Um fotógrafo-artista me disse outra vez: veja que pingo de sol no couro de um lagarto é para nós mais importante do que o sol inteiro no corpo do mar. Falou mais: que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balanças nem com barômetros etc. Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós. Assim um passarinho nas mãos de uma criança é mais importante para ela do que a Cordilheira dos Andes. Que um osso é mais importante para o cachorro do que uma pedra de diamante. E um dente de macaco da era terciária é mais importante para os arqueólogos do que a Torre Eiffel. (Veja que só um dente de macaco!) Que uma boneca de trapos que abre e fecha os olhinhos azuis nas mãos de uma criança é mais importante para ela do que o Empire State Building.
MANOEL DE BARROS, “Sobre importâncias”
A experiência do brincar, a importância da singularidade humana e a escolha de objetos na vida e na clínica psicanalítica são aspectos fundamentais para que um indivíduo se sinta real no seu cotidiano, de forma que a vida possa ser vivida em seus instantes eternos. Vivemos experiências na contemporaneidade em que o lugar da singularidade sofre esgarçamentos, desembocando em sofrimentos que testemunhamos em nosso trabalho clínico. A importância da cultura e do brincar na humanização do ser se faz presente.
A morte, as angústias, as agonias impensáveis, o imprevisível, a violência estão sempre nos espreitando. Mas, reproduzindo Tagore (1861-1941), escritor indiano, em epígrafe citada por Winnicott: “Na praia do mar de mundos sem fim, crianças brincam” (1971/1975, p. 133). E, parafraseando, na sala de análise, no espaço potencial sem fim, analista e analisando “se encontram”.
O brincar sustenta o desconhecido e o imprevisível. O imaginário e o criativo transformam, surpreendem e, assim, abre-se a possibilidade de viver encantos, angústias e surpresas. Winnicott (1971/1984) criou o jogo do rabisco, paradigma para o que acontece no encontro entre paciente e analista por meio do espaço potencial, como campo fértil que abre um leque de comunicações. As expressões imagéticas gestam as associações livres que surgem no entre dois. A revelação dos personagens e dramas que habitam o espaço-sonho favorece ao analista o exercício de sua função analítica, gerando o prazer de brincar tanto para a criança como para o adulto. A moldura, a sustentação, nunca está ausente.
Brincar é trocar, é estar em parceria, é ser tocado pela cultura. Recorro a Winnicott (1958/1983), com seu conceito de orgasmo do ego.
O prazer, comumente associado à excitação instintual, não fundamenta o brincar. O orgasmo do ego diz respeito à satisfação, na criança ou no adulto, em lidar com possíveis inibições. Esse prazer compartilhado favorece a simbolização, cria condições para o pensar e amplia o desenvolvimento de novas funções mentais. Refere-se às experiências de clímax vividas na cultura. Winnicott afirma:
Na minha opinião, se comparamos um brinquedo feliz de uma criança ou a experiência de um adulto em um concerto com a experiência sexual, a diferença é tão grande que não faria mal usar um termo diferente para a descrição das duas experiências. Qualquer que seja o simbolismo inconsciente, a quantidade da excitação física real é mínima em um tipo de experiência e máxima na outra. (1958/1983, p. 37)
Winnicott acrescenta que não é a satisfação instintual que faz uma pessoa começar a ser e achar a vida digna de ser vivida.
Na verdade, as gratificações instintuais começam como funções parciais e tornam-se seduções, a menos que estejam baseadas numa capacidade bem estabelecida, na pessoa individualmente, para a experiência total, e para a experiência na área dos fenômenos transicionais. É o self que tem de preceder o uso do instinto pelo self. (1971/1975, p. 137)
Esse autor deixa claro que a satisfação no brincar não é da ordem do sexual, pulsional. Corresponde a uma área diferente dos processos de sublimação. É um prazer, um se espelhar no mundo, uma vitalidade, uma inserção na realidade, que estabelece vínculos e possíveis comunicações com o outro. É expressão de potencial de vida numa relação de mutualidade em que as barreiras entre eu e mundo podem se apagar, sem a perda da continuidade de ser. É área de “autonomia tópica”. É experiência de satisfação relacionada com a presença do outro.
