O objeto deste estudo são os desenvolvimentos clínicos psicanalíticos decorrentes da expansão conceitual e operacional advinda com a teoria das transformações (Bion, 1965/2005), mormente a inclusão da dimensão ontológica por ela introduzida.
Em minha prática psicanalítica, a influência da teoria das transformações tem crescido continuadamente em importância nas duas últimas décadas, a ponto de passar a considerá-la, atualmente, como a referência maior para meu pensamento. Examinarei aqui minha visão dessa experiência.
Um pano de fundo sobre a teoria das transformações de Bion como moldura para a discussão clínica
Examinando a obra de Bion como um todo, encontramos em Cogitações (1992/1996) que ele buscou, desde a década de 50, criar uma base para desenvolver uma teoria científica sobre a mente. Sua primeira tentativa foi a teoria do pensar (1962/1988), que logo foi expandida para uma teoria do conhecimento em O aprender com a experiência (1962/1966) e Elementos de psicanálise (1963/2004). A teoria das transformações e invariantes - em Transformações (1965/2005) - veio logo a seguir, como uma nova formulação de seus esforços para dar forma conceitual ao que ele havia alcançado com as duas anteriores em sua prática clínica. Pensamento, conhecimento e transformações/invariantes são os elementos centrais e as pedras angulares de cada uma dessas teorias. Como Arquimedes, Bion procurava um ponto de apoio para mover o mundo psíquico. O fato de ele ter cessado sua busca sugere que tenha ficado satisfeito com transformações/invariantes para alicerçar sua teoria da mente, ou seja, que qualquer elemento psíquico é uma transformação de uma experiência de contato com um fragmento da realidade, interna ou externa, mas que conserva, ao mesmo tempo, sua essência (invariantes). O conceito de grupos de transformações oferece os parâmetros fundamentais para organizar as diferentes dimensões da mente que Bion tinha identificado, e possivelmente também cobriria novidades que pudessem ser descobertas - o que veio a acontecer, por exemplo, com a ideia de mente primordial (1976-1979).
A teoria das transformações já tinha uma longa e ilustre história científica antes de Bion trazê-la para a psicanálise. A teoria dos grupos de transformações data da década de 1870, com as teorias de grupos de Lie. Bion estava, muito provavelmente, a par dessas teorias, como sugerido pela identidade dos nomes por ele utilizados: grupos de transformações, invariantes, transformações em movimento rígido e transformações projetivas são conceitos da geometria algébrica projetiva. Reforça essa hipótese a presença de livros na sua biblioteca pessoal com anotações escritas por ele próprio (Sandler, 2016, 2005/2021). Presentemente, a teoria dos grupos de transformações fertiliza diferentes áreas do conhecimento, como os fundamentos do cálculo em matemática, viagens espaciais, áreas da sociologia e a produção de cristais.
Transformações, invariantes e grupos de transformações têm uma presença pervasiva no funcionamento psíquico bem mais notável do que um olhar inicial revela. Dentro dessa perspectiva, transformações/invariantes podem ser vistas como as moléculas do mental. Apesar desses méritos, a teoria das transformações continua em plano secundário em psicanálise, deixando a impressão de que, como analistas, ainda temos um caminho a percorrer para alcançar o que Bion observou e anteviu, que o levou a aplicar essa teoria na psicanálise. Desenvolvimentos pessoais nesse tema só podem emergir de experiências clínicas individuais antes de se tornarem conhecimento conceitual compartilhado. Como disse Bion (1973 ou 1974) sobre Transformações, na supervisão D14:3 “De fato, eu já disse repetidas vezes, se você ler esse livro, você irá apenas entendê-lo quando perceber que está perfeitamente familiarizado com a experiência”.
Antes de entrarmos na utilização clínica da teoria das transformações, é útil considerarmos algumas questões gerais.
1) A teoria psicanalítica das transformações e invariantes desencadeou uma profunda inflexão no pensamento e na prática psicanalítica. Em essência, os conceitos de transformações, de grupos de transformações e de invariantes são ferramentas poderosas para os analistas discriminarem suas observações durante a sessão psicanalítica e, na sequência, organizá-las em conjuntos de ideias (grupos de transformações) de acordo com seus padrões específicos.
Um ponto crucial a ter em mente para observarmos essa inflexão no pensamento psicanalítico é o da teoria das transformações e invariantes ser uma teoria de campo, isto é, uma teoria descritiva da observação psicanalítica da relação analista-analisando, e não uma teoria explicativa do todo do funcionamento mental. É uma teoria de funções, de padrões de relacionamento entre o indivíduo e seus objetos na totalidade do campo no qual o indivíduo está inserido. Essa compreensão está claramente presente na observação de Bion de que a psicanálise precisa estudar “a totalidade dos relacionamentos que estes objetos mantêm com outros objetos” (1965/2005, p. 16), ou seja, que as possibilidades são infinitas e que cada caso é individual. E, dessa perspectiva, qualquer manifestação psíquica em uma sessão psicanalítica deve ser vista como uma transformação da experiência psicanalítica vivida pelos dois envolvidos (analista e analisando), que, por sua vez, encerra invariantes com origem na realidade psíquica.
