Prólogo
No excelente documentário Nelson Freire (2003), dirigido por João Moreira Salles, num dos blocos temáticos, denominado “Uma frustração”, há uma cena em que o pianista vê na televisão um filme em preto e branco com Erroll Garner tocando vivamente piano. A câmera focaliza ora a tv, ora Nelson e suas expressões de alegria entusiasmada e comovida.
Transcrevo o diálogo entre o cineasta e Nelson:
NF: Olha, eu tenho uma inveja incrível de quem sabe tocar jazz. Sabe uma coisa que eu adoraria? Por exemplo, chegar assim e de repente improvisar e tocar… Tenho fascinação por Erroll Garner! Eu nunca vi ninguém tocar com tanto prazer, sabe? Prazer assim. [Gargalhada.] Alegria! Alegria de tocar! Foi isso que me levou ao piano. O piano era o momento, quando eu era pequenino, em que eu tinha um prazer. Eu não saio satisfeito de um concerto se não tenho pelo menos um minutinho disso. Os pianistas clássicos, antigamente, tinham essa alegria. Rubinstein tinha, Horowitz, Guiomar Novaes tinha isso, Martha Argerich tem isso.
JMS: E você?
[Nelson inclina a cabeça com uma expressão marota, que sugere um ponto de interrogação.] (01:11:36)
Apesar da expressão de dúvida que capto na cena, acredito que Nelson Freire usufruía da vivacidade de tocar, mergulhado em prazer musical. No mesmo documentário, aparece uma manchete de jornal bastante sugestiva sobre Nelson Freire: “Pianista tenta ser discreto, mas seu talento não permite”. É notável que o talento transborda a atitude discreta do artista, revela a exuberância da alma inquieta e o imenso prazer de tocar. O talento faz da música presença viva, transcende a precisão técnica e torna imperceptível a teoria conceitual. Técnica e teoria estão ali, mas é possível se esquecer delas.
Clarice Lispector disse que vocação é diferente de talento: pode-se ter vocação e não ter talento, isto é, pode-se ser chamado e não saber como ir. Nelson Freire sabia como ir, atendia ao chamado e se tornava música. Piano e pianista se tornavam um único corpo.
Ao falar da inveja de quem toca piano como diversão, como na atuação de Erroll Garner, Nelson Freire parece lamentar o rigor formal de um concerto de piano clássico. Ele diz precisar de “pelo menos um minutinho” que seja como aquele. Improvisar é diferente de seguir a partitura, ainda que seja possível ao pianista interpretar à sua maneira. Grandes pianistas imprimem sua marca pessoal em suas interpretações. Mas na cena descrita o que chama a atenção é a intensa e alegre leveza de Erroll Garner. Não é de graça que se atinge esse “estado de graça”. O que Nelson destaca ali é um momento de at-one-ment, um estado de unicidade. O artista vive a música em total sintonia de corpo e alma, sendo “ele mesmo”. Erroll Garner “brinca” ao piano.
Nas diversas expressões do fazer artístico, anos de formação são necessários. Estudo e conhecimento conceitual, aliados à prática orientada por profissionais mais experientes. Tomo isto como um fato dado: que, para alcançar ou resgatar a espontaneidade da improvisação, foi percorrido um longo caminho de iniciação à técnica, estudos teóricos e muita prática.
Neste texto, procuro apresentar variações em torno do brincar e da criatividade na clínica do psicanalista, com especial atenção à linguagem do analista. Faço um exercício de expressar minhas ideias de modo pessoal, embasada em teorias psicanalíticas conhecidas e com o auxílio dos artistas.
Criatividade e clínica
Tudo começa com um gesto espontâneo que busca o encontro. O gesto é potência de Ser, que no encontro com a realidade faz-se existência. O bebê, sustentado pela mãe suficientemente boa, vive a onipotência proporcionada pela área de ilusão. O famoso paradoxo. O bebê cria o seio que está lá para ser criado. Ele busca pelo gesto espontâneo, encontra o seio que o alimenta e nutre. Essa coreografia tão delicada depende da sintonia da mãe em estado de devoção, que aprende a se colocar no ritmo próprio do bebê, sem se adiantar, invadindo e roubando a oportunidade do gesto espontâneo, e sem demorar demais, o que ocasionaria o despencar no vazio.