O que o sujeito sente na relação com sua solidão é, segundo Winnicott, uma consequência direta da experiência de não integração. Em outras palavras, um sujeito que realizou sua integração conhece a necessidade de enriquecer sua relação com o mundo a partir de um estado de não integração. (Macedo, 1999, p. 116)
Nas experiências culturais, no brincar e nas experiências sexuais o objeto está entre o objeto subjetivo e a realidade compartilhada, há uma transformação de existência do mundo para criação do mundo.
No texto “Que significa ‘brincar’ em psicanálise?” (2022), Civitarese, ao citar Winnicott, Ogden, Ferro e Freud, afirma que é no uso de símbolos que encontramos o caminho que nos leva a ser adultos, diferenciar fantasia de realidade e tolerar a ambiguidade e o paradoxo. O prazer, de ser e de fazer, amplia o mundo imaginativo e torna mais possível contatar e compartilhar a realidade. O brincar tece fios de intersubjetividade intercorpórea e se liberta relativamente das exigências morais, cria o ethos humano. Brincar na análise está diretamente relacionado com ouvir a linguagem do inconsciente, que se reflete no sonho do par analítico, e a interpretação promove transformação. O autor cita Ogden quando diz que conseguir sonhar é conseguir brincar; brincar é um sonhar-se intersubjetivamente a si mesmo para a existência num espaço seguro dentro de si.
O espaço seguro dentro de si corresponde ao espaço potencial interno, que se articula no espaço analítico e na reciprocidade da dupla.
Ser e fazer são elementos femininos e masculinos puros (Winnicott, 1971/1975), estão implicados no brincar. Primeiro o ser, a vivência de se sentir criador, viver a não representabilidade, e depois o fazer, em que materialidade e manuseio de objetos são fundamentais para que o brincar possa acontecer e fazer nascer a simbolização. Na análise de crianças são os brinquedos que favorecem a expressão; na análise de adultos, como afirma Civitarese, é o ouvir a fala do inconsciente, considerando a fala e a voz como refletores do sonho do par e do campo analítico. O estilo simples do analista - ser direto e espontâneo, estar vivo, abolir a altivez, a arrogância e intelectualizações - favorece a criatividade e a função interpretativa do analista, criando uma sintonia entre dois. A expansão mental pode se dar pela experiência e pela potência vital da dupla.
Ricardo Rodulfo chama a atenção para a “importância das mãos” (2009, p. 78), o que Winnicott já destacara. A transicionalidade não tem como motor a pulsionalidade. Da boca, da oralidade no contato com o corpo da mãe, o bebê vai para o uso das mãos, para o manuseio do objeto pela carícia corporal. Esse deslocamento do oral, afirma o autor, é um acréscimo, e não um substituto (da mãe).
A zona intermediária se cria continuamente, delimita uma fronteira, uma espécie de membrana, de pele. O corpo se projeta para o exterior com ressonâncias no seu interior, criando um espaço paradoxal, fazendo conviver o objeto externo com a imagem interna, nem dentro nem fora. A capacidade de criar, originar, imaginar não se explicaria exclusivamente pelo oral, mas pelo entre. Os fenômenos transcorrem pelo movimento e pela ação, que se tornam gestos e transformam o corpo em abertura para o mundo. O corpo emerge e se movimenta para criar o real, para viver o presente. Essa corporeidade inclui a singularidade, com sofrimentos e alegrias subjetivos ilimitados. O objeto transicional tem seu valor por ser uma experiência transicional. A experiência vívida é a tradução da singularidade. Rodulfo afirma:
O singular é algo que diz respeito a certas manifestações na história do indivíduo ou do sujeito, mas não responde à noção de individuação. O singular é jogo ou trabalho da diferença, irredutível a outras, não intercambiável em nada. … Quanto mais sofisticado o sistema simbólico, tanto mais desenvolvida e discriminada a individuação, e mais controlável, identificável ou intercambiável cada elemento, ao ser possível sua permutação por outros membros do mesmo sistema simbólico. (2009, p. 90)
No espaço potencial não há substituição de um objeto por outro. É um suplemento. No jogo transicional, por exemplo, o contorno dos lábios ou a ponta do nariz, a melodia da voz da mãe ou a palavra podem caracterizar a transicionalidade. Os objetos transicionais aglutinam o objeto subjetivo e a materialidade do objeto. O espaço transicional conduz o bebê da interioridade para a exterioridade, da onipotência para a autonomia, com os objetos fora de seu controle. É o espaço do brincar. Por isso, em análise, o analista observa o contexto em que aparecem os objetos, se são usados para mitigar ou suavizar a dureza das diferenças entre interno e externo. Podem ocorrer perdas da capacidade criativa e imaginativa, dependendo de traumas maiores ou menores na vida do paciente (Rodulfo, 2009).