Sendo a teoria das transformações uma teoria de relações entre objetos, ela não trata com os objetos, diferentemente das teorias estruturais, nas quais o objeto é pensado como formado por estruturas interdependentes - por exemplo, nos modelos da mente de Freud e de Klein, com seus objetos totais e parciais. Com essa abordagem, transformações e invariantes adquirem um papel central na identificação de padrões de funcionamento mental, papel até então ocupado, na história da psicanálise, por representação e interpretação.
Talvez essa diferença entre teorias psicanalíticas de campo e estruturais possa ser pensada como tendo por modelo a diferença entre física (estruturas) e química (relação entre os elementos químicos).
2) A teoria psicanalítica das transformações teve um destino curioso desde sua apresentação por Bion em 1965. Embora essa teoria seja raramente discutida, partes dela ganharam intensa penetração na prática clínica, modificando a forma como a mente é pensada. O conceito nuclear de transformações e invariantes, o enfoque na relação analítica e não nos objetos, os modelos utilizados por Bion, o desconhecido como a dimensão a ser focalizada, a importância da alucinose e, em especial, a crescente aceitação do conceito de transformações em ser ou tornar-se a realidade (O) são parâmetros que têm, sutilmente, infiltrado o pensamento psicanalítico, mesmo entre analistas que não reconhecem o trabalho de Bion como seu principal referencial.4
A proposta de transformações em ser ou tornar-se O, em particular, trouxe mais desafios ao trabalho do analista, mas não para o analisando: não há novas exigências a ele. Essa nova aproximação ao funcionamento mental exigiu a criação de novos conceitos e maneiras de lidar com as experiências psicanalíticas. Para dar conta destas, o analista precisa se envolver mais intensamente na interação com o analisando, aceitar ser exposto a elementos indiferenciados que emergem na dimensão psicanalítica, e pensar a mente como tendo dois centros, como uma elipse: o conhecer e o ser.
3) Bion nunca afirmou ter criado algo original ou revolucionário em psicanálise. Ao contrário, muitas vezes ele expressou que as contribuições de Freud e Klein eram a base para seu próprio sistema dedutivo científico psicanalítico. Mesmo sua teoria mais aceita e respeitada - a teoria da relação continente/contido como a base para a criação da mente - é apresentada por ele como um desenvolvimento da teoria kleiniana da identificação projetiva (Bion, 1963/2004). Também em Transformações, Bion afirma enfaticamente que estava apresentando uma teoria da observação psicanalítica, e não uma teoria do funcionamento mental: “Ignoro aqui, portanto, e ao longo deste livro, qualquer discussão sobre teorias psicanalíticas. Estou me ocupando de teorias de observação psicanalítica, sendo uma delas a teoria das transformações, cuja aplicação ilustro aqui” (1965/2005, p. 31).
Bion também foi contundente sobre esse ponto em um trecho da supervisão D14 (1973 ou 1974):
PARTICIPANTE: O senhor considera algo que escreveu até agora, ou fez, como uma contribuição original para a psicanálise?
BION: Eu não sei de nenhuma, nem uma!
PARTICIPANTE: Nem a sua… que me parece, pelo menos, o mais original de seus livros, a teoria das transformações. O senhor não o considera uma contribuição original, que tem…
BION: De forma alguma.
PARTICIPANTE: Não?
BION: Não! De fato, eu já disse repetidas vezes, se você ler esse livro, você irá apenas entendê-lo quando perceber que está perfeitamente familiarizado com a experiência.5
Em síntese, a aplicação da teoria das transformações e invariantes na prática psicanalítica pode ser vista como um dos pontos fundamentais na obra de Bion. Além de aprofundar suas teorias do pensar e do conhecer (1962/1966, 1962/1988, 1963/2004), a teoria das transformações propôs uma nova aproximação ao funcionamento psíquico (transformações e invariantes, e não estruturas) e criou um novo modelo da mente, modificando a maneira dos analistas perceberem sua prática clínica. Permitiu também a inclusão no campo psicanalítico do contato direto do indivíduo com a realidade psíquica, como uma dimensão do funcionamento mental para além do conhecer, e ofereceu instrumentos para organizar o reconhecimento dos diferentes sistemas dedutivos do pensamento psicanalítico.
