Diego, houve dois grandes acidentes na minha vida: o bonde e você. Você sem dúvida foi o pior deles.
FRIDA KAHLO
Próprias do humano e relacionadas entre si, paixão e loucura tocam a vivência originária de indiscriminação e desborde, experiência limite arrebatadora de embaralhamento, que podemos ler nas palavras de Annie Ernaux sobre a sensação junto ao objeto de sua “paixão simples”. Diz a francesa: “Graças a ele eu me aproximei do limite que me separa do outro, a ponto de às vezes imaginar que iria chegar do outro lado” (1991/2023, p. 60). Guardemos essas palavras.
A propósito do trabalho com o Homem dos Lobos, Freud escreve:
As análises que conduzem a uma conclusão favorável em pouco tempo são de valor para a autoestima do terapeuta e para substanciar a importância médica da psicanálise; mas permanecem em grande parte insignificantes no que diz respeito ao progresso do conhecimento científico. Nada de novo se aprende com elas. Na verdade, apenas são bem-sucedidas tão rapidamente porque tudo o que era necessário para a sua realização já era conhecido. A novidade só pode ser obtida de análises que apresentam especiais dificuldades. (1918/2006, p. 21)
Poderíamos começar afirmando que a psicanálise contemporânea é aquela que leva essa posição freudiana à sua radicalidade máxima, endereçando-se a explorar situações ricas em tais dificuldades e a estender o campo psicanalítico nessas direções. As transferências passionais e as saídas paradoxais para se defender do enlouquecimento - na transferência e fora dela - oferecem um eixo fértil de exploração na escuta.
Água na fervura
Em uma pequena epígrafe a um dos artigos do livro O trabalho do negativo (1993/2010b), André Green, expoente e impulsionador do movimento coletivo de investigação do contemporâneo, faz referência a Bartleby, personagem de Herman Melville de 1853. Uma discreta menção, que dá notícias do campo clínico de interesse do autor de A loucura privada. Bartleby é um escriturário recém-contratado que responde a tudo com um indiferente “Prefiro não”. Recusa-se ao trabalho extra, assim como às tarefas básicas, ou às iniciativas óbvias de se retirar após ser demitido, ou comer para se alimentar. Tudo é repelido com o perturbador “Prefiro não”. Precursor da literatura do absurdo, Melville constrói um personagem que adota o nada como estilo de vida. O leitor acompanha o desespero do chefe, que desistindo de tentar fazê-lo trabalhar, se vê impotente também em demiti-lo. Exasperado e incapaz de convencer Bartleby a ir embora para concretizar a demissão, o chefe muda o endereço do escritório, numa versão negativa do provérbio sobre Maomé ir à montanha. (“Se Maomé não vai à montanha, a montanha vai a Maomé” transforma-se em “Se Bartleby não sai do escritório, o escritório é que sai de Bartleby”). Na última cena, já na prisão e subnutrido, Bartleby rejeita a oferta de alimento, encerrando o livro com o seu usual e perturbador “Prefiro não”.
Esse ideal de indiferença que tende ao apagamento de qualquer rastro desejante foi igualmente desconcertante no trabalho com uma paciente que chamei de Frida,3 uma jovem tão perspicaz quanto sensível e machucada. Rechaçava com afinco qualquer vulnerabilidade percebida em si e nos outros, e tendia a rejeitar nuances, combatidas com certezas defensivas. Com os erros ela era implacável - com os dos outros, sem dúvida, mas especialmente com os próprios, o que tornava quase insuportável sobreviver a eles.
Marcada por rupturas primárias na infância, vivida em uma condição de pobreza e violência, começou a análise esclarecendo que isso não era um problema, não considerava tais fatos causadores de traumas. Achava tudo isso uma bobagem.
Suas queixas surgiam em brechas a dividir espaço com uma expectativa de imunidade a conflitos. Assumir sofrimentos seria admitir não apenas inseguranças próprias, mas também uma demanda para a análise e para a analista, posição ameaçadora evitada a todo o custo. Costumava desfazer-se de qualquer esboço de demanda com a expressão “Não foi nada”, que se seguia às afirmações dos incômodos intersubjetivos.
Como se em contato com uma versão contemporânea de Bartleby, sua análise se inventou no marco de um ideal de autossuficiência pouco compatível com um movimento autorreflexivo. Os eventos que se sucederam me permitiram ressignificar seus esforços em prescindir de demandar.
