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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641Xversão On-line ISSN 2175-3601

Rev. bras. psicanál vol.58 no.2 São Paulo  2024  Epub 02-Dez-2024

https://doi.org/10.69904/0486-641x.v58n2.03 

Artigo

O mecanismo de mudança na “cura pela fala”: Uma perspectiva neuropsicanalítica

El mecanismo de cambio en la “cura hablada”: una perspectiva neuropsicoanalítica

The mechanism of change in the “talking cure”: a neuropsychoanalytic perspective

Le mécanisme de changement dans le « soin par la parole » : une perspective neuropsychanalytique

Mark Solms1 

1Neuropsicólogo. Psicanalista. Membro da Associação Psicanalítica Sul-Africana. Autor de The hidden spring: a journey to the source of consciousness (W. W. Norton & Company, 2021), entre outras obras.


Resumo

O autor apresenta achados em pesquisa neuropsicanalítica relacionados a dois temas: a natureza e o número dos impulsos, que segundo Freud “fazem exigências sobre a mente para que esta trabalhe”; e a natureza e as estruturas componentes do que chamamos “o inconsciente”, especialmente a forma como o componente reprimido do inconsciente é constituído e mantido. Propõe a revisão de alguns conceitos teóricos para, na sequência, discutir suas implicações para a prática clínica.

Palavras-chave impulsos; inconsciente; prática clínica

Resumen

El autor presenta hallazgos en la investigación neuropsicoanalítica relacionados con dos temas: la naturaleza y el número de las pulsiones, que según Freud “exigen a la mente que realice un trabajo”; y la naturaleza y las estructuras componentes de lo que llamamos “el inconsciente”, especialmente la forma en que se constituye y mantiene el componente reprimido del inconsciente. Propone una revisión de algunos conceptos teóricos y, a continuación, discute sus implicaciones para la práctica clínica.

Palabras clave pulsiones; inconsciente; práctica clínica

Abstract

The author presents findings in neuropsychoanalytic research related to two themes: the nature and number of the drives, which according to Freud “make demands upon the mind to perform work”; and the nature and component structures of what we call “the unconscious”, especially the way in which the repressed component of the unconscious is constituted and maintained. He proposes a review of some theoretical concepts and then discusses their implications for clinical practice.

Keywords drives; unconscious; clinical practice

Résumé

L’auteur présente quelques résultats de la recherche neuropsychanalytique concernant deux thèmes : la nature et le nombre des pulsions qui, selon Freud, « demandent à la psyché d’accomplir un travail » ; et la nature et les structures constitutives de ce que nous appelons « l’inconscient », en particulier la façon dont la composante refoulée de l’inconscient se constitue et se maintient. Il propose une revue de certains concepts théoriques et discute ensuite de leurs implications pour la pratique clinique.

Mots-clés pulsions; inconscient; pratique clinique

Este texto apoia-se em um significativo corpo de achados em pesquisa neuropsicanalítica que ensejou revisões básicas da teoria psicanalítica, mas é direcionado primariamente a psicanalistas clínicos. A psicoterapia psicanalítica é uma aplicação da teoria psicanalítica; dessa forma, avanços em nossa teoria necessariamente têm implicações em nossa terapêutica.

Os achados em pesquisa neuropsicanalítica a que me refiro dizem respeito a dois temas: 1) a natureza e o número dos impulsos, que, citando Freud (1915/1957a), “fazem exigências sobre a mente para que esta trabalhe”; 2) a natureza e as estruturas componentes do que chamamos “o inconsciente”, especialmente a forma pela qual o componente reprimido do inconsciente é constituído e mantido.

Uma vez que a justificativa científica para as revisões que apresentarei na sequência é amplamente discutida em outros trabalhos, não pretendo, nesta ocasião, recapitular as evidências científicas (ver Solms, 2013, 2015, 2016, 2017, 2018, 2021, 2022). Simplesmente enumerarei as revisões de maneira dogmática. Com base nessas revisões, pretendo concluir com o ponto principal deste trabalho, a saber: uma discussão sobre as implicações dessas revisões para nossa prática clínica.

Revisão da teoria dos impulsos

Com as oito máximas a seguir, resumo a situação atual das revisões neuropsicanalíticas de nossa clássica teoria dos impulsos:

  • 1) Não existem apenas dois impulsos, mas muitos, e pelo menos sete deles merecem ser descritos por exercerem demandas “emocionais” (em oposição a demandas “corpóreas”) sobre a mente: busca,2 excitação,3 raiva, medo, desamparo/desolação,4 cuidar e brincar.5

  • 2) Esses impulsos não são “desprovidos de objeto” (Freud, 1915/1957a); ao contrário, são intrinsecamente objetais. busca é direcionado a novos objetos; excitação, a objetos sexuais; raiva, a objetos impeditivos; medo, a objetos ameaçadores; desamparo/desolação, a objetos cuidadores; cuidar, a objetos dependentes; e brincar, a objetos competidores. (Os objetos são implícitos a esses impulsos, de maneira bastante similar ao que Bion [1962] discute como “preconcepções”.)