O uso clínico da teoria das transformações
Embora teorias psicanalíticas devam “se destinar ao uso prático” (Bion, 1962/1988, p. 101), e a teoria das transformações não seja uma exceção, essa teoria raramente é explorada em seu uso clínico. Como a grade, a teoria das transformações é um instrumento para aprofundar a investigação do funcionamento mental (Bion, 1965/2005). Assim como podemos dizer que a grade foi concebida para examinar os produtos de transformações finais de experiências psicanalíticas (Tβ), ou seja, os elementos da zona diferenciada da personalidade, poderíamos dizer que a teoria das transformações foi desenvolvida para investigar a origem dos elementos psíquicos acessíveis após ocorrida a experiência (Tα), através da identificação dos meios e dos processos em ação na zona indiferenciada da personalidade.6
Na utilização clínica, é favorável a identificação dos grupos de transformações que vão se apresentando na sessão psicanalítica. Dentro desse objetivo, proponho seguir as sugestões de Bion e tomar a grade como um modelo para a construção de uma tabela dos grupos de transformações, como um método para identificar e categorizar os elementos (transformações e invariantes) identificados na sessão psicanalítica. A importância de um instrumento com tal alcance pode ser percebida em duas citações de Bion: “A intenção da ‘grade’ é lembrar o analista da necessidade de discernir entre um elemento e outro em sua experiência psicanalítica; e, em particular, reconhecer que tão importante quanto a comunicação é o uso que se lhe está dando” (1970/2006, p. 20). E:
Portanto é útil que você tenha à sua disposição sua própria estrutura particular, sua própria arquitetura psicológica, de tal modo que, se você estiver tentando retratar a mente com a qual você está em contato, poderá datar as várias partes de acordo com um esquema já preparado, um grid de sua própria lavra. (1978/1992, p. 222)
Com os dados levantados, os analistas podem se situar melhor nas diferentes dimensões da mente que se apresentam em cada experiência psicanalítica, ganhando maior consciência dos grupos de transformações dominantes e, dessa forma, do funcionamento mental do analisando, aprofundando observações e reunindo elementos para refletir sobre seu próprio trabalho. Análise é o método da psicanálise. Identificar os elementos que compõem a mente, seu objetivo. O pensamento de Bion é claro quanto à importância de identificar e classificar os elementos observados na prática clínica: “Minha abordagem pode ser válida para problemas de diagnóstico, na medida em que entidades clínicas poderiam ser definidas e classificadas de acordo com a transformação (refiro-me agora ao método e suas teorias componentes) e invariantes empregadas” (1965/2005, p. 20). E: “O tipo de transformação vai depender do analista e de sua avaliação das demandas da situação clínica” (p. 19).
Uma tabela dos grupos de transformações psicanalíticas
Ao construir um grid de sua própria lavra, o analista não está apenas seguindo essa sugestão de Bion, mas também levando adiante uma ideia que já se manifestou em vários outros analistas para atender necessidades clínicas. Por exemplo, Erikson (1950/1967) com seu mapa da mente, Meltzer com sua grade pessoal, Cecil Rezze (2005, 2023) com sua grade negativa e sua aplicação da grade às emoções.
Se tentamos nos basear nos pensamentos de Bion (1965/2005) na identificação dos diferentes padrões de transformação em Transformações, nós encontramos duas linhas de desenvolvimento entrelaçadas na descrição dos grupos de transformações. A primeira está relacionada à classificação dos grupos de transformações de acordo com os processos e o meio (Tα) onde as transformações acontecem. A segunda está relacionada à resultante final (Tβ) de cada ciclo de transformações. No primeiro caso, no qual a classificação é baseada no meio e nos processos em que ocorrem as transformações, Bion apontou quatro padrões de grupos de transformações: transformações em conhecer (K), transformações em não conhecer (-K), transformações em alucinose e transformações em ser ou tornar-se O. No segundo caso, a classificação dos grupos de transformações conforme a resultante final do ciclo de transformação, Bion apontou transformações em movimento rígido, transformações projetivas, transformações em psicanálise, transformações em alucinose e transformações em ser ou tornar-se a realidade. Nessas classificações, transformações em alucinose e transformações em ser ou tornar-se a realidade surgem tanto como meios para os processos de transformações (Tα) quanto como produtos finais de ciclos de transformações (Tβ).
Cada um desses grupos de transformações e invariantes enfeixa formas específicas de manifestação e abarca observações de diferentes padrões de funcionamento mental. As especificidades dos meios e processos de transformações (Tα) são fatores que determinam a resultante final (Tβ) de cada ciclo de transformações.
A presente proposta de uma tabela de grupos de transformações parte do exame dos quatro grupos de transformações identificados por Bion enquanto privilegiando os meios e os processos de transformações: transformações em conhecer, em não conhecer, em alucinose e em ser ou tornar-se a realidade (O). A esses quatro grupos, proponho que acrescentemos um quinto, para incluir as conjecturas de Bion sobre a mente primordial, desenvolvidas por ele entre 1976 e 1979, cerca de 10 anos após a publicação da teoria psicanalítica dos grupos de transformações. Essa organização é vista como sempre aberta a novas adições e mudanças.
