Trasumanar significar per verba non si poria; però l’esemplo basti a cui esperienza grazia serba.3
DANTE ALIGHIERI, A divina comédia, Paraíso, canto I, versos 70-72
Introdução
O objetivo deste trabalho é apresentar e comentar um exemplo de transformação literomusical de uma experiência emocional impactante que consideramos particularmente exitoso. Constitui, assim, aquilo que, inspirando-se em Keats, Bion (1970) denominou language of achievement, a linguagem de consecução. Trata-se de uma forma acurada de comunicação de uma experiência emocional, efetivamente capaz de estimular que outros também a vivenciem, cada um a seu modo. Possibilita tornar durável e extensível algo que, em sua essência, é transiente, sem forma, cor, odor ou som. Desse modo, o inefável ganha, até onde é possível, encarnação (Bion, 1965), torna-se matéria.
É importante entretanto sublinhar, conforme faz o mesmo autor (Bion, 1970, 1977), a presença de uma cesura entre a experiência emocional em si e qualquer forma de sua representação e comunicação sensorial (verbal, musical, pictórica etc.), comparável, segundo ele, ao hiato existente entre o animado e o inanimado. Essa cesura precisa ser tolerada e transcendida para que seja possível não apenas conhecer a experiência emocional, mas também e sobretudo estar-uno-com (at-one-with) ela, tornar-se (becoming), “ir sendo” (being) ela (Bion, 1965, 1970). Seja como for, a totalidade da experiência é impossível de ser conhecida. Pode-se apenas intuí-la e vivenciá-la
Procuraremos descrever e analisar os recursos musicais e poéticos utilizados pelos compositores para alcançar a referida forma de comunicação, isto é, para evocar no ouvinte algo suficientemente próximo da experiência emocional contida e representada em sua obra. Com isso, o ouvinte poderá então criar, a partir dela, o seu próprio sonho, no sentido que Bion (1962) dá a esse termo, e eventualmente refletir sobre tal experiência, da mesma maneira que nós, autores, procedemos na concepção e escrita deste texto.
Trata-se de uma canção intitulada “Beatriz”, composta por Edu Lobo (música) e Chico Buarque (letra), dois dos mais destacados compositores da música popular brasileira. Nessa obra, seus autores conseguiram, a nosso juízo, uma integração singularmente fértil entre a linguagem verbal e a música, considerada por muitos uma linguagem não verbal das emoções ou mesmo a linguagem universal das emoções, possivelmente mais antiga e fundamental do que a fala (Juslin, 2013, 2019; Levitin, 2006; Nagel, 2013; Wisnik, 1989).
A teoria do objeto estético
Vamos considerar essa canção sob o vértice da teoria do objeto e do conflito estéticos, de Donald Meltzer (1988, 1992), profundamente inspirada em Bion. Trata-se, segundo ele, de um objeto (primariamente a mãe) com um exterior apaixonante, apreensível pelos órgãos dos sentidos, e um interior essencialmente misterioso, que pode ser apenas aproximadamente concebido pela imaginação criativa. O impacto desse objeto desperta vínculos emocionais de amor, ódio e disposição a conhecer - os vínculos L, H e K de Bion (1962) -, junto com os antivínculos descritos por Meltzer (1988) como puritanismo (-L), hipocrisia (-H) e filistinismo (-K). Quando existe reciprocidade do objeto quanto ao impacto estético, a turbulência emocional provocada pelo conflito entre todas essas emoções pode ser suficientemente contida, possibilitando o predomínio da disposição a conhecer, que respeita a privacidade do objeto e se vale da imaginação criativa e da razão para representar e pensar sobre seu interior essencialmente incognoscível.
Caso não exista tal mutualidade do impacto estético, as incertezas, inseguranças e inclusive desconfianças, as angústias enfim, geradas pelo interior inacessível e misterioso, despertam diferentes defesas. Em última instância, tais defesas objetivam embotar a sensibilidade ou perverter as paixões mediante desvalorização do objeto, ou cisões do self e do objeto com a distribuição dos vínculos entre diferentes relações. São também mobilizadas fantasias onipotentes de intrusão e controle do interior do objeto, tentando converter seu mistério em um mero segredo, supostamente decifrável (Meltzer, 1988).
Pensamos que essa teoria de Meltzer (1988, 1992) constitui uma transformação clínica, sob um vértice próprio, das formulações abstratas de Bion (1965, 1970) acerca de O como realidade última incognoscível e sua transformação em K, essa última sempre sensorialmente baseada.
Nosso objetivo primordial não é reduzir a obra a alguma compreensão analítica específica, mas sim usá-la para ampliar e aprofundar a compreensão do processo de transformação das emoções em símbolos, um processo que constitui a origem e a evolução da mente humana, da arte e do trabalho nos consultórios psicanalíticos. Almejamos, assim, uma fertilização recíproca entre a psicanálise e a música.