  • 3) Impulsos não são inconscientes, mas experimentados conscientemente. Quando impulsos são ainda-não sentidos, são melhor descritos como “necessidades”. Por exemplo, o corpo necessita de constante suprimento energético, mas exerce demanda sobre a mente somente quando sentimos fome; precisamos estar protegidos de perigos constantemente, mas essa necessidade exerce demanda sobre a mente somente quando sentimos medo.

  • 4) “Impulsos” não são sinônimos de “instintos”. Instintos (como reflexos) são respostas inatas às demandas dos impulsos. Embora afortunados em tê-las, as respostas instintuais são simples e estereotipadas demais para satisfazer as demandas dos impulsos em todos os contextos.

  • 5) Instintos (ou seja, o que Freud chamou de “fantasias primárias”) não são memórias herdadas no sentido “episódico” da palavra; são padrões de ação adaptativos que promovem o sucesso da sobrevivência e da reprodução, e que foram dessa forma conservados pela seleção natural. (“Angústia de castração” é um exemplo modelo; ver Solms [2022].) Porque instintos não são memórias, não podem assim ser extintos ou atualizados; eles são indeléveis. Entretanto, podem ser inibidos e então substituídos (suplementados, mas não extintos) por padrões de resposta alternativos, que são adquiridos pelo aprendizado através da experiência.

  • 6) A tarefa primária do desenvolvimento emocional é aprender como atender às demandas dos impulsos nos ambientes específicos em que nos encontramos (por exemplo, nossa família de origem e suas circunstâncias socio-econômicas). Isso é mais difícil em relação aos impulsos emocionais do que em relação aos corpóreos, pela razão de que os objetos dos impulsos emocionais (ao contrário daqueles do corpo) têm mente própria. Isso faz deles muito mais imprevisíveis do que os objetos dos impulsos corpóreos (por exemplo, comida, água e oxigênio).

  • 7) É difícil aprender a satisfazer os sete impulsos emocionais pela razão adicional de que eles prontamente entram em conflito uns com os outros. Por exemplo, o impulso de DESAMPARO/DESOLAÇÃO dispara comportamentos instintivos que são feitos para manter a presença, a atenção e o cuidado de um objeto de apego, enquanto o impulso de RAIVA engatilha comportamentos instintivos que são feitos para se desincumbir de algo (por exemplo, destruir), de um objeto impeditivo.6 Pensemos: qual mãe nunca os frustrou? Como Bion (1962) disse, o bom objeto ausente é um mau objeto presente. (O conflito representado pela realização de que o bom objeto e o mau objeto podem ser uma mesma pessoa sustenta toda a teoria kleiniana.)

  • 8) Na mesma medida em que uma criança falha em aprender como satisfazer um impulso, ela sofrerá do sentimento que anuncia aquele impulso em particular. Por exemplo, uma criança que não aprendeu como satisfazer adequadamente seu impulso de DESAMPARO/DESOLAÇÃO sofrerá ansiedade/pânico ou desespero; uma criança que não aprendeu a satisfazer adequadamente seu impulso de RAIVA sofrerá questões de “administração da raiva”.

Revisão da teoria do inconsciente

Com as sete máximas a seguir, resumo a situação atual das revisões neuropsicanalíticas de nossa clássica teoria do inconsciente:

1) O inconsciente não é a mesma coisa que o id. O inconsciente é um sistema de memória, enquanto o id é a fonte de nossos impulsos. (Considerem a famosa descrição de Freud do sistema Ics. como um sistema de memória no capítulo 7 de A interpretação dos sonhos [1900/1958a].) Ademais, o sistema Ics. é justamente isso – é inconsciente – no momento em que “sentimentos de prazer-desprazer governam o trânsito de eventos no id com força despótica” (Freud, 1939/1964, p. 198). É comum sofrer o sentimento sem saber de onde provém; sentimentos são conscientes, mas não é necessário que as memórias que os causam sejam assim. Dessa forma, “histéricas sofrem [conscientemente] basicamente de reminiscências [inconscientes]” (Breuer & Freud, 1893-1895/1955, p. 7).

2) Memórias se referem ao passado, mas são para o futuro. A única razão pela qual aprendemos com o passado é para melhor prever o futuro. Assim, em neuropsicanálise, falamos de sistemas de memória como sistemas “preditivos”.

3) Existem três tipos de sistema de memória, um de “curto prazo” e dois de “longo prazo”. O que Freud chamou de sistema Cs., hoje chamamos de sistema de memória de curto prazo. Essa é a porção do ego que executa o trabalho preditivo em andamento, em resposta às demandas do id. Chamamos esse processo de “memória de trabalho” (que envolve manter ativamente algo na mente enquanto se pondera sobre isso; é correspondente ao que Freud chamava de “processo secundário”). Os produtos desse trabalho – isto é, as predições que emergem dele – são depositados na memória de “longo prazo” Esse processo de decodificação é chamado de “consolidação”. A consolidação é necessária porque o sistema de memória de curto prazo tem capacidade extremamente limitada.

