Nunca o meu coração bateu por um homem como naquele memorável dia enquanto eu subia a Berggasse.2 Essa rua de Viena era assim tão íngreme? Ou será que eu a via assim porque finalmente veria o meu Deus, que, por algum milagre, havia se tornado acessível?
Eu estava saindo da adolescência sem arrependimento. Vocês conhecem esse momento ridículo em que se está pronto para devorar o mundo, em que se correm riscos para esconder a timidez, em que se é desconcertante por falta de preparo, em que a conduta altiva e a força negam a própria vulnerabilidade, em que o ceticismo é usado para mascarar a ingenuidade. Ter 22 anos é uma doença terrível que só o tempo pode curar.
Esqueci o rosto da pessoa que abriu a porta para mim. Não lembro como fui parar naquela sala de espera burguesa, mobiliada de maneira convencional, com as suas poltronas vermelhas, os seus diplomas de membro honorário enquadrados, pendurados em paredes banais, e a gravura de uma mulher nua que poderia parecer menos convencional, mas que era ainda mais convencional, talvez, porque a reconheci como uma dessas diversas cópias francesas destinadas a dar alguns arrepios de imoralidade à classe convencional. Tive dificuldade para me recompor após a surpresa.
Mas assim que a porta do consultório se abriu, foi uma imagem de tal beleza que me pegou de surpresa. Havia uma longa galeria de imagens pagãs em terracota e em bronze. A jovem estudante curiosa que eu era ficou paralisada diante dessas deusas e sátiros. Nem em Paris, nem em Cambridge tinha encontrado um professor que possuísse tais obras de arte, ou mesmo a máscara fascinante de Dante. Acima do divã, havia uma fotografia que Charcot tinha dedicado a Freud.
Foi muito mais tarde que captei realmente o simbolismo da casa de Freud. Não era a psicanálise uma mistura de noções do século 19 decadente e de liberdades inteiramente novas? A psicanálise não encarnaria uma linhagem de antepassados e descendentes na substância limitada de um homem vivo? Não era Freud o último dos mecanicistas com um pé no limiar da força cósmica? A sua tragédia foi hesitar no limiar, como eu hesitava naquele momento, antes de entrar no Santíssimo Lugar.3
Eu me preocupava com detalhes estúpidos. Num dos ensaios de Freud, eu havia lido que deveria fechar a porta atrás de mim. Não o fazer significava desprezo inconsciente pelo mestre. Mas o mestre, muito cortês, deixou-me entrar primeiro. Não havia porta para que eu fechasse. Nada estava acontecendo como o imaginado. Eu me sentia perdida, estúpida. Nenhum som saiu da minha boca.
Eu tinha percorrido 1500 quilômetros para chegar à Berggasse, deitar-me e nada dizer! Ele esperando. É o costume. A nossa primeira relação é um silêncio. É errado dizer que a análise é uma ação por meio de palavras. É o silêncio que carrega o peso de todas as lembranças sem evocar nenhuma em particular: silêncio que mede todas as possibilidades sem abordar nenhuma delas; silêncio que une analista e analisando como cúmplices; silêncio que enche a sala de vozes estranhas. O silêncio? Parece ter um caráter impossível e do desconhecido.
Não, nada acontece como previsto. Eu tinha imaginado Freud como um grande e imponente herói. Mas como? É mesmo Freud, este homem idoso, barbudo, usando óculos? Teria reparado nele no meio de uma multidão? Ele parece ter um temperamento impossível e um monte de manias.
Sim, é Freud; essa nobre fronte que parece infinita. Os seus olhos profundos e brilhantes penetram para além da nossa carne mortal. Deles emana uma força que se espalha sobre mim como um orvalho sagrado. Uma irradiação à qual é impossível resistir sem desmentir esse algo em mim que bate profundamente. O seu olhar repousava em todos os níveis, penetrava todas as sutilezas.
A delicadeza de Freud fascinava-me tanto quanto a sua força oculta. A forma dos seus lábios finos, o seu queixo ascético, os gestos contidos, tudo revelava as suas finas nuances ao abordar pessoas, a sua compreensão, que irrompe de repente nos sofrimentos e nas mentiras dos outros.
“Bem, o que pensa de mim?”, disse ele (a sua voz forte e rouca me fez estremecer).
A essa altura, eu não sabia que se tratava de uma observação clássica de um analista que quer aprofundar a transferência. Como ele adivinhou que eu estava tentando medir o seu jeito? Ele estava roubando os meus pensamentos. Ele estava partindo o meu coração. Eu me sentia ungemütlich,4 como uma criança que ainda acredita em bruxas. Sim, o seu tom era rude. A ironia subjacente às palavras transpirava. Ou era eu que estaria projetando essa ironia? Mas Freud era rude. Sim, essa visão dura, amarga, misantropa, pessimista, no mais alto grau, era o trabalho de Freud. Não tinha nada a ver comigo.
