Receber o convite para resenhar esta obra foi um presente inestimável, pelo qual agradeço imensamente. O encantamento é despertado desde a apresentação, em que Walter Trinca discorre sobre os elementos essenciais de seu Modelo Geral de organização do pensamento clínico. A seção antecipa com clareza ímpar o que será esmiuçado no decorrer dos capítulos.
A primeira parte do livro, intitulada “Características de um modelo”, é composta por 12 capítulos dedicados ao aprofundamento das características do modelo, explanando suas relações com as perturbações psíquicas. A leitura é fluida, e os excertos clínicos utilizados favorecem a compreensão dos pormenores teóricos.
No capítulo 1, Walter Trinca relata ter verificado que as fobias e o pânico estão “no centro da magna questão das perturbações psíquicas, tomadas como um todo” (p. 17), premissa que constitui a pedra angular do desenvolvimento do modelo. Uma explicação detalhada e muito clara dos conceitos centrais é oferecida, antecipando e esclarecendo questões que possam surgir na mente do leitor.
O autor elucida que o processo patológico das fobias e do pânico acontece ao longo de um contínuo, com variáveis que determinam diferentes perturbações, a depender do grau de afastamento de contato da pessoa com seu ser interior. Do distanciamento advém a fragilidade do self, que contempla diversos graus entre o enfraquecimento e o esvaziamento, relacionando-se com a angústia de dissipação do self. O capítulo 4, de Elisa M. B. Villela, aborda essa questão e abarca a classificação didática fornecida por Trinca no livro Psicanálise compreensiva: uma concepção de conjunto, apresentando também um caso clínico.
O aspecto central da problemática psíquica é pautado em uma distinção básica entre ser interior e self, a partir do que é possível inferir acerca da influência do primeiro sobre o segundo e, assim, identificar o grau de contato entre ambos. Nas palavras de Walter Trinca:
O ser interior tem a ver com a verdade e a realidade daquilo que a pessoa essencialmente é. Trata-se de um núcleo central, definido por características de unidade, autonomia, estabilidade, continuidade de existência e relativa invariância, cuja natureza é fundamentalmente não sensorial. O self, por sua vez, é uma forma de organização globalizante, cujos precipitados e produtos são relativamente variáveis, embora tenham a ver com a manutenção concreta da existência da pessoa. (pp. 10-11)
A explanação detalhada dessas instâncias é fornecida no segundo capítulo do livro. Já o aprofundamento sobre a importância do contato da pessoa com o ser interior e seus reflexos sobre o self é desenvolvido no capítulo 3, de autoria de Cristina M. F. M. Prestes, Elisa M. B. Villela e Maria Izilda S. Martão, no qual as autoras também ilustram a concepção teórica com material clínico.
Walter Trinca argumenta que diversos fatores podem potencializar o distanciamento de contato, mas afirma que o mais proeminente é a atuação da pulsão de morte, da qual deriva a constelação do inimigo interno, que contempla o “antagonismo a tudo o que é existente, vivo e real” (p. 22), visando à destruição dos vínculos da pessoa consigo mesma e com a realidade. O capítulo 9, de Maria Letícia Wierman, trata das implicações da pulsão de morte. A autora recorre a Freud como ponto de partida para a explanação desse impulso destrutivo e retoma elaborações de Winnicott, Green, Klein e Bion, até chegar às ideias de Walter Trinca. Um elemento essencial abordado é a importância de nomear o inimigo interno para poder enfrentá-lo. São apresentadas as manifestações da constelação em diferentes estágios das perturbações psíquicas.
Embora existam na vida mental defesas contra esses ataques, caso a pessoa não consiga alcançar o restabelecimento do equilíbrio, poderá utilizar-se da sensorialidade para tentar afastar ou suprimir a angústia de dissipação do self. Trinca apresenta, então, quatro tipos de sensorialidade: básica e intensificada; de preenchimento substitutivo; produzida pelos ataques dos objetos; e produzida por corte e exclusão. Discorre sobre as principais perturbações advindas do recurso a cada uma delas.
A sensorialidade básica e intensificada é abordada por Denir C. Freitas no capítulo 5, em que somos advertidos de que a acepção de sensorialidade não se reduz aos estímulos provenientes dos órgãos dos sentidos, mas se liga a pulsões, fantasias inconscientes e outros aspectos, explicitando o caráter determinante que isso assume nas relações do self com as demais instâncias psíquicas, o mundo externo, o organismo, os objetos internos e para as variadas atividades mentais. A autora aborda alguns exemplos de sensorialidade básica e intensificada: rivalidade, ciúme, inveja etc., procurando detalhá-los.
A sensorialidade de preenchimento substitutivo é esmiuçada por Cristina M. F. M. Prestes no capítulo 6. Segundo a autora, “quando alguém não está suficientemente ancorado em seu ser profundo, pode se apegar àquilo que o ajude a afastar angústias de fragilidade e de desamparo” (p. 72) e, assim, elementos e produtos variados (drogadição, destrutividade antissocial, compulsões diversas) se instalam, formando um self com funções vicariantes. Casos clínicos ilustram pessoas aprisionadas nesse tipo de sensorialidade.