Alguns conceitos musicais
No que diz respeito à linguagem musical existem alguns conceitos que julgamos necessário apresentar resumidamente, pois serão mencionados durante os comentários. Vamos expô-los de maneira suficientemente acessível para quem não tem maiores conhecimentos sobre o tema.
Chama-se harmonia a relação entre notas musicais soando simultaneamente e a forma como tal relação é organizada no transcorrer de uma música. Tem importância fundamental na chamada música tonal, predominante no mundo ocidental (De Voto, 2003a).
Um conjunto isolado e específico de três ou mais notas soando ao mesmo tempo é denominado acorde.
Na música tonal os acordes encadeiam-se em sucessão segundo certos princípios e, na mesma obra ou em parte dela, todos mantêm uma relação de referência com uma nota básica que constitui o eixo harmônico, o polo básico de atração que se impõe sobre as demais e origina um campo harmônico específico. Essa raiz fundamental é responsável, assim, pela chamada tonalidade, isto é, um clima sonoro básico, uma espécie de paisagem sonora específica sobre a qual dançarão as notas da melodia.
Mais precisamente, esse eixo central que define a área tonal daquela música ou trecho musical é habitualmente formado por uma tríade sonora constituída a partir da referida nota, denominada tônica (um fá, por exemplo), uma outra quatro graus acima dela, dita subdominante (o si bemol, nesse caso) e outra cinco graus acima da primeira, chamada dominante (o dó, nesse caso), que em termos musicais contradiz a tônica, gerando por essa razão uma fértil tensão (De Voto, 2003b; Wisnik, 1989). Essas três notas alternam-se, ao longo da peça ou trecho dela, na função de raiz dos diferentes acordes.
Quanto mais distante uma nota ou acorde estiver do ponto de estabilidade constituído pelo centro tonal, mais provocará uma sensação de tensão, e quanto mais próxima, mais parecerá reduzi-la, como se a tônica exercesse, metaforicamente, uma força gravitacional (Larson, 2012; Korsakova-Kreyn, 2010). E a sequência de notas ou acordes com diferentes graus de tensão e repouso gera uma sensação de movimento (motion) da música, de uma direção tendo como referência o centro tonal. Schenker (citado por Juslin, 2019) refere-se, nesse sentido, ao “desejo dos tons” (will of the tones) em busca de uma resolução. Tensão e relaxamento constituem, assim, a base dinâmica da linguagem musical, possibilitando a criação e manipulação de expectativas no ouvinte (Meyer, 1956). Tais expectativas são geradas pela memória de “esquemas musicais” formados pela exposição ambiental desde a vida intrauterina, ampliados e transformados pelas experiências posteriores (Huron, 2007; Juslin, 2019; Larson, 2012; Levitin, 2006). Consideramos que esses esquemas musicais podem ser incluídos naquilo que Bion (1962) chama pré-concepções.
Quando, dentro de uma mesma composição, a nota que constitui a tônica, e consequentemente determina a subdominante e a dominante, é substituída por outra nessa mesma função, acontece a chamada modulação, que implica uma mudança da tonalidade.
Uma progressão harmônica (ou melódica) que provoca a sensação de resolução ou repouso é denominada cadência e geralmente denota o final de uma frase, de um período ou de toda a composição (Randel, 2003).
Esses elementos harmônicos são tão fundamentais para a música tonal como as palavras e a sintaxe para a linguagem verbal ou escrita (De Voto, 2003a).
Enquanto a harmonia constitui o elemento vertical da música, a melodia é seu aspecto horizontal. A linha contínua que poderia ser traçada seguindo-se os diferentes movimentos de subidas e descidas de determinada melodia é chamada contorno melódico (Levitin, 2006).
Larson (2012), musicólogo e pesquisador em ciências cognitivas, concorda com a função da expectativa na geração de significados emocionais na música. Acrescenta, porém, apoiando-se em pesquisas empíricas, que tais significados derivam mais precisamente da forma específica pela qual determinada passagem musical se movimenta quando satisfaz ou nega a expectativa. Propõe, além disso, que compreendemos essas formas específicas de movimentação musical por analogia com nossas experiências dos movimentos físicos e com as forças que os originam, basicamente a da gravidade, a da inércia e a do magnetismo. No caso da música, ele as denomina forças musicais metafóricas. De acordo com suas próprias palavras:
Nossa experiência do movimento [motion] físico molda [shapes] nossa experiência do movimento [motion] musical de formas específicas e quantificáveis - a ponto de que nós não apenas falamos sobre a música como se ela fosse moldada por análogos da gravidade física, do magnetismo e da inércia, mas também realmente a experienciamos em termos de “forças musicais”. (pp. 1-2)
Isso nos possibilita pensar que determinados tipos de contorno melódico e harmônico, com suas distintas formas e graus de ascensão e descida, podem ajudar a expressar diferentes sensações e emoções, dependendo também do contexto musical em que acontecem.