Os dois sistemas de memória de longo prazo são chamados de sistema “declarativo” e sistema “não declarativo”. Eles coincidem com o que Freud designou de sistemas Pcs. e Ics, respectivamente. Predições declarativas são, assim, capazes de retornar ao estado consciente (isto é, de serem recapturadas sob a forma de memórias de curto prazo). Isso as torna, mais uma vez, lábeis. Em outras palavras, tornam-se incertezas, mais do que predições. Por isso, “a consciência emerge em vez de um traço mnêmico” (Freud, 1920/1955, p. 25). Esse processo de atualização da memória é chamado de “reconsolidação”.

Em contraste, predições não declarativas são incapazes de retornar ao estado consciente. Tomam a forma de respostas automatizadas, de maneira similar aos instintos, descritos anteriormente. A única maneira pela qual essas predições podem ser “lembradas” é pela encenação.7 (Elas são repetidas em vez de lembradas; ver Freud [1914/1958b].) Respostas não declarativas – isto é, automatizadas – operam de acordo com o “processo primário” de Freud, e formam a base de sua “compulsão à repetição”. Ao contrário de predições declarativas, que estão sujeitas a constantes revisões conscientes – que formam a base da ação voluntária –, predições não declarativas são indeléveis. (São “difíceis de aprender e difíceis de esquecer”, como neurocientistas cognitivos eufemisticamente costumam dizer.)8

4) Predições declarativas são reconsolidadas em resposta a “erros preditivos” – que são assim percebidos uma vez que falham (por definição) em atender às demandas do impulso. Predições são tipicamente consolidadas em memórias não declarativas – isto é, são sequestradas da reconsolidação consciente, tornando-se assim automatizadas – somente quando atendem confiavelmente às demandas do impulso. Isso torna possível a eliminação do retardamento da resposta e da incerteza decorrentes do pensamento de “processo secundário”.

5) Entretanto, algumas predições são prematura e ilegitimamente automatizadas. Esse subgrupo de padrões de resposta não declarativos é chamado de “o reprimido”. A repressão ocorre por diversos motivos, incluindo a imaturidade dos sistemas de memória declarativos nos primeiros anos de vida. (Isso é equivalente à “repressão primária” de Freud.) Contudo, uma razão mais ubíqua para tal é a presença de problemas insolúveis, que emergem da relativa inabilidade da criança em atender às demandas do impulso (por exemplo, as demandas do impulso de EXCITAÇÃO, que apresentam problemas especialmente intransponíveis para as crianças). Essa limitação adaptativa das crianças pode ser ajudada ou impedida por seu ambiente facilitador. Se um problema se mostra insolúvel, a criança administra o prejuízo – retira o problema do foco da mente – e automatiza a predição menos pior que pode alcançar. (O fato de que nos referimos a “desejos reprimidos” reflete seu caráter irreal e infantil.)9

6) A repressão resulta na situação antes descrita: o sofrer o sentimento sem dar-se conta de onde se origina. Assim, parafraseando Breuer e Freud, podemos dizer: nossos pacientes sofrem basicamente de sentimentos. A real causa desse sofrimento é a falha de uma predição reprimida em satisfazer prementes demandas do impulso; em outras palavras, o sofrimento resulta de uma resposta automatizada, inconscientemente executada, a uma demanda emocional. Esses padrões de resposta estereotipados são chamados de “transferência”. Entretanto, a transferência não é evocada somente na situação clínica, e de forma alguma é direcionada única ou especialmente ao analista. Implica a encenação10 de predições infantis sobre como satisfazer demandas emocionais, forjadas em relação aos objetos primários, que então são repetidas em relação a (e transferidas em direção a) objetos da atualidade. Pessoas prontamente realizam transferências com seus cônjuges, chefes, amigos, professores, celebridades, governos etc.

7) Não sofremos os sentimentos desagradáveis que emergem da repressão com boa vontade ou passivamente; instituímos defesas contra eles. Isso implica que “repressão” e “defesa” não são sinônimas. Defesas são respostas secundárias à falência de predições reprimidas; não são direcionadas à satisfação das demandas subjacentes do impulso (como predições primárias reprimidas o são), mas à erradicação dos sentimentos despertados pela falha em atendê-las. Além disso, defesas não são necessariamente inconscientes. Na verdade, com frequência são pré-conscientes. (Existem muitas coisas sobre as quais podemos pensar, mas que preferimos não fazê-lo. Isso é chamado de “supressão”, não de “repressão”.) Por fim, existem muitas defesas que não são incluídas nas clássicas listas de “mecanismos de defesa”. Considerem a drogadição, por exemplo: muitos alcoólatras livremente admitem que ingerem álcool para anular sentimentos indesejáveis (por isso nos referimos a isso como “automedicação”).

Implicações para a prática clínica

A partir da proposta a seguir, que constitui o foco principal deste texto, resumo o estado atual das revisões neuropsicanalíticas da técnica terapêutica clássica. Organizarei meus comentários em oito subtítulos.

Dois problemas em relação à teoria clássica da “cura pela fala”

O primeiro problema é o seguinte. Freud ensinou que “é realmente fulcral, no que tange à emoção, que estejamos cientes dela, isto é, que seja percebida pela consciência. Assim, a possibilidade do atributo da inconsciência estaria completamente excluída no que se refere a emoções, sentimentos e afetos” (1915/1957b, p. 180).