O capítulo 7, de Walter Trinca, é destinado à sensorialidade produzida pelos ataques dos objetos, caracterizada pela “procura interna de objetos que ofereçam proteção, compreensão e afeto, quando a pessoa está em posição de fragilidade e angústia” (p. 79). Retomando os conceitos kleinianos de objeto bom e objeto mau, o autor observa que, embora a pessoa regresse ao bom objeto para se refugiar, inevitavelmente se defronta com a parte hostil dele. Assim, em vez de acolhimento e proteção, resulta um sentimento de rejeição por parte dos objetos, o que promove desespero, desesperança, e intensifica o estado de solidão. As perturbações comuns nesses casos são depressão, distimia e explosividade. O antídoto ao sofrimento reside no retorno do contato genuíno com o ser interior.
O capítulo 8 é dedicado à sensorialidade produzida por corte e exclusão. Maria Izilda S. Martão explicita que, na tentativa de evitar ou suprimir as angústias, a pessoa elimina frustrações, sofrimentos, pensamentos e emoções, o que dificulta assumir uma atitude ativa e criativa perante os desafios da vida. É proeminente o uso de mecanismos de defesa primitivos. Entre as manifestações encontram-se negação de desejos, supressão de emoções, estados paranoides, bipolaridade e esquizofrenia. O capítulo apresenta um caso clínico, com proposta de trabalho centrada na promoção de contato mais efetivo do paciente consigo mesmo.
No capítulo 10, Ana Maria T. Trinca discorre sobre outras influências na aproximação ou distanciamento entre ser interior e self: as relações com o ambiente e com os processos de desenvolvimento. A autora discorre sobre a importância das relações entre mãe e filho nos processos psíquicos iniciais e no desenvolvimento, incluindo as conexões com a família e a sociedade.
No capítulo 11, Walter Trinca retoma o ponto de partida do modelo compreensivo e seus pilares, buscando “englobar e compreender a pessoa em sua totalidade” (p. 124). Essa retomada funciona como um arremate para os tópicos aprofundados nos capítulos precedentes, cerzindo perfeitamente os componentes perscrutados pelos demais autores. Ele esclarece que não se trata de mais uma teoria psicológica, mas de um sistema que reúne diferentes teorias, localiza e opera fatores básicos e determinantes das perturbações psíquicas, ressaltando ainda que o modelo não corresponde apenas às perturbações psíquicas, mas engloba os fatores favoráveis ao desenvolvimento, à vida e ao contato com o ser interior.
É também sobre tais aspectos que, no capítulo 12, Walter J. M. Migliorini se debruça ao abordar a interioridade do psicoterapeuta no atendimento clínico. O autor explicita que um contato profundo com o ser interior propicia acesso a fenômenos não sensoriais, como radiância, presença vicejante da vida e harmonia silenciosa, os quais ocasionam experiências que, no trabalho clínico, têm importante papel, favorecendo que o psicoterapeuta acesse a luz interior, “uma imensa fonte de energia a serviço da pulsão de vida” (p. 139).
A segunda parte do livro é composta por quatro capítulos. Intitulada “Conexões e implicações”, é introduzida por um texto de Walter Trinca que relata a aplicação e avaliação do Procedimento de Desenhos-Estórias em um caso de sensorialidade produzida por corte e exclusão. A riqueza das descrições, excepcionalmente elucidativas do Modelo Geral, faz o leitor se sentir testemunha do desabrochar do ser interior.
No capítulo seguinte, Adriana M. N. Oliveira realiza uma incursão nas aproximações da psicanálise com a estética (aesthesis). Perpassa autores como Freud, Klein, Winnicott, Bion e Meltzer, abordando os elementos estéticos que derivam das experiências emocionais e podem auxiliar nas intervenções clínicas, inclusive no alcance de estados primitivos da mente, uma vez que o contato com o objeto estético promove um resgate das teorias fundamentais e embasa a dinâmica clínica também na forma de pensar os casos e desenvolver as interpretações. A autora apresenta vinhetas clínicas e as discute.
No capítulo 15, Tania M. J. Aiello Vaisberg e Sueli R. Gallo-Belluzzo abordam a capacidade de holding e de consciência crítico-social, as quais favorecem a constituição de um ambiente terapêutico suficientemente bom quando acrescidas ao conhecimento teórico-clínico. A relação vincular profissional-paciente para o alcance da transformação da experiência vivida é destacada. Para isso, é de extrema relevância que o psicoterapeuta nunca reduza o acontecer humano à interioridade psíquica, tendo em mente os contextos macrossociais em que este se situa, levando em conta elementos como racismo estrutural e discriminação de gênero. As autoras ressaltam o processo de amadurecimento emocional do psicoterapeuta, que em si mesmo não se encontra em uma condição invulnerável ao sofrimento. Nesse sentido, vale sempre lembrar a importância da análise pessoal daquele que deseja atuar como psicólogo clínico.