O espaço potencial é um espaço sem fim, uma forma pessoal de habitar o mundo. O ser humano precisa de objetos e, mais tarde, de experiências culturais que o sustentem no abismo de desamparos traumáticos. Essa é a evidência da necessidade dos objetos desde o início da vida. O ser se constitui com base nas relações de dependência. É na presença do outro que a vida se torna possível, o imaginar e o fantasiar se favorecem, propiciando condições para que se apresente sua singularidade. Para isso acontecer, o ser busca objetos. O que caracteriza a transicionalidade não é o objeto, mas o uso do objeto; ele é uma posse não eu, uma vivência paradoxal. O uso atravessa os objetos e os fenômenos. O ser humano tem vida singular e por meio da subjetividade de cada um abre o espaço do devir. O uso do objeto favorece transpor rupturas traumáticas para dar continuidade à vida. A confiança para suportar o vazio é fundamental para que se torne esperança. É um trânsito entre estar com e fazer com, percepção crescente de que o outro também tem uma singularidade.
Winnicott e Bollas contribuem para a psicanálise clínica com seus pensamentos relacionados a fronteira, espaço, mediação, importância de ser si mesmo, idioma pessoal e verdadeiro self. Na ponte entre o subjetivo e o objetivo se cria a realidade, que depende de reconhecer traços subjetivos nesta, e o brincar se dá nessa superposição. Isso é muito importante no trabalho psicanalítico, já que o analista não cria sozinho uma interpretação. Da mesma maneira, um grupo cria a realidade cultural ao sobrepor experiências pessoais. O analista ocupa o lugar de figura transicional do inquietante, da ausência e do encontro, criando confiança no vazio, conduzindo e sustentando a experiência de ser. O processo de vida implica se apropriar da singularidade, visto que habitamos e nos inserimos no mundo de forma muito pessoal. A experiência histórica e biográfica de cada um determinará o estilo de ser, onde a escolha dos objetos não se fará ao acaso. Essa escolha corresponde a um gesto poético singular. Os objetos são como mediadores de uma rede extensa de significados ao longo da vida. Portanto, a concepção da importância do idioma pessoal, criado por Bollas, soma e amplia essa questão. Esse idioma pessoal se materializa na presença do outro. Envia ao outro, no espaço potencial, amostras do idioma pessoal, que se torna experiência cultural. O self descobre a possibilidade de criar sua forma por meio da criação e uso do objeto e exercita seu idioma no mundo, seu estilo como impressões digitais.
Com a capacidade simbólica conquistada, torna-se possível fazer uso de metáforas, como uma ferramenta lúdica que implica “fazer de conta”, fazer deslocamentos e transportes de ideias e imagens, criando espaços para novos pensamentos e associações livres, que permitem a expressão do self verdadeiro. Abre-se, assim, a possibilidade de novos sentidos, de espaço para o outro, de espaço para o não dito, de silêncio eloquente.
Para Civitarese (2022), o espaço entre palavras se torna côncavo e receptivo. É um brincar com os sentidos da fala do paciente e requer capacidade simbólica. Segundo o autor, “a linguagem é a construção coletiva de um lugar para a projeção infinita e incontrolável de sentidos, como se tivéssemos a tarefa contínua de o ‘reafirmar’ o mais possível para que nos tornemos mais humanos” (p. 71). A fala é também o lugar de permanência, de presença. A importância da narrativa se presentifica no tempo, e o paciente evolui em sua capacidade de narrar, de cooperar, de realizar uma tarefa de união com o outro. A função analítica é a capacidade de suportar sentimentos intensos e transformá-los vivamente em compreensão e cooperação.
