Introdução
André Green, em seu clássico trabalho “O analista, a simbolização e a ausência no enquadre analítico” (1975/2017), argumenta que novos paradigmas psicanalíticos costumam desenhar-se ao longo de décadas, antes de serem reconhecidos e compreendidos claramente. Buscando identificar as transformações que se avultavam no seio da comunidade psicanalítica naquele exato momento, vaticina que a psicanálise do futuro seria gestada a quatro mãos, analista e paciente desenvolvendo graus inéditos de conexão e de elaboração inconscientes. Tal previsão, aponta Green, apresentaria um enorme desafio à comunidade psicanalítica, abalando, inclusive, alguns de seus pilares clássicos, como o conceito de transferência compreendido como reedição da conflitiva do paciente, e a contratransferência como seu corolário natural, fundamentalmente reacional. Argumenta a favor da hipótese de que a contratransferência possa preceder a transferência no encontro analítico, “condição sem a qual nenhuma elaboração do que é transmitido pelo paciente poderia ocorrer” (p. 74).
A mudança que se anuncia, naquele momento histórico, segundo o autor, é “a mudança no analista”, incluindo, em seu ofício, sua própria realidade psíquica. Transcorridas mais de quatro décadas da publicação desse artigo, verificam-se a fertilidade das ideias de Green e a propriedade de sua predição. Em sua dimensão terapêutica, a psicanálise, nesse período, tem dado destaque crescente ao fenômeno de campo psicanalítico como premissa básica, conforme elaborado pelo casal Baranger (1961-1962) a partir da década de 1960, e desenvolvido de forma original por autores da envergadura de Donald Winnicott (1951/1975a, 1968/1975b, 1960/1990, 1956/2007) e Wilfred Bion (1957, 1978-1980/1992, 1970/2018) na Inglaterra, do próprio André Green (2005a, 2005b, 1975/2017) na França, e de Thomas Ogden (1994/1996, 2005, 2016a, 2016b, 2019, 2023) nos Estados Unidos, entre outros psicanalistas ao redor do mundo.
O desafio de integração da proposta analítica nos moldes clássicos, conforme os postulados pioneiros de Freud, em sua inesgotável riqueza, e as abordagens contemporâneas, com valorização crescente da criatividade e da pessoalidade do analista, segue pujante atualmente e, como na década de 1970, parece nortear transformações.
O conceito de contratransferência, que ocupa uma posição central no edifício teórico da psicanálise desde a década de 1950, tem recebido atenção e desenvolvimentos consistentes ao longo do tempo, mesmo que também envolto, ele próprio, em uma miríade de acepções. Sua trajetória no cabedal da psicanálise desvela, pari passu, os movimentos de inserção e de exclusão dos afetos próprios ao analista, sua cognição, seu inconsciente, sua pessoa, na teoria da psicanálise como método terapêutico, ao longo do tempo, sem no entanto dar a esses elementos subjetivos idiossincráticos uma conceitualização analítica consistente com a metapsicologia analítica (Bizzi, 2023a).
Assim, buscando ampliar os recursos conceituais de que dispomos para compreender os diversos tipos e estádios da subjetividade do analista no processo analítico, proponho, neste trabalho, o conceito de subjetividade primária do analista, que reconhece, põe o foco sobre e examina analiticamente a presença, no campo analítico, de elementos subjetivos do analista de um tipo específico, que têm a qualidade de ser absolutamente idiossincráticos e originais, portando alteridade e unicidade. A qualidade de ser única, diversa da subjetividade do paciente, e de ser outra, existindo em alguma medida independentemente do paciente, constitui suas propriedades específicas e essenciais. Seus destinos e desdobramentos no processo analítico são estudados, a seguir, por meio do exame microscópico do fluxo anímico do analista durante o encontro analítico, em suas vertentes uni e bipessoais.
Subjetividade primária do analista
O conceito de subjetividade primária do analista alude, por meio da palavra subjetividade, ao sujeito, uno e singular, que exerce a função analítica e que emprega seu aparelho mental em diversos e complementares níveis e combinações no espaço interpessoal e intrapsíquico. Sob o vértice intersubjetivo, o analista é o sujeito que emprega sua subjetividade na cocriação do espaço potencial analítico, área intermediária da experiência que Green (1975/2017) e Ogden (1994/1996) examinam, respectivamente, através dos conceitos de objeto analítico e terceiro analítico intersubjetivo.3 Sob o vértice intrapsíquico, o analista é o sujeito da própria vida pulsional e de representação: tem uma vida de fantasia, repertório simbólico e protossimbólico, valores éticos, e relações objetais prévias conscientes e inconscientes que se presentificam (e se transformam) a cada encontro analítico.