Frida estava atraída por um homem, despertada eroticamente e querendo viver o mundo excitante fora de casa, disposição nada corriqueira em sua vida. Havia uma urgência e alguma coragem de se entregar a essa paixão, assim como um temor de perder o refúgio seguro para onde voltar. Paixão, do grego pathos, que também designa sofrimento e passividade, implicava sentir que se jogava vulnerável nas mãos de alguém, que poderia não estar lá firme para recebê-la - imagem com que ela concordava, embora considerasse romântica e um pouco boba, típica de mulher que confia em homem. Um passo nessa direção e estávamos diante do precipício. Consumado um encontro, o tempo de fato virou. Excitada, interpretou cada gesto a partir de então como evidente sinal de desprezo e desinteresse, o que a fazia se sentir um lixo. Humilhada, não podia pensar em mais nada.
Como que desviando a mira da metralhadora de acusações e críticas antes insuportavelmente endereçadas para si, aponta o alvo das queixas para a analista: se sentiu andando em má companhia, assistida por alguém que sabia que ela quebraria a cara e não a impediu.
Iniciamos uma longa fase em que seu narcisismo parecia estar por um fio, e sua análise também. Atravessamos momentos agudos de impasse. Muitas vezes me disse ter vindo para sua última sessão, ocupando a análise para declarar com palavras o descuido ou o mal uso da confiança. Noutras vezes se mantinha numa espécie de protesto silencioso, sem clima de falar. Uma fúria declarada ou muda - em todo caso, impiedosa. Cada vez que, como analista, eu estava prestes a jogar a toalha, imaginando termos perdido aquela análise, algum fio de ligação se relançava e seguíamos.
Mergulhávamos numa paixão transferencial. Acusou a análise e a analista de terem destruído a sua vida. Já não parecia claro de qual das duas partiam as fantasias que ela ousou realizar. Seriam dela ou da analista? Nem na adolescência admitiu cair em papo de homem e passar pela humilhação de se apaixonar, e agora lá estava ela. Sentiu vontade de morrer. Alguns dias não conseguia sair da cama. Não se conformava de ter precisado passar por isso para aprender o que sua versão adolescente já sabia.
De fato, só naquele momento arriscava se envolver, sentia que dava conta de atravessar o desabrigo de desejar insaciavelmente, de chegar a estar com alguém querendo de forma tão desmesurada a ponto de pôr em xeque seus limites e desesperar por respostas do outro, nocaute ao seu narcisismo. Já não sabia o que fazer com o que fervilhava dentro dela.
A sensação contratransferencial era de viver com ela em um episódio de Round 6, série sul-coreana na qual os envolvidos participam de jogos inspirados em brincadeiras infantis, mas nos quais os deslizes são mortais - cada erro, uma cabeça cortada. Minha associação com a série a deixou curiosa.
Pontalis lembra que a transferência é um agir: “A transferência é uma paixão, não um dizer” (1990/1991, p. 52). É o que já estava anunciado por Freud em “A dinâmica da transferência”, quando menciona que a paciente “quer agir suas paixões” (1912/1989, p. 105). Embora toda transferência tenha uma dimensão agida, ela pode ter características dramáticas que convocam violentamente o analista para o palco nas dinâmicas além do princípio de prazer.
“Há uma mudança completa de cenário, como quando uma brincadeira dá lugar a uma realidade que irrompe inesperadamente como um grito de ‘Incêndio!’ lançado no meio de uma apresentação teatral” (Freud, 1915/2010, p. 214).
Embora chamadas a um corpo a corpo incendiado difícil de metaforizar, eventualmente fomos sobrevivendo ambas. Nos momentos transferenciais mais quentes, nos quais eu tratava de suportar ser destruída e insistir em me manter investindo, vivíamos no teatro da sessão sua dramaturgia pessoal traumática. Demos contorno e reconhecimento para a sensação de maus-tratos e descuido, de ser deixada à própria sorte numa situação de muito desamparo e risco. Percebemos juntas o quanto subestimamos o movimento violento que viria a se detonar nela na situação de paixão amorosa.
Numa ocasião em que pensávamos sobre esse seu aspecto duro e implacável, formulei que, por vezes, quando está muito difícil para alguém conviver com uma cicatriz que tem no punho, por exemplo, pode surgir uma vontade de amputar o braço inteiro, como tentativa desesperada de se ver livre da marca.