É o mesmo Freud que ensinou que “sentimentos de prazer-desprazer governam o trânsito de eventos no id com força despótica. O id obedece ao inexorável princípio do prazer” (1939/1964, p. 198)

Esse é também o mesmo Freud que ensinou que o id é inconsciente! A lógica de sua “cura pela fala”, portanto, era a de que palavras, uma vez que derivadas da consciência perceptiva (de seu sistema Pcp.-Cs.), e assim sendo posse do ego, devem ser puxadas ao id inconsciente, de forma que possamos torná-las pensáveis. Consequentemente, “onde estava o id, ali estará o ego”. Essa afirmação não faz sentido se os impulsos do id são, de saída, conscientemente sentidos. Sentimentos conscientes emergem do id, demandando ao ego que performe trabalho (preditivo); e o propósito desse trabalho é atender às demandas do id, para minimizar os sentimentos que sofremos, o que autoriza o ego a automatizar suas predições e torná-las inconscientes. O estado ideal do ego, desse modo, é automaticidade: uma forma de Nirvana na qual sabemos, de antemão, como administrar todos os desafios da vida. O mecanismo da “cura pela fala” deve, assim, ser algo um tanto distinto daquilo que anteriormente pensávamos.

Nosso segundo problema é que Freud ensinou que o mecanismo de mudança em sua “cura pela fala” era a suspensão da repressão. Isso tornaria conscientes os desejos infantis previamente reprimidos. Freud gradualmente regulou suas expectativas frente a isso, falando da “construção” ou “reconstrução” daquilo que é reprimido, em vez da recordação literal. Mas muitos psicanalistas, ainda hoje, parecem acreditar que nossa tarefa primeira é auxiliar nossos pacientes a lembrar como resolveram, ou como tentaram resolver, ou como falharam em resolver, os desafios emocionais da infância. Com frequência pergunto aos meus colegas psicanalistas se ainda acreditam que a suspensão da repressão é o principal objetivo do tratamento. Aos muitos que concordam (que dizem ser o principal objetivo) pergunto em seguida se ainda acreditam que o complexo de Édipo forma o “núcleo” do reprimido. Essa pergunta também costuma ser respondida afirmativamente. Então pergunto: quantos de seus pacientes lembram como solucionaram seu complexo de Édipo? Eles realmente lembram como lidaram com os esforços e rivalidades incestuosas dos 4 ou 5 anos de idade, sem falar de seus conflitos anteriores em relação à figura de apego primária? A resposta, quase sempre, é não. Desse modo, também sob esse aspecto, provavelmente estamos fazendo algo diferente do que pensamos.

Meu objetivo no que se segue é substituir essas duas versões convencionais que usamos para explicar o que fazemos clinicamente com um conjunto de proposições teóricas que, acredito, registram os fatos de maneira mais precisa.

Sintomas sempre significam alguma coisa; por definição, são sintomáticos de algo. Isso se aplica inclusive a sintomas físicos. Considerem a angina pectoris. O paciente sente dores no peito após o esforço físico. Isso significa que a exigência de oxigênio pelo músculo do coração excede seu fornecimento pelas artérias coronárias. Esse é o mecanismo – a causa – do sintoma.

Entretanto, quando se trata de sintomas psicológicos, o termo “significado” tem denotação adicional. É interessante notar que a essência da maioria dos sintomas (mesmo físicos) é um sentimento desagradável; mas isso é ainda mais óbvio no caso de sintomas psicológicos. Nossos pacientes sofrem basicamente de sentimentos. (Meus filhos, quando eram pequenos, diziam para os amigos que seu pai era um “doutor para os sentimentos” É isto que somos: doutores para sentimentos.) É instrutivo comparar o dito “nossos pacientes sofrem basicamente de sentimentos” com “histéricas sofrem basicamente de reminiscências”. Pacientes psicológicos sofrem basicamente daquilo que experimentaram, mas que não se recordam conscientemente. Com base no explanado antes, poderíamos dizer que sofrem conscientemente das consequências de predições reprimidas que emergem de como administraram (ou tentaram administrar) as demandas emocionais da infância.

Assim, dizer que nossos pacientes sofrem basicamente de sentimentos é o mesmo que dizer que sofrem basicamente de predições reprimidas. Por que, então, devemos colocar ênfase nos sentimentos? Existem três razões. A primeira é que os pacientes estão conscientes deles. Nossos pacientes não dizem: “Doutor, tem algo em relação ao qual estou inconsciente. Pode, por favor, me dizer do que se trata?”. Em vez disso, nos dizem: “Doutor, existe algo (um sentimento) do qual estou demasiado consciente. Pode, por favor, me ajudar a me livrar disso?”. Isso reduz o trabalho especulativo. (Como Freud certa vez disse: “A consciência é nosso único farol na escuridão da psicologia profunda” [1923/1961, p. 18].) A segunda razão é que o sentimento alinha o analista com o paciente, e assim ajuda a promover uma aliança terapêutica. É, afinal de contas, o sofrimento consciente do paciente que o motiva a nos procurar e a ter paciência conosco. A terceira razão é a mais importante: a qualidade do sentimento nos informa qual das demandas emocionais do paciente não está atendida. Parafraseando o que escrevi antes: um paciente que não aprendeu a satisfazer seu impulso de desamparo/desolação sofrerá ansiedade/pânico ou desespero; um paciente que não aprendeu a satisfazer seu impulso de raiva sofrerá questões de “administração da raiva”.

