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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641XOn-line version ISSN 2175-3601

Rev. bras. psicanál vol.58 no.2 São Paulo  2024  Epub Dec 02, 2024

https://doi.org/10.69904/0486-641x.v58n2.07 

Artigo

Desafios epistemológicos para a psicanálise

Desafios epistemológicos para el psicoanálisis

Epistemological challenges for psychoanalysis

Défis épistémologiques pour la psychanalyse

Flávio Carvalho Ferraz1 

1Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Livre-docente pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (ip-usp).


Resumo

O autor aborda a história das tentativas de fundamentação epistemológica da psicanálise. Parte das hipóteses de Freud sobre a cientificidade de sua disciplina, o qual, para situá-la necessariamente no domínio das ciências naturais, toma de empréstimo fundamentos da física e da química. Conclui com a contribuição de Laplanche, que busca os fundamentos da psicanálise na própria obra freudiana, fazendo-os coincidir com os fundamentos do próprio sujeito.

Palavras-chave epistemologia da psicanálise; metapsicologia; objeto da psicanálise; significante enigmático; transmissão transgeracional

Resumen

El autor aborda la historia de los intentos de establecer el fundamento epistemológico del psicoanálisis. Comienza con las hipótesis de Freud sobre la cientificidad de su disciplina, que, para situarla necesariamente en el dominio de las ciencias naturales, toma prestados fundamentos de la física y la química. Concluye con el aporte de Laplanche, quien busca los fundamentos del psicoanálisis en la propia obra de Freud, haciéndolos coincidir con los fundamentos del propio sujeto.

Palabras clave epistemología del psicoanálisis; metapsicología; objeto del psicoanálisis; significante enigmático; transmisión transgeneracional

Abstract

The author addresses the history of attempts to establish the epistemological foundation of psychoanalysis. He starts from Freud’s hypotheses about the scientificity of his discipline, which, to necessarily place it in the domain of natural sciences, borrows foundations from physics and chemistry. He concludes with the contribution of Laplanche, who seeks the foundations of psychoanalysis in Freud’s own work, making them coincide with the foundations of the subject himself.

Keywords epistemology of psychoanalysis; metapsychology; object of psychoanalysis; enigmatic signifier; transgenerational transmission

Résumé

L’auteur aborde l’histoire des tentatives de fondation épistémologique de la psychanalyse. Il part des hypotheses de Freud sur la scientificité de sa discipline qui, pour la situer nécessairement dans le domaine des sciences naturelles, emprunte des fondements à la physique et à la chimie. Il conclut par l’apport de Laplanche, qui cherche les fondements de la psychanalyse dans l’æuvre même de Freud, en les faisant coïncider avec les fondements du sujet lui-même.

Mots-clés épistémologie de la psychanalyse; métapsychologie; objet de la psychanalyse; signifiant énigmatique; transmission transgénérationnelle

Desde o primeiro insight de Freud, ainda no século 19, que deu início à construção do que viria a ser uma nova e revolucionária disciplina, a psicanálise enfrentou desafios epistemológicos para se constituir como campo respeitável no domínio das ciências. Afinal, seu projeto nada tinha de modesto, como ele próprio registraria no artigo “Uma dificuldade no caminho da psicanálise” (Freud, 1917/1981a). Tratava-se, nada menos, de empreender a consolidação de uma disciplina que viesse a desferir o terceiro golpe no narcisismo da humanidade, na sequência de outros dois nada modestos. O primeiro golpe, o cosmológico, deveu-se à descoberta de Copérnico de que a Terra, o domicílio do homem, não era o centro estacionário do universo. O segundo, o biológico, resultou das pesquisas de Darwin, que retiraram o homem de sua supremacia para colocá-lo em seu devido lugar na escala animal. Finalmente, o golpe psicológico, ocorrido por obra e mérito do próprio Freud,

atingiu o sujeito da certeza e da razão, à medida que a psicanálise apontou para um eu que não era completamente senhor de si, isto é, encontrava-se sujeito a aspectos inconscientes que, a despeito de influenciarem profundamente em sua configuração psíquica, não se deixavam sujeitar pela consciência ou pela razão. (Ferraz, 1994, p. 20)

A tarefa que cabia à nova ciência era a construção de um corpo teórico-clínico complexo, que – como escreveu Freud na definição de psicanálise nos “Dois verbetes de enciclopédia” – fosse ao mesmo tempo:

1) um procedimento para a investigação de processos mentais que são quase inacessíveis por qualquer outro modo, 2) um método (baseado nessa investigação) para o tratamento de distúrbios neuróticos, e 3) uma coleção de informações psicológicas obtidas ao longo dessas linhas e que gradualmente se acumula numa nova disciplina científica. (1923/1981b, p. 287)

Ou seja, a psicanálise já surgiu com a vocação de se tornar um método terapêutico indissociável de uma teoria do aparelho psíquico, isto é, a metapsicologia, e cujo destino seria o de constituir-se como uma ciência nova, destacada tanto da medicina quanto da psicologia.

A entrada em cena do inconsciente, conceito central que sustenta todo o edifício teórico-clínico da psicanálise, exigia nada menos que o fim da ilusão da posse, pelo homem, da completa certeza sobre si. É assim que desfilam na obra de Freud sucessivas evidências da invasão do eu por essa instância que o ultrapassa. Se não, vejamos: por meio do ato falho, dizemos mais do que sabemos ou do que gostaríamos de dizer; nos sonhos, os desejos recalcados insistem em aparecer, ainda que disfarçadamente; o neurótico obsessivo vive assolado por pensamentos desagradáveis que se assomam a sua consciência aos borbotões, sem que ele possa controlar sua aparição; o psicótico é atravessado por delírios que trazem o outro em estado intacto para dentro de sua mente, destituindo-o de sua própria delimitação ontológica. E assim por diante.

A especificidade constitutiva da lógica da psicanálise, segundo Dor (1988), se caracteriza pela ligação inextrincável entre aquilo que escapa do sujeito com seu estatuto de verdade. Porém, antes de Freud perceber que havia um sentido no que dizia a histérica, os sintomas eram vistos como produto da degenerescência da mente. Assim, a psicanálise promoveu uma subversão epistêmica ao reconhecer não apenas que há uma dimensão de verdade naquilo que escapa do discurso racional do sujeito – dito de outro modo, naquilo que o ultrapassa –, mas também que tal verdade não pode se revelar no discurso consciente.

A partir de intuições ainda muito iniciais sobre o inconsciente, coube a Freud trilhar um longo caminho na consolidação de uma posição epistemológica própria da psicanálise, uma vez que sua essência mesma trazia algo de disruptivo em relação ao estado da arte da teoria da ciência de então. Esse é um longo e complexo trajeto, já detalhado por muitos estudiosos do desenvolvimento da psicanálise, como P.-L. Assoun (1983), que historiou o paradoxo vivido por Freud nas investidas sobre o tema da relação entre sua disciplina e a ciência. Em uma brevíssima síntese: por mais que tenha conduzido a psicanálise, cada vez mais, a uma posição de ruptura com as exigências metodológicas das ciências duras ou da natureza (Naturwissenschaften), Freud jamais desistiu de incluir sua disciplina entre elas. Claro, um olhar histórico descortina motivações adicionais a sua estrita concepção epistemológica, como a necessidade de tornar a psicanálise reconhecida e aceita pelo meio acadêmico dominante. Para isso, era preciso não renunciar a uma argumentação que defendesse sua ciência enquanto parceira legítima da física e da química, como se depreende de suas relações com os grandes cientistas da época.

Mas os aspectos políticos, por assim dizer, não atenuam o fato de que Freud tinha um partido na discussão sobre o que se exigia de uma ciência para que ela pudesse se designar como tal. Em sua formação médica, ele já recebera a influência de Brücke e Brentano, no sentido de se afastar de conceitos metafísicos – e da Naturphilosophie – para se constituir como aquilo que seria um verdadeiro cientista. Posteriormente, a influência do filósofo austríaco Ernst Mach (1838-1916), defensor do caráter necessariamente empírico de toda ciência, ficaria patente no extenso arrazoado inicial do artigo “O instinto e suas vicissitudes”, em que Freud (1915/1981d) argumenta ser lícito que uma nova disciplina, em seu processo de construção, tome de empréstimo os fundamentos de ciências já consolidadas. Isso justifica suas reiteradas tentativas de extrair da física e da química os fundamentos que julgava aplicáveis à psicanálise. Está posto aí, claramente, o anseio de carimbar a psicanálise como ciência positiva, observando critérios empíricos de verificabilidade e não se deixando contaminar por conceitos metafísicos.