Interessada na imagem, completou dizendo que, no seu caso, queria também poder cortar todos os que participaram desse momento - afastou-se inclusive das amigas.
“Está eliminando as testemunhas?”, eu perguntei, ao que ela respondeu com uma gargalhada.
Minha íntima hipótese é de que se tratava de testemunhas da sua fome de outro, causadora de desconcerto, tamanha a violência com a qual se viu ansiar o encontro, o olhar, o contato, a intensidade com a qual seus limites ameaçavam se perder entre os corpos e os espíritos. Aquele “Não foi nada” tendo sido arrancado abruptamente de cena pela própria urgência. Desmesura que beirava a perda da dignidade, paixão. O passional é a fórmula em contato com a qual o sentimento de eu ameaça se dissolver, como bem observou Freud ao dizer ser esse o estado especial no qual “a fronteira entre o eu e o objeto ameaça se sobrepor” (1930/2020, p. 308), perdendo-se os limites “claros e nítidos”. Limite, noção alçada a conceito central em Green.
Penso no limiar da loucura, no quase chegar do outro lado de que fala Annie Ernaux - na ameaça de desamparo e na sensação de humilhação de ter uma vida pulsional, de ter urgências na direção de alguém, de padecer passionalmente, apassivada pelo próprio pulsional e pelo poder atribuído à pessoa, excedendo todas as capacidades do eu de caber em si. Contra a hybris, o esforço de não demandar nada de ninguém - nem dos homens, nem dos amigos, nem da análise. “Desde setembro do ano passado, não fiz outra coisa além de esperar por um homem”, diz Annie Ernaux (1991/2023, p. 9) sobre seu mergulho apaixonado. Um estado em que a vida se colore ou desbota a depender do outro.
Passados esses momentos mais intensos, Frida me confidencia que há uma área especialmente excitável em seu corpo, na qual o toque participa de seus melhores momentos sexuais. Conta-me que foi acariciada nessa região no fatídico encontro, e que desde então nunca mais pôde encostar ou se deixar tocar ali, nem mesmo para se higienizar no banho, o que resultou em problemas de pele. O rechaço de uma área inteira do próprio corpo, testemunha de sua excitação, revelava os caminhos radicais pelos quais tentava negativar o traumático. Corta-se no corpo e na psique, automutila-se.
Paixão e ameaça: o pulsional louco
Eu nunca havia mergulhado, não nado muito bem e o oceano me dá medo, mas o lugar parecia tão lindo e a oportunidade tão única que não quis desperdiçá-la. Pulei na água com o cilindro e durante cinco ou dez minutos aquilo foi o paraíso: danças deslumbrantes de peixes multicoloridos, sedosas melenas de anêmonas-do-mar, reflexos de sol no mar como diamantes partidos. Eu estava feliz da vida contemplando aquele esplendor quando dei uma braçada e virei à direita, e de repente me encontrei sobre um abismo de uma escuridão absoluta, sobre um buraco no arrecife que se abria à vertiginosa profundidade do fundo do mar. … Senti que estava caindo, que o poço me engolia, que não havia água capaz de me amparar.
ROSA MONTERO, O perigo de estar lúcida
Mas o que de tão perturbador porta a paixão amorosa? Se a experiência de se misturar e se ver vulnerável participa da paixão, essa experiência convoca em cada pessoa sua própria vivência primária de arrebatamento e entrega. “O amor da criança é desmedido, exige exclusividade e não se dá por satisfeito com parcialidades” (Freud, 1931/2018, p. 293). Dessa citação, podemos destacar não apenas a desmesura e sua fonte na relação primária, mas também o enlouquecimento potencial do erótico. Sua fonte na relação originária incestuosa e indiscriminada atesta suas raízes. E as diversas formas como tais raízes foram implantadas certamente impactam a experiência de revivê-las.
Piera Aulagnier, no livro Os destinos do prazer: alienação, amor, paixão (1979/1985), afirma que a diferença entre amor e paixão não está na intensidade - a paixão não é um amor mais intenso -, mas na qualidade. O objeto de desejo, no caso da paixão, se transforma em objeto de necessidade. Para Aulagnier, os vínculos podem ser simétricos ou assimétricos, sendo a paixão, ao lado da dependência de drogas e do jogo, parte do segundo grupo. Haveria uma idealização que atribui um poder desigual ao destinatário da paixão, que pode proporcionar não apenas prazer, mas sofrimento. A sensação é de não dispor do mesmo poder de fazer sofrer que se atribui ao outro.