Isso, no devido momento, nos conduz ao mecanismo (à causa) do sintoma. Assim como a sensação de dor no peito após um esforço físico nos informa que o músculo cardíaco do paciente não está recebendo a quantidade apropriada de oxigênio de que necessita, também os sentimentos de desamparo e desolação nos informam que o impulso de DESAMPARO/DESOLAÇÃO do paciente (ou seja, sua necessidade de cuidado amoroso) não está sendo atendido. Com isso não quero dizer que seu ambiente está lhe falhando; quero dizer que sua predição inconsciente de como atender a essa demanda está lhe falhando. Esse é o cerne na denotação adicional que mencionei antes. Quando se trata de sintomas psicológicos, a intencionalidade inconsciente do paciente está implicada no mecanismo causal de seu sofrimento.11 (Quando li Freud pela primeira vez, não compreendi por que ele disse que sintomas psicológicos concedem expressão a um desejo inconsciente por parte do paciente. Agora compreendo perfeitamente.) Então, quando eu disse que a qualidade do sentimento sofrido pelo paciente nos informa a respeito de qual de seus impulsos emocionais está desatendido, isso clarifica a tarefa terapêutica: nos aponta a direção do que o paciente precisa mudar.

Mas primeiro quero retornar ao pedido do paciente: “Doutor, pode, por favor, me ajudar a me livrar desse sentimento?”. Existem duas maneiras de responder a esse pedido. A primeira é dizer: “Claro, tome estes remédios. Eles devem eliminar o sentimento indesejado”. Isso é tratamento sintomático. É similar ao cardiologista que trata a angina pectoris com analgésicos. O tratamento causal para angina é direcionado ao seu mecanismo: objetiva eliminar o que quer que esteja impedindo as artérias coronárias de fornecer a quantidade adequada de oxigênio ao coração (normalmente através de um stent ou procedimento de bypass cardíaco). O tratamento equivalente para sintomas psicológicos é o foco em seu significado: a causa do sintoma é a utilização de predição inadequada, por parte do paciente, em relação a como atender ao impulso emocional em questão (aquele que é anunciado pela qualidade do sentimento do qual padecem). A extensão em que a população em geral foi enganada sobre essa questão é perturbadora: foi informada rotineiramente de que sintomas psicológicos são causados por “desequilíbrios químicos”, enquanto a realidade é que desequilíbrios químicos (ou seja, a expressão neurológica das demandas dos impulsos) são causados pela falência de predições automatizadas em atender a demandas emocionais.12

O propósito da terapia psicanalítica

O propósito da terapia psicanalítica é agora visível: é ajudar nossos pacientes a encontrar novas formas de atender às suas demandas emocionais. (Nota: não disse ensinar aos nossos pacientes novas formas de atender às suas demandas emocionais.) Não me envergonho da simplicidade dessa colocação. Na vida mental, onde é tão difícil obter uma compreensão geral devido ao aprisionamento aos detalhes, é uma virtude ter um mapeamento simples disponível. Esse mapeamento se presta igualmente a quase todos os tipos de psicoterapia, mas a terapia psicanalítica tem valor peculiar no momento em que é impossível para o paciente reconsolidar suas predições patogênicas meramente repensando-as. Isso ocorre quando as predições são inconscientes. Como podemos ajudar nossos pacientes a encontrar novas maneiras de atender a suas demandas emocionais se são incapazes, por definição, de recuperar seus antigos mecanismos pela memória de trabalho (e assim reconsolidá-los)?

Interpretação na transferência

Disse anteriormente que a única maneira pela qual podemos nos “lembrar” de predições não declarativas é encenando-as;13 isso quer dizer, encenando-as na transferência. (Notem que estou usando esse termo no sentido amplo antes definido.) Chamar a atenção dos pacientes para suas encenações na transferência torna-os cientes do que estão fazendo, porque estão fazendo-o aqui e agora, mesmo que não possam se lembrar por quê.

Em geral, transferências não são sutis; são padrões robustos de comportamento que se repetem, por diversas vezes, nas mais diversas situações. Contudo, a identificação da predição reprimida que é encenada na transferência é bastante facilitada quando se conhece qual demanda emocional tinha a intenção de satisfazer. Por exemplo, uma paciente borderline sofrendo de ataques de pânico acha-se constantemente colocada em situações desastrosas. A qualidade de sua ansiedade (isto é, pânico) nos informa de que essa transferência é uma forma de atender a seu impulso de DESAMPARO/DESOLAÇÃO; ou seja, é uma maneira de atrair e manter o cuidado amoroso de um objeto de apego. Isso não seria tão evidente de outra forma. Agora, considerando o histórico da paciente, em especial o fato de que sua mãe só prestava atenção e demonstrava preocupação por ela quando estava doente ou com sérios problemas, torna-se evidente qual é a predição inconsciente: “Se estou vivendo uma crise, minha mãe vai cuidar de mim”. Assim, a paciente impõe crises constantes a si mesma. Ela o faz mesmo não sendo essa a forma mais conveniente e realista de obter o cuidado e a atenção que tanto deseja das pessoas em seu meio atual, uma vez que são muito menos tolerantes às suas confusões e menos preocupadas com seu bem-estar do que sua mãe costumava ser.

