Introdução
Ocorre uma tensão entre os modelos metodológicos da investigação científica que buscam controlar fatores que, presentes na realidade natural do objeto/sujeito, interferem com o recorte necessário para o investigador isolar o fator a ser estudado. Esse recorte se torna necessário em função das limitações tanto da observação quanto da capacidade de compreensão humana de fenômenos complexos. Assim, a tentativa de controlar aspectos da realidade mais ampla serve para evitar vieses diversos, ainda que interfiram sobre a realidade natural do observado. Desse modo, todo método de investigação interfere, com seu foco, na experiência natural do sujeito, um reducionismo inerente à ciência. O mesmo acontece com o método psicanalítico. A psicanálise tem um método desenvolvido para a apreensão da realidade psíquica. Uma nova forma de relação humana, não natural, um modo recente de relação ante nossa filogenia (Ogden, 2005).
Minha intenção com este texto é apresentar algumas considerações sobre a dimensão de incertezas que são inerentes ao potencial e aos limites do saber em sua busca por compreender a natureza dos fenômenos humanos e naturais.
Como psicanalistas clínicos e produtores de conhecimento teórico, técnico e de investigação científica, cotidianamente nos deparamos com o que é da ordem da incerteza, do vago, do sutil, do evanescente e transformacional. Também enfrentamos as dificuldades de reconhecer aquilo que é próprio, que é do outro, do campo interacional, da intersubjetividade, ou mesmo fruto de um momento, determinado pelo espírito da época (Weltanschauung). O tema deste trabalho é a necessidade de resgatarmos e integrarmos a importância das zonas de imprecisão de nossas observações, intervenções e teorias, as quais são resultantes da própria natureza do objeto com que lidamos: os fenômenos e processos psíquicos psicanalíticos. Minha intenção é oportunizar uma abertura para a reflexão e instrumentalizar nosso pensamento e discurso de modo a destacar a relevância de nosso campo de estudos.
O tema não é novo. O próprio Freud já dizia:
É quase humilhante que, após trabalharmos por tanto tempo, ainda estejamos tendo dificuldade para compreender os fatos mais fundamentais. Mas decidimos nada simplificar e nada ocultar. Se não conseguirmos ver as coisas claramente, pelo menos veremos claramente quais são as obscuridades. (1900/1976b, p. 147, grifo meu)
O afã freudiano buscava ver claramente as coisas. Esse continua sendo o ideal de toda a racionalidade e da ciência. O ideal de busca pela verdade também é o da psicanálise. No entanto, resultado de nosso labor cotidiano, reconhecemos a complexidade de nosso campo de trabalho, em que o vago, o ausente/presente, o pensamento onírico, a simbolização e a elaboração se fazem por caminhos desconhecidos e muitas vezes na forma de mistério (Nemas, 2004), para além da nossa compreensão, em que respeitamos sua própria intimidade.
O mistério se caracteriza justamente por não ser um segredo. Implica um reconhecimento da privacidade do objeto e promove a capacidade de tolerar o desconhecido sem apressar interpretações prematuras de sentido e motivações. Implica a capacidade de tolerar a beleza do mundo, da qual a mãe é a representante inicial, apesar dos aspectos desconhecidos, incompreensíveis e até aterrorizantes envolvidos. (Nemas, 2004, p. 527)
Dessa forma, como investigadores em psicanálise, reconhecemos a dimensão da imprecisão, do que é vago, obscuro, como parte inerente de certos processos no mundo interno e intersubjetivo. Assim, acrescentamos essa dimensão da imprecisão como objeto de atenção, valorizando as correlações fracas em nossas conjecturas imaginativas e inferências clínicas e científicas, e não a simples exclusão reducionista de fatores que não se encaixam no esperado.