Winnicott foi o analista que mais levou a sério a questão do brincar, elevando esse aspecto da atividade humana a um conceito definidor de uma área da experiência e a um critério de avaliação de saúde mental. O brincar é uma conquista do viver saudável. A criatividade e a capacidade de brincar são sinônimos do sentir-se vivo e real num mundo vivo.
Para Winnicott, ser criativo é o mesmo que Ser. Implica a possibilidade de fazer à sua própria maneira. Nesse sentido, eu diria que um clínico criativo, no sentido proposto por Winnicott, nunca seria winnicottiano, nem qualquer outro adjetivo terminado em “ano”; ele seria necessariamente “ele mesmo”. Sabemos que não é uma tarefa fácil e que envolve um processo de amadurecimento, de estar familiarizado com as diversas teorias e, com o tempo, escolher ou ser escolhido por aquelas que mais se harmonizam com seu modo de ser e pensar a própria clínica.
Acredito que quanto mais o analista puder se nutrir de literatura, música, pintura, dança, teatro, cinema, mais repertório terá para acompanhar os pacientes, encontrando meios de expressar o que muitas vezes parece impensável, indizível ou incomunicável. A arte e os verdadeiros artistas nos emprestam uma sensibilidade especial e uma captação expressiva das nuances da experiência humana, que envolve um trânsito fluido entre o mundo real e a subjetividade, com capacidade de mergulho nas áreas mais profundas e precoces da existência. Desde Freud, arte e psicanálise sempre estiveram próximas e em diálogo fértil.
O analista criativo exerce sua liberdade de forma compromissada e engajada, consciente de sua função - função psicanalítica, que envolve estar a serviço do paciente, propiciando uma experiência que se traduza em amadurecimento pessoal e expansão da personalidade. Estar na sessão é acreditar na potência do encontro humano. É estar inteiro usando todo o repertório de pessoa viva, presente em cada célula do corpo. É deixar-se afetar pelo paciente. É saber da delicadeza e das dores implicadas no processo de estar vivo, em cada etapa do acontecer humano. Ser um clínico criativo envolve um extenso trabalho de análise pessoal, supervisões e estudo da história e da teoria psicanalítica. Toda inovação parte da tradição.
“Existe uma tensão dialética entre, de um lado, nos inventarmos de maneira nova, e, de outro, usarmos criativamente nossa ancestralidade emocional” (Ogden, 2023b, p. 132).
É necessário conhecer o pensamento dos analistas e, com o tempo, exercitar o diálogo entre as teorias. Cada analista cria sua própria caixa de ferramentas, com as teorias que mais usa e que lhe fazem mais sentido.
Ainda citando Ogden:
Temos a responsabilidade de nos tornarmos o analista que antes nunca fomos com cada paciente. Algo que exige abandonar o roteiro e entabularmos uma conversa nunca antes experimentada, … deixar-se transportar pela música da sessão. … Os analistas aprendem mais sobre quem são quando participam da dança do momento. … Estar vivo depende da disponibilidade e capacidade de improvisar e de ser improvisado pelo inconsciente da relação analítica. (pp. 145-146)
Ogden destaca a qualidade de vivacidade no uso da linguagem. Quando analista e analisando são capazes de pensar e falar por si mesmos, eles não utilizam “linguagem emprestada” - por exemplo, jargões, clichês e termos técnicos. Sua linguagem tende a ser viva, suas metáforas têm frescor. O uso da linguagem serve para comunicar, e não para obscurecer; gerar compreensão, e não confusão; dizer o que é verdadeiro em nossa experiência emocional, e não perverter a verdade.
O paciente doente não alcança o brincar. Pode estar aprisionado num excesso de objetividade e ser incapaz de sonhar, ou estar vivendo num mundo subjetivo que não leva em conta o real, que pode se traduzir em alucinação e delírio. As patologias se inserem neste lugar: distúrbios na área da transicionalidade. Ao deslocar o campo primordial de atenção do analista para esse lugar do entre, do que não é dentro e não é fora, lugar do paradoxo, Winnicott abre um espaço sempre em transição, em processo. Processos humanos que acontecem ao longo do tempo. Não são estruturas fixas.
Estamos sempre sujeitos a perder o lugar do espaço transicional, uma vez que o diálogo entre mundo objetivo e mundo subjetivo se dá sempre na experiência da precariedade. Oscilamos entre o desprendimento e a necessidade de controle dos objetos.