O termo primária faz referência, no contexto de comunicação da dupla analítica, à preexistência de estruturas, organizações e elementos do mundo interno, personalidade e estados mentais do analista, que existem, em alguma medida, independentemente da dimensão intersubjetiva da experiência, na qual submergem e da qual emergem sucessiva ou simultaneamente. Sob o prisma genético-dinâmico, a palavra primária destaca, cronologicamente, na evolução ontogenética do sujeito que é o analista, os aspectos primitivos de seus núcleos psíquicos, que equivalem ao conceito de Winnicott (1960/1990) de verdadeiro self, inacessível. Indica, assim, uma estreita conexão a modos arcaicos, elementares, de vivência e comunicação, ligados à sensorialidade (pré-verbais) e amplamente regidos pelo processo primário de funcionamento mental.
Subjetividade primária do analista: qualidade de unicidade
O caráter de ser único, no que se refere ao vínculo analítico, depende, entre outros fatores, de elementos originais do aparelho mental do analista, que lhe alicerçam a capacidade de gerar significados e conteúdo mental de natureza pessoal, não reprodutíveis por outros analistas ou pelo mesmo analista em momentos distintos, isto é, depende de sua subjetividade primária. A premissa de tal influência, marca ou efeito, presente de forma central na obra de autores como Winnicott (1951/1975a, 1960/1990, 1956/2007), Bion (1957, 1978-1980/1992, 1970/2018), Green (2005a, 2005b, 1975/2017) e Ogden (1994/1996, 2005, 2016a, 2016b, 2019, 2023), dá-se por caminhos pouco claros, que merecem reflexão.
Em “O terceiro analítico: trabalhando com fatos clínicos intersubjetivos” (1994/1996), Ogden propõe uma decomposição do fenômeno analítico em suas partes componentes, e o concebe em um formato tripartite: o polo subjetivo do paciente, o polo subjetivo do analista, e o polo do terceiro analítico intersubjetivo. O conteúdo psíquico e os estados mentais gerados pelo encontro inconsciente das duas subjetividades individuais, do analista e do analisando, segundo o autor, constituem um terceiro espaço, zona simbólica e/ou protossimbólica da qual ambos participam, e da qual ambos se apartam de tempos em tempos. O movimento de imergir no terceiro analítico e dele emergir, para observá-lo (ou observar a si, dentro do terceiro), forma a essência da experiência analítica para esse autor. Segundo Ogden, a busca por representação privada do analista no encontro analítico expressa-se, com frequência, por meio de devaneios que se confundem com sua esfera pessoal. A auto-observação do analista, dessa forma, constitui um complexo desafio, uma vez que inclui sua esfera íntima, ou, como diz o autor, seu “santuário interno essencial de privacidade” (p. 79). Sobre o esforço psicológico para acessar os estratos mais recônditos da própria subjetividade, em setores da experiência transferencial-contratransferencial profundamente entranhados na estrutura de caráter do analista, Ogden escreve:
Acho que um fator importante que contribui para a desvalorização de uma tão grande porção de experiência analítica é o fato de que tal conhecimento implica uma forma perturbadora de autoconsciência. A análise desse aspecto da transferência-contratransferência requer um exame do modo como falamos com nós mesmos e do que falamos conosco num estado psicológico privado e relativamente pouco definido. (p. 79)
Green (1975/2017), citando Winnicott, ressalta que a capacidade de simbolização gerada no encontro analítico baseia-se no espaço potencial que se desenvolve entre dois discursos diversos, em cujos polos (paciente e analista) encontra-se um sujeito que tem uma linguagem própria. Em suas considerações, está patente a premissa de que há elementos subjetivos idiossincráticos inescapáveis que o analista institui no encontro terapêutico.