Como se constata nos primeiros trabalhos de Freud, em particular nos Estudos sobre a histeria (Breuer & Freud, 1893-1895/1981), a causa do sintoma histérico – a memória recalcada de um evento doloroso – teria que ser encontrada por meio de um árduo trabalho de rememoração que caracterizava o incipiente método terapêutico e investigativo. Essa “causa”, ainda que situada na história de um sujeito, e não na anatomia ou na fisiologia, fazia as vezes da materialidade exigida na explicação da causação material nas ciências da natureza. Entretanto, é bastante curioso como, nos anos iniciais de sua prática clínica e seu exercício de teorização, Freud já se dedicava a defender uma especificidade incontornável de sua disciplina, a saber, a localização do fator etiológico na história do sujeito, e não em seu corpo. Os relatos de caso reunidos nos Estudos sobre a histeria têm, por essa razão, uma estrutura incrivelmente mais afim à narrativa literária do que a um trabalho científico. Assim, a investigação e a intervenção se davam por meio da palavra! Curiosa injunção essa, que, se apontava uma posição desfavorável no estrito campo das ciências da natureza, foi também o que, historicamente, abriu espaço para a paulatina afirmação de uma ciência que operava em outro terreno que não o da materialidade. Essa tendência irrefreável aparece, por exemplo, nas ponderações de Freud em um texto belíssimo, escrito anos antes da data que consta em sua efetiva publicação. Trata-se do artigo “Tratamento psíquico (ou mental)”, no qual se lê:

Tratamento psíquico denota, antes, o tratamento que se inicia na mente, o tratamento (seja de distúrbios mentais ou físicos) por medidas que atuam em primeiro lugar e imediatamente sobre a mente humana. De primeira importância entre tais medidas é o uso de palavras; e as palavras são o instrumento essencial do tratamento mental. Um leigo, sem dúvida, achará difícil compreender de que forma os distúrbios patológicos do corpo e da mente podem ser eliminados por “meras” palavras. Ele achará que lhe estão pedindo que acredite em mágica. E não estará muito errado, pois as palavras que usamos em nossa fala diária não são senão uma mágica atenuada. Mas teremos que seguir um desvio para explicar de que forma a ciência se propõe restituir às palavras pelo menos uma parte de seu antigo poder mágico. (1905/1981g, p. 297, grifos meus)

A rigor, as afirmações feitas nesse artigo são tão enfáticas que pouco teríamos a acrescentar na caracterização da psicanálise como disciplina que rompe com o campo das ciências duras. Entretanto, muitos anos ainda se passariam até a publicação do trabalho A questão da análise leiga (1926/1981f), em que, indiretamente, Freud reconhece que a psicanálise se apartara da medicina. Ele não o faz com uma tal afirmação explícita, mas escreve um texto extenso em defesa da prática da psicanálise por leigos, isto é, não médicos. Deixando de lado esse salto, no entanto, muito há para se discutir sobre esse trajeto de consolidação da psicanálise dentro do campo epistemológico específico que competiu a Freud inaugurar.

Para vencer os desafios no caminho de sua consolidação, a psicanálise teve que desenvolver um corpo teórico coerente com um respectivo método clínico, com a inescapável tarefa de chegar à definição de um objeto que se distinguisse tanto daquele das ciências da natureza quanto da cultura. Como justificativa para sua existência legítima em meio às ciências, foi necessário, por meio de um contínuo processo de tentativa e erro, formular um discurso consistente sobre seus fundamentos específicos, de modo a poder abrir mão dos empréstimos que fizera de outras ciências – empréstimos que, muitas vezes, podem soar como metáforas, conquanto seja visível a crença de Freud na sua condição de verdadeiros fundamentos científico-epistemológicos.

Portanto, no afã de construir um corpo uno, não apenas composto por uma metapsicologia e um método, mas também por uma fundamentação solidária à definição de seu objeto específico, a psicanálise enfrentou uma verdadeira corrida de obstáculos, que não seria possível arrolar num espaço como este. Assim, não pretendo enumerar sistematicamente esses desafios, tampouco historiá-los. As considerações que farei decorrem, de modo despretensioso e errático, das inquietações que encontro na constituição de meu próprio entendimento da disciplina a que me dedico, bem como das dificuldades que enfrentei e continuo a enfrentar no dia a dia do ofício clínico, na luta com a ampliação de meus horizontes teóricos e na labuta com a transmissão. Baseiam-se, confessadamente, tanto em minhas predileções teóricas e estéticas quanto em minhas crenças éticas.