Essa é a óbvia deficiência de todas as suas predições reprimidas. Eram as melhores soluções (ou as “menos piores”) que a criança conseguia alcançar na ocasião, mas estão longe de ser a melhor solução que a paciente consegue alcançar agora – se ao menos lhe fosse possível repensá-las.

Essa é a meta da interpretação na transferência. Não é simplesmente uma questão de apontar o que a paciente faz com seus objetos e o que a paciente sente em relação a eles, incluindo o analista. A interpretação na transferência não é um fim em si mesma.

Desdobra quatro passos, enunciados aqui de maneira formulaica (que não é, obviamente, a maneira como falamos de fato com nossos pacientes):

  • 1) Consegue perceber que você o faz (o comportamento estereotipado) repetidamente?

  • 2) Consegue perceber que a intenção é alcançar este resultado (satisfazer esta ou aquela demanda emocional)? (Nesse momento, é útil se referir à história reconstruída.)

  • 3) Consegue perceber que não está alcançando esse resultado?

  • 4) Consegue perceber que é por isso que você está padecendo desse sentimento?

Isso problematiza a transferência. Põe o paciente a pensar; provê uma oportunidade para que repense a maneira pela qual procura atender a uma demanda emocional. O analista pode facilitar o processo perguntando ao paciente: “De que outra forma você poderia ter se conduzido nessa situação?”. Isso traz o processo preditivo à memória de trabalho, cujo resultado é consolidado em memória declarativa, e então – ao longo do tempo – uma nova predição é gradualmente automatizada em memória não declarativa.

A importância da elaboração

Interpretações na transferência que atingem seu alvo afetam profundamente um paciente. Pela primeira vez, compreende seu sofrimento e se dá conta de que uma saída está a seu alcance. Entretanto, embora tenha percebido a real natureza de sua predição, na sessão seguinte torna-se evidente que ele está encenando a mesma predição novamente. Não é razão para desespero. É inevitável. Isso se dá porque estar ciente de predições reprimidas não as elimina nem pode eliminá-las. Tudo o que podemos fazer é oferecer a mesma interpretação, repetidas vezes, enquanto o paciente reencena a mesma predição em múltiplos contextos. Com base nisso, pouco a pouco, o paciente consolida (em memória declarativa semântica e, em última instância, automatizando em memória não declarativa procedural) uma nova predição – que agora coexiste, lado a lado, com a antiga.

A persistência da predição antiga é a razão pela qual os pacientes podem piorar novamente (cf. “regressão”), podem sempre retornar ao funcionamento anterior, em especial sob coação, porque a predição antiga e inadequada continua disponível para eles, em memória não declarativa. A razão pela qual a nova predição gradualmente torna-se a solução primeira, entretanto, é porque é eficaz; ao contrário da predição reprimida, ela atende de fato à demanda emocional que intenciona atender.

A elaboração desdobra-se em três passos. Primeiro, o analista diz: “Você fez de novo”, “Você fez de novo”, “Você fez de novo”. Segundo, o paciente diz: “Fiz de novo”, “Fiz de novo”, “Fiz de novo”. Em seguida, finalmente, o paciente diz: “Estou fazendo de novo”, enquanto o está realmente fazendo, naquele momento. Isso lhe permite mudar de rumo, no aqui e agora. Nesse ponto, escolha voluntária substitui compulsão. Então, o analista não é mais necessário. O paciente pode continuar o processo de elaboração, e em geral o faz, por conta própria. (Essa é a base do “efeito dorminhoco”, isto é, o achado empírico de que pacientes que se submeteram a tratamento analítico [em oposição a tratamento cognitivo-comportamental] continuam a melhorar – a melhorar ainda mais – após o término do tratamento.)

Nota sobre a defesa

Dado o que disse antes sobre a defesa, é importante destacar que nossos pacientes só procuram ajuda quando (e na medida em que) suas defesas lhes falham. Muitas defesas (a sublimação, por exemplo) nos servem adequadamente. A estrutura das defesas de uma pessoa determina seu caráter, o formato da personalidade do ego. Defesas neuróticas são mais viáveis (mais realistas) do que as narcísicas; e defesas narcísicas são mais viáveis do que as psicóticas.14 É a falha das defesas que ocasiona o “retorno do reprimido”. Entretanto, o que retorna à consciência não é a predição reprimida em si, mas o sentimento que a defesa procurava suprimir.