Quanto à importância das associações livres e da receptividade da escuta de analista e analisando, a contribuição de Bollas sobre o inconsciente receptivo pode nos auxiliar a expandir ideias sobre a experiência do brincar. O autor propõe o conceito de inconsciente receptivo, em que
o acolhimento seria inicialmente constituído a partir das impressões das coisas que se reúnem no inconsciente e tiram-lhe mais coisas representadas que formam núcleos no inconsciente. Elas se tornam condensações de milhares de experiências, e conforme nós vivemos e pensamos, em tempo, nossa mente cresce. O inconsciente receptivo arquiva percepções inconscientes, as organiza, e isto é a matriz da criatividade. (2007/2013, p. 30)
Bollas afirma que a gramática de qualquer idioma é constituída de estruturas preexistentes que determinam a possibilidade de novos enunciados, com sons, timbres, ritmos, compasso, duração e tons específicos, como numa orquestra, e o inconsciente do analista é receptivo aos menores detalhes da comunicação livre do analisando. A comunicação inconsciente assim como a receptividade criativa existem desde o início da vida na relação primária, o que gera um processo contínuo de busca de experiências prazerosas por meio de objetos externos que promovem transformações.
As associações livres e o brincar são análogos a escolhas desses objetos, que estão presentes nos espaços potenciais, internos e externos. Nem todo paciente é capaz de brincar e de fazer associações livres. Isso conduz o analista a considerar possíveis experiências traumáticas em sua história de vida.
Bollas (1992/1998c) se refere à importância de viver alegria nos encontros com objetos, mesmo que nos evoquem vivências de perdas e dores. São experiências estéticas. No encontro com o objeto, realiza-se alguma representação e atualização dele. É a alegria do verdadeiro self que pode se expressar. A alegria nasce da comunicação intercorpórea primária, o encontro do bebê com o corpo da mãe. É uma espécie de celebração da vitalidade e demanda espaço.
O corpo da mãe é lugar de vitalidade, que permite que os afetos circulem: tristeza, alegria, medo, expectativa, terror… E o bebê se movimenta. Dessa forma o primeiro lugar do bebê é o corpo, que depois se expandirá para o espaço entre. Se o corpo não foi vivido suficientemente como experiência de lugar, pode haver algumas dificuldades, desenvolvendo-se relações de cunho impessoal e despersonalizante. O singular se manifesta no momento desse encontro. Os gestos exploram novos movimentos. A diferenciação se dá, o que acarreta a criação de um espaço e tempo, e aos poucos a dupla acrescenta partes do mundo externo que enriquecerão as experiências vinculares, transformando e expandindo a noção espacial e temporal. Cada escolha de objeto é um ato de transformação. Os objetos simbólicos são criados na inter-relação. Quando me refiro à escolha, refiro-me à capacidade de escolher espontaneamente, e isso implica uma unidade do self que depende dessa singularidade e subjetividade de cada um. É uma espécie de escolha e gesto criativos. O self, afirma Bollas numa entrevista a Molino (1997), tem muitas representações, o indivíduo tem uma pluralidade quanto ao seu próprio ser, “estamos fadados a ser múltiplos.”
Somos múltiplos e, paradoxalmente, temos nossa singularidade. Cito Gilberto Safra:
O ser humano tem necessidade de que seu gesto criativo possa ser reconhecido, originariamente, como expressão de um ser singular por um Outro, como ação que rompe o estabelecido, ao mesmo tempo em que traz a esperança da continuidade da vida e dos anseios de todos pelo futuro. A cultura é pré-existente ao nascimento do bebê, mas, por meio de seu gesto, a criança a re-posiciona segundo sua maneira de ser. Esse fenômeno dá a ela a possibilidade de alcançar a singularidade e encontrar um lugar para as coisas, os diversos artefatos culturais, que estejam relacionados às suas características. Ela se apropria da linguagem como experiência pessoal. (2009, p. 80)
O objeto pode ser recriado em cada encontro. Essa recriação se dá ao longo da vida. Vivemos, na melhor das hipóteses, no espaço potencial, e aí está a experiência de devir, que inclui um certo estado de amorfia para que a ação criativa possa surgir. Essa amorfia gera instabilidade que necessita de suporte para ser vivida. A combinação entre amorfia primitiva, por um lado, e suporte, por outro, abre espaço para o gesto criativo. Foi Winnicott que introduziu essa concepção da natureza humana, dizendo que o ser humano é um exemplar no tempo, no fluir e no espaço. Transitar entre passado, presente e futuro. Subjetivo e objetivo.