Em uma direção similar, Joyce McDougall (1982/1992) fala de pessoas utilizadas como drogas, aproximando a dependência em relação a alguém que se torna indispensável a adições ao jogo ou a substâncias. Slavoj Žižek fala do medo de “cair de amor” e sublinha o fall na expressão fall in love, queda do eu que abala a estabilização narcísica (Žižek Comedy, 2017).
A assimetria da paixão amorosa, nessa perspectiva, é seu selo de denominação de origem. O outro, quando descoberto, nas origens do psíquico, é absolutamente necessário, vital para o infans, que exposto a suas formas de cuidado o sente como insubstituível. Por mais intenso que seja o investimento da mãe em um filho, ele não é exclusivo e simétrico àquele que o bebê direciona à mãe, que representa não apenas fonte de prazer, mas de atendimento de suas necessidades fundamentais.
A regressão que experimenta a “mãe suficientemente boa” ou “mãe devotada comum” (Winnicott, 1958/2000, 1965/2001, 1986/2005) a faz sintonizar com a mistura originária e responder a ela com uma sensibilidade aumentada, adivinhando o que se passa e os gestos que deve empreender. Uma quase doença na qual a mãe é capaz de entrar e também sair. Tal capacidade de predizer necessidades e se sentir fonte do bem e do mal para o filho compõe a “loucura primária materna” (Green, 1980/2017).
Piera Aulagnier (1975/1979) chama de violência primária o investimento antecipado da subjetivação do infans pelo desejo dos pais, os quais, como porta-vozes que falam por e sobre ele, projetam uma sombra falada sobre seu corpo e seu psíquico. Embora inevitavelmente defasada com relação ao vivido, tal antecipação é vital, mas pode se tornar abusiva.
Quando há desencontros radicais, os impactos se farão sentir na vida: nas relações amorosas ordinárias e também na transferência em análise. Havendo a experiência de uma passivação traumática (Green, 1996a, 1996b, 1980/2017; Urribarri, 2023), fundada sobre aquela originária universal, mas excedendo seus contornos, ela poderá vir a se refletir numa dinâmica transferencial limite que, nos momentos de repetição traumática, se apresente como vivência de um submetimento apassivador.
O que se torna então a análise … no próprio momento em que a paixão, em geral mais surda que declarada, ocupa o território? … Quando a análise acaba falando assim a linguagem da paixão … corpo a corpo psíquico, por assim dizer, entre o amor e a guerra. (Pontalis, 1990/1991, pp. 86 e 91)
A chama que se acende e infiltra
Green (1980/2017) resgata a noção de loucura e a contrasta com a de psicose, essa última nosograficamente delimitada. A primeira, própria do humano, não escapa a ninguém, e estará presente em toda transferência.4 Tem parentesco com a paixão, “dois afluentes do mesmo rio, cuja fonte é hybris” (p. 140).5 Eros teria uma “essência intrinsecamente louca” (p. 148). Dela participa a loucura primária materna, que é passional. Aristóteles (século 4 a.C./2000) entende por paixões tudo o que faz variar os juízos e a que seguem sofrimento e prazer. Paixão é afetação, capaz de invadir o eu e abalar a razão, como nas fendas de loucuras não psicóticas. Quando o polo da paixão possui o sujeito e extrapola todas as capacidades do eu, testemunhamos sua loucura.
Para um ouvido treinado, mesmo na mais banal das neuroses …, chega um momento em que se manifesta na contratransferência do analista o sentimento de que está lidando com um funcionamento mental louco: esse momento é passageiro, mas ele é crucial. A neurose nos ilude, porque nela o pensamento racional se encontra intacto, porque aí as fantasias se encontram contidas num território limitado. (Green, 1980/2017, p. 149)
O território que a fantasia inconsciente delimita protege do esparramamento desorganizador do eu que marca a loucura. Do pulsional infiltrante. O afeto, que pode estar suficientemente articulado em uma cadeia representativa, também pode se manifestar em investimento torrencial que inunda com sua força as capacidades de ligação do eu. A relação passional amorosa é terreno fértil para essa vivência. Inserida no registro da assimetria, entre o prazer e a necessidade, ela pode ser vivida como enlouquecedora.