Para as crianças, o brincar é uma atividade séria e comprometida. A brincadeira é o lugar da experimentação, do uso criativo da imaginação. O brincar renova a área de ilusão, que é perdida e recuperada - portanto, instável. Na observação de crianças brincando, podemos ver como é comum uma brincadeira “acabar mal”. Algo interfere no jogo livre imaginativo e pode trazer sofrimento. A magia do brincar se interrompe, e a realidade invade. Na situação analítica, por vezes uma palavra pode gerar essa quebra na fluidez da conversa, causando impactos disruptivos. Uma palavra que para aquela pessoa em especial tem repercussões que remetem a grandes desastres.
Uma paciente contava que às vezes, numa relação física com outra pessoa, qualquer estímulo inesperado fazia com que um beijo deixasse de ser um beijo e se tornasse “dentes e língua”. A magia do beijo se rompia, e ela despencava numa concretude árida. A troca amorosa se tornava troca de saliva. Era uma perda de sentido, perda da transicionalidade.
O aspecto de precariedade aparece nos versos da música “O circo místico”, letra de Chico Buarque:
Não
Não sei se é um truque banal
Se um invisível cordão
Sustenta a vida real
Penso que esses versos traduzem em imagem visual aquilo que estou tentando descrever. Nossa sanidade se sustenta por um invisível cordão não necessariamente frágil, mas sujeito a rupturas, dependendo dos impactos do ambiente. A fala poética focaliza o aspecto instável envolvido no processo de construção da subjetividade, que nunca se encerra. É o vir a ser humano e suas vicissitudes.
Na arte e na psicanálise, as fronteiras são móveis. Nada é estático.
Nascemos e crescemos dependentes do olhar do outro, do encontro humano. Aos poucos, a dupla mãe e bebê vai viver as etapas necessárias para que aconteça a separação. A princípio, mãe e bebê são um só. A dupla evolui da dependência absoluta para a dependência relativa e, posteriormente, para o alcance da autonomia, processo que se recria ao longo de toda a vida.
Tornar-se indivíduo, ser “um”, é a grande questão.
Winnicott propõe o espaço transicional, que evolui a partir do objeto transicional - primeira possessão não mim. Ainda usufruindo da área de ilusão, o bebê pode encontrar e atribuir a um objeto de sua escolha - um paninho, um ursinho, uma almofada etc. - uma característica especial. O objeto transicional ajuda a suportar o início de uma existência separada. Ele é a mãe e ao mesmo tempo não é. Ele pertence ao mundo real e ao mesmo tempo está no universo subjetivo do bebê. Incrível descoberta! Um pedaço do mundo que ajuda, tranquiliza e dá esperança. O objeto transicional tem características sensoriais e se apresenta como fenômeno estético. Ele acalma e restaura a integridade da criança e possibilita que ela suporte longos períodos sem perder a continuidade de si, quando a mãe ou os pais estão ausentes. Inaugura um lugar que vai se expandir para todo o universo da cultura. É o lugar onde acontece a brincadeira. O lugar da representação, dos símbolos, das artes.
O processo analítico só tem sentido por esse vértice, que acredita na força do encontro humano e o potencializa. Nossa principal ferramenta, historicamente, é a palavra. Mas o ato psicanalítico vai muito além da palavra, uma vez que a experiência envolve o psicossoma. Nossa existência é psicossomática. A experiência de encontro tem reverberações que se expandem muito além do tempo e do espaço da sessão. O analista criativo tem e usa esse conhecimento, trazendo para a transferência, no aqui e agora da sessão, tudo que puder recolher do universo da relação ampliada do paciente no mundo. Não é possível pensar o paciente sem incluir o ambiente em que vive.
Por exemplo, são comuns as referências do paciente aos arredores do consultório. A rua, o bairro se apresentam como extensões da sala de análise. Também algumas atividades buscadas em momentos da análise parecem suprir algo que ganha uma materialidade e concretude. Por exemplo, começar a aprender a nadar, em que a sustentação do meio aquático proporciona sensações corporais que remetem a vivências primitivas. A sustentação oferecida pelo divã no setting se amplia e ganha novas possibilidades na água.
Duas pessoas de corpo presente ressoam afetivamente por todos os sentidos e vivem sabores, odores, sensações táteis, visuais, auditivas, proprioceptivas. O encontro tem uma enorme potência criativa, e vai depender dos limites do analista e do analisando o alcance de uma análise.