Em geral, defesas se mantêm intactas em pacientes que são encaminhados a nós, ao contrário do que ocorre naqueles que nos procuram por vontade própria. Isso costuma acontecer com crianças e adolescentes, cujas defesas funcionam perfeitamente bem, no que lhes diz respeito. Considerem, por exemplo, transtornos alimentares e outras adições. São os pais, ou os médicos, que estão preocupados, não o paciente. Na medida em que as defesas do paciente se mantêm intactas, a análise da defesa deve preceder à análise da transferência.

A análise da defesa toma a seguinte forma: “Você consegue perceber que está fazendo isso de forma a não sentir aquilo?”. Não raro, o paciente responde: “Sim, eu sei, mas eu preciso fazer isso!”. Notem o “eu sei”, que revela que a defesa é pré-consciente. Pacientes com frequência conseguem pensar suas defesas e também repensá-las.

É muito importante não confundir defesa com transferência. A defesa obscurece a transferência (que, por sua vez, ao contrário da defesa, envolve a repetição de uma predição da infância em relação a quem pode atender às demandas do impulso), e vai obscurecer ainda mais se o analista a confundir com transferência.

A bem-sucedida análise da transferência requer o envolvimento cooperativo do paciente. A defesa costuma impedir tal cooperação, e pode prontamente trabalhar contra o tratamento.

Três recomendações técnicas

Baseado no que disse antes, encerrarei este trabalho com três recomendações simples a psicanalistas clínicos, recomendações que são especialmente úteis ao iniciarem um tratamento psicanalítico. Para nos orientar clinicamente, recomendo que façamos a nós mesmos as três perguntas a seguir:

  • 1) De qual sentimento esse paciente padece? (Qual demanda emocional não está sendo atendida?)

  • 2) Qual predição automatizada este paciente utiliza para atender a essa demanda? (Isso é encenado na transferência, amplamente definida, e reconstruído através da história do paciente.)

  • 3) Como este paciente se defende do sentimento do qual padece? (Repressão não é o mesmo que defesa.)

O engano mais comum é tomar a primeira tarefa por uma tarefa analítica. Não é uma tarefa analítica; é uma tarefa descritiva, no sentido da psiquiatria descritiva. Psicanalistas tendem a pensar: “O paciente diz que está sentindo isso, mas na realidade (inconscientemente) está sentindo aquilo”. Quando falo do sentimento do qual o paciente está sofrendo, quero dizer “sofrendo” no sentido do que o está perturbando conscientemente. Em geral, é a queixa apresentada (a não ser que esteja obscurecida pela defesa). A única parte difícil da primeira tarefa é o analista familiarizar-se com os sete impulsos emocionais enumerados no início. Muitos de nós estamos familiarizados com os sentimentos associados a medo e desamparo (só precisamos aprender a diferenciar um do outro), e também estamos familiarizados com EXCITAÇÃO, RAIVA e DESAMPARO/DESOLAÇÃO; mas não o estamos com os sentimentos associados a CUIDAR, BUSCA e BRINCAR. Entretanto, uma vez familiarizados com esses sentimentos característicos, eles dificilmente passam despercebidos. (É como aprender a reconhecer a diferença entre um Chardonnay e um Sauvignon Blanc.) Mais ainda, é importante destacar que as pessoas também sofrem dos assim chamados impulsos “positivos”. Os sentimentos associados a todos os impulsos têm valências tanto positivas quanto negativas. Por exemplo, um paciente que sofre em relação ao impulso de CUIDAR – que supostamente é positivo – pode sentir que não é capaz de lidar com suas responsabilidades de cuidado (considerem a depressão pós-parto); ou então a necessidade de um paciente de CUIDAR de seus filhos pode entrar em conflito com outras necessidades, conduzindo-o à RAIVA (e assim, infelizmente, às vezes ao abuso infantil).

O engano mais comum associado à segunda tarefa indicada é confundi-la com a primeira. É somente no segundo passo que consideramos as interações entre os impulsos. Essa é uma tarefa analítica. É somente nesse segundo passo que levamos em conta como o sentimento principal do qual o paciente sofre emerge de conflitos entre os impulsos. Pacientes não sofrem de um só sentimento, é claro, mas o impulso único que alimenta a queixa apresentada é aquele que foi sacrificado no processo de formação de compromisso entre os impulsos (no processo que Freud denominou “fusão das pulsões”, objetivando o que Klein denominou “posição depressiva”).

A terceira tarefa costuma ser a menos importante, pela razão que mencionei antes: pacientes normalmente só nos procuram quando e na medida em que suas defesas lhes falharam.

Observações finais

Proceder da maneira recomendada aqui é, admito, não proceder “sem memória e sem desejo”.

Confesso que não procedo sem desejo. Procuro ajudar meus pacientes a aliviar seu sofrimento. É por isso que, a princípio, me procuraram. Considero que ajudá-los é minha responsabilidade ética. Quando Freud escreveu as “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise”, não acredito que considerasse necessário dizer a seus colegas médicos que o objetivo de qualquer tratamento é aliviar o sofrimento. Tomou esse aspecto como certo. O que adicionou ao óbvio foi dizer que tentar demais ou precisar demais ajudar os pacientes pode ter o efeito oposto. Em outras palavras, para aliviar o sofrimento, não devemos tentar demais ou precisar demais ajudar os pacientes.