Então, por que havia tanta bondade nos seus olhos? A sua causticidade era um mecanismo de defesa? Claro, ele era um lutador. Tinha de sê-lo. Se não o fosse, de que outra forma ele poderia impor a sua teoria da libido aos seus colegas puritanos? Se ao menos eu pudesse abrir essa armadura superficial, então essa gentileza, essa imensa generosidade, passaria de coração para coração. Vocês sabem, por exemplo, que ele pedira ao seu editor que entregasse aos seus alunos o dinheiro que lhe era devido, para que pudessem imprimir as próprias teses?
De repente, com o faro de um animal jovem que já sentiu a presença do amigo ou do inimigo, percebi que o homem sentado na sua cadeira de professor era do tipo chamado bourru bienfaisant5 na França. Sempre me senti à vontade com os bourrus bienfaisants. A força deles me era familiar, assim como os seus pontos fracos sob as suas armaduras. O contato foi imediato.
Com a sua voz rouca, ele murmurou algo como: “A senhorita tem muitos diplomas para a sua idade”. Estaria ele prestes a abordar o tema da inveja do pênis? Ele não o fez. Talvez eu tenha esquecido de mencionar que os seus olhos estavam excepcionalmente bons nesse dia?
De repente, lembrei-me de que Freud, aos 17 anos, ouviu a “Ode à natureza”, de Goethe, e escolheu a medicina em vez do direito. O que lhe interessava, afinal, era desvendar Ísis mais do que curar o doente. Admirei o seu estilo literário talvez mais do que as suas descobertas científicas. Chego ao ponto de pensar que algo soa mal quando as ideias são expressas de forma desajeitada. A única honra que a Alemanha concedeu a Freud não teve nada a ver com o seu trabalho clínico. Foi-lhe atribuído o Prêmio Goethe de Literatura. Finalmente, lembrei-me de que ele tinha dito uma vez: “Na França, o interesse pela psicanálise começa nos círculos literários”. Então fiz brincadeira com os meus diplomas, como se fossem apenas pó e devessem voltar ao pó. Expliquei, corando (as meninas sem inveja do pênis devem corar), que tinha publicado uma coletânea de versos, um romance e um manifesto surrealista. Poderia então esperar ser analisada por ele?
Ele sorriu gentilmente. Será que eu lhe faria a gentileza de trazer os meus escritos? “O que sai da imaginação de um poeta é mais importante do que os seus sonhos”, disse. O meu analista anterior não tinha mostrado o mínimo interesse pelas minhas obras literárias. Ele não tinha tempo para ler ficção. Freud tinha.
Então expressei o meu entusiasmo e admiração pela universalidade da sua cultura. Ela era muito extensa, de fato. Ele tinha negligenciado apenas um aspecto: a música, o que era surpreendente para um vienense. Deve ter havido um motivo extremamente forte para rejeitar essa parte importante da sua cultura. Veremos mais tarde que esse fato está ligado à relação com a sua mãe.
Nessa primeira entrevista, Freud fez a famosa observação que cito muitas vezes: “O que é que vão fazer com a minha teoria depois que eu morrer? Haverá semelhança com os meus princípios básicos?”.
Já me deparei muitas vezes com esse tipo de preocupação entre grandes escritores e artistas, mas nunca entre cientistas. Era o som profético, o som livre de um gênio a destruir convenções acadêmicas. “O que farão de mim mais tarde?” Um sentimento de melancolia me atravessa quando eu repenso nessa conversa. Quando o gênio morre, o burocrata torna-se rei.
A minha análise começou com humor, entusiasmo e rapidez. Tudo estava indo bem demais. Foi interrompida na terceira sessão. Falei de um sonho que parecia completamente incompreensível. Posso falar dele aqui, não corro o menor risco de revelar algum segredo pessoal, porque não conheço nenhum analista vivo que seja capaz de interpretar esse sonho como Freud o fez, sobretudo tendo em conta a pobreza das minhas associações.
Aconteceu na velha cozinha do nosso castelo, perto de Saint-Jean-deLuz. Eu era um bonito gato siamês com um pedigree de alto valor. Apesar da minha ascendência, como era a gata mais nova, tinha de esperar para ser alimentada até que todos os outros gatos sem pedigree tivessem lambido os seus pratos no chão. Sentia-me humilhada e com fome. Então comecei a morder todo mundo. Acordei com um sobressalto e fiquei ansiosa durante algum tempo.
ASSOCIAÇÕES. Tratava-se do castelo onde nasci e cresci. Não era permitido entrar na cozinha. Naquele tempo, as moças bem-criadas não iam lá. Às vezes, eu esgueirava-me incógnita, porque era o fruto proibido. Era um segredo meu e da cozinheira. Uma vez, roubei um pudim e tive uma indigestão.