Partindo da mesma abordagem geral do processo de conhecimento adotada por Larson (2012), isto é, a teoria da cognição incorporada (embodied cognition), e também calcado em contribuições da teoria musical e da neurociência, Cox (2017) propõe que a emergência do significado de uma música resulta da influência recíproca entre a experiência corporal (embodied experience) consciente ou inconscientemente desencadeada no ou na ouvinbte pelos sons e movimentos musicais (resposta afetiva) e a sua compreensão racional (resposta conceitual). Em outras palavras, pela interação entre o sentimento e o pensamento. A experiência afetiva incorporada, ponto de partida para a emergência do significado musical, deriva, segundo Cox, de uma espécie de imitação ou “mimetismo físico” que leva o ou a ouvinte a sentir a música no corpo, e não apenas ouvi-la.
A proposição de Cox acerca da resposta emocional como base para a construção do significado ressoa, para nós, com a centralidade que Bion (1962) e Meltzer (1986) também atribuem a ela no desenvolvimento psíquico, evidentemente a partir de outros pressupostos teóricos. Para Bion (1962), como é sabido, as percepções e emoções, na qualidade de estímulos ainda sensoriais, conforme consideramos estar sendo descrito por Cox (2017), são transformadas em elementos psíquicos pela função alfa, isto é, por um trabalho psicológico inconsciente de simbolização idiossincrática das experiências emocionais, ativo tanto no sono como na vigília. Tais elementos poderão então ser utilizados para memorizar, sonhar, fantasiar, refletir, decidir, comunicar, agir, ou seja, para diferentes finalidades e com distintos níveis de abstração. Isso possibilita a emergência de experiências individuais com significados idiossincráticos em permanentes e infinitas expansões, conjugando o presente, isto é, a experiência atual, o passado, ou seja, a memória, e o futuro, no sentido dos desejos despertados.
Pesquisas atuais (Cox, 2017; Levitin, 2006) indicam que a percepção do comportamento de outras pessoas ativa sua simulação na imagem motora cerebral do observador, pelo disparo dos chamados neurônios-espelho. Essa resposta pode ser consciente ou não. A partir dessa descoberta, é possível cogitar que esse mecanismo estaria subjacente às reações musicais propostas por Larson (2012) e Cox (2017).
Baseado em pesquisas empíricas próprias e de outros especialistas, Juslin (2019) propõe que a capacidade da música de expressar emoções devese, na verdade, a três níveis de recursos ou “códigos”, como ele os denomina, os quais agem concomitante e complementarmente.
O primeiro, mais básico e universal, é o nível por ele chamado icônico. Conforme o nome indica, essa maneira específica da música transmitir conteúdos emocionais deve-se à sua similaridade com a estrutura acústica dos aspectos prosódicos da fala humana, isto é, do tom da voz, que sabidamente reflete a dinâmica da vida emocional. Tal similaridade é, no mínimo, semelhante àquela existente, por exemplo, entre um mapa e a região por ele representada. É evidentemente ainda maior na música cantada. Esse recurso é o responsável pela propriedade musical de expressar as chamadas emoções básicas do ser humano, possivelmente inatas, isto é, felicidade (happiness), tristeza (sadness), raiva (anger), medo (fear) e amor (love) (Juslin, 2019).
O segundo nível é constituído pela organização da música como uma linguagem com sintaxe própria, no sentido de ser construída por regras que organizam a sequência de seus elementos estruturais e permitem, assim, a criação de significados emocionais, conforme exposto antes. Esse recurso possibilita qualificar com maior especificidade, com um melhor contorno, as emoções geradas pelo nível icônico, acrescentando-lhes nuances de, por exemplo, tensão, intensidade e propósito, que contribuem para ampliar a capacidade de expressar sentimentos mais complexos. Trata-se, portanto, de um código intrinsecamente musical. É menos universal que o recurso anterior, sendo também influenciado, por exemplo, pelo grau de formação musical do ouvinte.
O último nível é chamado por Juslin (2019) de código associativo. Graças a ele, a música desperta emoções apenas porque algo nela contido, como a melodia, o timbre (isto é, a “cor” do som) ou a harmonia, foi frequentemente associado pelo ouvinte com vivências emocionalmente significativas no passado. Constitui o clássico “condicionamento”. É assim a fonte mais extrínseca, no sentido de pouco ou nada depender dos aspectos icônicos ou linguísticos da música. Constitui também aquela que mais depende das vivências culturais e individuais, apresentando consequentemente um baixo nível de concordância entre os ouvintes. É considerada por muitos teóricos musicais como esteticamente irrelevante, mas tem na verdade um papel importante no enriquecimento do grau de complexidade das emoções musicais. A nostalgia, por exemplo, é uma das emoções mais referidas entre aquelas despertadas pela música, mas não está relacionada a nenhum padrão icônico específico nem a qualquer código musical intrínseco. Depende totalmente de memórias associativas.