Quanto aos outros grupos de transformações citados por Bion em Transformações, aqueles que se baseiam nas resultantes finais (Tβ) e não incluídos diretamente nessa tabela (transformações em movimento rígido, transformações projetivas e transformações em psicanálise), podemos identificar que já fazem parte dos grupos escolhidos para constituir a tabela, já que seus processos de transformações ocorrem em um dos quatro meios que foram privilegiados (conhecer, não conhecer, alucinose e ser a realidade). Assim, podemos dizer que as transformações em movimento rígido (as transformações freudianas) estão compreendidas nas transformações em conhecer, e que as transformações projetivas (as transformações kleinianas) vão ser encontradas divididas em três diferentes meios: 1) como formas iniciais de processos de pensar e, assim, incluídas como transformações em conhecer; 2) como a essência do processo de desvencilhar a mente de elementos intolerados, caracterizando a destrutividade nas transformações em não conhecer; 3) como as transformações que incompletamente livram a mente de elementos perturbadores, mas que ainda guardam suficiente contato com a realidade, caracterizando as transformações em alucinose. Finalmente, as transformações em psicanálise correspondem ao conjunto das transformações em conhecer e em ser ou tornar-se a realidade (O), as transformações conducentes ao desenvolvimento mental em um processo psicanalítico.
Transformações em conhecer (K) | Transformações em não conhecer (-K) | Transformações em alucinose | Transformações em ser ou tornar-se O | Ausência de transformações (mente não nascida) |
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Impressões do(a) analista sobre a sessão (O, Tα, Tβ + L, H, K) |
Fluidez eco | Alta | Muito baixa | Baixa | Muito alta | Ausente |
Oa / Op | Convergente | Muito divergente | Divergente | Mesmo Oa e Op | Op não acessível | |
Meio de T (Tα) | Espaço K (continência) |
Espaço -K (iden- tificação projetiva, acting-out) |
Alucinose | Sendo | Corpo (sna) | |
T resultante (Tβ) | Pensamentos do pensador | Força negativante (without-ness) | Falsos pensamentos (não realidade psíquica) | Vislumbres de O | Manifestações psíquicas não integradas | |
Vínculos | +K / Comensal | -K / Parasítico | -K / Parasítico | Ser um com O (at-one-ment) | Ausente | |
Impressões do(a) analista sobre suas experiências na sessão | Experiências emocionais | Reverie (função alfa, elaboração das ee da dupla) Interesse, vitalidade, compreensão |
Inibição/opacificação da função analítica (ee, intuição, reverie) Distração, dispersão, desvitalização, desconexão Sonolência Frustração, irritação |
Mobilização emocional Sedução Convite para não pensar Emoções e verbalizações excessivas |
Ser si mesmo Escuta intuitiva Conjunções constantes Capacidade negativa Encantamento, admiração Pensamentos sem pensador |
Esvaziamento de intuições e ee Estranheza e tensão Ansiedade pelo não contato (espectro autista), sonolência |
Observações clínicas | Fatos selecionados Atenção flutuante Criação/ crescimento de significados | Alucinação negativa, decatexização, rejeição (forclusão) Possessividade de conhecimentos Intolerância a dúvidas e a incertezas |
Teorias em vez de experiência presente Alucinose compartilhada por analista/ analisando (conluio) | Não buscar coerência Dúvidas, espontaneidade Compartilhamento de ee | Apelo por significados e reasseguramentos Estranheza e terror com emanações da psique Culpa básica, infundada |
|
Impressões do(a) analista sobre o funcionamento mental do(a) analisando(a) | Comunicação verbal | Comunicação verbal de experiências interiores Associação livre | Desnudamento (-.) e reificação de significados, desmentalização Linguagem como descarga (atuação) Falta de atenção para a experiência presente, desconstrução |
Comunicação verbal distorcida Hipérbole Linguagem de substituição |
Linguagem de consecução Integração de conhecer/emoção/ser Diálogo psicanalítico Conjecturas imaginativas |
Estados protomentais silenciosos Infiltração em partes desenvolvidas da personalidade (“bolsões”) |
Situação analítica | Respeito pelos limites do self do analista | Desconsideração com os limites do self do analista (tela beta) Falta de diferenciação entre objeto, representação e coisa em si (no thing # nothing) Trabalho do negativo Insensibilidade, desmentalização |
Criação de um mundo alucinado ou delirante Onipotência, onisciência, julgamento moral Rivalidade, superioridade, autossuficiência Memórias e desejos | Ansiedades catastróficas Contato vivo Elaborações de experiências do ser (emoções e sentimentos) |
Em vez de emoção, ação e manifestações físicas Eventos psíquicos enraizados no corpo (somatopsicóticos) Urge para existir, consciência moral primitiva, ser só e dependente |
ABREVIATURAS
ECO remete a fluidez emocional, cognitiva e onírica; Oa é O para o analista; Op, O para o paciente; T, transformação; Tα, meio e processos nos quais a transformação ocorre; Tβ, resultante final de um ciclo de transformação; EE, experiência emocional; K, conhecer (knowledge); -K, não conhecer (without-ness), corresponde à notação proposta como força negativante e destitui-ice, “característica de um processo de menos continente/contido” (Sandler, 2005/2021, p. 381); sna são as iniciais de sistema nervoso autônomo; (-.) menos ponto, notação para o negativo do objeto ausente.
Comentário 1
Essa tabela dos grupos de transformações e invariantes organiza em linhas e colunas as observações do analista sobre os diferentes padrões dos grupos de transformações. Em uma aproximação geral, privilegia a identificação de sentimentos, processos e estados emocionais intuídos pelo analista, além dos elementos que podemos identificar como estando evolvidos na interconexão e comunicação entre a mente do analista e a mente do analisando.