Sempre tive siameses. Eu gosto deles. Tenho um atualmente.
Freud pensou por um momento, depois disse sem cautela: “Tal e tal evento aconteceu na sua vida, quando você ainda estava no berço”.
O leitor me perdoará se eu não disser as palavras exatas de Freud. Trata-se de uma análise de Freud, não minha. Mais de uma boa família tem o seu cadáver no armário. É para isso que servem os armários. Eu não acreditei em Freud. Fiquei enraivecida.
“O que está dizendo é completamente impossível, eu teria sabido disso. Essas coisas não acontecem na minha família. É contra os seus princípios.”
Não conseguia ver atrás de mim, mas sabia que ele estava sorrindo. Ele simplesmente aconselhou-me: “Bem, é melhor você perguntar”.
Peguei o primeiro avião para Paris. Eu corri na casa da minha tia. Comecei a conversar com ela assim que cheguei. Acredite ou não, a extravagante história de Freud sobre um acontecimento que eu nunca havia suspeitado (pelo menos conscientemente) acabou por ser verdade.
Havia algo misterioso sobre a interpretação desse sonho. Eu não voltei a Viena. Freud agora simbolizava para mim o pai mágico, o feiticeiro, o curador. Ele viu através de mim. Eu me senti tão transparente quanto vidro. Eu estava com medo, com tanto medo que me distanciei de analistas. Levei oito anos para superar o meu pânico.
Freud havia me superestimado. Ele acreditava que poderia contar-me qualquer coisa. Sob a minha aparência independente, havia uma verdade que eu não podia aceitar aos 22 anos. Freud fez o que mais tarde pediu aos seus alunos que evitassem: ele interpretou muito cedo, quando o analisando não conseguia aceitar o que era. Freud chamou isso de psicanálise selvagem. Atualmente, um analisando que termina prematuramente a sua análise é considerado um fracasso. Afinal de contas, o famoso caso de Dora também é um fracasso. É claro que as cobaias são necessárias para o desenvolvimento de uma técnica. Só um gênio pode construir um grande sucesso a partir de dois erros e obter uma vantagem a partir de duas derrotas. Os burocratas nunca falham. Nunca descobrem nada. Depois do inventor, vem a invenção.
Síntese sobre a vida e a obra de Maryse Choisy
Rafael Eduardo Franco,6 Ribeirão Preto
José Francisco Miguel Henriques Bairrão,7 Ribeirão Preto
Jornalista e escritora, Maryse Choisy nasceu no País Basco, em Saint- -Jean-de-Luz, em 1º de fevereiro de 1903, e faleceu em Paris, em 21 de março de 1979. Foi oficial da Ordem do Mérito, medalha de prata das Artes, Letras e Ciências, e recebeu o prêmio Lamennais em 1967 (Cosnier, 2005a).
Por seu espírito aventureiro e provocador, ocupou um lugar de destaque no contexto intelectual francês antes da Segunda Guerra Mundial. Mas foi a partir da Libertação que ela entrou para a história da psicanálise francesa, sobretudo por seus esforços em levar a Igreja católica a reconhecer a psicanálise, bem como pela criação da revista Psyché: Revue Internationale de Psychanalyse et des Sciences de l’Homme. Em História da psicanálise na França (1986/1988), Elisabeth Roudinesco detalha o papel de Maryse Choisy na articulação entre a Igreja católica e o desenvolvimento da psicanálise na França. Em Freud et la France (2010), Alain de Mijolla também especifica a relação de Choisy com a psicanálise, ao mencionar sua experiência analítica com Sigmund Freud e a influência da psicanálise em alguns de seus livros, bem como ao detalhar as características gerais da revista Psyché. Em La France et Freud (2012), Mijolla relata a contribuição de Maryse Choisy, por meio da revista Psyché, para a reestruturação do movimento psicanalítico francês após a Segunda Guerra Mundial.
Em 1927, Maryse Choisy iniciou um tratamento psicanalítico com Sigmund Freud, em Viena (Ohayon, 2000). Essa experiência durou poucas sessões, uma vez que ela rompeu o processo analítico (Mijolla, 2010). Ela publicou as memórias dessa experiência na obra Sigmund Freud: a new appraisal (1963) e no artigo “Mémoires des rendez-vous avec Sigmund Freud” (1982). Posteriormente, foi analisanda de Charles Odier e René Laforgue, e tornou-se praticante da psicanálise (Roudinesco, 1986/1988).