Instala-se uma relação dialética entre paciente e analista. Por mais que o analista se esforce para se comunicar com o paciente, em sua própria língua, esse último em contrapartida só pode, caso queira ser compreendido, responder na língua do analista. (p. 73)
Em outra passagem do mesmo trabalho, Green menciona o papel único que cada analista desempenha no processo analítico, que varia conforme o que ele chama de contribuição pessoal, que lhe é requisitada, principalmente na análise de pacientes com organizações limítrofes, e que demanda o desafio de reflexão aprofundada por parte da comunidade psicanalítica. “Os casos difíceis ... são precisamente aqueles que colocam à prova o analista e solicitam sua contratransferência – no sentido estrito –, exigindo ao mesmo tempo dele uma contribuição pessoal mais pesada” (p. 74).
Subjetividade primária do analista: qualidade de alteridade
A qualidade de alteridade que caracteriza a subjetividade primária do analista, conforme proponho, refere-se ao fato de que o analista não apenas representa algo (fenômeno de natureza transferencial), mas apresenta-se como um elemento outro, externo ao mundo interno do paciente, em equivalência ao que Winnicott descreve como um fenômeno da natureza do uso.
Winnicott, em “O uso de um objeto e relacionamento através de identificações” (1968/1975b), argumenta que o fenômeno de comunicação inconsciente da teoria de relações de objeto fornece um modelo de experiência anímica em termos do sujeito individualmente, sem a necessidade de existência de um objeto externo independente, em alguma medida, do sujeito. Já o fenômeno de uso do objeto, diversamente, engloba a experiência de relação objetal acrescida de algo mais. Esse algo mais, complementa o autor, depende diretamente da natureza e do comportamento do objeto, existente por si, não como uma projeção, mas como algo da ordem do real.
Por exemplo, o objeto, se é que tem de ser usado, deve ser necessariamente real, no sentido de fazer parte da realidade compartilhada, e não um feixe de projeções. É isso, penso eu, que contribui para estabelecer a grande diferença existente entre relacionar-se e usar. (pp. 123-124)
A capacidade de usar o objeto, pondera o autor, é uma importante conquista maturacional para o sujeito e requer alguma dose de ajuda por parte do objeto externo, a que Winnicott (1968/1975b, 1956/2007) se refere como ambiente facilitador. Entende que tal fenômeno, transposto para a experiência analítica, posiciona o analista, enquanto vetor terapêutico, como um objeto cuja existência independe, em certa medida, do sujeito. Sua natureza específica, ou seja, sua subjetividade primária, é o que o torna potencialmente capaz de portar, como alimento psíquico ao paciente, o que autor chamou de substância diferente-de-mim. A alteridade do analista, assim posta, precede ao mesmo tempo que convive com e transcende o encontro com a subjetividade do paciente. O paradoxo da existência individual versus a existência dual, e as combinações possíveis dessas duas dimensões, tanto na vida mental primitiva, de forma geral, quanto no processo analítico, Winnicott resume na frase cheia de significados e frequentemente citada: “O bebê cria o objeto, mas o objeto estava ali, à espera de ser criado e de se tornar um objeto catexizado” (1968/1975b, p. 221).
Ogden (1994/1996, 2016a) faz uma leitura original do postulado winnicottiano de que “um bebê é algo que não existe (separado dos cuidados maternos)”: pondera que Winnicott intencionalmente omite da proposição a sua parte contrária e complementar – a de que obviamente mãe e bebê existem como entidades separadas física e psicologicamente, à semelhança, segundo Ogden, do que acontece no vínculo analítico.
“De modo similar, a intersubjetividade do analista-analisando coexiste em tensão dinâmica com o analista e o analisando como indivíduos separados, com seus próprios pensamentos, sentimentos, sensações, realidade corporal, identidade psicológica etc.” (Ogden, 1994/1996, p. 59).
(Intra)Subjetividade primária do analista: atributos fundantes e determinantes
Sob a perspectiva intrassubjetiva, conforme penso, a subjetividade primária do analista é a matriz anímica dos processos de percepção, compreensão e simbolização do analista no encontro analítico. Parto da hipótese de que sua subjetividade idiossincrática coloca-se a serviço de e em contato com o sujeito que é o paciente, ao mesmo tempo que tem e conserva uma natureza que independe do paciente; inscreve-se continuadamente no processo terapêutico, e serve de arrimo qualitativo fundamental para as premissas técnicas analíticas, dando-lhe, em parte, sustentação relativamente neutra, o que chamo de contribuição constitutiva, e, em parte, exercendo um efeito mais específico nos movimentos inconscientes da dupla analítica, instituindo pessoalidade ao processo, ou seja, uma contribuição institutiva. Ao primeiro grupo de fatores pessoais, chamo atributos fundantes da subjetividade do analista, e, ao segundo, atributos determinantes da subjetividade do analista, conforme desenvolvo a seguir (Bizzi, 2015, 2017, 2018a, 2018b, 2023b).