A nosso ver, em termos gerais, a harmonia seria responsável principalmente pelo humor básico de uma peça, e a melodia, por sentimentos mais individuais, específicos, momentâneos e variáveis. É interessante assinalar, nesse sentido, que a melodia de uma composição tem os direitos autorais garantidos, ou seja, sua individualidade reconhecida. O mesmo não acontece com a harmonização de uma composição, que pode ser livremente usada por outro compositor com uma melodia de sua própria autoria.
“Beatriz” e o impacto do objeto estético
“Beatriz” é, para nós, a canção central do espetáculo musical O grande circo místico, concebido e roteirizado por Naum Alves de Souza para o Balé Teatro Guaíra, da cidade de Curitiba, em 1983. Souza inspirou-se no poema homônimo de Jorge de Lima, publicado em 1938 no livro A túnica inconsútil. Em resumo, o poema conta a história do amor entre o filho do médico de câmara da imperatriz Teresa da Áustria e uma equilibrista de circo chamada Agnes. Ao vê-la apresentar-se, o jovem apaixona-se, casa com ela, desiste de tornar-se médico, e o casal dá origem à dinastia proprietária do internacionalmente conhecido Grande Circo Knieps.
Na letra de Chico Buarque, Agnes passa a chamar-se Beatriz e é uma bailarina circense.
Pensamos que as demais canções do espetáculo, todas compostas por Edu Lobo e Chico Buarque, expressam, através de outros personagens e narrativas, emoções cindidas da mesma experiência contida e transformada poético-musicalmente em “Beatriz”. Em outras palavras, constituem outros vértices ou recortes da referida experiência. Por essa razão, em alguns momentos de nossos comentários, citaremos pequenos trechos dessas outras canções, que julgamos particularmente significativos à luz do vértice de compreensão por nós adotado.
Solicitamos aos leitores ouvi-la na gravação do álbum original, interpretada pelo cantor Milton Nascimento. Os links para escutá-la em dois dos mais utilizados serviços de streaming são os seguintes:
- Spotify: https://tinyurl.com/3xjp96mm
- Apple Music: https://tinyurl.com/5afdtyzn
Indicamos, inclusive, a audição de todo o álbum, classificado entre os 20 mais importantes da música popular brasileira.
Comentários psicanalíticos e musicais
A canção está dividida em quatro seções, no formato AABA, com uma breve introdução musical e um também curto final. Os três As têm harmonia e melodia iguais, mas letras distintas. A seção B tem harmonia, melodia e letra próprias.
A letra completa e a partitura, transcrita por Edu Martins, estão nos links a seguir:
- Letra: https://tinyurl.com/269kt5db
- Partitura: https://d.pr/f/R44Sqm
A introdução, executada apenas ao piano, forma uma sequência com um contorno descendente. O movimento dos dois últimos acordes constitui a chamada cadência plagal, que desperta uma sensação de resolução calma, sem tensões. Na canção em apreço, isso contrastará com o início inquietante da parte cantada, conforme veremos na sequência, intensificando assim o seu impacto.
A primeira seção A
O primeiro A, da mesma forma que todos os demais, inicia com uma convocação do personagem central - que seria o jovem até então candidato a médico - para nos unirmos a ele na contemplação de Beatriz. “Olha”, diz ele. Em outras palavras, convida-nos a usar a percepção visual para observar a fascinante bailarina. É interessante sublinhar que em nenhum momento de toda a obra o jovem recebe um nome. Assim, quem sabe, cada um de nós pode mais facilmente colocar-se no seu lugar, identificar-se com ele.
Imediatamente, entretanto, o apaixonado espectador começa a expressar uma angustiante sequência de questionamentos, dúvidas, incertezas, desconfianças. Assim, os quatro versos seguintes iniciam com a interrogação “Será”. Será moça? Triste? O contrário? Seu rosto será pintura, isto é, apenas uma máscara que esconde o verdadeiro ser? Para nós, esse último pensamento indica um primeiro recuo defensivo diante do angustiante impacto estético. Vale destacar que, no Brasil, moça, além de significar uma mulher jovem, é também utilizado para referir-se a uma jovem ainda virgem.
Simultaneamente, a melodia evolui com um contorno ascendente. Esse movimento melódico ascendente provoca uma experiência semelhante àquela do movimento físico de subida em direção a algo ou alguém, conforme demonstram as pesquisas realizadas por Larson (2012).
