Em O ano em que me tornei psicanalista, o autor Tiago Mussi apresenta um pungente relato das diferentes fases de seu processo de formação psicanalítica, com ênfase no atendimento de seu primeiro caso oficial de supervisão. Mas esta meia dúzia de palavras não recobre nem um décimo do que Tiago mostra em quase 150 páginas repletas de um fino domínio da escrita, que nos levam a refletir muito mais além dos critérios que um psicanalista precisa atender para vir-a-ser.
No prefácio do escritor e jornalista José Castello já temos um vislumbre do que Tiago compartilhará conosco: “Desafiando as regras canónicas de neutralidade e apagamento, em seu livro, Tiago, ao contrário, se desnuda” (p. 7). Apesar do aviso, só entendemos sua profundidade ao acompanharmos Tiago retirando camada a camada daquilo que a princípio pode parecer fazer parte de uma exigência rota e puída de uma formação antiquada, mas que revela progressivamente seu valor conforme o seguimos.
A apresentação do psicanalista Admar Horn aponta outro viés do caleidoscópio que Tiago nos proporciona: “Antes de mais nada é para nós mesmos que escrevemos, testemunhando as lutas que travamos para resolver as dificuldades do encontro analítico” (p. 10). Qualquer encontro provoca turbulências – certamente com o outro, mas sobretudo com nós mesmos. É dessas turbulências que Tiago nos fala. Seu processo de escrita desvela para nós um psicanalista sensível e culto, que se debate com as agruras do encontro analítico com uma paciente particularmente desafiadora.
O que faz de alguém um psicanalista? Uma formação pode se considerar concluída? Quando alguém é autorizado a psicanalisar outrem? Quando alguém pode se autointitular psicanalista? Tais perguntas nos acompanham ao longo das reflexões de Tiago e nos revelam que, para cada resposta objetiva que possam ter, há outras muito menos óbvias e mais complexas, que apontam invariavelmente para dentro, para o encontro com desejos e angústias, com defesas e resistências das mais recalcitrantes e encruadas. Há um horizonte que nos diz que é do tempo que se trata. Tempo e trabalho.
Desde Freud, defende-se a ideia de que há um tripé sobre o qual a formação psicanalítica se sustenta: é necessário um estudo teórico consolidado, que permita o domínio dos conceitos, bem como a delimitação e a expansão do saber psicanalítico; é necessária a prática clínica supervisionada, para que se possa exercer a técnica psicanalítica num encontro em que se procura compreender, com a ajuda de outros que já trilham o caminho há algum tempo, quais funções se exercem numa sessão de análise; e também é necessária uma extensa análise pessoal – intensa, de alta frequência, longa e cara, sobretudo psiquicamente –, buscando nos familiarizar com a alteridade que mora dentro de nós, aceitando a compreensão de que somos cegos a certos aspectos de nós mesmos, e tolerando o desconhecido de ser quem se é.
É tangenciando esse tripé que Tiago divide seu livro em cinco partes: o método, as entrevistas preliminares, a análise, a supervisão e a escrita. Nelas, somos apresentados à sra. M.Q., sua primeira paciente oficial; a Fernando Rocha, seu analista; a Teresa Rocha, sua supervisora – mas, sobretudo, ao próprio Tiago, que nos fala sobre seu processo de tornar-se analista, desde suas reminiscências de infância, a respeito de sua família, passando por suas experiências profissionais como médico e professor aqui e além-mar, até sua entrada na formação oferecida pela Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro e os desdobramentos dela.
O fio condutor de sua autonarrativa confessional segue à procura – que nunca acaba, como já adianta na primeira página – daquilo que nos permite dizer para nós mesmos que somos, enfim, psicanalistas. Para além das recomendações e exigências standard da Associação Psicanalítica Internacional (ipa), Tiago apresenta os meandros desse ofício tão singular, que não segue um protocolo mecânico e restritivo, apesar de por vezes parecer. E, na medida em que o faz, conhecemos as dúvidas e inseguranças de alguém que se inquieta.
Num manancial de referências à literatura, às artes plásticas e à música, com citações que passeiam confortavelmente de Shakespeare a Masoch, de Dostoiévski a Eça de Queirós, de Romain Gary a Francis Bacon, Tiago configura sua tentativa de transformar em linguagem-imagem os meandros de sua intimidade, de modo que nos sentimos meio voyeurs, meio testemunhas daquilo que o fez se tornar ele mesmo. No entanto, longe de serem referências ostentosas que poderiam nos distanciar, sua linguagem leve e convidativa faz com que o clima da leitura seja o de um bom amigo contando uma história.