Assim, cada ser escolhe seus objetos no decorrer da vida cotidiana, aos quais Bollas (1992/1998c) chama de objetos evocativos, que exercem diferentes atrações em diferentes pessoas e evocam experiências subjetivas do self com uma densidade psíquica profunda. O autor faz a seguinte afirmação: “Na verdade, os objetos nos encerram dentro deles. Mas, ironicamente, exatamente porque eles contêm nossas projeções é que as formas estruturais do objeto de qualquer pessoa se tornam ainda mais importantes” (1992/1998b, s.p.).
Os objetos evocativos, assim como as associações livres, contêm diferentes aspectos particulares latentes e podem estimular uma pessoa de formas variadas: sensível, estrutural, conceitual, simbólica, mnêmica e projetivamente. Bollas se refere às associações livres, como propostas por Freud, como liberdade para sermos continuamente misteriosos com nós mesmos e para com os outros. Os objetos, assim como as palavras, evocam o que é a expressão do verdadeiro self. O autor afirma:
Alguns objetos (um livro, um amigo, um concerto, uma caminhada) nos liberam para experiências interiores intensas que, de alguma maneira, nos dão consistência… A cada encontro a que somos solicitados somos elevados à nossa “nuclearidade” inconsciente e nos é mostrado um aspecto de nosso self para o “ego” e, assim, são reveladas algumas formas de nossa sensibilidade. Embora tais episódios mostrem algo sobre nós, o que sabemos destes momentos é pensável somente em parte: a experiência é mais uma densa condensação de necessidades instintivas, estados somáticos, posturas corporais, disposições proprioceptivas, imagens, fragmentos de frases, pensamentos abstratos, lembranças mnêmicas, recordações, afinidades sentidas… tudo junto. (1992/1998a, p. 17)
No que se refere à transicionalidade e aos objetos, quero focalizar um tipo de objeto transicional nomeado por Safra (2009) de objeto lírico. Podemos pensar em vários tipos de derivados de objetos transicionais (conforme o autor denomina outros objetos derivados de objetos étnicos, objetos mnêmicos, objetos do self). Os líricos não têm significância estética ou econômica, mas pessoal e subjetiva do indivíduo com esses objetos, experiência essa que permite criar um mundo próprio. São objetos que compõem e encontram a subjetividade e singularidade de cada um de nós. O encontro com o objeto lírico libera uma história vivida coagulada na interioridade do sujeito. Segundo esse autor:
O objeto lírico emerge após o desinvestimento do objeto transicional, fundamental para se criar o espaço potencial. Portanto, é herdeiro do objeto transicional e ganha sofisticações. Esse objeto implica:
1) Capacidade de agir no espaço potencial.
2) Capacidade de relações objetais.
3) Reconhecimento da pessoalidade do outro (vai mais além do não eu).
4) Capacidade de experimentar memória afetiva.
5) Capacidade de criar objetos no campo da cultura, da realidade compartilhada.
6) Capacidade de lidar com separação, com elaboração de ódio e ressentimento.
7) Disponibilidade poética que implica acessar dimensões da vida relacionadas com a Beleza e Verdade, campo não sensorial (Bion). (Safra, comunicação pessoal, 2018)
Por que lírico? Alfredo Bosi (2000) aborda o caráter lírico da poesia, em que o eu lírico configura o mundo interior. Faz referência a Emil Staiger, que afirma que a essência lírica é a re-cordação, pela qual o poeta lírico se dilui numa ausência de distância entre o sujeito e o objeto e, assim, passado e futuro podem ser re-cordados (respostas no coração) na criação lírica por meio de imagens. O lirismo é a apreensão de uma realidade “melhor que qualquer intuição ou qualquer esforço de compreensão” (Staiger, 1975, p. 59)
O objeto lírico pode ser também uma pessoa, uma palavra ou um gesto que, ao ser escolhido, transforma-se, assim como o sujeito é transformado por ele. Penso que essa é a experiência que acontece com a dupla analítica. O encontro entre duas subjetividades torna as experiências bem complexas. Para o analista, o paciente também se torna um objeto evocativo. Sua contratransferência receptiva cria um espaço potencial interno de onde brotam as comunicações recíprocas.
Se pensarmos em objetos muito significativos em nossa vida, que ocupam lugar na casa, no consultório, na memória e na vida subjetiva, veremos como cada objeto ganha um significado. E quando um paciente entra na sala de análise, ele entra num espaço em que a subjetividade e hospitalidade do analista encontra a subjetividade do paciente. Surgem as associações livres ditas ou silenciosas, e se inicia o brincar.
