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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641Xversão On-line ISSN 2175-3601

Rev. bras. psicanál vol.58 no.3 São Paulo  2024  Epub 28-Mar-2025

https://doi.org/10.69904/0486-641x.v58n3.10 

Temáticos

Sobre crianças e pombos1 2: Gestos de hospitalidade dirigidos à criança ferida

Sobre niños y palomas: gestos de hospitalidad hacia el niño traumado

About children and pigeons: hospitality actions towards the traumatized child

À propos des enfants et des pigeons : gestes d’hospitalité vers l’enfant blessé

Claudia Mazzini Perrotta3 

3Instituto Sedes Sapientiae. Espaço Potencial Winnicott (EPW-SP). Laboratório Interinstitucional de Estudos da Intersubjetividade e Psicanálise Contemporânea (LipSic-USP/PUC). São Paulo


Resumo

A autora apresenta uma leitura do filme Minhas tardes com Margueritte, ancorada em psicanalistas que ressaltam a importância de receber com hospitalidade, na clínica, a criança que habita o adulto adoecido. Enfatiza a oferta do brinquedo-livro por parte de Margueritte - uma senhora de 90 anos, leitora assídua de literatura - a Germain, um homem de meia-idade, pouco letrado, identificado com a imagem de incapaz intelectualmente, que foi se consolidando em sua biografia. A partir do olhar benevolente de Margueritte e do reconhecimento das capacidades simbólicas e imaginativas de Germain, ele pôde revisitar e ressignificar situações traumáticas, em especial no que se refere à apropriação da palavra escrita, podendo assim voltar a brincar com esse objeto cultural. Mediante a desconstrução da narrativa e a descrição de fragmentos do filme, a autora propõe uma analogia com o fazer clínico psicanalítico, destacando a importância da ética do cuidado.

Palavras-chave: hospitalidade; ética do cuidado; palavra escrita; psicanálise

Resumen

La autora presenta una lectura de la película Mis tardes con Margueritte, anclada en psicoanalistas que, en la práctica clínica, destacan la importancia de recibir con hospitalidad al niño que habita en el adulto enfermo. Destaca el ofrecimiento del libro-juguete por parte de Margueritte -una mujer de 90 años, ávida lectora de literatura- a Germain, un hombre de mediana edad, poco culto, identificado con la imagen de incapaz intelectual, que se ha consolidado en su biografía. A partir de la mirada benévola de Margueritte y del reconocimiento de las capacidades simbólicas e imaginativas de Germain, él pudo revisitar y dar un nuevo significado a situaciones traumáticas, especialmente en lo que respecta a la apropiación de la palabra escrita, pudiendo así volver a jugar con este objeto cultural. A través de la deconstrucción de la narrativa y la descripción de fragmentos de la película, la autora propone una analogía con la práctica clínica psicoanalítica, señalando la importancia de la ética del cuidado.

Palabras clave: hospitalidad; ética del cuidado; palabra escrita; psicoanálisis

Abstract

The author presents a reading of the film My afternoons with Margueritte, anchored in psychoanalysts who in the clinical practice highlight the importance of receiving with hospitality the child who lives in the sick adult. Emphasis is given to the offer of the toy-book by Margueritte - a 90-year-old woman, avid literature reader - to Germain, a middle-aged man, not very literate, identified with the image of being intellectually incapable that was consolidated in his biography. Based on Margueritte’s benevolent gaze and the recognition of Germain’s symbolic and imaginative capabilities, he was able to revisit and give new meaning to traumatic situations, especially with regard to the appropriation of the written word, thus being able to return to playing with this cultural object. Through deconstruction of the narrative and description of fragments of the film, the author proposes an analogy with psychoanalytic clinical practice, highlighting the importance of the ethics of care.

Keywords: hospitality; ethics of care; written word; psychoanalysis

Résumé

L’autrice présente une lecture du film La tête en friche, ancré chez des psychanalystes qui, pendant la pratique clinique, soulignent l’importance de recevoir avec hospitalité l’enfant qui vit dans l’adulte malade. L’accent est mis sur l’offre du livre-jouet par Margueritte - une femme de 90 ans, fervente lectrice de littérature - à Germain, un homme d’âge moyen, peu lettré, identifié à l’image d’un incapable intellectuel qui s’est consolidée dans sa biographie. S’appuyant sur le regard bienveillant de Margueritte et la reconnaissance des capacités symboliques et imaginatives de Germain, il a su revisiter et donner un nouveau sens à des situations traumatisantes, notamment en ce qui concerne l’appropriation de l’écrit, pouvant ainsi renouer avec le jeu avec cet objet culturel. À travers la déconstruction du récit et la description de fragments du film, l’autrice propose une analogie avec la pratique clinique psychanalytique, soulignant l’importance de l’éthique du soin.