No capítulo 16, Éric Hamraoui, a partir da confluência dos campos filosófico, psicanalítico e estético, discorre sobre a busca de si mesmo, na concepção do conceito de ser interior. Segundo o autor, esse conceito “associa o sentido da noção metafísica de essência com aquele, psicológico, de interioridade” (p. 178). Durante a leitura, ocorreu-me uma analogia: a de ser interior com o bóson de Higgs, também conhecido como “partícula de Deus”. A despeito dos meus parcos conhecimentos em física e de antemão desculpando-me por algum equívoco conceitual na referida área, para efeito de metáfora com o assunto psicanalítico em questão, considerei a comparação viável.
Segundo informações do portal Brasil Escola, fornecidas pelo professor Rafael Helerbrock (s.d.), o bóson de Higgs é uma das partículas elementares da física. Ele cria um campo que permeia todo o espaço e, a despeito de ele próprio não possuir massa, é o responsável por atribuir massa a outras partículas, como os quarks e os elétrons. O bóson de Higgs tem uma relevância ímpar para o entendimento da matéria e do próprio Universo, e a comprovação de sua existência mudou a forma como os físicos compreendiam o modelo-padrão da física de partículas e forneceu subsídios para que eles explicassem o funcionamento de duas forças fundamentais da natureza – a força fraca e a força eletromagnética. Acredita-se que os bósons de Higgs sejam a chave para explicar a expansão do Universo.
Para ilustrar a analogia que proponho, transcrevo alguns excertos do capítulo. Referindo-se ao ser interior, o autor diz:
Não se trata de uma estrutura, mas, sim, de um ponto central de relações, ligações, experiências e laços profundos. Ele não é algo simplesmente potencial, mas antes um movimento efetivo de vida. ... O núcleo de existência é uma noção que ultrapassa a concepção dos objetos de conhecimento da ciência clássica. ... Abriga uma porção da vida, tal como ela aparece em seu estado puro e original. ... O ser interior é . um centro de onde emanam e convergem os aspectos fundamentais da pessoa, assegurando a integridade e a indivisibilidade deste ser, assim como a continuidade da sua existência. ... Ele é o “ser profundo subsistente em cada um de nós”, nossa “forma original e prototípica”, a saber, a “raiz essencial ligada à mais remota ancestralidade das origens das formações fundadoras do psiquismo”. (pp. 179-180)
As considerações finais do livro ficaram a cargo de Doris L. N. Peçanha, que retoma conceituações, reflexões e discussões acerca da psicanálise compreensiva. Ela destaca que esta “é ciência, tal qual a concebemos em seus fundamentos qualitativos, mas também é arte, pois requer a apreensão intuitiva, a estética e a ‘mobilidade psíquica’” (p. 202), reiterando o trunfo de que se trata de uma psicanálise que inclui os aspectos sadios da personalidade, para além dos muito estudados estados psicopatológicos.
Nas conclusões gerais, Walter Trinca alinhava os conceitos explorados ao longo de todo o livro, e a impressão do leitor é de que, após esse percurso, a compreensão da vida mental e as direções para a construção refinada do pensamento clínico em psicoterapia tornam-se muito mais claras. Algo importante explicitado nesse trecho é o fato comum de que, ao não distinguir ser interior e self, os autores em filosofia, literatura e psicologia oferecem uma visão do ser humano um tanto enviesada, “concentrada exclusivamente no self variável, inconstante e problemático” (p. 226). Ao transcender os limites dessa visão estreita, resta-nos a sensação de que o autor apresenta uma perspectiva de esperança e sistematiza um pensamento original, capaz de reposicionar a psicanálise contemporânea.
O livro conta ainda com um adendo do autor, que apresenta uma tipologia com 15 formas de pensamento em psicoterapia, as quais ocorrem quando o psicoterapeuta necessita compreender os pontos nodais de angústia dos pacientes no curso do processo psicoterapêutico.
Considerando-se que o livro apresenta o objetivo de “indicar e oferecer condições operativas aos fatores que sustentam a organização de pensamentos clínicos estruturalmente significativos”, estabelecendo “critérios para a organização dos dados na mente do profissional” (p. 14), pode-se dizer que o Modelo Geral se revela uma verdadeira bússola, conferindo segurança e facilitando as incursões nas imbricadas veredas do psiquismo. A própria experiência clínica se transforma sobremaneira e, como testemunho pessoal, afirmo que a frase que mais ouvi de meus próprios pacientes desde que incorporei o Modelo Geral e a psicanálise compreensiva aos atendimentos foi: “Faz muito sentido” Considero, sem dúvida, que esta obra deveria se tornar o livro de cabeceira dos psicólogos e psicoterapeutas.