Para ilustrar isso, apresentarei uma experiência própria, pessoal, que me conduziu a um mergulho e autoanálise, em função do impacto emocional vivido.
Andávamos eu, meu pai e um sobrinho numa viagem de retorno às origens pelas ruas da cidade e paramos na vitrine de uma loja de antiguidades. Meu pai olhava fixa e demoradamente para um bibelô antigo, sentindo-se intensamente atraído pela figura de um sapateiro fabricando sapatos. Quis entrar na loja para verificar o preço e saber se era acessível. Com muita emoção, comprou a peça e, com o sentimento de recuperar algo, disse: “Agora tenho para onde olhar”.
Único sobrevivente da Segunda Guerra Mundial, separado da família ainda adolescente, não tinha nenhuma fotografia dos pais. Eu também não tinha nenhuma referência imagética para poder lembrá-los. Foi por meio da palavra transmitida que criei alguma imagem de sua família. Seu pai fabricava sapatos em uma cidadezinha no interior da Polônia, onde nasceu. Sempre nos contava essa história. Era um exímio conhecedor de sapatos feitos à mão. Apropriou-se dessa estatueta e a carregou com muito cuidado, durante toda a viagem, para não a quebrar, tal qual um objeto sagrado. Aquilo o tocou no mais íntimo de seu ser, no que parecia o incomunicável de si. De ouvir sempre suas histórias de família, minha memória guardou a imagem de um sapateiro associada ao meu avô. A importância da imagem, daquele olhar evocado, se impôs como aquela que resgataria uma identidade histórica e pessoal.
Ao chegar à sua casa, depositou esse objeto em uma prateleira de forma visível a todos. Era como se fosse mais um dos enfeites da casa, mas não era… Esse sapateiro foi uma aquisição e uma criação de um objeto significativo. Parecia recriar uma fé na presença desse objeto, que o fazia se reconectar com a figura/imagem do seu pai. Uma experiência estética, lírica, poética e dramática. Pessoal e subjetiva.
Eu vivi profundamente essa experiência. Anos se passaram, meu pai morreu, e hoje esse objeto/sapateiro está comigo. Também em uma prateleira, como se fosse um porta-retratos ou um enfeite a mais no meio de tantos outros, mas não é. Um objeto histórico familiar que contempla o tempo, as gerações e um sentimento que, integrado à razão, permite que se torne passado, presente e futuro. Continuidade do ser. Razão pela qual podemos ter a coragem de viver e de ser. Ao escrever e publicar essa experiência, crio, destruo e recrio a imagem paterna como forma de lidar com as faltas pessoais catastróficas e intergeracionais no meu espaço potencial. Os objetos contribuem na emolduração do estilo de ser de cada um, e se dá uma abertura para o mundo. A simbolização permite essa abertura psíquica.
O olhar dirigido ao bibelô sapateiro, assim chamado objeto evocativo (Bollas, 1992/1998c), abriu e evocou um espaço de re-criação e novos significados, mobilizando uma experiência estética com forte colorido emocional. Esse é um exemplo de objeto lírico-evocativo que apresenta o ser a ele mesmo e ao mundo. O encontro com o objeto no espaço potencial dá um significado ao ser que vive transformações geradas por esse encontro. Como afirma Bollas,
algumas experiências do self surgem tanto da influência do objeto sobre o sujeito como do uso que o sujeito faz do objeto, e na medida em que nos movimenta mos através do espaço e do tempo, muitas coisas surgem por acaso (como objetos aleatórios) e proporcionam uma unidade de experiência em nós, por assim dizer, que estava contida no real. (1992/1998a, p. 11)
Assim se dão as associações livres na sessão analítica. Penso que o real diz respeito à experiência de ser que contempla o não conhecido, o imprevisível presente no cotidiano, em que a fé é fundamental para sustentar a experiência, assim como o encontro com o objeto significativo que faz renascer a experiência vital do self. O real dá vida aos objetos perdidos e ressignifica a história pessoal. Não se trata de fé religiosa, mas de um estado de abertura para o novo. É construído por meio de movimentos e ações que, até mesmo, ainda não foram codificados, e portanto podem estar enraizados nos traumas, nas profundezas da alma, nas turbulências que precisam ser ouvidas no processo de análise. Por vezes, se algo não aconteceu de forma a atender às necessidades do ser, podem se criar sintomas que apontam para as necessidades singulares de cada pessoa. Nesse sentido, cada sofrimento é singular, e o vértice psicopatológico perde o significado quanto a diagnosticar e curar.