Mots-clés: hospitalité; éthique des soins; mot écrit; psychanalyse

Experiências compartilhadas formam ligações invisíveis entre as pessoas, que se tornam fortalecidas à medida que começam a ter uma história. Gradualmente, as experiências serão referidas e conversadas e revividas em retrospecto, e descobriremos que lá evolui entre nós e a criança uma linguagem para falar, que é muito especial para cada criança, porque contém as suas próprias palavras e maneiras de lembrar e imaginar, que [num gesto de hospitalidade] nos damos ao trabalho de aprender e usar. … Se primeiro tomarmos cuidado para aprender as palavras de uma criança e seu especial significado para as coisas, então com o tempo a criança vai incorporar e utilizar as nossas palavras e os nossos significados como sendo próprios dela.

CLARE WINNICOTT

Essa citação de Clare Winnicott (1964/2004), assistente social e psicanalista inglesa - parceira dialógica de Donald Winnicott, ambos ancorados na matriz ferencziana (Figueiredo & Coelho Junior, 2018)4 -, me parece emoldurar muito bem o tema do filme que apresento neste artigo para pensarmos nas ligações invisíveis e potenciais que vão se dando entre crianças e cuidadoras/es. Ou, mais precisamente, entre nós, psicanalistas, e a criança ferida que habita a pessoa adulta que recebemos em nossa casa-clínica, com gestos de hospitalidade que se revelam vitalizantes.

Trata-se de La tête en friche, de Jean Becker (2010), baseado no livro homônimo de Marie-Sabine Roger. No Brasil, acertadamente, ganhou o título Minhas tardes com Margueritte, dando destaque ao vínculo amoroso, único, inusitado e irrepetível que foi se constituindo entre Germain, um cinquentão pouco letrado e um tanto grosseiro, e Margueritte, uma delicada cientista aposentada, já perto dos 90 anos, leitora assídua de literatura e moradora de um lar para idosos.

Vou iniciar com uma brincadeira, que serve tanto para quem já viu quanto para aqueles que ainda não conhecem o filme, para os quais o recomendo fortemente.

Faz de conta que nada sabemos do enredo, como se tivéssemos escolhido o título sem ler a sinopse, talvez atraídos pela figura do ator Gérard Depardieu. Dessa maneira, conseguimos captar mais precisamente o que, afinal, o diretor Jean Becker nos quer fazer ver através das lentes de sua câmera, o jogo de identificações com as personagens que apresenta. Ou como nos recebe em sua casa-filme - um primeiro gesto de hospitalidade de um bom anfitrião dirigido a nós, seus convidados-espectadores.

Penso que, no campo da clínica, esses gestos inaugurais também merecem nossa especial atenção. Isso porque somos desafiados a bem receber o outro em sua radicalidade, o estrangeiro que pede acolhimento, nos convocando a sustentar certa tensão sempre presente, já que o outro, necessariamente, excede o si mesmo, não sendo portanto simplesmente assimilável (Perrotta, 2023).

Como bem lembra o filósofo espanhol Jorge Larrosa, “receber é criar um lugar - abrir um espaço em que aquele que chega possa habitar; pôr-se à sua disposição, sem pretender reduzi-lo à lógica que impera em nossa casa” (2010, p. 187).

Pois bem, logo na primeira cena do filme, somos apresentados a um dos protagonistas: um homem robusto, vestindo um macacão um tanto surrado, caminha enquanto confere as notas de dinheiro que traz nas mãos, claramente se atrapalhando na contagem. Já nesse comecinho ficamos sabendo seu nome - Germain -, através de um amigo que passa de moto, o reconhece e o cumprimenta de modo efusivo.

Dando-se conta, enfim, de que o valor estava errado, Germain volta atrás e esbraveja chutando o portão da transportadora em que havia prestado serviço: “Canalhas, vocês me roubaram duas horas de trabalho, ladrões escrotos” (01:11). Sem ser atendido em sua reivindicação, recebendo de volta impropérios do patrão, que esbraveja sem se dignar a encará-lo pessoalmente, desiste e segue seu caminho, até chegar a uma praça da cidadezinha onde se passa a história.

Num monumento cercado de flores, muito concentrado e usando uma caneta tipo piloto, Germain se inclina para escrever com muito capricho o próprio nome, logo abaixo de outros de uma extensa lista gravada no mármore: chazes germain.

Conhecemos também a motorista do ônibus que por ali passa para deixar passageiros num ponto, e que logo sabemos ser sua namorada - uma mulher muito bela e jovial. Ela toca a buzina e, sorrindo, apenas lhe diz “não” pelo gesto universal de movimentar o dedo indicador. Um tanto mal-humorado, Germain devolve com outro gesto que todos conhecemos bem. Num clássico movimento de mãos, diz: “Siga e me deixe fazer o que quero”. Ou necessito: constar na lista de crianças mortas na guerra, em nome do país de origem, a França, certamente negligente no cuidado dessas pequenas cidadãs.

“Crianças acolhidas com rudeza e sem carinho morrem facilmente e de bom grado”, nos alerta Ferenczi (1929/1992c, p. 49).

