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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641XOn-line version ISSN 2175-3601

Rev. bras. psicanál vol.58 no.1 São Paulo  2024  Epub Nov 29, 2024

https://doi.org/10.69904/0486-641x.v58n1.01 

Editorial

Envelhecer em psicanálise

Claudio Castelo Filho1 

1São Paulo


Percebi pela primeira vez, pelas metamorfoses que ocorreram em todas essas pessoas, o tempo que passou para elas, o que me surpreendeu com a revelação de que também havia passado para mim. E, indiferente em si mesma, a velhice deles angustiava-me ao avisar-me da aproximação da minha.

MARCEL PROUST

Na citação usada como epígrafe, de O tempo redescoberto, último volume de Em busca do tempo perdido, o narrador relata o reencontro com personalidades que há muito não via, numa festa da princesa de Guermantes. Fica impactado com a dificuldade de reconhecer muitas de suas antigas relações, pelas marcas que o tempo deixou em suas aparências, e também pela maneira como as experiências de vida de cada uma teria igualmente afetado ou deformado suas personalidades. Choca-se ao constatar que outras pessoas também o olhavam na tentativa de reconhecer quem seria ou, caso aparentassem ter alguma noção de quem ele era, pareciam esforçar-se para encontrar no ele do momento a pessoa que teria sido outrora. Impacta-se ao perceber que a mesma impressão que tinha sobre o envelhecimento de seus convivas, estes também deveriam estar experimentando em relação a si. As situações sociais haviam se alterado, pessoas das novas gerações não reconheciam ou não tinham noção de quem eram os grandes nomes de sua juventude, chegando mesmo a considerar algumas das mais importantes damas de anos passados como parvenues, para seu total escândalo. A princesa de Guermantes tampouco era a original. Madame Verdurin, milionária nova-rica durante quase toda a extensão do monumental romance, enviuvara e tornara a casar-se com o também viúvo, mas falido com as consequências da Grande Guerra, príncipe de Guermantes, entrando finalmente para o grand monde aristocrático que até então a esnobara. A duquesa de Guermantes1 encontra o narrador, cujo nome é Marcel, como o autor, e o chama de seu mais velho amigo. Este se dá conta de que, para ele, ela foi ao menos três: uma espécie de personagem sagrado que flutuava sobre o pavimento da catedral de Combray, em batizados e casamentos na sua infância; a grande dama da altíssima sociedade com quem, quando era jovem, ele sonhava um dia poder conviver; e aquela senhora soterrada em babados e joias que agora via e percebia como uma mulher como tantas outras. (Poderíamos pensar nessa narrativa como uma belíssima descrição da oscilação da posição esquizoparanoide para a depressiva, em que a idealização cede lugar a uma visão realista de uma mãe/mulher.)

Há pouco tempo, fui a um velório no cemitério Gethsêmani, no bairro do Morumbi, em São Paulo. Lá estão enterrados os meus pais e a minha querida babá. Fazia alguns anos que não passava por aqueles cantos. O caminho me atordoou, porque o local que conhecia está transformado, e as antigas mansões em boa parte estão cedendo lugar para grandes condomínios de edifícios altos. Fiz uma comparação com a experiência de visitar cidades europeias, que, pelo menos na aparência externa, conservam-se da mesma maneira há séculos. Quem visitou Paris há décadas não estranhará muito a Paris de hoje. A tecnologia disponível, no entanto, mudou bastante boa parte dos modos de funcionamento. Existe algo confortante ao encontrarmos essas invariantes, a despeito da passagem do tempo, em contraste com a substituição, muitas vezes total, do ambiente em cidades como São Paulo ou Fortaleza, em que fica difícil reconhecer que se trata da mesma localidade, apesar da manutenção do nome, assim como parece ter sido a vivência do narrador da Recherche ao se deparar com personagens como monsieur D’Argencourt, do qual só parecia ter restado, em relação ao que conhecera, o nome.

Não havia tempo a perder. Se o narrador queria ser um escritor, ele precisava parar com sua vida diletante de ir a festas e banquetes, para se dedicar à escrita. Durante anos, Proust encerrou-se em seu apartamento no boulevard Haussmann para trabalhar integralmente na produção de sua obra. Deu-se conta da inexorabilidade do tempo e da curta duração de nossa existência. Em contraponto, a obra teria uma perenidade que o autor não teve. As descrições feitas por ele de grandes damas e dos costumes da Belle Époque aparentemente datam a escrita, mas aquilo que captou da alma e da essência dos humanos que descreve a mantém atualíssima e jovem.

Ao escrever estas linhas, lembrei-me do doutor Yutaka Kubo, decano de grande projeção na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, falecido há algumas décadas. Kubo foi meu professor e um de meus supervisores. Era alguém a quem eu respeitava muito e considerava um dos grandes mestres de nossa instituição. Depois de concluir minha formação e publicar alguns trabalhos, espantei-me ao receber telefonemas seus pedindo para conversar sobre minhas publicações. Após algumas conversas, ele solicitou que eu organizasse um grupo de colegas mais jovens para falarmos sobre psicanálise. Alguns colegas se reuniram e passamos a encontrá-lo semanalmente, a fim de trocar ideias sobre nossa atividade profissional. Na primeira reunião, uma colega, apreensiva, indagou se teríamos de pagá-lo por aquela atividade. Kubo retrucou: “Se fosse para pagar, eu é que teria de pagar a vocês, porque eu é que quero me renovar ouvindo o que as pessoas mais jovens têm a dizer!”. Naturalmente, nós usufruímos muito de sua imensa sabedoria e experiência. Como lembrou recentemente a colega Regina Almeida, que participou desse grupo, em determinado momento de uma conversa, todos ficaram mudos, sem nada falar. Kubo então disse: “Estão todos tão preocupados em ser inteligentes e dizer coisas inteligentes, que ninguém diz nada!”. Octogenário, permanecia com o espírito aberto e jovem.

Neste número da rbp, contamos com os relevantes textos temáticos de Gabriele Junkers, Sylvia Salles Godoy de Souza Soares, Ronaldo Victer, Paulo Roberto Ceccarelli, Pedro Vinicius de Souza Brito e Marina F. R. Ribeiro e os artigos de alto nível de Elizabeth L. Rocha Barros, Carmen C. Mion, Liana Albernaz de Melo Bastos, Ricardo Trapé Trinca, Adriana Meyer B. Gradin, Pedro Fernandez de Souza, Andreas Zschoerper Linhares.

Estamos certos de que a leitura destas páginas tem o potencial de ser revigorante para aqueles que já tem cabelos e barbas brancos, como é o meu caso, e para os que ainda têm uma longa estrada pela frente.

Editor

claudiocasteloeditor@rbp.org.br

1A princesa de Guermantes e a duquesa de Guermantes são personagens distintas.

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