Ainda em 1927, Maryse Choisy publicou seu “Manifeste Suridéaliste”, como alternativa crítica ao surrealismo proposto por André Breton. Em linhas gerais, o suridéalisme propunha uma síntese entre o real e o ideal, com o objetivo de construir o para além do idealismo. O suridéalisme também se caracterizou por apresentar reflexões sobre o feminino, e buscou o reconhecimento da mulher no campo da literatura. O termo suridéalisme foi criado por Émile Malespine, que publicou, em fevereiro de 1925, o “Manifeste du Suridéalisme”, na revista Manomètre.
Entre 1935 e 1937, fundou e dirigiu três revistas relacionadas à espiritualidade: Votre Bonheur, Votre Destin e Consolation. Em 1938, conheceu Pierre Teilhard e converteu-se ao catolicismo, escrevendo trabalhos que articulavam ciência, religião e psicanálise (Ohayon, 2000).
Em 1946, Maryse Choisy fundou a revista Psyché, cuja concepção foi apoiada por um círculo de intelectuais - como Gaston Bachelard, Juliette Favez-Boutonier, Louis de Broglie, Pierre Janet, Charles Baudouin, Angélo Hesnard e Louis Le Guillant -, bem como por membros da Sociedade Psicanalítica de Paris (spp), uma vez que, nesse contexto, a publicação da Revue Française de Psychanalyse estava interrompida por fatores administrativos - essa revista voltaria a ser editada somente a partir de 1948. A Psyché caracterizava-se por apresentar trabalhos variados no campo das ciências humanas e por seu direcionamento à psicanálise aplicada, próximo à vocação da revista Imago (Cosiner, 2005b). Segundo Roudinesco (1986/1988), a revista também se mostrava aberta a problemáticas gerais do mundo contemporâneo e apresentava trabalhos que revisavam o ensino freudiano, articulando-o com problemáticas da religiosidade. Essa perspectiva é igualmente reconhecida por Mijolla (2010), ao pontuar que a revista apresentava alguns trabalhos que articulavam catolicismo e espiritualidade oriental.
Ao longo de sua existência, a revista publicou artigos inéditos em francês de Anna Freud, Carl Gustav Jung, Karen Horney, Wilhelm Reich, René A. Spitz, Pierre Janet e Édouard Toulouse, além de textos de René Laforgue, Juliette Favez-Boutonier, André Berge, Georges Mauco, Charles Baudouin, Georges Parcheminey, Françoise Dolto, Roger Bastide, Marcel Griaule, Georges Balandier, Octave Mannoni, Benjamin Logre, Henri Baruk, Robert Desoille, entre outros (Cosiner, 2005b).
Maryse Choisy também escreveu diversos artigos para a revista: “Ces instincts agressifs” (1946), “L’angoisse cartésienne” (1948), “Genèse de la culpabilité” (1948), “Orthodoxie freudienne” (1948), “Le problème de la punition” (1948), “La saison de l’agressivité” (1948), “Insécurité, culpabilité, péché” (1949), “Phallocratie” (1949), “Examen d’inconscience” (1950), “Les fantômes de l’escalier de service” (1951), “Les fondements d’une méthode psychanalytique en sociologie” (1951), “Peut-on psychanalyser un artiste?” (1951), “Le problème du tout-de-l’homme” (1951), “La responsabilité morale dans la psychanalyse” (1951), entre outros.
Além desses trabalhos, Maryse Choisy é autora de ensaios como: Quand les bêtes sont amoureuses (1931), La métaphysique des yogas (1948), … Mais la terre est sacrée (1968), La guerre des sexes (1970), Moïse (1970), Quelle féminité? (2018). Ela também escreveu obras jornalísticas, entre as quais: Un mois chez les hommes (1929), L’amour dans les prisons (1930), Un mois chez les députés (1934) e Un mois chez les filles (1939). Publicou ainda livros sobre psicanálise, como: L’anneau de Polycrate: essai sur la culpabilité collective et recherche d’une éthique psychanalytique (1946), Yogas et psychanalyse: essai sur les techniques indiennes de la sublimation (1949), Psychanalyse et catholicisme (1950), Qu’est-ce que la psychanalyse? (1950), La méthode psychanalytique en sociologie (tese de doutorado), Le scandale de l’amour (1954), Le chrétien devant la psychanalyse (1955), Psychoanalysis of the prostitute (1961) - traduzido para o espanhol como Psicoanálisis de la prostitución (1964) - e Sigmund Freud: a new appraisal (1963). Também elaborou duas autobiografias: Mes enfances: 1903-1924 (1971) e Sur le chemin de Dieu, on rencontre d’abord le diable: 1925-1939 (1977). Além disso, publicou romances, livros infantis, obras relacionadas à pedagogia e à temática da feminilidade.
Em 1959, Bernard Guillemain publicou uma biografia de Maryse Choisy, intitulada Maryse Choisy ou l’amoureuse sagesse.