Mais adiante, ficamos sabendo que se tratava de um ritual constantemente levado a cabo pelo personagem, uma espécie de obsessão - na cena, o próprio prefeito, que também diariamente apagava o nome de Germain do monumento, sai de seu gabinete para repreendê-lo com veemência, apontando a inadequação e falta de sentido de seu gesto: “É um monumento público, em homenagem aos mortos da guerra!” (12:56). Obviamente, não era o caso desse homem robusto, vendendo saúde.

Seguimos intrigados, nos perguntando o que teria morrido em Germain. Que áreas de seu mundo interno teriam sido aniquiladas a ponto de se identificar com aquela lista e reivindicar que seu nome nela constasse?

No livro Sabedoria do nunca, Juliano Pessanha também pergunta: Aninhado na praia de escombros, observo o giro do astro enquanto a sombra do rosto foragido repõe a questão: e se a criança jamais existiu?” (1999, p. 59). Como bem qualifica o autor, trata-se de um “pensamento inabitável”.

Chega então o momento do filme em que somos apresentados a uma senhorinha de casaco de tricô rosa, vestido florido de golas de renda enfeitadas com um camafeu. Sentada num banco da praça, desses feitos de pedra, sem encosto, parece bem confortável, concentrada na leitura do livro que traz nas mãos. Com aquela magreza de quem encolheu com a idade, mas cresceu para dentro, ouve Germain se aproximando - ele chega à praça já contando em voz alta o número de pombos que se alimentavam perto do banco. Adiantando-se, ela lhe diz que são 19. “Está falando comigo?”, ele pergunta. “Sim, meu jovem, lhe disse que são 19 pombos”. Germain ri, surpreso com o fato de ter sido chamado de jovem. “Você é jovem comparado comigo” (02:21).

Os dois iniciam uma prosa típica de encontros casuais numa praça. Intrigada, ela logo lhe pergunta: “Por que o senhor está contando os pombos?”. Ele responde: “Para saber se tinha algum novo” (02:41). Sem estranhar, ela chama a atenção de Germain para o de pena branca, lembrando que ele não estava lá no sábado - e assim também se revela uma assídua frequentadora da praça e observadora de pombos.

GERMAIN: Esse eu batizei de Pena Branca.

MARGUERITTE: O senhor dá nome a eles?

GERMAIN: Sim, para reconhecê-los. Cada um tem uma personalidade diferente, como as crianças… Como uma mãe poderá reconhecer seus filhos se não tiverem nomes?

MARGUERITTE: O senhor tem filhos? (02:55)

Diante da resposta negativa, com um olhar de pesar, Margueritte conta que também não os tem.

Atentos aos pombos, os dois seguem na conversa. Germain insiste na necessidade de batizar as crianças para que sejam reconhecidas por suas mães. Trata-se, afinal, como bem sabemos, de um dos rituais de hospitalidade dedicado a receber aquele que chega à nossa casa - batizar, atribuir um nome, como também apelidos carinhosos. No dizer de Figueiredo, esses rituais teriam como função retirar “o infante das trevas do não ser, da animalidade e da loucura, para colocá-lo entre os vivos e humanos” (2012, p. 132).

Mostrando-se um pai-cuidador atencioso, amoroso e hospitaleiro, Germain vai apresentando seus filhotes-pombos para sua nova amiga: Pedrinho e Dengosa, sempre se beijando; Cabeção; Mosca; Biscoito; Joãozinho, que empurra os outros; Gatuno, que rouba as penas. E por fim: “Aquela que fica provocando é Marguerite”. Ela revela então que também se chama Margueritte, com dois Ts, e completa: “Nasci de uma história de amor, como todo mundo”. Muito de imediato, é contestada por Germain: “Nem todo mundo. Alguns nascem de um erro” (03:46).

Os dois silenciam, e nesse curto espaço entre falas, assim como nós, espectadores, Margueritte parece intuir que Germain estava se referindo a si mesmo.

Ele se levanta para partir, e ao se despedir dele, com um simpático “Até outro dia, quem sabe”, Margueritte deixa cair o livro no chão, que logo é recolhido pelo prestativo Germain. “Como é seu nome?”, ela finalmente pergunta, dedicando-lhe palavras gentis, de agradecimento - algo bastante raro na vida desse homem, como vamos constatando no decorrer do filme: “Foi um prazer conhecê-lo, senhor Chazes, e obrigada por me apresentar a sua grande família!”. Retribuindo o cuidado, Germain alerta: “Cuide de sua bolsa, alguém pode roubá-la” (04:20). E sai sem se despedir, voltando a ser o grosseirão meio atabalhoado que nos foi apresentado no início do filme.

Do banco da praça, agora com a bolsa pertinho de si, mesmo sem nela guardar nada de valor, Margueritte segue acompanhando Germain com um olhar benevolente, sustentando dentro de si certa tristeza, que se fez presente na conversa dos dois sobre pombos e crianças.