Segurança e liberdade são dois fatores indispensáveis para a evolução da experiência emocional. A confiabilidade é dada pelo setting analítico com características de previsibilidade. O analista está lá, garantindo hora e local, presença viva e estável. Marion Milner chamou de hiato enquadrado a moldura que protege e demarca o que está dentro e o que está fora, permitindo que aquilo que está dentro seja “tomado como símbolo, como metáfora, e não literalmente” (1952/1991a, p. 87).
Mesmo as análises que acontecem no âmbito de uma instituição, como as análises de formação ou didáticas, que respeitam alguns critérios mínimos de exigências, como a frequência das sessões e o tempo de análise, precisam alcançar um lugar de liberdade, onde a capacidade criativa da dupla seja o único fator de limitação.
A liberdade de criar implica o abandono temporário do controle consciente, deixar a conversa fluir, caminhando no binômio criar/encontrar. Freud propôs a associação livre do paciente, acompanhada da atenção flutuante do analista. Cabe ao analista procurar manter-se na dimensão paradoxal da experiência, sabendo da sua instabilidade.
Ainda estamos sob o impacto das inovações do setting tradicional trazidas pela pandemia e pelos atendimentos online. Durante a pandemia, o que antes acontecia de forma pontual, em algumas situações específicas, tornou-se institucionalizado. Migramos nossos consultórios para o mundo virtual. Surpreendentemente, descobrimos que a análise foi possível, com experiências de contato profundo e comunicação inconsciente. Muitos de nós ainda trabalhamos de modo híbrido, presencial e online, o que vem sendo intensamente discutido. O fato é que o trabalho continuou. Cada analista descobriu sua própria forma de lidar com as novas dificuldades e perturbações. Os problemas com o trânsito em São Paulo, por exemplo, foram substituídos pelos problemas de instabilidade na conexão. Atrasos e faltas diminuíram muito. No início, assim como vários colegas, eu me sentia exausta após um dia de trabalho. Com o tempo, o cansaço diminuiu. Acredito que o cansaço se devia a ter que construir um consultório, levantar as paredes, carregar os tijolos que me permitissem encontrar o espaço da sala de análise dentro de mim (setting interno). Paredes que precisam ser confiáveis. O setting nos dá confiabilidade para poder “enlouquecer”, viver “na” transferência, criar no espaço transicional. É diferente do encontro que se materializa no consultório, com o tempo de ida, o ritual da chegada, da espera, o tempo de volta. Faltam o cumprimento de mão, o abraço, o beijinho em alguns casos. Mas é menos vivo? Alcançamos espaços improváveis; situações novas e imprevisíveis se apresentam. Tudo isso demanda criatividade, deixar-se transformar, buscar novos recursos (Malzyner, 2023).
Para Bollas, “o espaço analítico situa-se em algum lugar entre o físico e o psíquico” (1989/1992, p. 71).
Nos atendimentos online, temos o corpo da voz. Bollas (1998) ressaltou a importância da voz e das tonalidades afetivas. Um analista vivo reage vivamente com a voz. Ele cita o exemplo de um menino que desenhava objetos sem vida, até que um dia desenhou uma aranha. O terapeuta fez um comentário sobre a aranha, mas não celebrou a aranha. Para Bollas, era importante um “Ah! Uma aranha!!!”, uma fala que celebrasse a presença de um ser animado. Significativa notação por uma psicanálise viva! É a diferença entre uma comunicação racional, discursiva, do tipo “Eu sei que você entende o que estou falando”, e uma fala viva, “Eu percebo que você sente a minha experiência no seu coração”. São elementos não verbais que são captados por um analista que ressoa a experiência emocional. A palavra inglesa attunement refere-se a esse tipo de sintonia fina, que remete à disponibilidade materna de se colocar em uníssono com seu bebê.
Nas palavras do filósofo Juliano Pessanha, “um bom aliado é aquele que dá continuidade ao tom que o outro emite, a ponto de os polos se confundirem numa musicalidade una e única” (2018, p. 48).
Wright define duas formas de atividade psicanalítica:
Se eu falo com o paciente sobre sua experiência, ele entende que eu o ouvi, e pude em alguma medida compreendê-lo. Se , por outro lado, eu ofereço uma forma ou imagem que ressoa com sua experiência, ele sente que estou em contato com ele. (2009, p. 10)
Uma fala que habita o espaço potencial é lúdica, permite plasticidade, não é saturada. Também não é do paciente nem do analista; é dos dois, uma criação conjunta.