Na tabela, as linhas horizontais enfatizam três diferentes perspectivas:
- As impressões do analista sobre o clima emocional da sessão, identificando: 1) a fluidez7 emocional, cognitiva e onírica; 2) a relação entre o O do analista e o O do analisando; 3) o meio no qual os processos de transformação ocorrem; 4) o produto final do ciclo de transformação; 5) os vínculos emocionais presentes.
- As impressões do analista sobre suas experiências interiores, identificando as experiências emocionais e suas observações clínicas.
- As impressões do analista sobre o funcionamento mental do analisando (Tα), categorizando as comunicações verbais características dos elementos que constituem cada grupo de transformações (Tβ).
Comentário 2: transformações em conhecer (K)
Em uma aproximação ampla, podemos dizer que transformações em conhecer cobre o domínio dos pensamentos do pensador. Na teoria do conhecimento de Bion, essas transformações são representadas pela criação e manejo de pensamentos (função alfa).
Conceitos convergentes estão incluídos no grupo de transformações em conhecer, como o grupo de transformações em movimento rígido, as manifestações transferenciais descritas por Freud, os processos de simbolização e a proposta de Antonino Ferro (1993) de transformações em sonhos. Uma forma de transformações projetivas - identificação projetiva como comunicação dos pródromos dos pródromos de um pensamento - também pode ser vista como meio e processo de transformação em conhecer.
É útil ter em mente que, quando Bion fala em conhecer, ele se refere ao processo de vir a conhecer, e não ao ato de tomar posse de uma porção do conhecimento.
Vinheta clínica
Liana faz algumas associações em torno de um evento no qual se vê “ficando para trás”, pelo fato de um colega ter recebido muitos elogios no desempenho que demonstrou em uma tarefa envolvendo toda a equipe, da qual Liana também participava. Aos olhos de Liana, isso poria o colega em posição de ser promovido. Liana reconhece que não se dedicou à tarefa. Sua fala apresenta algum incômodo, mas não tem uma emoção mais definida. Ao analista, nada em sua fala parece suficientemente acessível para uma intervenção. Sua impressão é que Liana está trabalhando por si mesma a situação emocional presente, mas frente a um silêncio maior de ambos, pergunta-lhe o que ela iria fazer agora com essas compreensões que estava tendo.
Durante um novo longo silêncio que se segue, uma imagem se impõe à mente do analista: uma pessoa jovem (possivelmente o próprio analista em tempos anteriores) tem sua coxa mordida por um pequeno dinossauro (do tamanho de um cachorro de grande porte), que arranca um pedaço considerável da musculatura. Não há emoção com a imagem, mas há uma observação de que não foi uma lesão superficial, mas sim um dano grande, com rompimento de vasos sanguíneos importantes, o que exigiria um atendimento especializado. O analista não sabe o que fazer com a imagem, não vê como encaixá-la no que está acompanhando com Liana, mas aceita a ideia de ser algo relacionado com o que está ocorrendo na situação analítica e a guarda para si.
A sessão continua em torno do mesmo tema, com exemplos de como a analisanda se satisfaz com “trabalhar o mínimo possível”, ao contrário do colega, que se dedica bastante ao que faz e que tem seu desempenho reconhecido.
A imagem do pequeno dinossauro arrancando um pedaço da coxa de uma pessoa permanece na cabeça do analista, como um pano de fundo. Próximo ao final da sessão, ocorre ao analista uma conexão que lhe aparece acoplada à imagem, a partir de uma associação da analisanda. Esta comentava sobre um personagem de filme, amargurado e com dificuldades para relacionamentos afetivos, que conhece uma pessoa que vai, pouco a pouco, promovendo transformações no seu jeito de viver suas emoções. A observação verbalizada pelo analista é de como esse personagem amargurado deveria ser alguém machucado pela vida. Tem a intenção de que a analisanda aproxime sua própria condição da desse personagem, o que facilmente acontece.
Comentário 3: transformações em não conhecer (-K)
Transformações em conhecer (K) e em não conhecer (-K) decorrem dos dois movimentos psíquicos mais básicos do indivíduo ao interagir com a realidade: tomar posse da experiência sob a forma de registro mental, ou eliminar da mente protopensamentos e protossentimentos perturbadores, juntamente com partes da personalidade a eles relacionadas. Um modelo que pode ser utilizado aqui é o de um bebê pondo um objeto na boca e ingerindo-o ou cuspindo-o.
O conceito de transformações em não conhecer cobre experiências de identificação projetiva, como o produto final de transformações que culminam no anular ou destruir registros de algo que foi vivenciado ou com potencialidade para sê-lo. Complementar ao “alto grau de bem organizada destrutividade” (Bion, 1992/1996), abre-se um vazio no “espaço” mental, que é imediatamente ocupado: “não objetos” tomam posse, violentamente, do que existe no espaço K (conhecer), o “espaço” no qual manifestações clássicas da transferência tornam-se “sensorializáveis” (Bion, 1965/2005, p. 129). Encontramos esse processo na clínica sob formas com intensidades desde leves até severas.