Resgate da criança ferida que habita o adulto adoecido

São muitas as passagens do filme em que a criança Germain é por ele revisitada diante dos encontros com Margueritte, que foram se tornando sagrados.

Na mesma praça, no mesmo banco, cercada pela mesma família de pombos, a dupla era assídua, e nesse espaço-tempo verdejante, e potencial, como bem denomina Donald Winnicott (1971/1975a),5 permanecia apartada da vida ordinária, assim como nós, espectadores, enquanto assistimos ao filme.

No cotidiano com as pessoas da comunidade, com raras exceções, Germain é repetidamente ridicularizado, nomeado de burro, ingênuo, um bobão facilmente manipulável, e deslegitimado quando expressa suas opiniões e ideias. Pior: ele parece bem acomodado nesses rótulos, resignado, se identificando com todo esse desmerecimento de si que foi introjetando desde os primórdios - em especial, de suas capacidades intelectuais, algo que vinha de longa data.

Qual seria a origem dessa acomodação na certeza de sua inutilidade, de que é um nada, e nada tem a oferecer a um filho, como lamenta para a namorada diante do desejo dela de engravidar?

É fato que Ferenczi foi o primeiro psicanalista a propor enfaticamente que nosso olhar de analista se voltasse para a percepção da indiscernibilidade entre o bebê e o ambiente, destacando a capacidade de adultos-cuidadores entrarem em sintonia com as angústias e necessidades infantis, de modo a ofertar uma boa acolhida a quem chega ao mundo humano (Kupermann, 2009).

Então, como não poderia deixar de ser, ao revisitar sua infância, Germain reencontra sua mãe-solo - a pessoa real, uma velha encarquilhada e patética, encantada com a fantasia de si que projeta no espelho, grosseira, amalucada, se mistura à jovem e bela mãe-algoz internalizada pelo pequeno e submisso Germain.

Numa de suas lembranças de infância, num mercado, ele derruba sem querer um litro de leite e é humilhado publicamente por ela: “Imbecil, só faz besteiras! Já começou com um parto a fórceps, 10 horas de sofrimento de tão grande que era. Come, dá prejuízo e se suja: é só o que isso faz”. Acuado quando criança, aprisionado ao espelho da mãe, agora homem feito, em suas deambulações, enquanto se dedica a esculpir em madeira os pombos-filhos da praça, diz em voz alta, em tom de revolta: “Como pode chamar alguém de isso? Nem um cão chamaria de isso. Se tivesse um cão, ele chamaria cão”. E conclui: “As pessoas deviam pensar duas vezes antes de ter filhos. Porque uma criança não é um cachorro que se abandona na estrada” (08:39).

São inúmeras e aflitivas as agressões que sofre desde garoto até a vida adulta. Numa das cenas, a mãe real arranca com violência os brotos de alho-poró que o filho cultivava com muita dedicação para vender na feira, repetindo no presente a falha disruptiva que impediu o pequeno Germain de existir plenamente.

Além de recebê-lo com hostilidade, ela fere outro princípio da ética da hospitalidade: é preciso receber de peito aberto o que a criança tem a nos dar, seus dons, suas palavras, os produtos advindos de seu impulso criativo. Clare Winnicott (1964/2004), parafraseada por Perrotta (2023, p. 67), diz assim: “A mãe dá o leite, e a criança lhe oferta suas fezes - a mãe oferece amor por meio de uma provisão, o alimento, e recebe em troca algo que é criação própria de seu bebê, igualmente uma expressão amorosa”.

Mas a praça reserva a Germain um novo começo,6 uma nova morada num colo sustentador - ou holding, uma das funções de cuidado primordiais descrita por D. W. Winnicott (1971/1975a). “Bom dia, sr. Chazes”, cumprimenta Margueritte com vivacidade. “Parece até que tínhamos um encontro marcado.” Com olhar malicioso, brincalhão, ele pergunta: “Um encontro de amor?”, e avisa que ela já pode chamá-lo por seu primeiro nome. Margueritte diz:

Pensei em você e nos nossos pombos... Sabe, quando estamos folheando um livro, ficamos lendo trechos ao acaso, e acabei me deparando com esta frase: “Como imaginar uma cidade sem pombos, sem árvores e sem jardins, onde não se encontra nem rufar de asas, nem farfalhar de folhas?”.

Nesse longo trecho, ela segue revelando o prazer que sente em ler para os outros, e ao final pergunta se ele havia gostado. “Sim, mas você poderia ler de novo? Dessa vez não tão rápido?” (19:19).

Além de ser mal recebido pela mãe-solo, de não saber quem era seu pai - como revela com mágoa para a namorada numa cena anterior: “Em toda família há momentos de afeto. Afagam sua cabeça e dizem: ‘É a cara do pai’. Não sou a cara de ninguém. Talvez de um par de colhões” (09:59) -, Germain também sofre humilhações na escola por parte do professor-algoz, sendo todo o tempo desqualificado em sua capacidade de aprender. Não à toa, consolidou a autoimagem de eterno ignorantão: “Então, Chazes, não sabe a resposta?”, pergunta o professor, insinuando, num tom sarcástico, o quanto desmerecia o aluno, o qual, acuado diante do agressor, recebe passivamente a humilhação. Ele segue subindo o tom: “O sr. Chazes está confuso. É o problema de Chazes, ser mais lento que os outros rapazes”. Cúmplices, os colegas de turma, numa servidão voluntária, caem na gargalhada, enquanto o professor completa: “Não acompanha os rapazes, não é mesmo, Chazes?” (07:43).