“Compreender no setting analítico começa com o paciente e o analista vivendo uma experiência juntos” (Winnicott, citado por Ogden, 2023a, p. 22). Compreender nesse sentido é um fenômeno ontológico, um aspecto essencial do ser da pessoa que é reconhecido por outra pessoa, num campo de confiabilidade.
Dimensão estética da experiência e palavra poética
Gilberto Safra usa o termo estética
para abordar o fenômeno pelo qual o indivíduo cria uma forma imagética, sensorial, que veicula sensações de encanto, temor, horror etc. Essas imagens, quando atualizadas pela presença de um outro significativo, permitem que a pessoa constitua os fundamentos dos aspectos do seu self, podendo então existir no mundo humano. (1999, p. 20)
Ao nascer, o bebê está imerso em um banho de sensações e estímulos sonoros, olfativos, táteis, visuais, de equilíbrio etc. Essa apreensão sensível do mundo é o que caracteriza o vértice estético. Ao ouvirmos uma bela sinfonia, por exemplo, somos envolvidos por estímulos sonoros geradores de emoções que nos atravessam. No consultório, as palavras do analista que conseguem captar a experiência que está sendo vivida podem suscitar a vivência estética, que vai além das palavras. Há pacientes extremamente sensíveis a mínimas alterações do setting, que remetem a essas experiências mais primitivas, da ordem do sensorial, como um cheiro em particular ou uma variação da luminosidade no consultório.
A simbolização é um dos processos fundamentais por meio dos quais o ser humano se transforma em sujeito. Jorge Luis Borges diz: “Depois de tudo, o que são as palavras? … As palavras são símbolos para lembranças compartilhadas” (citado por Guerra, 2013, p. 585). A palavra que o poeta nos sugere nasce do encontro com o outro, do compartilhar afetivo. Se não há encontro com o outro, não há vida psíquica, não há símbolo.
Marion Milner (1952/1991b), no seu artigo sobre a importância da área de ilusão para a formação dos símbolos, faz uma imersão no lugar da experiência entre-dois, onde nascem os símbolos. Nesse texto, a autora valoriza a experiência de ilusão no campo transferencial, recriando as condições para emergir a função simbólica. É no lugar da indiferenciação inicial entre eu e não eu que emerge a condição para “encontrar o familiar no não familiar” (p. 92). São os primeiros símbolos que começam a tornar o mundo compreensível. São os símbolos apresentativos, que antecedem a separação e portanto ainda não conhecem a ausência. Os símbolos representativos supõem a ausência, colocam-se no lugar da falta.
Milner entendeu que as interpretações transferenciais centradas em marcar a separação eu-outro intensificavam as resistências e defesas paranoides, bem como estimulavam atitudes hostis. Entendeu que o analista pode se colocar como uma extensão do paciente. Essa aceitação da indiferenciação seria necessária para que a separação acontecesse gradualmente, no seu próprio tempo.
No mesmo texto, ela destaca uma pequena parte da realidade que seja maleável, onde se tolere a convivência entre opostos, onde a questão subjetividade versus objetividade ainda não se coloque.
A palavra poética e o universo metafórico surgem desse lugar do entre, ou do eu ainda que não eu, lugar de fronteiras móveis.
A escritora Siri Hustvedt diz: “Onde habitam as palavras senão em uma zona situada entre a presença e a ausência? Uma zona de entre-idade” (citada por Guerra, 2013, p. 586).
Frayze-Pereira (2023) lembra que o próprio Freud chamou o campo psicanalítico de “reino entre-dois”. A vida psíquica acontece na relação entre o fora de si e o dentro de si, definindo o campo do entre-dois, marcado pelo hífen. O autor destaca a “importância filosófica do hífen, que determina uma articulação na qual os termos relacionados são inseparáveis, determinados pela própria ligação” (p. 24).
Poeticamente, Simone Weil escreveu sobre dois prisioneiros que se comunicam batendo na parede: “A parede é aquilo que os separa, mas também é o meio de comunicação” (citada por Tokarczuk, 2023, p. 219).
Se a linguagem verbal é nosso recurso privilegiado de comunicação, talvez seja a palavra poética aquela que mais oferece condições para a manutenção do paradoxo, sustentando a tensão entre objetivo e subjetivo, real e imaginário.