Justamente por isso, algumas passagens têm uma crueza dura que desconcerta quem conhece minimamente Tiago. Quando narra o abandono de seu pai para a consolidação de uma outra família, o modo como ele, a mãe e a irmã precisaram se haver com tal desvanecimento, e como se conforma a identificação com e a transferência para a figura de seu analista Fernando, sentimos a mágoa que ali reside como rocha e podemos acompanhá-lo transformando-a. Ou quando descreve seus desejos eróticos a respeito de sua paciente e o que isso revela de sua vida pessoal, íntima e erógena.
Além da própria análise, Tiago fala de sua supervisão através das palavras recuperadas de sua supervisora: “Na supervisão nós dois podemos pensar, sonhar juntos, não ficarmos presos, enredados nessas tramas, ou seja, podemos desatar alguns nós que estão tirando sua liberdade de interpretação, de atuação como analista” (p. 94). Tal encontro mostra como a prática clínica supervisionada, na medida do possível, não é diretiva nem ortopédica ou censuradora. No processo de se tornar pessoa-analista, contamos com a presença de muitos – não é um percurso que se faz sozinho. A qualidade do encontro entre Tiago e Teresa só confirma que, mais importante que a jornada ou o destino, é fundamental a boa companhia. Uma companhia que ajuda a dar forma a conteúdos ainda indistintos, que ajuda mais a colocar questões que fazem pensar do que a respondê-las.
Mas é M.Q. a personagem que nos inquieta em todas as suas aparições e à qual Tiago dedica seus esforços hipotético-interpretativos. Provocativa e instigante, Madame nos faz sentir. Desde os relatos das sessões, passando pelas tentativas de compreensão teórica da psicodinâmica de sua paciente, até as atuações nas relações transferencial e contratransferencial, o autor transborda ao tentar capturá-la. O modo como Tiago descreve as sessões e o que acontece entre uma e outra nos faz pensar no que um paciente leva de nós quando sai do consultório e no que ele deixa conosco.
Podemos pensar num psicanalista como um ser humano que desenvolveu sensibilidade ao seu próprio inconsciente e ao inconsciente do outro. Tal sensibilidade não pode ser aprendida nem ensinada, mas se transmite na medida em que a cultivamos em nosso percurso formativo. Conforme o fazemos, somos confrontados pelas experiências sem nome desde o nascimento, do crescimento, da realização, das renúncias, dos lutos, do envelhecimento, da morte. Não por acaso, a última parte do livro de Tiago aborda a atividade de escrita e como, ao narrar-se a si mesmo, o autor desvela partes que nem ele mesmo sabia conhecer:
Escrevemos muito mais para vir a conhecer algo do que por saber a priori de alguma pretensa verdade. Somente quando terminamos um livro é que podemos vir a desvelar o que até então havia ficado encoberto na escrita, ainda que algo permaneça obscuro para sempre. (p. 134)
Nessa seara, Tiago nos deixa entrar na intimidade de seu divã – seja como profissional, seja como analisando, seja como supervisionando. No fim das contas, Tiago e Madame são duas partes de um mesmo todo que não se faz pela soma, mas pela sobreposição em múltiplas camadas, que podem ser fragmentos – mas nem sempre – e que podem ser territórios que se inter-relacionam, com suas fronteiras e leis locais. E, no que olhamos para Tiago e seus pedaços, também olhamos para nós mesmos e para nossas escolhas. O ano em que me tornei psicanalista nos convida a olhar para o estranho, o obscuro, o desconhecido – essa inapreensível alteridade em nós -, que nos amarra e retorce. Mas não seria esta a proposta da própria psicanálise?
Como uma boa obra literária, as últimas páginas reservam não um desfecho surpreendente, mas uma história de origem que pode mudar tudo ou não implicar nada – cabe ao leitor tirar suas conclusões. Ao sermos convidados a entrar num processo que geralmente se realiza sob a proteção do sigilo, podemos acompanhar as cenas do tratamento, da supervisão e da análise como testemunhas da sensibilidade e dos desafios enfrentados por Tiago Mussi – que, em última medida, transcendem os pormenores da formação psicanalítica e nos falam muito mais das agruras e belezas da condição humana nesse processo constante e inacabável de vir-a-ser.