Subjetividade primária fundante
A subjetividade primária do analista, fundante no campo analítico, refere-se a habilidades básicas e imprescindíveis do analista ao labor analítico. Segundo Robert Fliess (1942), o indivíduo que pretende dedicar-se ao exercício da psicanálise necessita certo grau de capacitação psicológica prévio, calcado em sua bagagem pessoal, o que ele denomina aptidão psicanalítica.Winnicott (1956/2007) e Bion (1970/2018) desenvolveram ideias de vanguarda relativas a habilidades pessoais do analista que transcendem os aspectos cognitivos, expressas em conceitos que se tornaram paradigmáticos para a psicanálise, como holding (Winnicott), continência e capacidade negativa (Bion). Segundo Zimerman (2001), merecem entrar para o rol de atributos fundamentais à tarefa analítica os predicados de coragem, paciência, tolerância, intuição e empatia. A sinceridade, enquanto marco do funcionamento mental do analista, corolário da intimidade analítica, foi examinada por Meltzer (1997) e por Levy (2017).
Os naturais recursos cognitivos, emocionais e interacionais, diretamente implicados no processo de aprendizagem, na capacitação técnica e no transcurso da análise pessoal do analista, durante a formação analítica e ao longo de sua trajetória profissional, contribuem com e transformam-se, eles próprios, em atributos analíticos, como capacidade de sintonia, empatia, tolerância, humildade, curiosidade, capacidade de ser genuíno, generosidade, persistência na busca pelas verdades, e respeito à alteridade. Tais fatores, que deitam raízes na dimensão intrapsíquica do analista, pavimentam o vínculo terapêutico de forma relativamente imparcial, como um pano de fundo fundamental ao desenvolvimento do processo analítico, sem determinar uma direção ou contornos qualitativos específicos à interação. Uma vez desenvolvidas, são capacidades que se tornam parte da identidade do analista, espontâneas, deixando de ser silenciosas apenas em situações de crise no setting (Bizzi, 2017, 2018a, 2018b, 2023b).
Subjetividade primária determinante
A subjetividade primária do analista, determinante no campo analítico, conforme proponho, refere-se às configurações primitivas, propriamente ditas, que subjazem ao indivíduo que é o analista. Não se trata de habilidades, mas de marcas registradas, como o são as impressões digitais, únicas de cada pessoa. Tais elementos subjetivos conferem, ao vínculo analítico, certa característica, perfil ou tendência específica. Refiro-me a premissas morais e éticas inconscientes, em íntimo contato com o superego arcaico; configurações defensivas primitivas; moções pulsionais vinculadas à sexualidade infantil. São elementos ou fatores da subjetividade que respondem pela própria essência primitiva da estrutura anímica, e cuja influência nos processos mentais cognitivos e afetivos é tão oculta quanto poderosa. O reconhecimento e manejo técnico de seu efeito sobre a dinâmica analítica, diversamente de uma expectativa idealizada e impraticável de neutralidade absoluta, requer controle e escrutínio continuados, no que dependem essencialmente da análise pessoal, e, de forma complementar, da elaboração ligada ao processo secundário (Bizzi, 2017, 2018a, 2018b, 2023a, 2023b).
Avizinhados ao verdadeiro self (Winnicott, 1960/1990) e salvaguardados pela muralha estruturante do arcabouço defensivo do analista, como de praxe em qualquer indivíduo, esses aspectos de personalidade encerram baixo grau de variabilidade durante o percurso terapêutico, mas são potencialmente suscetíveis a modificações que equivalem ao conceito bioniano de estados emocionais de transformação em O, no polo do analista (Bion, 1970/2018).