A especificidade da psicanálise no mundo das ideias
A psicanálise trouxe uma inovação ímpar para o conhecimento do humano na história das ideias, e em particular no âmbito científico. Ela demonstra que aquilo que é da ordem do humano, mesmo sendo ancorado no corpo, em suas apreensões sensórias, mecânicas e eletroquímicas, também é um sistema aberto ao exterior, ao outro e ao ambiente, o que já fica explicitado em Klein:
Há, no entanto, elementos para supor que mesmo durante os primeiros três ou quatro meses de vida o objeto bom e o objeto mau não são completamente distintos um do outro na mente do bebê. O seio da mãe, tanto em seus aspectos bons quanto em seus aspectos maus, parece também fundir-se, para ele, com a presença física da mãe, e a relação com ela como uma pessoa é assim construída gradualmente desde o estágio mais inicial. (1952/1991, p. 87, grifo meu)
É a partir da descoberta freudiana que se abre o caminho da demonstração e compreensão de uma nova dimensão humana, a do processo primário (Freud, 1926/1976a). Diferentemente da lógica do pensamento racional e dos sentidos originados da emoção, quando tomados de modo isolado, como causa em si, Freud vai demonstrar clínica e teoricamente os mecanismos próprios de funcionamento do processo primário, tornando-os mais inteligíveis. Ao longo da curta história da psicanálise, nesses pouco mais de 120 anos, muita inovação aconteceu, com ampliação da compreensão do funcionamento dos processos primários, das relações objetais no mundo interno, da intersubjetividade e do campo psicanalítico.
Infelizmente, esses elementos inovadores trazidos pela psicanálise ao âmbito da ciência e da mente somente estão abertos, em sua maior plenitude (se podemos dizer isso) e abrangência, a psicanalistas bem treinados. Ainda que com a maior boa vontade e predisposição para apreender o sentido dos desenvolvimentos psicanalíticos contemporâneos, eruditos e cientistas dificilmente adquirem expertise suficiente para investigar e compreender a complexidade dos fenômenos inconscientes, sem a presença de um psicanalista em sua equipe. O mesmo se dá entre não psicanalistas que tenham sido analisados adequadamente. Estes podem adquirir o conhecimento teórico tendo sua própria experiência pessoal em análise. Entretanto, a teoria fornece dados conceituais e exemplos clínicos, e não toda a instrumentação necessária para a apreensão mais ampla desse corpo conceitual. Esta apenas adquire sua dimensão mais rica através do desenvolvimento do trabalho clínico cotidiano, associado às supervisões e às discussões interpares, no aprender pela experiência. E essa formação é longa e complexa.
Desse modo, torna-se difícil para pessoas extramuros compreenderem de forma mais aprofundada nosso objeto de estudo, e ainda mais a interpretação de achados em pesquisa e sua translação para a clínica psicanalítica. Esse limitador, no entanto, não deve ser motivo para que apenas psicanalistas realizem pesquisas e investigações em nossa área. Cabe sim a nós, psicanalistas, dialogarmos e debatermos os achados de investigação e pesquisa em profundidade. Decorre daí a importância de que o psicanalista também tenha no mínimo a informação científica: métodos, limitações, práticas e discussões internas.
Ainda que nós, psicanalistas, tenhamos abordagens distintas, tanto na teoria quanto na técnica, entendo a psicanálise como área de conhecimento e ciência com uma base comum, que carrega em seu cerne justamente essa compreensão dimensional dos processos inconscientes. É nessa tessitura entre as diferentes funções de nosso self, da ordem do sensível, do emocional, do sonhar em presença, do pensamento onírico, da intuição psicanalítica, da inferência, do racional, entre outros aspectos, que capturamos os elementos metaforizados e simbolizados no campo de trabalho, observando seus desenvolvimentos, cujo objetivo final é traduzido na liberdade de sentir, pensar e ser.
A complexidade da clínica psicanalítica
Vejamos um fragmento clínico. Na manhã do dia de sua sessão, João me enviara um recado confirmando que viria pessoalmente em seu horário, como de costume. “Que bom!”, pensei eu, pois na última sessão ele me avisara que não viria nem presencialmente nem online. Ele “precisaria” viajar a trabalho.
Vimos naquela sessão que ele antecipara a viagem para o dia anterior a seus compromissos efetivamente agendados a fim de evitar tanto estar na sua sessão quanto ter espaço para uma difícil conversa com a esposa. Isso o deixava com um sentimento de culpa frente ao ódio que sentia de mim e da esposa, por representarmos seus objetos perseguidores, os quais ele desvalorizava inconscientemente. Evadia-se do contato com sua realidade, adversa às suas fantasias, pelo acting out.
Na hora da sessão, recebo-o com curiosidade, na expectativa de compreender se a mudança de seus planos fora devido a um insight genuíno ou fruto de uma submissão ao objeto perseguidor. Na sessão, João começa falando sobre a importância de sua viagem, aparecendo suas fantasias de grandiosidade e controle onipotente. Ao mesmo tempo que justificava a viagem, ele se mostrava emocionalmente sofrido e culpado por “ter que abandonar a família” naquele momento. Seus argumentos eram quase pueris, de modo que eu me sentia desqualificando-os em minha mente. O campo psicanalítico era tomado por um objeto onipotente, que desvalorizava a realidade e a importância do outro, objeto esse que circulava ora na mente do paciente, ora em minha mente, em um campo dinâmico intersubjetivo.