No primeiro plano dos desafios relativos à metapsicologia esteve o encontro de uma fundamentação própria e específica para a ciência da psicanálise, que lhe permitisse definir com precisão seu objeto e, simultaneamente, legitimar o método adequado a sua abordagem. Fundamentação epistemológica e definição de objeto específico são, portanto, tarefas indissociáveis.

Como vimos, a influência de Mach sobre Freud o conduziu a um discurso, explicitado na introdução do artigo “O instinto e suas vicissitudes” (1915/1981d), que justificasse o procedimento a ser adotado por uma nova ciência. Ela deve começar por observar e descrever fenômenos, até edificar um sistema que, inicialmente, se explica com base em ideias retiradas das vizinhanças científicas. O inconsciente seria, a seu ver, um objeto da natureza, e essa forma de encará-lo levou-o a uma verdadeira obstinação pelo alinhamento da psicanálise às Naturwissenschaften. Mas o que se exigia de uma ciência propriamente dita era o emprego do método empírico, e o método clínico de Freud não poderia se acomodar a essa designação. Se dermos um salto entre o momento freudiano e o ponto a que chegamos após tantas décadas de elaboração do problema pela filosofia da ciência, encontramos um estado de coisas tal como descrito na conciliação proposta por Mezan:

A divisão entre ciências naturais e ciências humanas já não passa atualmente pela oposição entre universal e singular, nem pela oposição entre explicação e compreensão. Ela reside na diferença entre o método experimental e os métodos não experimentais, o que é completamente diferente. O método experimental convém a objetos nos quais a singularidade é irrelevante – o fato de se tratar deste ou daquele nada significa perante o fato de ser um exemplar da categoria. Já as ciências humanas têm de levar em conta a singularidade de seu objeto, que coexiste, de modo inextrincável, com a dimensão suprassingular que o método também quer alcançar. Nesse sentido, o emprego do método clínico – que não é um método experimental – obriga-nos a situar a psicanálise ao lado das ciências humanas, e isso sem que os motivos que levaram Freud a colocá-la entre as ciências da natureza tenham perdido a validade. Simplesmente, não é mais possível utilizar o termo empírico como equivalente a da natureza, como parecia evidente a Freud no contexto em que elaborava suas reflexões. (2002, p. 485)

Voltando ao tema da busca de fundamentos empreendida por Freud para sua disciplina, é em Assoun (1983) que encontraremos um levantamento exaustivo dos diversos momentos deste esforço. O autor faz uma distinção entre os fundamentos epistemológicos do freudismo e os fundamentos históricos da metapsicologia freudiana. O primeiro fundamento epistemológico presente em Freud seria o monista, responsável por sua “obstinação um pouco teimosa em rotular sua psicanálise de Naturwissenschaft” (p. 48), por acreditar não haver uma variante no domínio das ciências. Ele rejeitava a legitimidade do que seria a alternativa, as ciências do espírito (Geisteswissenschaft), algo que lhe causava espécie. O segundo fundamento seria o fisicalista, representado pelas referências físico-químicas na explicação dos fenômenos mentais, que vemos à exaustão nas hipóteses sobre os fluxos da energia psíquica nos processos de retenção e descarga, que inclusive embasam a diferenciação entre o processo primário e o secundário. O terceiro fundamento, por fim, seria o agnosticista, que introduz um paradoxo sobre o qual a metapsicologia terá que se equilibrar. Para Freud, a psicanálise é, por definição, uma ciência da natureza. No entanto, a esfera de fenômenos que investiga é a dos processos inconscientes, em última instância incognoscíveis, como a coisa em si kantiana (Noumenon), conceito por ele mesmo convocado. Eis aí, de modo acabado, o paradoxo (sofisma, no dizer de Assoun) em que a epistemologia freudiana mergulhou.