A palavra poética garante a porosidade, permite caminhar na incerteza, criando espaços de abertura. A antítese da palavra poética seria a palavra do “manual de uso”, aquela que define com precisão e não deixa margem para dúvidas. Na palavra poética, não há certo e errado; ela é flexível e permite ser modelada. A dimensão poética da linguagem possibilita brincar com as palavras. A palavra poética não se restringe ao poema, que enquanto forma tem suas regras. Assim, a prosa pode se valer da palavra poética, que transita no campo das metáforas, retirando a palavra do “estado de dicionário”.
A palavra poética tem o poder de ser evocativa, no sentido de evocar múltiplos significados e apontar sentidos. A palavra pode até mesmo transcender a dimensão do verbal, evocando experiências sonoras, olfativas, táteis.
O País do Entre
A escritora Olga Tokarczuk, em um belíssimo ensaio chamado “O País do Entre” (2023), apresenta ideias que ajudam a nos aproximar desse território fugidio. Ela ensina que,
através da palavra metaxy, Platão designava uma realidade misteriosa, que transcende a experiência humana e aquilo que o ser humano é capaz de imaginar. É uma zona paradoxal e infinita, localizada entre conceitos, onde os significados se diluem, onde se opõem e sobrepõem, onde reina aquilo que James Hillman chamou a base poética da mente. (p. 219)
O “faz de conta” do mundo infantil é parente do “como se” e da metaxy, que definem como tudo funciona no País do Entre. A metaxy questiona o modo binário do “isto ou aquilo”, dos opostos preto-branco, mulher-homem, um-muitos, entre outros. Metaxy e “como se” apontam
para uma esfera onde tudo existe de forma paradoxal e não exclusiva, onde as feições do mundo ondulam e permanecem sempre in statu nascendi, onde tudo pode acontecer e os opostos não se excluem, mas antes formam um prototecido da realidade que só se concretiza quando a sujeitamos às exigências da consciência e do discernimento. (p. 222)
O modo complexo, corroborado pela física contemporânea, admite o impacto do observador nos resultados da observação empírica.
O País do Entre se opõe a um mundo tecnicizado, ultrarracional, baseado no concreto, na literalidade e na lógica do “isto ou aquilo”. A escritora adverte para o perigo do literalismo, que estreita as possibilidades de vivenciar o mundo de forma plena e multidimensional, encerrando horizontes e fechando mentes. “Seu primeiro sintoma é a falta de capacidade de entender metáforas, e depois a pauperização do sentido de humor” (p. 227), o que se amplia para julgamentos peremptórios, intolerância à ambiguidade, perda da ironia, caminhando para o dogmatismo e o fundamentalismo.
Olga Tokarczuk está falando da importância da literatura e da ficção para dar sentido à realidade e ampliar a consciência. Acredito poder estender essa ideia para o papel da arte, em todas as suas manifestações. É no País do Entre que emergem as imagens, que nascem as metáforas e os símbolos com os quais nosso interno se comunica com o nosso externo. Ele nos protege da tendência da mente humana a tudo simplificar. Quando saímos de uma visão estreita para alcançar a dimensão ampliada do mundo,
nosso eu cresce, se enraíza na riqueza incomensurável da tradição e do mito, e ao mesmo tempo arranca para a frente, para regiões ainda completamente desconhecidas. … O País do Entre, cheio de seivas vitalizadoras, de onde viemos e onde nos encontramos de modo perfeitamente real, sem fronteiras, passaportes, idiomas. (p. 233)
Recentemente numa sessão, um paciente contava a experiência do filho, que aprendeu a andar de bicicleta sozinho. Num sonho, o menino aparece andando de bicicleta, portando fantásticas asas de dragão. A conversa prossegue com o tema do desejo de mais liberdade e das limitações vividas pelas escolhas. O dragão é um ser inexistente, reino da fantasia, e a bicicleta remete ao lugar do improvável. Como é possível equilibrar-se em duas rodas, desafiando as leis da gravidade? Veículo frágil, que depende da integração psicossomática finamente calibrada. Para alcançar o equilíbrio, há que se manter em eterno movimento. A imagem condensa memórias da infância e do presente e aponta para um futuro. Põe em diálogo o poder ilimitado do ser mitológico com o precária e vulnerável condição humana.
A clínica psicanalítica do entre se alimenta dessas seivas que nutrem e vitalizam as dinâmicas do par analista e analisando, na busca de mobilidade psíquica. As representações do eu são convocadas num passeio atemporal. As palavras nascem da experiência compartilhada, momento vivo e privilegiado do encontro em sessão.