Esse objeto/fé costura a base de um ser, tornando o cotidiano possível de ser vivido. No escuro do desconhecido, um apego a algo que auxilia a travessia. O objeto transicional e o objeto lírico estariam diretamente relacionados ao estado de fé. Me refiro à fé como um estado que sustenta o ser no desamparo, diante do desconhecido, e o leva adiante. Portanto, a fé implica ação, movimento.
As experiências psicanalíticas recriam espaços subjetivos do paciente, e a singularidade do ser se manifesta. Ser o que se é com sua carga de hereditariedade e de possibilidade do novo. Questões sobre a intimidade se apresentam. A singularidade do paciente anima os objetos e dá um caráter significativo para si próprio.
Na relação de transferência temos oportunidade de observar o uso que o paciente faz do objeto psicanalítico. Utilizo aqui a definição de objeto psicanalítico (Bollas, 1987/2015) que se refere à situação analítica total, que envolve a pessoa e a sensibilidade do analista e inclui o contexto analítico, os aspectos temporais de uma sessão e o procedimento analítico, como a interpretação.
Winnicott (1965/1993) afirma que é na clínica que a apreensão empática do fenômeno do analista, por meio da corporeidade, dá finitude à experiência. O que não encontra comunicação se dispersa no infinito, ameaça com agonias impensáveis e ansiedades psicóticas.
Fragmento clínico
Uma paciente com dificuldades criativas, sofrendo de muitas inibições, apresenta um sonho numa sessão.
Preparava-se para uma viagem e, ao fazer as malas, colocou uma série de brinquedos dentro. Ao passar pela alfândega, foi parada. Abriram suas malas e a levaram para a polícia do aeroporto. O grupo de policiais, de forma rude, a separou do grupo, e ela perdeu o voo, pois era proibido carregar brinquedos. Diziam que era um erro grave e iriam prendê-la - como se estivesse carregando objetos perigosos e proibidos. Ela ficou aflita com isso, e seus familiares também não puderam viajar. Se viu no meio da multidão, e todos estavam sem máscara cirúrgica, o que lhe causou pânico e a acordou.
Essa paciente teve um pai violento, de quem tinha muito medo, o qual batia na mãe, que era submissa, desvitalizada, o que intensificava a insegurança e o desamparo da paciente. Esse contexto a inibiu na vida, e sua singularidade ficou aprisionada. Sentia-se assustada com o outro. Tinha potencial, era inteligente, mas não ousava usar sua espontaneidade. A cada espaço de trânsito (representado pelo aeroporto), sentia-se bloqueada, paralisada e desamparada. Temos aí patologias do self. O espaço intermediário não é um espaço exclusivamente físico, mas existencial. Não é um espaço estático. O espaço de trânsito ficou como um não lugar, uma impessoalidade com a presença de ameaças. Corpo e gesto silenciados, trancados, paralisados, que a impedem de viver livremente a vida cotidiana. Corpo que não se constituiu como paradoxal. Na relação analítica aparece o medo de fazer associações livres, a vergonha de se expressar, de fazer o movimento de dentro para fora e afetar o outro. Fazer o trânsito do externo para o interno sem proteção gera pânico. O fato de a paciente apresentar isso em sonho adquire um valor simbólico semelhante ao brincar. Talvez uma criança na sala de análise construísse um aeroporto e personagens com objetos complementares análogos aos do sonho da paciente - a alfândega, a proibição do voo.
A mesma paciente, em outra sessão, estava na sala de espera. Antes de chamá-la, recebi uma mensagem de comunicação da morte de uma pessoa querida. Vacilei ao chamá-la, atrasei uns minutinhos e a convidei para entrar. Ela me observou, fez o pagamento do mês, deitou-se no divã e disse que havia tido um sonho.
Estava num restaurante com pouca luz esperando pela mãe - que já havia morrido -, a qual entrou meio cabisbaixa, triste e sentou-se à mesa. A paciente perguntou para a mãe se estava triste, e ela disse que sim, pois a paciente devia dinheiro para ela, que estava precisando. A paciente se levantou e ofereceu à mãe a comida que tinha pedido e um chocolate, mas ela recusou e continuou cabisbaixa. No final tirou dinheiro de sua bolsa em forma de leque e o deu para a mãe.