Podemos fazer diversas apreciações a respeito desse fragmento clínico. Sobre teoria, teoria da técnica, experiência clínica, interpretação, transferência e contratransferência, campo etc. No entanto, apresento esse material clínico para destacar a quantidade de incertezas com que trabalhamos no calor da sessão. Como ilustração, se observamos o objeto onipotente e desvalorizador que ocupa minha mente em certo momento, de onde ele emerge? É no aqui e agora da sessão ou transferido de outro lugar e tempo? É próprio? Do outro? Do campo? Enfim, o simples relato de um momento de sessão, numa história do processo analítico desse paciente, já possibilita muitas incertezas, que vão sendo, na melhor das oportunidades, esclarecidas e/ou elaboradas quando possível. Uma série de questões se abre. Como reconhecer e delinear as diferentes fontes e sentidos do acontecimento clínico? Qual é a nossa contribuição para ele? Quais são as nossas necessidades inconscientes nesses momentos? E quais são as do paciente? E além, quais são aquelas emergidas na sinergia do encontro, no campo psicanalítico? E que funções, no universo das relações objetais, estão em vigência a cada momento? Buscar delinear isso com segurança, no calor da sessão ou mesmo fora dela, é um caminho difícil e incerto. Ser preciso em psicanálise é raro e fugaz. Aliás, nosso trabalho muitas vezes se torna precioso justamente nos momentos de penumbras associativas. É inspiracional por vezes, mas no geral segue dentro do trabalho cotidiano com interpretações e compreensões rotineiras (Meltzer, 1997). Trata-se do resultado de sucessivas aproximações ao mundo interno da dupla analítica em ação, até surgir um fato selecionado.
É um acontecimento comum em nossa prática cotidiana: transformar o fato clínico, aqui um acting out, num fato psicanalítico para o entendimento do fenômeno inconsciente. Em nosso esforço de compreensão, procuramos reconhecer as diversas fontes e funções dos fenômenos que acontecem na sessão, seus múltiplos sentidos, sua sobredeterminação, sua polifonia, suas transformações, o uso inconsciente na relação transferencial, o campo dinâmico, campo analítico pós-bioniano (Civitarese, 2022), entre muitos outros aspectos. Tarefa difícil e incerta nessa profissão impossível. Muitas vezes o sentido se dissipa e se transforma em distintas dimensões de relações de objeto. Certezas evanescentes e incertezas são o pano de fundo de nosso trabalho cotidiano, que se abrem, se tudo correr bem, para transformações em +K ou mesmo em O (Bion, 1962/1991). Na sessão lidamos com pormenores (Isaacs, 1952/1969) que impactam nossa sensibilidade (Meltzer & Williams, 1994) de forma profunda, muitas vezes tênue e silenciosa, ou mesmo vaga, acionando processos psíquicos em nossa mente muito antes de podermos notar e compreender. O conteúdo das fantasias inconscientes emerge nas brechas dos lapsos, no chiaroscuro dos sonhos, da relação transferencial/contratrans-ferencial, no campo psicanalítico, na presença, em pessoa, da dupla analítica; e atualmente também na sua ausência em carne e osso, substituída por imagem, som e interferências de sinal, propiciada pelos modos online de atendimento.
Abertura à imprecisão
Assim como na vida em geral, nós, psicanalistas, “vivemos em meio a fenômenos vagos, a coisas imprecisas, a situações perpetuamente variáveis dentro das quais é preciso decidir, reagir ou agir, tomar posição. ... Viver é confrontar-se com coisas vagas” (Moles, 1990/1995, p. 15).
Trujillo Ferrari (1974) sistematiza as características de quatro tipos de conhecimento: o popular, o filosófico, o religioso e o científico. E poderíamos acrescentar o mítico ao lado do teológico.
Frente aos outros tipos de conhecimento, o conhecimento científico é o que até hoje mais se aproxima da apreensão da realidade, ainda que o faça de forma aproximada e fragmentária. Caracteriza-se por ser factual, contingente, sistemático, verificável, falível e aproximadamente exato. O conhecimento científico difere dos demais tipos por ter uma metodologia sistemática e uma visão crítica/reflexiva. E isso acontece não apenas nas ciências exatas, mas também no processo científico psicanalítico.