Ainda em termos musicais, no momento em que é cantada a letra O da palavra “Olha”, o compositor emprega um recurso harmônico que desperta a sensação de inquietação, de desassossego. O acorde é de ré diminuto com baixo (ou seja, a nota mais grave) em mi bemol, que contém dois trítonos. O trítono é formado pelo espaço de três tons inteiros entre duas notas - musicalmente dito, um intervalo de quarta aumentada na escala diatônica. É chamado diabolus in musica, proibido na música litúrgica medieval. Constitui o intervalo mais instável da música ocidental, gerando tensão, expectativa, desejo, e demandando alguma forma de resolução. De acordo com o teórico musical Edmond Costère,
o som mais hostil à afirmação de uma tônica dada, e de certa maneira a sua antitônica, é o seu trítono, não somente em razão da ausência de afinidade natural, mas porque sua combinação constitui … o intervalo mais instável e o mais atrativo de outros sons. (citado por Wisnik, 1989, p. 209)
Nagel refere-se a ele como uma “metáfora sonora para a ambiguidade, a inquietação e a instabilidade” (2013, p. 34).
Por conseguinte, o acorde citado, contendo dois trítonos, é do tipo que promove destacadamente tais emoções. Lahdelma e Eerola (2016) demonstraram, com pesquisas empíricas, que acordes isolados, independente de pertencerem a uma sequência harmônica, têm efetivamente a capacidade de despertar qualidades emocionais específicas.
Além disso, trata-se, no caso em consideração, de um acorde que está fora do centro tonal da introdução e dessa seção, o que contribui para incrementar ainda mais a tensão.
Tudo isso promove, a nosso ver, a inquietação própria do impacto de um objeto estético, descrita por Meltzer (1988) - uma turbulência emocional, como diria Bion (1970).
A sequência dos acordes que acompanham os “serás” também irá formar uma linha ascendente, incrementando assim a sensação de subida em direção a algo, já evocada pela linha melódica.
Os próximos versos dessa mesma estrofe iniciam todos com a interrogação “E se”. Nos dois primeiros é questionado se Beatriz dança no sétimo céu e se acredita que esse é um outro país. Sétimo céu é o símbolo da felicidade plena no islamismo e no cristianismo medieval, a última camada do mundo espiritual, onde está o trono de Alá, segundo o Alcorão. O último dos sete céus seria, para os cristãos da Idade Média, a mansão dos bem-aventurados. A expressão parece entretanto aludir de forma mais imediata à “morada das almas dos contemplativos” de A divina comédia (1304-1321/2019), de Dante Alighieri, pois é Beatrice, símbolo da fé personificada, quem conduz o poeta até as portas do Empíreo. Mas a expressão também foi vulgarizada no nome de uma famosa revista sobre banalidades do mundo da televisão brasileira e de seus artistas no anos 70 e 80, época em que a canção em foco foi composta. Assim, Beatriz é uma bem-aventurada celestial ou alguém que apenas deseja a fama?
O questionamento acerca de Beatriz acreditar estar morando em outro país, símbolo da felicidade, também alude possivelmente ao momento pelo qual passava o Brasil, em processo de redemocratização, vivendo uma crise econômica, mas em busca de novas utopias. Estaria assim Beatriz vivendo na ilusão?
A melodia, cujo contorno prossegue em ascensão, alcança a nota mais aguda de toda a canção exatamente quando a palavra “céu” é cantada. Em outros termos, quando o ápice da bem-aventurança é atingido. Mantém-se nesse mesmo patamar quando a letra alude a Beatriz eventualmente acreditar estar em outro país. Mas, em seguida, inicia um trajeto descendente rápido, enquanto é cantada a dúvida se ela apenas decora seu papel, se apenas representa para encantar, se não é autêntica, genuína, real. Se é apenas uma bela atriz! Quem sabe ela é o sedutor “anjo azul” de um dancing espelunca (como em outra canção do álbum intitulada “A história de Lily Braun”), e o espectador deslumbrado vai transformar-se no palhaço com “olhar caído”, coração partido, chorando agoniado, um “farrapo humano” que morrerá na coxia, como na “Valsa dos clowns”? A sequência harmônica acompanha essa mesma queda. Tudo parece desmoronar, cair.
Surge, então, o desejo de conhecê-la por dentro para aplacar todas essas dúvidas, incertezas e desconfianças, toda essa turbulência emocional: “E se eu pudesse entrar na sua vida”. Mas Beatriz continua lá no seu mundo, distante, inacessível, secreta, misteriosa. Em outra das canções do mesmo espetáculo, intitulada “Sobre todas as coisas”, o jovem expressa um intenso lamento por essa não reciprocidade na sua paixão:
Pelo amor de Deus
Não vê que isso é pecado, desprezar quem lhe quer bem
…
Ou será que o deus
Que criou nosso desejo é tão cruel
Mostra os vales onde jorra o leite e o mel
E esses vales são de Deus
…
Não vê que Deus até fica zangado vendo alguém
Abandonado
Em “Beatriz”, o desejo de intrusão no objeto estético, a fim de desvelar seus supostos segredos e assim controlá-lo, permanece como tal, isto é, apenas como um anseio. Mas a força desse anseio de realizar uma intrusão violenta, uma violação de sua privacidade (Meltzer, 1988), fica evidente na canção intitulada “A bela e a fera”, cantada por Tim Maia, com seu conhecido vozeirão. Nela, alguém rude e selvagem, que se descreve como o homem mais forte do planeta, o Superman, que “dá nó em paralela e almoça rolimã”, diz:
Oh bela, gera a primavera
Aciona o teu condão
Oh bela, faz da besta fera
Um príncipe cristão
Recebe o teu poeta, oh bela
…
Abre teu coração
Ou eu arrombo a janela
É também significativo, nesse mesmo sentido, que o verso “E se eu pudesse entrar na sua vida” constituirá o final de todas as estrofes de “Beatriz”.