Encontraremos sempre no homem a nostalgia do excesso de prazer vivido em seu encontro com o primeiro objeto de sua paixão, e a angústia que o invade diante da ideia de que, ao reviver uma mesma relação, poderá reviver o excesso de sofrimento por ela imposto. (Aulagnier, 1979/1985, p. 120)
Em “A sexualidade nas estruturas não neuróticas: ontem e hoje” (Green, 1996/2021), vemos desdobrados os impactos que pode ter o sexual na desorganização do narcisismo. A partir de exemplos clínicos ligados à evitação fóbica de qualquer situação que conduza a uma relação sexual, Green demonstra como os transtornos do eu não deveriam ser separados da sexualidade e de suas vicissitudes.
Diante dessa chama ameaçadora, pode ser necessário à economia narcísica contar com um outro que seja continente para o que não é aceito como parte de sua própria vida psíquica. Como no teatro do transicional de McDougall (1982/1992), o eu, para se equilibrar, pode precisar que alguém exerça um certo papel que o libere de um conflito intrapsíquico delicado. “O outro será considerado inteiramente responsável por tudo o que lhe ocorrer, o indivíduo espera que o outro lhe traga a felicidade, e não se trata de uma esperança, mas sim de um dever” (p. 55). O curioso é pensar que o papel atribuído a esse outro pode ser justamente o de falhar, se enganar ou maltratar: se provar o responsável por toda a infelicidade do sujeito.
Paixão, loucura e esforços de conjuração
A clínica do negativo nos apresenta uma heterogeneidade de movimentos dessimbolizantes que tentam negativar marcas do vivido, pondo água na fervura das intensidades insuportáveis. Tanto a chama como seus antídotos são testemunhados nas manifestações transferenciais e contratransferenciais.
O reconhecimento da aptidão do objeto para ameaçar a organização psíquica e mergulhar o eu em estados de desespero torna possível escutar tentativas de desinvesti-lo (o objeto) até suas raízes no corpo e no próprio eu, como faz Frida.
As experiências traumáticas, em especial as primárias, são capazes de amarrar pulsão e objeto de tal maneira que a vida pulsional se identifica com o objeto que jamais poderá satisfazer (Green, 1993/2010b), dando origem ao “desejo de não desejo” (Aulagnier, 1975/1979). A onipotência, ainda que aquela negativa, que busca não precisar, não desejar, não demandar, é uma resposta para contornar a ameaça de desborde e dependência: um modo de compensar o narcisismo pela via do negativo.
Diante da loucura e da transferência passional, experiências de intensidade hiperbólica, surgem respostas para conjurá-las, num jogo dinâmico entre as posições de onipotência negativa (Green, 1999/2010a, 1980/2017; Urribarri, 2023) e o esboço de abertura desejante, atravessados por vulnerabilidades narcísicas e acusações autodestrutivas.
A conjuração, como vemos, pode atingir o próprio pulsional, numa transferência de sua fonte para o objeto: despossessão subjetiva da pulsão (Green, 1993/2010b), efeito possível do desencontro radical primário. O sujeito passa a sentir que pulsionalmente só existe ativado desde fora, a partir das manobras vindas do outro, de quem precisa se defender, tornando-se mais importante “dizer não ao objeto que dizer sim a si mesmo” (p. 112).
Quando isso é manifestado na relação transferencial, o campo intersubjetivo em sessão torna-se palco de uma luta pela defesa de um território ameaçado, exigindo do analista uma presença que consinta em sacrificar seu narcisismo em favor da análise. Frente aos anseios por autossuficiência e eventualmente até por eliminação de toda a tensão vital possível, como em Bartleby, a análise pode encontrar grandes obstáculos à sua progressão, se desenrolar em meio a dinâmicas desorganizadoras, ligadas à pulsionalização das defesas e ao fracasso em criar formações intermediárias.
Toda transferência tem uma potencialidade passional que, quando realizada, posiciona a análise em um terreno explosivo. Nesse campo minado, a capacidade de jogo do psicanalista é colocada à prova, sua elaboração contratransferencial exige trabalho psíquico, e a sobrevivência de sua criatividade poderá sustentar a transferência e resgatar, ao menos em sua escuta, alguma dimensão do “como se”, perdido quando o fogo toma o teatro.