Moles observa que “a ciência é um processo antes de ser um acabamento, ela é um penoso esforço para recomeçar perpetuamente a pensar de maneira precisa” (1990/1995, p. 16). Desse modo, a ciência se faz no seio do dialogismo da comunidade científica, procurando gerar graus mais aprofundados de conhecimento a serem aplicados no universo das relações humanas e materiais.
Entretanto, ainda que vivamos em meio a fenômenos imprecisos, o conhecimento humano desenvolve-se através de uma busca por precisão. Procuramos enquadrar a realidade em uma rede de grandezas e números – suas dimensões. Em psicanálise não é diferente: buscamos a precisão do nome e do conceito para descrever a intensidade e a qualidade da experiência emocional. O desenvolvimento do pensamento e das práticas psicanalíticas produziu uma ampliação no conhecimento da mente humana. Inicialmente era a busca de compreensão sobre o modo e o efeito pelo qual um acontecimento externo, internalizado e representado na mente, tornava-se um elemento interveniente na disfunção do comportamento e na distorção da apreensão da realidade, mediadas pela razão (como no modelo do trauma). Mas nosso conhecimento avançou para uma dimensão mais ampla, em que a experiência emocional desencadeia um processo potencial de geração de significado, metaforização, formação de símbolos, mentalização, pensamento, linguagem e apreensão da realidade externa e interna.
A ciência segue essa tradição de busca pelo preciso, o que de fato muito avanço trouxe para o nosso conhecimento. No entanto, existe sempre o perigo de confundir a medida com a coisa. “Assim, a crença de que basta medir para dominar, basta conhecer para fazer, explicar para compreender, sofrendo dentro desta conquista de conhecimento – que é incontestável – a miragem da precisão” (Moles, 1990/1995, p. 23). Dessa forma, desenvolve-se um espírito implícito no seio dos pesquisadores de que, sendo a medida boa, a precisão é melhor. Resulta disso a ânsia de encontrar a precisão da medida, a precisão do conceito, a precisão da observação, a precisão do método.
Se por um lado é essencial que a precisão seja obtida como aproximação maior à realidade, é bem verdade que por outro, para obtê-la, necessitamos fazer recortes em diversas dimensões presentes na realidade dos fenômenos complexos como possibilidade de ajustar o foco em determinada dimensão, objeto de pesquisa. E assim gradualmente se desenvolve o risco de uma ideologia da precisão: o que é preciso é bom, muito bom, o melhor; consequentemente, o impreciso é grosseiro, mau, muito mau. O impreciso é o mal. O preciso é o bem. Desse modo, o impreciso não é digno de pensamento (Moles, 1990/1995).
Acrescente-se a isso o contexto sociocultural que se move na esteira da sociedade do espetáculo (Debord, 1967/1997), o conjunto das relações sociais mediadas pelas imagens, intrinsecamente vinculadas às relações de produção e consumo de mercadorias. A ciência dentro desse contexto também é sujeitada para a produtividade científica, em busca do resultado. No entanto, por vezes ela tem como pano de fundo a busca por fama, poder e monetização, muitas vezes perdendo a essência de sua busca pela verdade.
Em nossa ânsia por segurança, queremos respostas imediatas. Não temos tempo de construir o conhecimento. Não queremos a angústia do não saber, que fratura nosso narcisismo onipotente. E desse modo a prática científica passa a ter o risco de tornar-se mera mercadoria, objeto para o consumo imediato – fast food do conhecimento, trazendo na economia da tese científica a necessidade de simplificação para o consumo imediato e sem conflito. Visto assim, mesmo em ciência “quase não se fala do que é impreciso, flutuante, do que muda e só se repete aproximativamente” (Moles, 1990/1995, p. 16).
Esse tipo de conhecimento é necessário, ainda que em ciência essa categoria de fenômenos imprecisos quase não tenha métodos robustos e que lhe sejam próprios. Se em ciência são valorizadas as associações e correlações fortes, em nosso campo de ação há também a necessidade de pensarmos a ciência do impreciso, do fluido, das associações fracas, que aproximam o conhecimento do real tal como nos deparamos com ele. Precisamente a matéria-prima do fazer psicanalítico, em que, imersos no campo psicanalítico, utilizamos como método sistemático para apreender o objeto psicanalítico não apenas nossa razão – tão necessária, mas não suficiente – como também a vivência estética e processual do pensamento onírico.