Se seguirem minhas três recomendações, elas se tornarão por fim espontâneas (gradualmente se tornarão um pano de fundo automatizado para sua “atenção flutuante”). Então podem proceder “sem memória” no sentido de “sem memória consciente”. Tudo o que aprendemos em nossa formação psicanalítica não é esquecido; é consolidado em memórias não declarativas, tornando-se habitual. Se fosse de outra forma – se literalmente procedêssemos sem memória – não haveria razão para nos submetermos à formação.

Isso dito, e tendo excedido o número de palavras imposto aos autores, devo encerrar.

2NT: a tradução da nomenclatura utilizada por Solms é complexa, pois em vários casos a tradução literal, sem explicações, não faz jus à intenção do autor. Solms se refere a “buscar” no sentido de explorar/procurar na realidade aquilo de que se necessita. O termo também poderia ser traduzido por “forragear”: procurar recursos na natureza.

3NT: “luxúria” é a tradução literal para o original em inglês, LUST, aqui utilizado pelo autor no sentido de desejo excitado, excitação sexual que busca gratificação.

4NT: no original em inglês, PANIC/GRIEF. Panic não poderia ser literalmente traduzido por “pânico”, uma vez que indica a condição específica de perceber-se em abandono; grief não se refere a “luto”, o que seria a tradução literal, mas sim a uma desistência, um “perder as esperanças”.

5NT: PLAY, no original, tem sentido mais amplo do que apenas “brincar”; o autor se refere, entretanto, ao brincar no sentido competitivo de jogar.

6O “superego”, que, como Freud (1923/1961) ensinou, está mais próximo ao id do que o ego, emerge de conflitos entre RAIVA, por um lado, e DESAMPARO/DESOLAÇÃO, MEDO E BRINCAR, por outro – conflitos que produzem sentimentos de culpa, paranoia e vergonha, respectivamente. Devo adicionar aqui que existem diversas variedades de narcisismo. Sentir-se não amado (DESAMPARO/DESOLAÇÃO), por exemplo, é diferente de sentir-se inferior (BRINCAR) ou entediado (BUSCAR).

7NT: em inglês, no original, enactment. Entretanto, essa expressão, no texto, não se refere ao conceito psicanalítico específico de enactment, e também não pode ser traduzido por “atuação” (em inglês, acting out). O uso da palavra encenação na tradução, obviamente, não implica fingimento ou encenação consciente, mas sim trazer à cena inconscientemente, como o faria um ator de teatro, “representar”.

8Nem todas as predições não declarativas são difíceis de aprender, entretanto. Considerem o medo condicionado, que pode acontecer com base em uma única exposição ao trauma. Assim, o que melhor caracteriza as predições não declarativas é a dificuldade-em-esquecer.

9A repressão é a base para o que Freud (1915/1957b) enumerou como as quatro “características especiais do sistema inconsciente”. O Ics. é atemporal porque predições reprimidas não são sujeitas a atualizações com base em experiências subsequentes. O Ics. tolera mútua contradição porque predições reprimidas não representam soluções adequadas aos problemas da vida. O Ics. prioriza a realidade psíquica sobre a realidade material porque predições reprimidas são inalcançáveis por evidências (de erro preditivo). O Ics. implanta mobilidade catéxica de processo primário porque predições reprimidas são automatizadas.

10NT: ver a nota 7.

11A intencionalidade inconsciente do paciente está implicada no mecanismo causal de um sintoma físico na mesma medida em que é também um sintoma psicológico (por exemplo, é uma doença psicossomática ou de “estilo de vida”).

12Obviamente, há espaço na psiquiatria para o tratamento sintomático (por exemplo, para ativar suficientemente o impulso de BUSCAR, de forma a propiciar que pacientes clinicamente deprimidos submetam-se à psicoterapia).

13NT: ver a nota 7.

14Segue aqui uma atualização condensada da taxonomia psicanalítica clássica das defesas. Defesas neuróticas envolvem formação substitutiva (o ego substitui o objeto ou a meta do impulso em sua predição reprimida). Defesas narcísicas envolvem cisão, no sentido kleiniano (isto é, o ego cinde a si mesmo e aos objetos, e projeta a fonte do impulso na predição reprimida; dito de outra forma, projeta seus sentimentos desagradáveis para dentro dos objetos, e introjeta os sentimentos agradáveis do objeto para dentro de si). Defesas psicóticas envolvem negação (o ego afasta-se da realidade, pois é ali que o “erro preditivo” acontece, com seus correspondentes sentimentos desagradáveis). Com base nisso, evitam o sofrimento, mas às custas da própria possibilidade de satisfação do impulso – uma vez que impulsos só podem ser satisfeitos “lá fora”. Isso, por sua vez, exige a criação de uma realidade delirante, para então experimentarem somente as partes da realidade que confirmam suas predições reprimidas.

Referências

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Recebido: 09 de Maio de 2024; Aceito: 20 de Maio de 2024

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