Os fundamentos históricos da metapsicologia freudiana, por sua vez, adviriam de três modelos: o brückiano, que vai da anatomia à tópica, e tem como eixo o princípio da conservação da energia; o herbartiano, que vai da tópica à dinâmica, e se centra sobre a ideia de que todo fenômeno psíquico é uma representação ou nela encontra apoio; e o fechnero-helmholtziano, que vai da dinâmica à econômica, e defende o imperativo da quantificação na pesquisa psicológica. Por meio dessa sequência, descortinam-se os bastidores da formulação de uma metapsicologia com suas três componentes, a tópica, a dinâmica e a econômica.

Assoun (1983) circunscreve a epistemologia da psicanálise à obra de Freud, tanto que fala em epistemologia freudiana, em vez de psicanalítica. Para ele, a metapsicologia pertence a Freud, por seu caráter inaugural e pela quebra de paradigmas que ele levou a cabo. Mezan (2002), com propriedade, critica essa restrição, uma vez que ela pode ter por consequência a personalização de uma disciplina, o que justificaria, por exemplo, que a psicanálise fosse tomada por “ciência judaica”, como efetivamente já o foi. Para ele, o ideal seria, na contramão do isolamento da psicanálise no domínio de seu fundador, admitir que sua abertura aos teóricos pós-freudianos permitiu o prosseguimento de sua pesquisa, preenchendo lacunas e estabelecendo novos conceitos. Desse modo, estes poderiam ser considerados legítimos partícipes da construção da meta-psicologia. Foi por mérito de desenvolvimentos teóricos pós-freudianos, por exemplo, que o leque da analisabilidade se abriu a pacientes que não cabiam na primeira concepção técnica de Freud, como se verifica historicamente no enfrentamento dos desafios epistemológicos apresentados pela clínica.

Depois de Assoun, foi J. Laplanche que, a meu ver, contribuiu de maneira decisiva para o esclarecimento da trajetória da fundamentação da psicanálise, inclusive atingindo um ponto de onde pôde depreender da própria obra de Freud o fundamento último de sua ciência, que ele mesmo, Freud, não entrevira. Para isso, Laplanche (1992) se valeu de um procedimento peculiar, que foi o de “fazer Freud trabalhar”, isto é, empreender uma leitura em extensão de sua obra de modo a extrair dela própria relações lógicas ali não explicitadas. O fundamento da ciência da psicanálise, para ele, deveria corresponder, necessariamente, ao que funda cada processo psicanalítico particular e, em última instância, ao que funda o ser humano. Em outras palavras: fundamento e objeto são conceitos inseparáveis, e o tratamento psicanalítico recapitula a constituição do sujeito.

Fundamentos: é, a partir de uma crítica incessante dos conceitos ditos fundamentais, uma retomada dos gestos e dos movimentos que fundam; que fundam o quê? Que fundam a psicanálise, que fundam uma psicanálise, no sentido do que chamamos o tratamento; e, finalmente, que fundam o ser humano. Pois, eu insisto, o que é fundador para a psicanálise só pode sê-lo se estiver em ressonância, estiver a posteriori, com o que é fundador para o ser humano. (p. 2)

Laplanche faz um levantamento crítico dos modelos supostamente fundantes pelos quais Freud foi passando em sua trajetória teórica: o biológico, o filogenético e o mecanicista, acrescentando o linguístico, produto das tentativas lacanianas de fundamentação do sujeito e do método. Ao fim da trajetória, e levando às últimas consequências o propósito de extrair da própria descoberta psicanalítica seu fundamento, propõe que este se encontra na ideia do apoio (Anlehnung), por meio do qual a sexualidade psíquica se destaca do soma (Freud, 1905/1981h).

São várias as consequências dessa proposição, todas de importância capital para a metapsicologia e para a clínica. Por exemplo: a sexualidade psíquica surge na mesma operação que funda o sujeito, por meio da sedução originária, que é inevitavelmente perpetrada pelo adulto, portador de um inconsciente, no contexto da situação antropológica fundamental. Nesse processo, ocorre a separação entre o nível pulsional, que se destaca, e o nível basal da conservação. O outro (adulto), que invade a criança e provoca o nascimento de sua sexualidade, se instaura como objeto primordial transformado em fonte da pulsão, de modo a ser doravante mais bem designado como objeto-fonte da pulsão. Corpo somático e corpo erógeno se separam. A pulsão, identificada com a sexualidade psíquica, não se confunde mais com o instinto, agora entendido como esquema herdado da filogênese. É no nível pulsional, portanto, que se funda o sujeito sexuado e desejante.