Categorias de imprecisão em ciência
Há três grandes tipos de fenômeno vago, conforme a causa de sua imprecisão (Moles, 1990/1995):
Os vagos porque o erro provável de sua determinação é grande ou muito grande; também por terem, como forma, contornos vagos ou variáveis, mudando de uma ocorrência para outra. Por exemplo, o microclima – e eu acrescento, em nossa área, a relação objetal, o simbolismo, o sonho.
Os vagos por não termos técnicas de medida apropriadas, exigindo assim um esforço conceitual para encerrá-los dentro de medidas possíveis. Por exemplo, a grandeza de uma ação – em nossa área, apontaríamos muitos processos inconscientes, mas para ilustrar cito a ampliação do mundo interno, a dimensão de uma elaboração.
Há enfim aqueles vagos por essência, isto é, sua própria conceituação é vaga, mas que são os únicos dos quais dispomos operacionalmente. Por exemplo, a teoria de universos paralelos – ou, em nossa área, talvez aqueles conceitos que se mostram alvo de controvérsia, como a pulsão de morte, a linguagem de interpretação de relações objetais primitivas, a dimensão do impacto da realidade cultural no funcionamento intrapsíquico.
Assim, para reconhecer e validar o que é da ordem do impreciso, devemos construir: a) uma epistemologia, regras para chegar à verdade; b) uma metrologia, uma ciência e técnicas para medir o impreciso; c) uma metodologia própria para lidar com as coisas vagas.
Do ponto de vista da construção de uma epistemologia e uma metodologia, temos o método psicanalítico embasado na teoria do inconsciente, em que utilizamos e valorizamos a escuta psicanalítica, a livre associação, a atenção flutuante, a reverie, entre os demais conceitos úteis para apreender a realidade psíquica. Seguindo Isaacs (1952/1969), penso que validamos nossa técnica de apreensão com estes princípios: “a) a atenção aos pormenores; b) a observação do contexto; c) o estudo da continuidade genética” (p. 83).
Assim, ao fazermos a investigação psicanalítica ou mesmo ao fazermos a difusão da psicanálise, precisamos ter uma atitude de busca pela verdade, semelhante à atitude clínica. No entanto, diferentemente da situação clínica que visa transformar o conhecer em ser, +K em O (Bion, 1962/1991), como cientistas e divulgadores de nossa teoria, nós, psicanalistas, fora da sessão, precisamos reconhecer e discorrer sobre o que sabemos e o que não sabemos de modo racional e lógico.
A psicanálise: uma teoria, um método de investigação e uma técnica de tratamento
Nos debates sobre ciência e psicanálise, nós, psicanalistas, precisamos sempre ter claro em que posição e sobre qual dimensão estamos a falar, uma vez que falar em psicanálise implica adentrar no âmbito de três universos distintos, ainda que interligados: a teoria, o método de investigação e a técnica de tratamento.
Freud dizia que o método de investigação era o próprio método clínico. Se na época de Freud isso era perfeitamente compreensível, na atualidade as técnicas de pesquisa em ciências humanas evoluíram bastante, ainda que isso seja desconhecido do público em geral e de muitos cientistas, fora e dentro da própria psicanálise, e mesmo entre aqueles psicanalistas ou simpatizantes da psicanálise que se dedicam ao trabalho de pesquisa acadêmica.
Tenho visto alguns debates sobre psicanálise e ciência em que, por vezes, os psicanalistas e os críticos à psicanálise argumentam suas opiniões misturando aquelas distintas áreas de atuação. Por exemplo, confundindo a crítica conceitual ou a compreensão teórica com a aplicação técnica realizada por determinado psicanalista, citando algum caso anedótico. Ou, de outro modo, aplicando modelos de investigação em que o recorte conceitual, realizado para finalidades operacionais da investigação, resulta em uma perda essencial do sentido de um conceito teórico ou técnico, restando apenas um esqueleto conceitual, sem a riqueza de sua dimensão prática e fundamentação teórica.
Domingues (1991/1999) mostra que o problema da fundamentação do conhecimento é tão antigo quanto a humanidade. Aparece desde o surgimento do logos. O autor menciona a discussão de Platão sobre a natureza do conhecimento verdadeiro, se seria sensível ou extrassensível. Em A república, Platão estabelece que o verdadeiro conhecimento – a episteme – é aquele que dá razão às suas afirmações, e portanto fundamenta suas proposições. Isso é diferente da doxa, opinião do senso comum. A modernidade deu sequência a essa tradição, porém também rompeu com ela, quando propôs que o problema não era tanto o da fundamentação do conhecimento, mas sim o da sua fundamentação absoluta. A questão não é mais a verdade ou a origem do conhecimento, e sim sua certeza e seu método de investigação. A solução não consiste em reportar o conhecimento ao seu princípio, tido como evidente. É preciso agora legitimar as próprias evidências primeiras.