Trata-se aqui do circuito da dor gerado pelo trauma real de que nos fala Ferenczi (1932/1990) e que, como propõe o psicanalista húngaro, podemos estender, para além do abuso sexual, a outras situações traumatogênicas em que o agressor se apresenta como objeto significativo de investimento amoroso - ou reverenciado como modelo em razão do suposto saber.

O tema é aprofundado em “Confusão de língua entre os adultos e a criança” (1933/1992b),7 em que Ferenczi destaca a dimensão intersubjetiva implicada nos adoecimentos psíquicos dos pacientes violentados, afirmando que a situação de violência em si é menos traumática do que a indiferença daquele para quem a criança busca comunicar o acontecido, a fim de ajudá-la a lhe dar algum sentido.

Nas palavras de Kupermann, “é a ausência desse testemunho e da presença sensível que lhe é inerente que torna o acidente inenarrável e traumático”. Ao contrário, “o acolhimento da criança e da sua linguagem permite a polissemia da palavra e a criação de sentidos inéditos para a experiência do viver” (2009, p. 50).

Ou seja, quando o adulto-cuidador não se apresenta como testemunha, negando o abuso, acaba por deslegitimar as tentativas de comunicação da criança, o que gera um sentimento de desesperança e desconfiança da própria percepção dos acontecimentos. Confusa, ela reage se identificando e se submetendo ao desejo do agressor, que é então introjetado e se torna intrapsíquico, somando-se ainda, em seu mundo interno, o sentimento de culpa - a criança passa a se sentir responsável pelo abuso que sofreu. A desqualificação do trauma vivido é nomeada por Ferenczi de desmentido:

O pior é realmente a negação, a afirmação de que não aconteceu nada, de que não houve sofrimento, ou até mesmo ser espancado e repreendido quando se manifesta a paralisia traumática do pensamento ou dos movimentos; é isso, sobretudo, o que torna o traumatismo patogênico. (Ferenczi, 1931/1992a, p. 79)

Transpondo a teorização ferencziana sobre o trauma para o nosso personagem, aquele que “só faz besteira”, penso que a desqualificação de seus potenciais para o desenvolvimento intelectual, em especial no campo do letramento, entre tantas violências que sofreu, produziu como defesa o afastamento, ou certa “paralisia traumática do pensamento” diante de situações letradas - o professor-algoz foi introjetado, e Germain passou a se submeter a ele, aceitando as humilhações públicas como se fosse merecedor delas, acreditando que era mesmo incapaz de aprender.

Em outra cena, em que Germain acessa uma memória dos bancos da escola, vemos o professor, sem dar trégua, sempre em tom sarcástico, cercando o aluno fracassado enquanto faz uma leitura com voz trêmula e titubeante - até que dá o bote: “Mesmo quando lê, o sr. Chazes comete erros de ortografia em voz alta!” (22:09). Mais gargalhadas, mais hostilidade, sem qualquer reação da criança ferida, que - a fim de garantir alguma sobrevivência diante de tanta hostilidade de quem deveria acolhê-la com hospitalidade -, petrificada, se deixa capturar.

Como bem diz Donald Winnicott (1971/1975b) no texto “A criatividade e suas origens”, a submissão é uma base doentia para a vida.

Reapresentação de objeto cultural: palavra escrita

Mas também nesse aspecto a praça lhe reserva um novo começo: cumprindo mais um dos rituais de hospitalidade que as pessoas adultas devem dirigir às crianças, Margueritte abre as portas da cultura letrada, patrimônio da humanidade que dá acesso à cidadania, e reapresenta a Germain a palavra escrita, dessa vez em pequenas doses e em sintonia com a criança grande que tem diante de si, sem condescendência, sem pena, convocando seu amigo a realizar potenciais adormecidos (Winnicott, 1971/1975a).

Na verdade, aquela senhora de 40 quilos, sempre bem arrumadinha, com a cabeça cheia de prateleiras de livros e que de tudo entendia, vai se revelando uma velha sábia, dessas que já deixaram vida e morte para trás e, agora, nos servem de farol (Veloso, 1984). Ela exerce junto a Germain, mais uma vez, as funções de cuidadora a que foi destinada: nas fotos do lar de idosos, nós a vemos cercada de crianças negras do Congo, no trabalho de letramento que realizou como mulher cientista na Organização Mundial da Saúde, dedicando-se às pessoas invisíveis, humilhadas e marginalizadas. Sem deixar de valorizar a cultura de que faziam parte, ou sem pretender reduzi-las à lógica que impera na casa do colonizador, buscava instrumentalizá-las, através do ensino da língua dos poderosos-algozes, para que pudessem ser ouvidas e consideradas em suas necessidades.