Metapsicologia do analista: diferenças fundamentais entre os atributos fundantes e determinantes da subjetividade do analista
O analista, enquanto sujeito pulsional, diferencia-se do paciente em vários aspectos, entre os quais o compromisso inquebrantável de restringir suas funções egoicas à compreensão, em busca de pensabilidade, mantendo outras metas pulsionais em forte sublimação (Bizzi, 2021; Fliess, 1942; Green, 2005b). Seguindo a proposição de Green de que “o próprio investimento pode tornar-se objeto” (1990, p. 73), em sua extrema variabilidade substitutiva na trajetória pulsional, avento a hipótese de que, na disposição mental única, apropriada para receber um paciente em análise, o analista toma por objeto principal de suas pulsões a função compreensiva analítica, e não a pessoa do paciente. A ampliação da tolerância à ausência de satisfação pulsional em suas metas originais é tanto premissa quanto resultado da prática analítica (Freud, 1937/1996a, 1910/1996b, 1912/1996c). O analista utiliza recursos sublimatórios potentes para manter a inibição das metas pulsionais mais primitivas, que insistem na busca de objetos alternativos de satisfação, o que, dito de outra forma, equivale à busca por manter a comunicação com o paciente no nível da linguagem de êxito (consecução), em alternativa à linguagem que é um substituto para, e não um prelúdio, à ação (Bion, 1970/2018). Ancorado nessas capacidades e protegido por esses limites, os quais exercita continuadamente, o analista é capaz de realizar mergulhos profundos em seus recônditos mais primitivos, e de lá emergir, rumo à pensabilidade, ou seja, à integração dos afetos e do conteúdo simbólico na esfera mental, através da função alfa, engendrando pontes possíveis entre mundo consciente e mundo inconsciente.
Penso que, nesse processo, e em conexão com as circunstâncias próprias da interação analítica, o grau de sublimação pulsional do analista está sujeito a micro-oscilações imperceptíveis aos olhos, mas prenhes em efeitos, e tais variações encontram raízes em sua subjetividade primária (Bizzi, 2021). Esse aspecto diferencia claramente os atributos fundantes da subjetividade do analista, cuja transformação sublimatória de meta está firmemente constituída, dos atributos determinantes da subjetividade, cuja sublimação exige maior e continuado esforço. A segunda diferença situa-se no aspecto topográfico do percurso pulsional, na medida em que os fatores fundantes povoam mais livremente o pré-consciente, encontrando, mais facilmente, passagem ao reconhecimento manifesto por parte de ambos os polos da dupla terapêutica, paciente e analista, enquanto os fatores determinantes resistem mais ao reconhecimento consciente, e aproximam-se dos núcleos incognoscíveis e primitivos do analista. O aspecto quantitativo exerce, também, influência reguladora na qualidade que os fatores pessoais do analista adquirem no encontro dual. O excesso de quantum pulsional, dada sua natureza primitiva, pode transformar elementos potencialmente positivos na interação, como empatia e curiosidade, em fatores negativos, quando desmedidos ou em desconexão com as necessidades terapêuticas do paciente. Inversamente, elementos subjetivos conectados a valores e premissas inconscientes absolutamente pessoais do analista, potencialmente antianalíticos, quando reduzidos a quantidades mínimas e sob suficiente escrutínio e controle, subsidiam a cocriação do terceiro analítico, em especial na interação com pacientes de estrutura limítrofe, cujas falhas estruturais e ansiedades confusionais costumam demandar que o analista mobilize recursos próprios de pensamento, de apreciação de valor, de atribuição de significados para que a dupla possa exercitar o pensar, o sentir, o vivenciar (Bizzi, 2021, 2023b). Penso que essa linha de reflexão abre um caminho para ampliar o estudo daquilo que Green (1975/2017) chamou de dimensão indutiva da técnica analítica, fundamental na clínica-limite, em complemento à dimensão dedutiva da psicanálise, relativa às estruturas neuróticas.