Vinheta clínica
Catarina mostra-se muito irritada e decepcionada com o analista após este mencionar a forma fluente e clara com que, diferentemente de outras vezes, ela estava relembrando um acontecimento decisivo de sua vida, já mencionado várias vezes antes. O ponto ao qual Catarina se apegou a princípio foi o fato de o analista ter lhe dito que agora estava alcançando melhor o que ela descrevia. Entendeu que o analista nunca prestava atenção ao que ela dizia. Sua irritação cresceu progressivamente e deu lugar a um exercício agudo de crueldade para com o analista. Desqualifica o trabalho analítico e faz pesadas acusações de que o analista a enganava e de que psicanalistas eram fachadas de pessoas com enormes dificuldades pessoais. Levanta-se do divã e, batendo a porta, sai avisando que mandaria entregar o pagamento das sessões que havia tido. O analista se percebe impactado, impotente para lidar com o que aconteceu, mas receptivo para as vivências, apesar de pouco capaz de pensar sobre elas. Nas horas seguintes, percebe-se tranquilo e sem necessidade de elaborar mais a fundo o que tinha vivido.
Antes da sessão seguinte, o analista recebe um recado na secretária eletrônica, no qual Catarina pergunta se seus horários continuavam disponíveis. O analista telefona confirmando que sim, os horários ainda estavam disponíveis. A sessão que se seguiu inicia com um longo prólogo de explicações, sem manifestações de culpa ou consideração para com o analista. As explicações de Catarina preservavam os elementos antes violentamente formulados: continuava tendo razão no que dissera. No entanto, na contramão do conteúdo de suas palavras, o analista passa a ter uma vivência de erotização do contato, embora sem elementos sensoriais identificáveis. Talvez algo na entonação da voz de Catarina. O analista fica atento e, frente à persistência da impressão de erotização, decide comunicar a ela o pensamento que se organizou nele. Aponta o medo dela de que a análise a esteja expondo ao contato com sentimentos amorosos, que a seu ver são sexuais, proibidos e aprisionantes. Catarina fica um tanto surpresa e também áspera e irritada, mas se contém. Não retoma o que o analista apontou a ela, mas passa a fazer descrições de fortes decepções que já viveu com os pais, com o marido e com os filhos. O analista aceita seu movimento e não busca examinar a violência de Catarina contra ele, convicto de que insistir em interpretações de significados em estados de não conhecer não traz benefícios. Apenas assinala a ela que as dores que estava sentindo naquele momento pareciam antigas e repetitivas. O analista prefere aguardar uma oportunidade futura na qual possa se sentir confiante da presença de recursos na dupla para que ambos se aproximem mais do que a aterrorizava. Intuitivamente, não sentiu ser esse o caso no momento.
Comentário 4: transformações em alucinose
Em “Uma teoria sobre o processo de pensar” (1962/1988), Bion introduziu a ideia de uma condição intermediária entre tolerância e intolerância à frustração, na qual podemos identificar o germe do grupo de transformações em alucinose:
Se a intolerância à frustração não for intensa ao ponto de acionar os mecanismos de fuga, mas tiver uma intensidade que impeça que se suporte o predomínio do princípio da realidade, a personalidade desenvolve a onipotência como substituto da união da preconcepção (ou da concepção) com a “realização” negativa. Isto implica o suposto que a onisciência seja um substituto do aprender com a experiência através da ajuda dos pensamentos e do processo de pensar. Não há, portanto, qualquer atividade psíquica para discriminar o verdadeiro do falso. (p. 104)
Essas ideias são desenvolvidas posteriormente no capítulo 10 de Transformações, onde Bion apresenta a alucinose como um meio no qual transformações em movimento rígido e transformações projetivas são processadas.
Vinheta clínica
Carlos tem um contato colaborativo com o analista. Comunica, com desenvoltura, suas vivências psíquicas. Em uma sessão, fica subitamente mais sério e comenta, em voz decidida, que tem estado preso aos noticiários sobre os desastres na região serrana do Rio de Janeiro, em consequência das chuvas e dos deslizamentos de encostas de morros. Diz que passa de um noticiário de televisão para outro e enfatiza a ideia: “Sabe, eu fico decepcionado que não seja pior, que mais gente não esteja morrendo”. O analista fica surpreso e aguarda. Carlos dá outros exemplos de catástrofes nas quais se viu tendo a mesma reação, assim como em episódios da vida diária. Enquanto isso, evoluem no analista lembranças de situações nas quais havia percebido Carlos “carregando nas tintas” em descrições que o apresentavam como louco, malvado, uma pessoa moralmente desqualificada. O analista lhe diz da sua impressão de que o tema da descrição que Carlos fazia agora é novo, mas que o padrão já é conhecido, e lembra a ele alguns desses episódios. Aponta-lhe também sua necessidade de verificar se o analista avalizava essa crueldade que ele, Carlos, cometia consigo mesmo. Carlos surpreende-se com a fala do analista e passa a abordar como o trabalho analítico lhe traz a possibilidade de olhar suas experiências com compreensões que nunca tinha tido. O analista se percebe lisonjeado e prefere aguardar. Carlos passa a relatar observações de jogos de “gato e rato” com a esposa: quando um se aproxima, o outro foge. O analista aponta a possibilidade de que ele, Carlos, também esteja “fugindo”, naquele momento, de um contato mais direto com o que a dupla analítica abordava, ao enaltecer o trabalho analítico, colocando ambos como aliados em uma condição superior de compreensão. Carlos ri nervosamente e, após um breve silêncio, passa a falar do seu desconforto nas sessões, do seu medo do analista, o que pareceu estar mais próximo do que o analista observava.