A seção termina com um acorde dominante (si bemol com sétima), que como tal contém um trítono e, consequentemente, segundo já indicado, desperta inquietação, tensão, demandando alguma forma de resolução, o que não acontece dentro da própria estrofe.
A segunda seção A
A segunda seção A tem melodia e harmonia iguais às da primeira, conforme já dissemos. A letra, porém, é diferente, contendo, entretanto, os mesmos questionamentos na forma de “Será” e “E se” no início de cada verso. Também conclui com o mesmo desejo de penetrar na privacidade misteriosa da musa (“E se eu pudesse entrar na sua vida”).
Será de louça a casa, a vida de Beatriz? Será de éter, que evapora rapidamente, que serve para anestesiar e, assim, embotar a capacidade para captar algo por meio dos sentidos? A palavra estética, aliás, provém do grego aisthesis e significa apreensão pelos sentidos, sem passar pela razão.
Manifesta-se ainda, nesse momento, o temor à perda da razão, ao enlouquecimento: “Será que é loucura”. E a casa da atriz será apenas um cenário, algo irreal? Constituiria isso a expressão do pressentimento da intensa turbulência psíquica que, segundo Bion (1965), acompanha uma mudança catastrófica, isto é, uma violenta transformação interna provocadora de súbita subversão do status quo anterior da personalidade? Uma transformação que, no caso em apreço, levará o jovem apaixonado a converter-se de um candidato a médico da aristocracia em um saltimbanco casado com uma bailarina e proprietário de um circo? Afinal, como é dito na canção “O circo místico”, “Não sei se é nova ilusão/ Se após o salto mortal/ Existe outra encarnação”. Lembramos que os acordes coincidentes com cada um destes “serás” promovem certa sensação de confusão.
Os versos iniciados com “E se” são novamente cantados no patamar mais elevado da ascensão melódica e harmônica. Mas agora o céu torna-se um arranha-céu e, ainda mais, um arranha-céu quem sabe ilusório, com paredes de giz, facilmente apagáveis. Uma transformação, portanto, da idealização celestial em uma ilusão mundana, seguida por uma eventual desilusão (“E se ela chora num quarto de hotel”), essa última coincidindo com o contorno subitamente descendente da melodia e da harmonia, que funciona como se fosse uma força gravitacional puxando para baixo, relacionado a um sentimento de tristeza, metaforicamente expresso, por exemplo, na frase “cair em depressão” (Larson, 2012).
Ao mesmo tempo, porém, é possível conjecturar que tal desilusão, mesmo sofrida, constitua também outra forma de defesa. A turbulência emocional despertada pelo impacto estético seria menor se Beatriz fosse somente uma ilusão ou uma pessoa solitária chorando sozinha em um quarto de hotel, em vez da deslumbrante bailarina. Esse recuo defensivo fica ainda mais evidente em outra canção do mesmo espetáculo, intitulada “Ciranda da bailarina”, sugestivamente interpretada por um coro infantil. Como que dizendo “o rei está nu”, elas cantam:
Procurando bem
Todo mundo tem pereba
Marca de bexiga ou vacina
E tem piriri, tem lombriga, tem ameba
…
Berruga … frieira
… piolho
… casca de ferida
… remela
… medo de subir
… de cair
… da vertigem
… Sujo atrás da orelha
… Calcinha um pouco velha
… Problema na família
… Só a bailarina que não tem
Esse último verso resume, para nós, a tentativa de desidealização do objeto estético, ainda que apenas na forma de um questionamento que não destrói definitivamente a ilusão. Como reação defensiva a essas incertezas crescentes e ao temor de uma desilusão, retorna o desejo de intrusão: “E se eu pudesse entrar na sua vida”, cantado sobre o inquietante acorde dominante.
A seção B
Na continuação da canção, a seção B inicia de forma diferente das seções A, tanto em relação à letra quanto em relação à harmonia. Principia com o espectador cantando um “Sim” afirmativo e solicitando apaixonado que a musa o leve consigo para sempre, ensinando “a não andar com os pés no chão”. É como se dissesse, valendo-se do vértice religioso do místico e filósofo Agostinho de Hipona, “[meu] coração é inquieto até repousar em ti” (c. 400/2017, p. 37). Ou seja, mesmo sem conseguir saber e controlar o que existe no interior de Beatriz, o apaixonado deseja ser levado por ela para algo impossível, mas desejado por todos os amantes, isto é, para a eternidade. Ao mesmo tempo, é este “não andar com os pés no chão”, ou seja, o imaginar, o sonhar, que leva o apaixonado enlevado a escrever poesias e compor músicas, por exemplo.