Margueritte se contrapunha, radical e eticamente, ao desmentido da dor causada pela humilhação real. E sem menosprezar a capacidade intelectual de Germain, ela vai lendo vários trechos do denso livro A peste, de Albert Camus, encantando-se com as boas sacadas que o amigo vai revelando acerca da história, como um bom parceiro dialógico:

MARGUERITTE: Lemos A peste em 10 dias! [Ela comemora.]

GERMAIN: Foi você quem leu… [Responde resignado no sentimento de incapacidade.]

MARGUERITTE: Não pense assim, você é um excelente leitor. Ler é também escutar. Veja as crianças. [Diz encorajando-o a aceitar o livro de presente.] Quando as ensinamos a ler, lemos para elas em voz alta, e se lemos bem e elas escutam bem, querem sempre mais! (27:06)

Pois bem: vez ou outra, Germain - a criança ferida - ainda desconfiava de suas capacidades, repetindo a autodepreciação: “Se falo 15 palavras, 12 são vulgares e grosseiras” (10:14).

Ou na cena em que, desesperançoso, confessa a seu gato:

Ler é complicado. Para você eu posso confessar. Você lê uma palavra, a segunda, a terceira… Você segue em frente, sublinhando com o dedo, 11, 12, até o ponto final. Aí você avançou um pouco. O problema é que você quer juntar as palavras, mas elas se embaralham. Como porcas e parafusos jogados numa caixa. (31:06)

Mas ainda assim vence a inibição, e passa a se arriscar na leitura de um livro que a amiga, intuitivamente, lhe emprestara. Nesse livro, intitulado A promessa da aurora e escrito por um autor que adorava a mãe, encontra esta passagem, que numa tarde pede que Margueritte leia para ele:

Não é bom ser amado numa idade tão tenra. Isso cria maus hábitos. Nós ansiamos, esperamos, criamos expectativas. Com o amor materno, a vida nos faz, na aurora, uma promessa que não cumpre. Depois, cada vez que uma mulher toma você nos braços, e o aperta junto ao peito, são apenas condolências. Voltamos sempre para uivar no túmulo de nossa mãe como um cão abandonado. Nunca mais aqueles braços adoráveis enlaçam o seu pescoço e aqueles lábios doces lhe falam de amor.

Segue o diálogo:

GERMAIN: Se o autor do livro não tivesse sido amado pela mãe, o que aconteceria?

MARGUERITTE: Se uma criança não recebe amor durante a infância, precisa descobrir tudo depois, não? Como sua mãe tratava você quando garoto?

GERMAIN: Não dava a mínima, me tratava como um nada, como se eu não existisse. Pra ela, eu fui um erro, um acidente.

E mais uma vez, ancorada na ética do cuidado, com a alma saturada de poesia (Veloso, 1984), oferta-lhe um olhar empático de reconhecimento da falha disruptiva, com potencial traumático: “É terrível o que você diz. A indiferença é a pior coisa, especialmente para uma mãe” (37:21).

O interessante é que essa conversa se deu no dia em que Germain presenteou Margueritte com uma cesta de legumes carnudos e apetitosos de sua horta - fonte de seu impulso criativo, de realização pessoal, dom que ofertava ao mundo humano. Ele diz:

Você pode encher a terra de fertilizante, se ela for ruim, continuará ruim. Pode conseguir no máximo cinco batatas pequenas. Mas se você tem uma terra escura que gruda na mão, ela lhe dará tudo que tem no ventre, sem fertilizante.

Genuinamente encantada com a sabedoria de seu amigo, certamente reconhecendo na imagem da terra infértil uma bela metáfora da falta de amor que marcara sua existência, ela lhe diz olhando-o com ternura: “Você é um bom homem, Germain” (34:59).

Penso que se constituiu entre Germain e Margueritte uma espécie de aliança terapêutica, com essa velha senhora deixando, como propôs Ferenczi, “o paciente à vontade, durante algum tempo, como uma criança”, de modo que pudesse “fruir, pela primeira vez, da irresponsabilidade da infância, o que equivale a introduzir impulsões de vida positivas, e razões para a continuação da existência” (citado por Moreno & Coelho Junior, 2012, p. 715). Como bem destacam Moreno e Coelho Junior,

Ferenczi acreditava na necessidade do analista se adaptar à inteligência da “criança” de seu analisando, tendo nomeado esse diálogo com o infantil de análise pelo jogo. Somente nesse espaço, que podemos caracterizar como intermediário entre analista e analisando, o traumatismo pode ser vivido e pode ser em seguida transformado em rememoração. (2012, p. 715)

É nesse espaço intermediário, terceira área da experiência (Winnicott, 1971/1975a, 1968/1994), que criamos/encontramos uma grande oferta de objetos culturais que nos são apresentados por cuidadoras/es hospitaleiros, de modo a favorecer que experimentemos a ilusão de onipotência - “Usem e abusem”, esperamos que nos aconselhem; “Brinquem de ler e escrever, destruam, remodelem esse objeto de acordo com seus impulsos criativos, antes de conhecer sua realidade”.