Comentário 5: transformações em ser ou tornar-se a realidade
Em algum ponto, ao escrever O aprender com a experiência e Elementos de psicanálise, Bion passou a conjecturar sobre a possibilidade de um contato direto do indivíduo com a realidade, dispensando a intermediação dos processos de conhecer. Pelos desenvolvimentos de suas contribuições, deduzimos que Bion tenha concluído que essa conquista dependia da condição do analista ser capaz de tolerar um profundo envolvimento com camadas psíquicas indiferenciadas da mente do analisando; uma análise poderia ser desenvolvida sem o analista trabalhar significados simbólicos manifestos na situação analítica (Rezze, 1995/2021a, 2001/2021b). Em Transformações e em outras publicações nos anos que se seguiram, Bion examinou cuidadosamente, a partir de sua própria experiência clínica, condutas do analista que favoreciam essa possibilidade. Francesca Bion nos deu uma ideia de como Bion alcançava entendimentos como esse:
Algumas vezes ele saía de seu escritório, onde ele estivera mergulhado em pensamentos profundos, lutando com estes aparentemente problemas intratáveis, com uma face pálida e algo que eu posso descrever como “ausente”. Eu ficava alarmada, até que compreendi que ele estivera cavando tão profundamente na natureza da mente psicótica que ele tinha se tornado uno-com [at-one] a experiência do paciente. (1994, p. 5)
Em termos práticos, esse movimento propiciou uma expansão do campo psicanalítico, criando um segundo centro para a aproximação com a mente, este agora baseado na intuição de protossentimentos e protopensamentos. Nesse movimento, o analista precisa ficar livre do campo gravitacional do conhecimento e se deixar levar para dimensões desconhecidas, intuindo pontos de convergência entre sua mente e a mente do analisando. De maneira paradoxal, essa condição mais desenvolvida do funcionamento mental só é alcançada quando o analista se deixa envolver radicalmente com os aspectos mais básicos e indiferenciados da experiência psíquica evolvendo na situação analítica, uma vez que emoções e seu desenvolvimento em sentimentos e protopensamentos são manifestações do ser.
É importante ter em mente que não experimentamos o contato com O. O que vivenciamos é a experiência de estar experimentando O:
O não pode ser definido nem representado e, dessa forma, Bion vincula sua noção de O, de forma alegórica, com conceitos de diferentes disciplinas, como a coisa em si ou númeno de Kant, as formas de Platão, o infinito da matemática e a divindade mística que pode ser encarnada. O evoca algo transcendental, algo “além” dos sentidos que pode tomar forma em uma realidade sensorial. (Vermote, 2019, p. 149)
Vinheta clínica
É a primeira sessão após as férias. Bernardo chega bem-humorado, efusivo mesmo, e passa a ocupar seu tempo falando animadamente de sua viagem, dando, de modo entusiasmado, detalhes ricos de situações que vivera. O analista o ouve por vários minutos, sem perceber ter algo a dizer. Forma a impressão de que Bernardo não parece estar falando com o analista; está apenas falando. Aos poucos, o analista se dá conta de estar vivenciando um clima de tristeza. Vê a possibilidade de se valer dessa vivência, mas precisa vencer alguma relutância de utilizá-la, pelo receio de poder estar experimentando hostilidade a algo que Bernardo havia vivido e ele não. O analista acaba por decidir dizer a Bernardo que, embora suas descrições tivessem uma qualidade de muita satisfação pessoal, captava também um tom de tristeza no ar. Bernardo dá um meio salto no divã e exclama, quase gritando: “Meu pai infartou”. E passa a dar detalhes, alterado, de um episódio ocorrido durante sua viagem, no qual o pai necessitou cuidados intensos e teve a sua vida em risco.
Comentário 6: ausência de transformações (mente primordial)
Em seus esforços para se aproximar da origem (O) das experiências psíquicas sendo transformadas, Bion ficou possivelmente impressionado, em algum ponto na década de 70, por um pensamento que capturou seu interesse nos últimos anos de sua vida e que expandiu sua visão da mente. O pensamento que deu forma a essa nova ideia foi o da presença, na mente desenvolvida, de restos de atividade psíquica pré-natal, semelhante à presença de remanescentes de tecido embrionário após o nascimento. Bion aponta esses elementos como indicando a existência prévia de uma mente primordial, antecedendo a mente primitiva de Klein e a mente simbólica de Freud, essas últimas desenvolvidas após o nascimento, em um contexto de relações objetais. Nos três últimos anos de sua vida (1976-1979), Bion investigou e elaborou conjecturas imaginativas e racionais sobre esses primórdios da vida mental, sob a forma de formulações empíricas e pouco organizadas conceitualmente. Ele identificou três formas específicas dessas manifestações e nomeou-as como ser só e dependente, urge para existir, e consciência moral primitiva (Braga, 2020a; Junqueira de Mattos & Braga, 2009).