No que se refere à música, concomitante com tais palavras, há uma mudança de tonalidade, isto é, como já mencionado, naquilo que constituía o centro tonal das seções anteriores. Cumpre destacar que uma tonalidade maior desperta sempre sensações mais abertas, luminosas, eventualmente até triunfantes. A tonalidade menor, por sua vez, evoca sentimentos mais tristes, escuros, fechados. A modulação, nesse trecho, é para menor. Contudo, o compositor utiliza um sofisticado recurso para maquiar a tonalidade menor, chamado extensão do acorde, com o objetivo de criar uma falsa sensação de afirmação, de triunfo. Por essa razão, o “Sim” afirmativo, iluminador, cantado sobre um acorde maior, é entretanto sentido, ou melhor, pressentido com certa melancolia, própria da tonalidade menor, mesmo por quem não conhece música, conforme comprovam pesquisas atuais (Korsakova-Kreyn & Dowling, 2014; Lahdelma & Eerola, 2016; Rudder, 2019).
O contorno melódico também é distinto das seções A. Vimos que, nessas últimas, após o “Olha” inicial, apoiado em um inquietante acorde, o contorno da melodia, juntamente com a progressão harmônica, forma uma linha ascendente, sustentando crescentes e angustiados questionamentos. Mantém-se então por algum tempo em um patamar agudo, “celestial”, e depois desce rápida e depressivamente nos “E se”, até flutuar no anseio de intrusão na vida da atriz sem encontrar uma resolução apaziguadora.
Nessa seção B, após o “Sim” cantado sobre um acorde ambíguo, fora da tonalidade, ocorrem muito mais oscilações no contorno da melodia. Há uma breve “depressão” inicial do contorno, justamente enquanto é cantado “me leva para sempre”, seguida de uma ascensão, com o nome da musa sendo pronunciado na sua nota mais aguda. Ou seja, o desejo é subir com ela para algo celestial, mas o “para sempre” tem uma base não verbal, isto é, a melodia, descendente. Em outras palavras, há nesse momento uma ambiguidade também entre a letra e a melodia.
O verso seguinte parece-nos ainda mais significativo nesse sentido, pois o pedido para que Beatriz ensine “a não andar com os pés no chão”, isto é, a voar com a imaginação, a devanear e sonhar, é cantado sobre uma linha melódica descendente, e a palavra “chão” coincide com a nota musical mais grave de toda a canção. Ou seja, é o momento em que a melodia mais leva o ouvinte em direção à terra, funcionando metaforicamente como uma força gravitacional (Larson, 2012) que se opõe ao desprendimento para o sonhar apaixonado.
O próximo verso repete o contorno melódico descendente inicial no “para sempre” e, na linha ascendente que segue, a palavra “triz” é cantada com a mesma nota de “Beatriz” do primeiro verso, colocando assim esse prenúncio de risco, de perigo, no mesmo nível de importância que o nome da musa. É importante sublinhar que a palavra “triz” faz parte do nome Beatriz. Desse modo, o risco da utopia desmoronar está presente na bela atriz. Há, portanto, indicativos verbais e musicais quanto ao reconhecimento da insustentável permanência do “para sempre”, tão desejado pelos apaixonados.
Os dois versos seguintes prosseguem com as mesmas incertezas e temores. O jovem fascinado vê em Beatriz uma cigana que conseguiria “ler a sorte”, perguntando-lhe quantos desastres futuros ela veria em sua mão e se é perigoso ser feliz. O primeiro desses dois versos inicia com um dolorido “Ai”, cantado com a nota mais aguda da estrofe, um tom acima daquela correspondente a “Beatriz” e a “triz”, como se esse fosse o momento de máxima angústia. Ambos os versos seguem um contorno descendente, pressionando para baixo, até a estrofe concluir com a palavra “feliz” da pergunta “se é perigoso a gente ser feliz”. Esse angustiante questionamento fica reforçado pelo fato de que “feliz” é cantada sobre o mesmo acorde dominante de si bemol com sétima que finaliza todas as seções, evocador de tensão, conforme já indicado.