Em consonância com a exigência de coerência que vimos antes, esse nível funda também o objeto da psicanálise, que vem a ser o objeto da pulsão ou objeto psíquico propriamente dito, descolado do objeto da conservação. Em suma, Laplanche não deixa restar confusão entre o plano da objetividade e o da objetalidade. O primeiro se situa no nível da conservação, sendo, assim, objeto da psicologia, na medida em que se refere à percepção e à cognição. O segundo, por sua vez, se situa no nível da pulsionalidade, sendo, portanto, objeto da psicanálise.

Mezan (2002) também recapitula esse processo de encontro do objeto específico da psicanálise na culminância de sua afirmação epistemológica. Chama-o de objeto psíquico, surgido à diferença do objeto natural das ciências duras, da mesma forma que o objeto cultural se definiu em virtude da independência adquirida pelas ciências sociais. Haveria, ainda, o objeto ideal, da matemática, situado acima das materialidades. Quanto à novidade do objeto psíquico, o autor demonstra como ele vem se situar fora do campo da psicologia, uma vez que é apenas na experiência da transferência que se manifesta, o que torna sua ocorrência um evento particular da situação analítica. À investigação de cada objeto deve corresponder um método desenvolvido em coerência com sua natureza, de modo que a pretensa universalidade do método das ciências naturais cai por terra.

Há ainda uma consideração adicional a ser feita a respeito do processo de sexuação. O significante enigmático, oferecido pela mãe, é uma manifestação inconsciente. Portanto, aquilo que ela faz instalar no incipiente aparato psíquico do filho não estará jamais sob a influência de sua ação consciente. Isso significa que não haverá esforço possível que conduza à assunção de uma ou outra configuração do desejo. A escolha objetal não se subordina a nenhuma forma de educação, portanto. A constituição da objetalidade é apenas o outro lado da moeda da formação da identidade sexual. Laplanche (2015) fala em identificação passiva, o que significa que, por efeito do significante enigmático, alguém é identificado por outro, não cabendo mais o uso do reflexivo-ativo presente numa afirmação do tipo “alguém se identifica com”.

A determinação do objeto do desejo, que a partir de então será figurado pela fantasia que o representa, é bastante precoce. Ele permanecerá latente até que a maturação sexual, ocorrida no território biológico, o convoque. E, ainda que alguns não concordem com essa asserção radical, é imutável. Ribeiro (2010) convoca a etologia para advogar que, na determinação da objetalidade, algo se passa à moda do imprinting, que fixa padrões (patterns) no desenvolvimento comportamental dentro de uma janela temporal rigorosamente estabelecida na filogênese.

Não é preciso muito esforço para deduzir o lugar que Laplanche atribui à biologia na constituição do sujeito propriamente dito. Sem negar seu papel, ele propõe sua devida participação no processo, como base instintual, reservando à sexualidade psíquica sua origem no outro, ou melhor, no inconsciente do outro, ou seja, do adulto presente na situação antropológica fundamental, da qual decorre inexoravelmente a sedução originária.

De todo esse arrazoado, destaco a consequente compreensão do processo analítico como situação que recapitula e, desse modo, historiciza a gênese do sujeito. Para tanto, ele só pode ser instituído por força de um setting que reproduza a situação originária, quando a criança se vê diante da questão: “O que este seio quer de mim?”, questão que se faz como reação a sua exposição ao significante enigmático oferecido pela mãe; duplamente enigmático, uma vez que também a mãe o oferece de maneira inconsciente. De modo controlado e metódico, então, o analista reproduz a cena da sedução originária ao estabelecer a regra fundamental da análise.