No filme, essa realidade é representada pelo volumoso dicionário que a doce Margueritte oferta ao menino Germain, que resiste a aceitá-lo: “É como dar óculos a um míope - não adianta para idiotas… É tarde demais para mim… De repente vemos todas as falhas e defeitos, tentei aprender, mas dói muito. Era melhor antes, era tudo mais simples”. E ouve da amiga, apta a sentir com, sustentando suas frustrações diante do não saber: “Quando você diz isso, também dói em mim” (51:00). Ela completa lindamente sua tarefa de reapresentação do objeto, buscando assim impulsioná-lo a dele se apropriar cada vez mais, de um jeito próprio, sem se submeter às suas leis (Perrotta, 2023): “Com um dicionário, nós viajamos de uma palavra a outra, nos perdemos em um labirinto. Paramos, sonhamos” (43:19).

Com essa companhia viva, empática e “abensonhada” - palavra inventada por Mia Couto (1994/2016) -, ele pôde se tornar íntimo do universo das letras (de que fora precocemente apartado), agora enriquecido, seguindo com tudo que a palavra escrita pode nos oferecer. Páginas marcadas, linhas tracejadas, anotações ao lado dos parágrafos. Pensamentos que encontram pensadores (Bion, 1962/2022). Germain desenvolveu o ser leitor e acabou surpreendendo seus amigos com as novas palavras, conhecimentos e escritores de renome que acabaram por fazer parte de seu repertório - o que, por sinal, os desagradou, pois não tinham mais em quem projetar a própria ignorância.

O fato é que o Germain leitor, inteligente e sabedor das coisas do mundo foi descongelado - ainda que tardiamente, foi resgatado com vida, tanto que não o vemos mais grafando o nome no monumento dedicado às crianças mortas. Margueritte o recebeu com hospitalidade no mundo humano das letras, o convidou a brincar como uma criança, e não como um adulto infantilizado, sem que se envergonhasse por saber tão pouco o que fazer com elas.

A cabeça pouco cultivada de Germain - la tête en friche - se tornou um campo fértil e verdejante, como sua horta.

E ao final, diante da morte da mãe, uma revelação que surpreende não só Germain como a todos nós: ela lhe deixou de herança a casa, a única foto dela junto ao pai do filho e um pedaço de cordão umbilical - que, mesmo ressecado, o vinculou à vida. Provas de amor que abriram a possibilidade da reparação e do perdão, levando Germain também a rememorar momentos em que a mãe-solo o protegeu da violência do namorado contra o filho. Ainda que as falhas tenham sido disruptivas, Germain contou com alguma presença materna. A maior ausência de fato foi do pai, de quem herdou apenas o nome.

Amor hospitaleiro

É uma vantagem para a análise quando o analista consegue, graças a uma paciência, uma compreensão, uma benevolência e uma amabilidade quase ilimitadas, ir o quanto possível ao encontro do paciente.

SÁNDOR FERENCZI

Germain e Margueritte se conheceram, se amaram, sonharam juntos, e esse amor terno, delicado e generoso, do qual necessitamos em todos os momentos de nossa vida - quando crianças, jovens, adultos, velhos -, foi se realizando por meio de um objeto cultural, o livro. Agradecido, além de esculpir uma cabeça de pombo na bengala de madeira que fizera para Margueritte, que já estava com a cegueira bem avançada, Germain passou a aperfeiçoar a leitura em voz alta para ler trechos de livros à amiga, assim perpetuando esse ciclo, que é, como bem destaca Clare Winnicott (1964/2004), a base do amor hospitaleiro: dar, receber, retribuir.

O meio organizado amorosamente, de modo a levar em conta as características da criança, da criança no adulto, é gerador de confiabilidade e de integração. Para tanto, além de ofertar amor, é preciso disposição para receber o que a criança [e as crianças que permanecem vivas em nós] tem a oferecer ao mundo, sua contribuição criativa pessoal. Trata-se de uma necessidade que se perpetua em todo o processo de amadurecimento pessoal, caracterizando algo que é inerente à natureza humana, regulador dos vínculos sociais e da ética do cuidado. (Perrotta, 2023, p. 85)

Como dois velhos brincalhões, Margueritte e Germain seguiram se experimentando na materialidade palavra escrita, agora reapresentada a ele como meio maleável, e não mais como massa dura impenetrável ao gesto expressivo pessoal (Perrotta, 2023).

Menciono aqui, por fim, um psicanalista contemporâneo, Thomas Ogden (2019/2020). Ancorado em D. W. Winnicott e W. R. Bion, o autor tem se preocupado em legitimar a experiência de brincar e de sonhar no espaço potencial da clínica psicanalítica, a fim de favorecer a criação de novos sentidos, que aproximem nossos analisandos do que buscam ser, tornar-se.