A terceira seção A
A última seção tem melodia e harmonia iguais às das duas primeiras, com outra letra, mas com a persistência das interrogações, alçadas agora a um plano celestial, universal. Será que a Bela Atriz é uma estrela, algo que à noite brilha no céu, como o amor em uma alma triste, mas que é inatingível? E as dúvidas, incertezas e inseguranças acerca de quem é ela realmente retornam nas perguntas. Será que é uma mentira? Será sua vida comédia ou divina? Nesse último verso, torna-se evidente a referência ao poema A divina comédia, de Dante, à musa desse poeta, que o conduz até as portas do Empíreo. Há em continuação, no patamar mais alto da melodia, outra angustiante expressão do temor à desilusão: “Se ela um dia despencar do céu/ E se os pagantes exigirem bis”. Ou seja, e se subitamente a realidade mostrar que tudo não passa de uma encenação, de um teatro? Se a musa revelar-se apenas uma bela atriz que, qual uma feiticeira ou sereia, fascina toda a plateia e leva os homens à loucura? Mas também surge outra vez a esperança contrária, manifesta na pergunta se não seria um arcanjo quem estaria passando o chapéu das gorjetas. Essa última expectativa é paradoxalmente cantada sobre nossa já conhecida linha descendente da melodia, expressiva de uma queda. Assim, desejo e realidade digladiam-se dentro do apaixonado, tocando as cordas sonoras mais agudas e graves de suas emoções, provocando uma sucessão de consonâncias e dissonâncias em sua mente.
Quanta paixão, quanto fascínio. Quantos desejos, quantas angústias. Quantos sonhos, quantas desilusões, quanto mistério. Questões sem fim.
O último verso de “Beatriz” é o mesmo que, como já indicado, encerra todas as suas estrofes, isto é, o desejo de entrar na vida de Beatriz e conhecer sua misteriosa intimidade. Conforme consta no poema original de Jorge de Lima, o jovem apaixonado casa com Beatriz e inicia com ela uma família circense. Isso fica igualmente claro ao longo das canções do balé. Mas também se torna evidente nas demais canções que, mesmo assim, as paixões, conflitos, angústias e defesas geradas pelo impacto do objeto estético persistirão. É o que efetivamente acontece quando não predomina a fera que “arromba a janela”, que pratica uma violação do belo objeto amado.
É a preponderância da disposição a conhecer (o vínculo K) no encontro apaixonado com o objeto estético que possibilita conter a turbulência emocional gerada pelo amor, pelo ódio e pelos antivínculos, bem como pela aproximação de uma mudança catastrófica. Tal preponderância só é possível, por sua vez, quando existe tolerância suficiente à permanente e inevitável sensação de incerteza e infinitude própria dessa disposição a conhecer. Quando isso acontece, há respeito pela privacidade e mistério do objeto. E o uso da imaginação criativa, junto com o amor, sem exclusão dos demais vínculos, pode então impulsionar inclusive a criação de uma obra de arte como O grande circo místico.
Final
A canção termina com melodia e harmonia idênticas às da introdução, mas com a participação de instrumentos de cordas e com o cantor entoando junto a melodia, sem letra. Lahdelma e Eerola (2016) propõem que o timbre dos instrumentos de cordas é particularmente efetivo na comunicação de qualidades emocionais, em especial aquelas pertencentes às dimensões nostalgia/anseio (nostalgia/longing), melancolia/tristeza (melancholy/sadness) e ternura (tenderness). Baseando-se em Juslin e Västfjäll (2008), sugerem que tal propriedade deve-se à semelhança das cordas com aspectos da voz humana, levando o ouvinte a mimetizar internamente as emoções percebidas, em uma espécie de contágio emocional.
O timbre do piano, por sua vez, único presente na introdução de Beatriz, é mais efetivo na transmissão de emoções componentes da dimensão felicidade/alegria (happiness/joy).
A harmonia é concluída com cadência plagal. Essa modulação harmônica, segundo já mencionado, consiste no movimento do quarto grau da tonalidade para o primeiro, o que promove a sensação de um retorno para casa, para um lugar calmo, estável, equilibrado, sem tensões. É muito utilizada na música sacra, em hinos que concluem com a palavra amém. Na tradição religiosa, amém significa “que assim seja”.
A melodia entoada nesse momento apresenta uma sequência descendente que termina em uma terça maior. A terça maior também desperta em uma melodia a forte sensação de volta para casa, de familiaridade e acolhimento, metaforicamente associado muitas vezes à mãe, ao retorno para os braços maternos. Por tudo isso, a emoção evocada nesse final é compatível à de quem saiu de um estado psíquico habitual e agora retorna a ele com mais “cordas sonoras”, isto é, com maiores recursos para expressar suas emoções. Tanto a música como a calma entonação do cantor sugerem assim, pelo menos para nós, um estado de terna reverie (Bion, 1962). E sutilmente, quase inaudível, o piano executa ao fundo uma doce linha ascendente, do grave ao agudíssimo, não presente na introdução. Como se, nesse estado, o músico e o poeta, dentro de si, tirassem os pés do chão, começassem a voar, a sonhar, e virassem um colibri, como é dito em outra canção do balé, intitulada “O circo místico”: “Chove tanta flor/ Que, sem refletir,/ Um ardoroso espectador/ Vira colibri” - aquele pequeno pássaro que, batendo as asas, beija uma flor, a bela atriz, Beatriz.
O resto é silêncio e mistério, instigando em todos nós a imaginação e a reflexão.
Boas reveries para todos!