terminal. Mas o terminal não era onde a viagem propriamente terminava - era seu destino inescapável: novamente voltava ao mesmo lugar de onde tentara se afastar. Numa dessas travessias vãs pela cidade, pretendera ir até o Superior Tribunal de Justiça, porém o ônibus perdeu-se e acabou por ficar paralisado diante de um show popular, em que os participantes se drogavam e faziam sexo, alguns caindo desfalecidos pelos gramados.
Sonhava com a análise, contava-me às vezes, embora não se lembrasse do enredo.
PACIENTE: Quando eu sonho com você não é pesadelo.
ANALISTA: O que te faz pensar isso?
PACIENTE: Não acordo sem ar, encharcada de suor, me debatendo.
Incluo aqui brevíssimo parêntese sobre a esperança do analista, trazendo à luz uma ideia tecida por James Grotstein (2000). Ao criar um sonho agoniante, o sujeito pode estabelecer uma comunicação entre partes do inconsciente: o id que exige o impossível e o eu que se assusta diante dessa impossibilidade enlouquecida, em tal nível que faz o sonhador despertar o quanto antes. Recordar o sonho e narrá-lo são fenômenos, respectivamente, secundário e terciário. O sonhador que assiste ao sonho trabalha junto ao sonhador que fez o sonho no esforço de criar representação visual e textualidade para uma profunda dor - “matéria inefável do inconsciente”, assim define Grotstein. Sob essa ótica, haveria uma função terapêutica - uma parte sã - no interior da mente desse que, antes de qualquer esforço narrativo consciente, horrorizou-se com o mal que impingia a si mesmo. E acordou.
A última ilha de Napoleão
O que é adquirido como ideal do eu permanece, no sujeito, exatamente como a pátria que o exilado carregaria na sola dos sapatos - seu ideal do eu lhe pertence.
JACQUES LACAN, O seminário, livro 5: as formações do inconsciente
É provável que, naquela tarde, não parasse diante de Guerra. O exílio e a lapa da rocha, pintura a óleo de 1842 do inglês William Turner, se não estivesse às voltas com a questão dos naufrágios psíquicos, nesta estranha disposição perceptiva que Thomas Ogden (2010) chamou de estado de escrita. Começamos a rascunhar um texto e, por algum tempo, ficamos sensíveis, numa espécie de tropismo involuntário, que sequer notaríamos caso não estivéssemos abrigando em nossa mente os fragmentos de um artigo inacabado.

William Turner, Guerra. O exílio e a lapa da rocha, 1842, óleo sobre tela, 79,5 × 79, 5 cm. Tate Britain, Londres, Inglaterra.
Na tela colorida por suaves amarelos e azuis, em meio à luz espectral, há dois homens. Condenado ao exílio perpétuo após a derrota na Batalha de Waterloo, Napoleão Bonaparte caminha na ilha do Atlântico Sul onde morou durante os seis anos finais de sua vida. Está alguns metros adiante do guarda inglês, ambos à beira das poças douradas pelo sol poente. Nunca mais conquistaria um novo território, arrastando um batalhão de homens sob a ordem de invadir e dominar. Nunca mais acumularia vitórias - mas aparece no centro do quadro trajando as roupas de líder militar. Silencioso, mira o reflexo de sua imagem no charco, enquanto o guarda vigia o prisioneiro. Há destroços espalhados num dos cantos e, em contraste com a suavidade do céu, intensas pinceladas marrons e vermelhas fazem a água lembrar um rio ensanguentado.
Quis o artista chamar o quadro de Guerra e exibi-lo ao lado de outro, intitulado Paz. Sepultamento no mar.

William Turner, Paz. Sepultamento no mar, 1842, óleo sobre tela, 87 × 86,5 cm. Tate Britain, Londres, Inglaterra.
Em Paz, retratou o funeral do pintor escocês Sir David Wilkie, triste cerimônia de adeus que resultou num luminoso quadro. Mar adentro, um barco leva o corpo para deixá-lo em fundas águas oceânicas, riscando o horizonte com vapor acinzentado. No centro superior da tela, o infinito celeste mostra-se por entre as nuvens densamente brancas. Quis chamar de Paz a capacidade de acolher o objeto ausente. Vê-lo partir ao longe, num paradoxal movimento de guardar dentro de si o que não mais existirá. E suportar os vazios que, em tempo algum, foram ou serão preenchidos, por quaisquer objetos de amor.
Ao pintar Guerra, registrou um altivo Napoleão, que não desistiu da grandiosidade nem mesmo quando estava confinado naquela ilha solitária. Parece enfraquecido e doente - segundo biógrafos, foi mesmo como terminou seus dias no cárcere. Quis chamar de Guerra a insistência em derrotar a perda, negando a perenidade do vazio. Sanha de controlar os objetos e acontecimentos de modo a triunfar sobre a dor. Delírio onipotente que incita batalhas cujas vitórias garantem, no máximo, uma satisfação provisória e incompleta.
Junto à obra, encontramos uma placa onde se lê que a imagem foi mal recebida na ocasião da primeira exibição, em Londres. Um dos críticos, por exemplo, alegou que as pernas de Napoleão lembravam estacas de madeira fincadas na água. Quem sabe William Turner tenha conseguido representar o naufrágio ao qual o estadista condenou-se na busca por conquistas que sentia nunca bastarem. Quem sabe tenha captado, naquele homem, uma tragédia emocional pouco compreendida.
Perto do paciente, o analista observa, pergunta, escuta, sente, imagina. E, muitas vezes, testemunha a dimensão “napoleônica” do ideal do eu - suas insurgências, suas derrocadas -, tentando navegar, sessão após sessão, da catástrofe invasiva para a vivência espontânea, do pesadelo repetido para o sonho inesperado. Com isso, e numa travessia contra os ventos, migrando da busca desesperada pela amplitude “oceânica”, “ilimitada”, “sem fronteiras” (Freud, 1930/1988, p. 73) para a vida de aventuras imperfeitas na pequena ilha onde coube a nós fugazmente existir.