Ainda seguindo Domingues, em Ética a Nicômaco, Aristóteles, aludindo à indeterminação do ser e ao coeficiente de incerteza nessas matérias do saber, afirma que o conhecimento das coisas justas e das coisas úteis é um conhecimento por aproximação.
Para tentar resolver o problema da fundamentação do conhecimento – e, portanto, da possível verdade –, a ciência moderna mobilizou três estratégias discursivas diferentes (Domingues, 1991/1999):
A do modus essendi dos objetos, de tipo essencialista, que toma a verdade como essência a des-velar (alétheia) – século 17.
A do modus operandi dos fenômenos, enquanto notas da observação e da experiência, ou seja, não como essências a desvelar, mas como fatos a descrever (veritas) – século 18.
A do modus faciendi das coisas, de tipo historicista, que faz do conhecimento, práxis, e da verdade, o devir, filha do tempo e da obra do homem – século 19.
Esse terceiro modelo de estratégia, mais do que um sentido a desvelar ou descrever, aponta para um sentido a interpretar, uma empresa mais dependente do sujeito – um sujeito que não se revela capaz de separar-se de seu objeto de estudo, numa relação, numa evolução do conhecimento.
Geralmente, os debates intra e extramuros giram em torno desses três eixos, por vezes misturando essas estratégias discursivas sem que os interlocutores se deem conta. A consequência disso é que o debate, que poderia ser profícuo, passa a ser transformado em um debate meramente apaixonado: muita fricção e calor, e pouca luz.
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Com a introdução técnica da associação livre e da atenção flutuante, a escuta psicanalítica abriu as portas para a valorização do que é da ordem do impreciso, do vago, do imprevisto. As qualidades dos fenômenos do inconsciente, como a sobredeterminação dos elementos do sonho, a não contradição, a ausência de negação, a atemporalidade, entre outros aspectos, demonstraram ser precursoras da visão contemporânea da complexidade. Assim, o conhecimento psicanalítico se faz desenvolver pelo trabalho histórico de sua teorização e sua práxis clínica, em movimentos de aproximação à verdade.
É nessa errância que fazemos cotidianamente pelos campos do impreciso que as brechas para o conhecimento do inconsciente se abrem. Uma das consequências produzidas pela imprecisão é o erro. Os mais vagos domínios do conhecimento são, portanto, os mais sujeitos ao erro. O falso só aparece como tal após uma sequência longa de erros e aproximações à verdade. O erro é um desvio, um caminhar sem direção, como expressa a sua etimologia. No entanto, o erro é uma forma que difere do caos e, em sua dialética com a verdade, dá abertura à criação (Moles, 1990/1995).
É nesse sentido de abertura criativa que precisamos compreender, na psicanálise, a presença do impreciso e do vago, de nosso conhecimento por aproximação, e das correlações fracas de nossas inferências e intuições, às quais se somam aquelas mais fortes e bem estabelecidas. Se essas características imprecisas do saber psicanalítico são vistas como deficiência científica por positivistas ingênuos ou mesmo positivistas críticos, nós devemos lembrá-los de que trabalhamos, pensamos e investigamos justamente nessa área da incerteza e da imprecisão, visando a geração de significados e a simbolização necessárias à expansão mental. Por isso, como estratégia necessária ao desenvolvimento da ciência, precisamos dentro do movimento psicanalítico aprender a linguagem da ciência e as formas de suas práticas. Do contrário, falaremos idiomas distintos, sem dar-nos conta do abismo interposto entre os interlocutores. Acredito ser mais factível psicanalistas aprenderem ciência do que cientistas não psicanalistas aprenderem psicanálise, em toda a sua dimensão conceitual, técnica e prática.
Em suma, a tese deste trabalho é que a investigação psicanalítica, quer no âmbito conceitual, quer no âmbito empírico, tem sua importância no campo do conhecimento humano e da ciência. Nosso objeto de estudo principal, o inconsciente, tem sua metodologia de apreensão desenvolvida no seio da comunidade psicanalítica, resultado do esforço de muitos que nos antecederam e de nossos pares e críticos. Precisamos aprender o idioma da ciência para demonstrarmos o que sabemos, mas principalmente para termos a possibilidade de diálogo com o outro, sem perder nossa essência psicanalítica. Nossa ciência é jovem e está por se fazer cada vez mais.