Pois bem. Num capítulo do livro Esta arte da psicanálise: sonhando sonhos não sonhados e gritos interrompidos (2005/2010), Ogden enumera “Do que eu não abriria mão” na clínica, ou os valores que considera essenciais, sustentadores de um trabalho analítico. Longe de estabelecer um código de conduta ou de destacar um conjunto de conceitos, ainda que estes sejam essenciais, busca traçar “modos de ser e modos de ver que caracterizam a maneira específica na qual cada um de nós pratica psicanálise” (p. 39).

O primeiro item da lista? Ser humano, ou forma de honrar a “dignidade humana”. Segue então precisando o que entende desse valor, e finaliza afirmando: “A meu ver, um analista continua sendo um analista quando engajado em formas de relacionamento com o paciente que não são vistas como ‘psicanálise padrão’”. Ressalta ainda que intervenções dessa natureza “têm valor analítico porque são tanto humanas quanto facilitadoras de elaboração psicológica consciente e inconsciente” (p. 41).

Inspirada em Margueritte, penso então que, na sala de análise ou no banco de uma praça, diante de nossos hóspedes-analisandos, não podemos abrir mão de valores como empatia, tato, solidariedade e reciprocidade.

Finalizo com a bela declaração de Germain quando resgata sua amiga do abrigo para pessoas idosas que não tinham condições de sustento, levando-a para morar em sua casa, que agora se preparava para receber também o filho que a namorada trazia no ventre:

Foi um encontro discreto do afeto com o amor. Ela não tinha outro teto. Tinha nome de flor. Vivia cercada de palavras. Adjetivos, substantivos, verbos e advérbios. Alguns chegam sem jeito. Ela chegou com doçura. Quebrou minha armadura e se alojou no meu peito. Nas histórias de amor, não há apenas o amor. Nunca dissemos “Eu te amo”. No entanto, nos amamos. Não é uma história comum. Ela leu para mim num banco de jardim. Era frágil como uma pomba sentada àquela sombra. Cercada de palavras, de nomes comuns como eu. Me deu muitos livros que me tornaram mais vivo. Não morra agora. Espere um pouco. Não é hora, doce senhora. Me dê um pouco mais ainda. Um pouco mais da sua vida. Espere… (01:14:11)

2Agradeço a Marina Ribeiro, Fátima Flórido Cesar e Anna Fátima Aguiar, parceiras dialógicas no painel da Conferência Ferenczi; e a Claudia Del Corto, pelo convite para abrir o evento comemorativo dos 20 anos da apvp.

1Trabalho apresentado parcialmente em dois eventos: 14ª Conferência Internacional Sándor Ferenczi, 2024 - painel Chuva n’Alma: A Função Vitalizadora do Analista; e Jornada Psicanalítica: 20 anos da Associação Psicanalítica do Vale do Paraíba (apvp) - abertura do evento com o tema: Cinema e Psicanálise: Minhas Tardes com Margueritte.

4Trata-se de termo cunhado pelos autores do livro Adoecimentos psíquicos e estratégias de cura (Figueiredo & Coelho Junior, 2018), em que buscam mapear o campo da psicanálise, organizando-o em duas grandes matrizes, a freudo-kleiniana e a ferencziana, essa última voltada a quadros não neuróticos e ao reconhecimento de traumas precoces em virtude de falhas disruptivas dos objetos primários em se adaptar às necessidades da criança.

5Trata-se de um lugar-tempo entre o “subjetivamente concebido” e o “objetivamente percebido”, que nos leva além da formulação habitual, segundo a qual, quando chegamos ao estágio de ser uma unidade, constitui-se uma espécie de membrana que limita rigidamente exterior e interior. As experiências vividas nesse espaço potencial possibilitam que nos situemos no mundo “de modo que o objetivo e o subjetivo possam coexistir” (Winnicott, 1971/1975a, p. 163).

6Alusão ao tema new beginning, criado por Michael Balint (1968/1993), também pertencente à matriz ferencziana, remetendo à falha básica e traumática da parte dos objetos primários, logo nos primórdios da vida, e à possibilidade de regressão no campo da clínica psicanalítica.

7“Um adulto e uma criança amam-se; a criança tem fantasias lúdicas, como desempenhar um papel maternal em relação ao adulto. O jogo pode assumir uma forma erótica, mas conserva-se, porém, sempre no nível da ternura. Não é o que se passa com os adultos se tiverem tendências psicopatológicas… Confundem as brincadeiras infantis com os desejos de uma pessoa que atingiu a maturidade sexual, e deixam-se arrastar para a prática de atos sexuais sem pensar nas consequências” (Ferenczi, 1933/1992b, pp. 101-102).

Referências

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Recebido: 18 de Setembro de 2024; Aceito: 16 de Outubro de 2024

Claudia Mazzini Perrotta claudia.perrotta@sedes.org.br

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