Fiquei perturbada com a situação. Pensei que o sonho tinha sido criado naquele instante, dentro do clima emocional interno e diante de minha expressão facial de tristeza, que suspeitei ter evocado na paciente sentimentos de exclusão. Nas associações que surgiram, dizia que no sonho sentia que, mesmo após pagar a mãe, ela não deixou a tristeza de lado. A paciente se sentiu impotente. Fez seu pagamento na sessão e esperava que, com isso, eu (objeto interno) pudesse me alegrar e aceitar o que ela tinha para me oferecer. O encontro daquele dia suscitou questionamentos, interrogações e perplexidade em mim, o que relacionei com as questões expostas neste trabalho.
O analista evoca no paciente algo de sua subjetividade, e é a partir de elementos sensoriais que se cria o objeto psicanalítico. No caso em questão, propiciou à paciente criar o sonho, como uma criança que entra na sala e brinca com os personagens dentro de um contexto criado. Ao tentar tornar presente e verbalizar a criação transferencial, a paciente reagiu e disse: “Foi um sonho com minha mãe. Nada a ver com você”. Continuei na investigação do que ela dizia de sua singularidade na experiência com a personagem do sonho, no encontro objetal, sobre não se sentir capaz de curar a depressão da mãe. “Escutamos virtualmente cada comunicação verbal e não verbal como um signo conjunto do par analítico, sonhado no aqui e agora” (Civitarese, 2022, p. 70).
A ilusão não é invenção de uma nova realidade na qual a pessoa se defende; ela constitui a realidade por meio do estar com. Assim, o analista, quando interpreta algo, não impõe um saber, mas uma criação a dois, e o paciente pode se apropriar de si. Há uma introjeção do seu entorno, do entre, e se cria um arquivo de experiências criativas.
Como afirma Rodulfo (2009), o primeiro conflito que se apresenta na existência humana se dá entre ter uma experiência de fazer as coisas com base na própria mobilidade ou ter que reagir a choques ou ataques ambientais, ao extremo de mutilar alguém na possibilidade de experiência própria, ou mais ainda, de experienciar como próprio. “A alma assassinada consigna a impossibilidade de fazer algo a partir de si mesmo” (p. 147). Isso equivale a não ter uma fisionomia singular e própria, perder a singularidade.
Transitar pelos espaços analíticos, pessoais, potenciais, criativos e pelo processo de amadurecimento, em que os traumas maiores ou menores se transformam em narrativas e possibilidades criativas, é o caminho da saúde, tanto individual como grupal. A capacidade de cuidar de si mesmo está atrelada ao cuidado com o outro, e isso será uma conquista ética no processo de amadurecimento e no convívio com pessoas. Perceber a identidade do objeto e criar espaço de comunicação (espaço potencial) é fundamental para a vida criativa e imaginativa. A possibilidade de brincar proporciona destruir e amar o objeto.
A vida é, de fato, um jogo com a morte. Ela somente existe, ao infinito, sob a forma de encarnações concretas e finitas. Ela evolui apenas sob a forma de espécies cada vez mais vulneráveis. Assim a planta, ao contrário da matéria, tem o privilégio de se abrir a seu ambiente, mas essa potência de liberdade é também uma necessidade, uma vez que ela deve a todo custo encontrar nesse ambiente os materiais que lhe permitirão se manter na existência. É porque a morte é o horizonte possível de sua existência que a planta está viva e se conecta a um quase mundo. No entanto, tal existência aparece como burguesa, uma vez que a vida vegetal encontra no [seu] local [tudo] do que se satisfazer. O mesmo não ocorre ao animal, que precisa espreitar e caçar para escapar da morte. É porque sua vida é muito mais vulnerável e precária que ele pode realmente se abrir a um mundo graças à emoção, à percepção e ao movimento. Compreende-se, então, que a vida humana representa um risco ainda maior (já que o homem não pode confiar no instinto para se satisfazer), e é por isso que a imaginação será o princípio das invenções técnicas e da construção intelectual, permitindo-lhe habitar a existência. A abertura ao mundo sem precedentes do homem é apenas o reverso de uma fragilidade que a vida não tinha conhecido até então. (Pommier, 2016, pp. 11-12)