(Inter)Subjetividade primária do analista: contratransferência criativa, estrangeira e viciosa
Proponho, a seguir, uma abordagem nosológica da contratransferência que procura estimar o grau de saúde (vitalidade analítica) que a subjetividade primária do analista adquire ao compor o campo intersubjetivo. Os conceitos que desenvolvo, ao mesmo tempo que tomam a contratransferência em sua fundamental característica de corolário da transferência, apresentam a contribuição original de destacar a subjetividade primária do analista como elementos existentes per se, na interação dual, os quais podem se tornar analíticos ou antianalíticos na tessitura do terceiro intersubjetivo. Dessa forma, tento não apenas integrar ao conceito de contratransferência os aspectos de variabilidade e pessoalidade da subjetividade do analista, mas alço-os a um papel fundamental no processo analítico e na aferição da vitalidade do campo transferencial/contratransferencial. O foco de observação dessa abordagem classificatória concentra-se no polo do analista, mais especificamente na relação dialética entre sua vivência analítica intra e intersubjetiva.
Fundamental à construção desse modelo teórico é a premissa de que, como substrato do terceiro analítico intersubjetivo, há um vetor de interferência recíproca ativo no encontro dual, o qual oscila em grau, qualidade, direção e sentido, e que, preponderantemente, situa o analista como receptor da subjetividade do paciente (Bizzi, 2017, 2018a, 2018b, 2021, 2023b). Penso que a situação analítica fornece sinais observáveis, indicativos da influência equilibrada e útil da subjetividade do analista, versus sua inadequação (excessos, ausências, distorções ou desconexões), não apenas no momento a momento, mas, principalmente, no decurso de um prazo maior, semanas ou meses.
A contratransferência criativa e a estrangeira apontam para um percurso produtivo da subjetividade primária do analista no encontro dual, enquanto a contratransferência viciosa aponta para um adoecimento analítico (Bizzi, 2017, 2018a, 2018b, 2021, 2023b).
Contratransferência criativa
A eleição da palavra criativa, na elaboração desse conceito, justifica-se por seu sentido de indicar um processo imaginativo vivo, permeável a novos elementos, gerador de elementos alfa, conforme Bion (1963/1991), que constituem matéria-prima de novas sínteses psíquicas, sejam elas da ordem das representações, dos afetos ou da experiência sensorial. Na contratrans-ferência criativa, o aparato mental do analista está insaturado e responsivo à gama de comunicações do paciente, verbal e não verbal. A interação entre os polos subjetivos do analista e do paciente corre livremente, mesmo que não necessariamente de forma fácil. O gradiente ou vetor de interferência recíproca subjacente à comunicação da dupla apresenta micro-oscilações, e, de forma ampla, desenvolve um fluxo que vai, primária e principalmente, do paciente em direção ao analista. Esse último emprega, inconscientemente, sua subjetividade, seus parâmetros internos de afeto, experiências e valores pessoais, na escuta que desenvolve, sem que esses aspectos estabeleçam direções específicas à comunicação. Quando, diferentemente, os parâmetros pessoais do analista são sutilmente impostos no campo analítico, está em andamento uma distorção dos objetivos terapêuticos, o que equivale a dizer que a comunicação inconsciente da dupla, via identificação projetiva,4 inverteu seu fluxo, e o analista passa, de maneira inadvertida, de uma posição predominantemente introjetiva para projetiva. Cabe mencionar que, em situações analíticas regressivas ou limítrofes, o analista é particularmente requisitado a fornecer modelos simbólicos, metáforas ou reveries de cunho original no campo, em profunda sintonia com a ansiedade e o material inconsciente não significados do paciente, o que constitui um bom exemplo do emprego analítico da subjetividade primária do analista.
Como a subjetividade primária do analista, vinculada à sua estrutura caracterológica, no que se incluem valores, afetos e atividade judicante inconsciente, é fundamentalmente inacessível ao processo secundário do analista, e apenas superficialmente acessível à auto-observação consciente, penso que a aferição de seu emprego criativo, na trajetória analítica, pode ser complementada pela observação dos seguintes sinais: o analista ciclicamente perde e reencontra sua capacidade de simbolização; novas configurações relacionais estabelecem-se no decorrer do tempo; um sentimento de confiança tende a pavimentar o trabalho analítico, mesmo em fases difíceis.
Embora os itens arrolados, em conjunto, descrevam o bom andamento de qualquer tratamento analítico, vinculados à capacidade do analista em sua função compreensiva, continente e interpretativa, busco ressaltar que tal fenômeno não pode ocorrer sem um emprego criativo da própria subjetividade primária, então arregimentada em um formato insaturado, prenhe em novas sínteses e sensível ao enredo inconsciente que o paciente porta.