Laplanche (1992) faz um esclarecimento bastante preciso sobre a relação do método clínico, naquilo que comporta de essencial, com o objeto da psicanálise, por ele circunscrito ao pulsional. Se o objeto se definiu como sexualidade psíquica ou pulsionalidade, que se destaca do soma pela operação do apoio, então os aspectos do sujeito pertencentes ao domínio da conservação ou das pulsões do eu, de acordo com Freud (1915/1981d), são elementos situados fora do escopo analítico. Isso quer dizer que o analista deve recusá-los, ou seja, não responder ao analisando no plano em que se situam, em razão de seu caráter de demanda. A resposta que se pode considerar como interpretação é a que se desloca para o nível pulsional, numa espécie de finca-pé do analista na radicalidade do método. Diga-se de passagem, essa recusa nada tem com a Verleugnung fetichista. Trata-se da Versagung, traduzida às vezes por frustração, conceito que já aparece no “Projeto para uma psicologia científica” (Freud, 1950[1895]/1981e) para falar da relação da mãe com o bebê, em que a frustração tem papel constitutivo.

O exemplo dado por Laplanche sobre essa postura clínica é cristalino: se um paciente diz que se atrasou para a sessão em virtude de problemas com o horário dos trens, o analista se recusa a responder no nível da conservação, que poderia ser, no caso, uma abordagem pedagógica sobre como se organizar com os horários. Ele se atém, ao contrário, ao nível pulsional, que é o da tomada do atraso no nível pulsional, ou seja, da resistência. Não cede sobre essa posição.

Por fim, gostaria de considerar ainda um último desafio enfrentado pela teoria, cuja solução está ligada à questão da radicalidade do objeto da psicanálise, que acabamos de discutir. Trata-se do problema da transmissão transgeracional, uma pedra no sapato de Freud. Em O ego e o id, ele arrisca uma hipótese, que até parece inspirada no pensamento lamarckista a respeito da transmissão genética de caracteres adquiridos, para explicar o modo como se dá a comunicação de experiências de uma geração a outra:

As experiências do ego parecem, a princípio, estar perdidas para a herança; mas, quando se repetem com bastante frequência, e com intensidade suficiente em muitos indivíduos, em gerações sucessivas, transformam-se, por assim dizer, em experiências do id, cujas impressões são preservadas por herança. Dessa maneira, no id, que é capaz de ser herdado, acham-se abrigados resíduos das existências de incontáveis egos; e quando o ego forma o seu superego a partir do id, pode, talvez, estar apenas revivendo formas de antigos egos e ressuscitando-as. (1923/1981c, p. 53)

Dito sem subterfúgios: haveria experiências incorporadas pelo id que se tornam patrimônio biológico transmissível de uma geração a outra. Ora, trata-se de uma proposição demasiado frágil quando examinada sob um crivo epistemológico minimamente rigoroso. Sugere uma verdadeira aventura pelos domínios da genética. Mas, com Laplanche, somos socorridos pela concepção de significante enigmático, que tem potencial suficiente para lançar luz sobre o problema da transmissão transgeracional, uma vez que se trata de uma tese sobre um modo particular de comunicação entre pais e filhos ou, genericamente, entre adultos e crianças. Parte essencial da “herança” deve ser transmitida, portanto, por meios inconscientes, de modo que não surpreende a existência de aquisições cuja transmissão pareça misteriosa e, assim, seja explicada de maneira prematura com base na genética. Até porque o significante não está presente apenas no discurso verbal, mas se presentifica igualmente em cada gesto e em cada silenciamento, impregnando a cultura de um grupo familiar ou até mesmo social.

Essa forma de compreensão apresentada por Laplanche tem o mérito de, por fim, conferir ao problema da transmissão transgeracional o indispensável rigor científico, levando mais longe o conceito de significante cunhado por

Lacan (1966/1998), ainda que este já reconhecesse seu aspecto potencialmente enigmático. Laplanche, mais uma vez radical na exigência de uma consistência epistemológica, reforça a concepção do caráter psíquico de toda transmissão transgeracional, retirando de uma genética imaginária a responsabilidade por sua ocorrência e devolvendo os fenômenos psíquicos ao universo do significante. Assim como na identificação sexual e sua correlata escolha de objeto, na transmissão transgeracional é o significante enigmático que, portando o desejo do outro, produz as marcas constitutivas do sujeito pulsional. Essa assertiva consolida uma tomada de partido da psicanálise no debate sobre o inato e o adquirido, deixando à biologia seu lugar no plano do instinto enquanto esquema filogenético. Não retira dela sua importância. Ao contrário, faz-lhe justiça ao mantê-la em seu lugar natural.

Referências

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Recebido: 04 de Junho de 2024; Aceito: 28 de Junho de 2024

Flávio Carvalho Ferraz ferrazfc@uol.com.br

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