Essas observações nos impõem considerar um quinto grupo de transformações, reunindo elementos que não sofrem transformações e se manifestam através de infiltrações em formas de funcionamento da mente desenvolvida. Korbivcher (2009, 2001/2010) estudou extensivamente esses elementos conjecturados como pré-natais e os articulou com a teoria das transformações, identificando dois grupos de elementos, os quais nomeou como transformações autísticas e transformações não integradas.
Vinheta clínica
Agostinho tem se apresentado com extrema rigidez no uso de sua capacidade para pensar. Pensamentos próprios são malvindos e tratados como produtos perigosos, frequentemente como “coisas de louco”. Fica à vontade quando “pensa” como os outros “pensam” ou o que os outros “pensam”. O analista também vê Agostinho como uma pessoa com recursos significativos de sensibilidade, curiosidade e inteligência, mas que não consegue desenvolvimentos pessoais e profissionais que favoreçam sua vida. Vive dentro de um círculo de pequeno diâmetro, no qual apenas por vezes fica possível um contato com a qualidade de elaboração da experiência presente.
No trabalho analítico, o sofrimento no contato de Agostinho com a vida mental é um ponto de destaque, assim como a sua dificuldade em elaborar as experiências da relação analítica. Por vezes, dá evidências de não reconhecer a presença do analista. Parece entreter formas de não estabelecer relações objetais. Evita examinar o que surge na situação psicanalítica e, quando isso lhe é apontado, angustia-se muito, tenta evitar um aprofundamento do exame desse fato e se afasta do tema em foco. Em paralelo, apresenta muitas queixas somáticas, principalmente advindas de excessos alimentares e observações de apego a certos objetos: “Por que trago sempre esta pasta?”, “Por que não posso parar de fumar?”, “Por que não vou embora desta cidade?”.
Em uma determinada sessão, acontecida cerca de 10 anos após o início do trabalho analítico, o analista experimenta um clima de ausência de contato emocional com Agostinho, embora este esteja emitindo muitas palavras. De repente, o contato muda e se estabelece uma conexão surpreendentemente fluida, na qual é possível examinar a experiência da sessão de forma marcantemente significativa. Agostinho apresenta descrições de percepções de si mesmo com grande liberdade criativa, onírica, tolerando ambiguidades e duplicidades. Mostra até condição de lidar com dúvidas: “Pode ser assim, pode ser assado”. Quando o analista lhe aponta estar reconhecendo a utilização de condições que habitualmente não mostra ter, Agostinho se assusta e se expressa com grande sofrimento: “Mas assim eu me sinto me desmanchando”. O analista não diz nada. O sentimento foi de ambos estarem vivendo um momento significativo, a elaboração do contato com um estado psíquico de unicidade, possivelmente sempre presente, mas cuidadosamente evitado. Na intuição do analista, palavras são dispensáveis na elaboração desse estado psíquico.
Considerações finais
1) A tabela de grupos de transformações aqui proposta resume e organiza as diferentes formas de transformações e auxilia na identificação rápida de padrões de experiência clínica presentes na sessão. Também ajuda na reflexão sobre manifestações específicas que acontecem na dupla analista/analisando. Baseia-se no postulado de que cada grupo de transformações reúne um conjunto próprio de padrões e elementos. Como apontado por Bion, “a investigação desta e de outras experiências analíticas poderia, com o tempo, nos capacitar a ver tipos diversos de transformação - e talvez chegar a alguma classificação de séries de diferentes transformações que, juntas, compõem o grupo das transformações” (1965/2005, p. 29).
2) Na prática clínica, a distinção entre grupos de transformações não é absoluta. Em alguns pontos, as transformações se mesclam, e o analista precisa escolher a transformação prevalente. Elementos pertencentes a mais de um grupo de transformações podem ser conjecturados como estando presentes em um mesmo ciclo de transformação. Em diferentes momentos, Bion nos alertou sobre a ocorrência dessa superposição: “Isto é uma questão relevante, pois a decisão depende do que for mais conveniente ao analista”. E acrescenta em uma nota de rodapé: “E a decisão que o analista faz é se identificar com um vértice específico” (1965/2005, p. 41). Esse pensamento encontra complementaridade páginas adiante: “Nada na prática da psicanálise se encaixa em categorizações rígidas e arrumadas” (p. 146). Essa é, possivelmente, a mesma situação que encontramos quando olhamos um mesmo episódio clínico por diferentes vértices teóricos, ou quando consideramos as observações de Bion (1962/1966) sobre a coexistência de vínculos de amor, ódio e conhecer.