Contratransferência estrangeira
A contratransferência estrangeira é um fenômeno aparentemente disruptivo, mas fundamental. O termo estrangeira alude a algo que originalmente pertence ao paciente, e que se impõe ao campo e à mente do analista. Toda uma gama de percepções, reações e sentimentos acedem ao analista no exercício da função terapêutica, incluindo o desafio de manter a capacidade simbólica e continente. É natural que o vínculo transferencial/contratransferencial reproduza aspectos do funcionamento intrapsíquico e interpessoal próprios do paciente, de forma que a dupla analítica adoeça da doença do paciente. Os mecanismos defensivos basais do analisando, sejam eles narcísicos, fóbicos, obsessivos, histéricos ou perversos, por identificação projetiva instalam-se no campo analítico e envolvem a comunicação da dupla analítica. Assim, são inevitáveis as circunstâncias em que o analista, identificado com aspectos do paciente, ou com seus objetos internos, e por eles controlado, perde a capacidade analítica, como descreve Grinberg (1962) com o conceito de contraidentificação projetiva. Esse fenômeno, porém, na contratransferência estrangeira é temporário, e o vetor de interferência recíproca subjacente aponta, saudavelmente, do paciente para o analista. Esse último, habitualmente, sente grande desconforto até poder compreender o que se passa. Penso que os seguintes sinais apontam para esse tipo de contratransferência: o analista sente-se paralisado, confuso, incapaz ou ansioso por determinado período; o analista perde sua capacidade para simbolizar por determinado período; as sessões são repetitivas; grande tensão subjaz ao trabalho analítico.
Contratransferência viciosa
Na contratransferência viciosa, a comunicação que se dá entre analista e paciente, mesmo que aparentemente transcorra bem, recebe, sub-repticiamente, excessiva carga pessoal por parte do analista. Sua personalidade, história pessoal, crenças, preferências ou teorias estão sendo impostas, de maneira inconsciente, ao paciente, e determinando os caminhos na interação da díade, nos assuntos a serem abordados, ou impondo uma atmosfera afetiva específica. A comunicação inconsciente da dupla, via identificação projetiva, sofre uma inversão da polaridade desejável, e o analista não consegue manter a posição habitual analítica, predominantemente introjetiva. As circunstâncias descritas, quando compreendidas pelo analista, agregam profundidade e consistência ao processo analítico. Quando prolongadas, e largamente insuspeitas, são em si um acting out no processo analítico, uma expressão em ato, no campo transferencial/contratransferencial, de aspectos da subjetividade primária do analista que evitam a esfera mental. Esse fenômeno, pouco incomum, não é facilmente identificável. Refere-se a conluios inconscientes de natureza narcísica, fóbica ou perversa que se estabelecem na situação analítica, de forma que paciente e analista podem permanecer prolongados períodos lidando com um vetor de interferência recíproca cujo fluxo aponta do analista para o paciente. Configura um baluarte, conforme descrito pelo casal Baranger (1961-1962), que, insuspeito, permanece inabalável e fortalecido no transcurso do processo, organizando-se no campo. Penso que os seguintes sinais ao longo do tempo apontam para esse fenômeno: o analista perde sua capacidade de simbolização por prolongado período; as sessões tendem a ser repetitivas; desconexão aparece no setting, através de percepção consciente, associações ou flagrantes acting out, dentro ou fora das sessões.
Conclusão
A matriz subjetiva do analista, fonte das essenciais sensibilidade, empatia e capacidade simbólica na situação analítica, é também fonte inextrincável de inconvenientes resistências, inclinações e parcialidades inconscientes. Longe de ficarem alijados do encontro analítico, a totalidade desses fatores exerce pressões e demanda esforços em diversas frentes, no sentido de compreensão e elaboração interna do analista. O conceito de subjetividade primária do analista destaca a presença dessas forças pujantes no encontro dual e busca dar-lhes conceitualização analítica, examinando-as sob a vertente intrassubjetiva (metapsicologia unipessoal do analista) e intersubjetiva (contratransferência criativa, estrangeira e viciosa). Recebe destaque e exame, neste trabalho, o caráter antianalítico que, inadvertidamente, a subjetividade primária do analista pode adquirir na tessitura do terceiro analítico intersubjetivo, assunto que requer continuado estudo.