É impossível enunciar os eventos psicanalíticos de modo direto, indubitável, ou que não possa ser corrigido: do mesmo modo que ocorre em qualquer investigação científica.
W. R. BION, Atenção e interpretação
Estou convencido da força da posição científica da prática psicanalítica.
Acredito que a prática dos psicanalistas em fazer da psicanálise uma experiência essencial de treinamento lida com as dificuldades fundamentais no momento em que ocorrem, pois disponibiliza o consciente e o inconsciente para correlação; mas não considero menos premente a necessidade de investigar a fragilidade que se origina de uma construção teórica defeituosa, da insuficiência da notação e de falhas no cuidado metodológico e na manutenção do equipamento psicanalítico.
W. R. BION, Aprender da experiência
Estudos de teoria da ciência abrangem a história das descobertas científicas, também conhecida como história do conhecimento ou das ideias em nossa civilização (Cassirer, 1906-1907/1957; Lovejoy, 1940). Tentam descrever algumas aproximações parciais e transitórias à realidade dos fatos descritos, de acordo com os vértices de observação adotados, que lhes fornecem formulações verbais. Às vezes, se acompanham de formulações visuais matemáticas, físicas e químicas (Sandler, 2013/2021a). O sentido do termo parciais reconhece que ciência, por necessidade, é uma prática originada na noção de parcialidade, e não na de totalidade - ciência deriva do grego antigo skizein, “clivar”. Também por necessidade, gerou uma paradoxal busca por totalidade, em transcendente estado de luto (Freud, 1917/1957b). Só se busca aquilo que não se tem, mas já se teve e se esqueceu. O termo transitórias expressa a notável capacidade de esquecimento que caracteriza a todos nós, ainda que sob graus variáveis. Tratar-se-ia de uma função humana? Parece-me verdade que “toda novidade não passa de esquecimento” (Bacon, 1625/1985, p. 229). Freud (1900/1958b) observou que todo conhecimento é um reconhecimento, mas passível de exagero ou de outras distorções, dando a aparência de que seria novidade.
Através do uso do método transdisciplinar (Merton, 1948) sob o vértice da psicanálise, evidenciei paralelos e igualdades entre algumas disciplinas - matemática, física, biologia, antropologia, teoria da ciência e psicanálise. Um dos paralelos emergiu nas suas respectivas apreensões aproximativas à realidade material e psíquica (Freud, 1900/1958b) da natureza humana (Winnicott, 1988) e da natureza externa, e de suas vicissitudes e sofrimentos. Que lhes são intrínsecos: nosso ambiente externo e tantas vezes também o interno caracterizam-se por serem mais hostis à vida do que facilitadores da vida, mesmo que paradoxalmente a componham. Uma das igualdades foi a elucidação das falácias contidas nas crenças da religião positivista (Sandler, 1997), inventada por Auguste Comte (1896/2000). Acredito que muitos de nós, membros do movimento psicanalítico (Freud, 1914/1957d), temos noção desse tipo de história, através dos estudos transdisciplinares de Freud a respeito da história filogenética e ontogenética (Dayrat, 2003) da natureza humana: Totem e tabu, Psicologia de grupo e a análise do ego, O futuro de uma ilusão, O mal-estar na civilização, Moisés e o monoteísmo, entre outros.
Freud (1911/1958a) descreveu, pela primeira vez na história das ideias da civilização, o princípio da realidade no funcionamento do que ele denominou de aparato psíquico. Age em conjunto com outro princípio, conhecido há pelo menos dois milênios, embora não com a denominação científica dada por Freud: o princípio do prazer-desprazer, que por vezes chamou de prazer-dor. Como Platão, Spinoza, Kant, Freud (1937/1964a), Klein, Bion, Green e todo e qualquer cientista, usarei os termos realidade e Verdade como sinônimos. Filósofos discordarão dessa sinonímia.
Ciência e teoria da ciência são efetuadas por análises críticas, ou criticismo kantiano (1781/1974), já praticado por Sócrates, Platão, Aristóteles e outros na Grécia antiga. Obliterado e quase extinto pelo dogmatismo imposto por teocracias, foi resgatado na Renascença, no Iluminismo e no movimento romântico (Bacon, 1620/1973; Kant, 1781/1974; Nietzsche, 1877/1974; Sandler, 2001), resgate que permitiu o aprofundamento em descrições de comportamentos transcendentais, refletindo o funcionamento do aparato de pensar da raça humana. Isso gerou a descoberta da psicanálise por Freud (Sandler, 2023). Outros autores (Feuer, 1962; Levine, 1923/2015; Prado Jr., 2000a, 2000b; Rouanet, 1985/1990) indicaram as origens da psicanálise no movimento romântico. Referiram-se apenas à obra de Freud. Incluo a obra de Klein, Winnicott e Bion.
No mesmo estudo, detectei contribuições da psicanálise para dirimir persistentes controvérsias na teoria da ciência, infiltrando-se na prática da psicanálise. Uma delas é a descoberta de um fator no ato de esquecer: sob o vértice psicanalítico, é a presença do mecanismo psíquico de resistência (Freud, 1926/1959, 1937/1964a).
Minha experiência clínica em psicanálise e dinâmica de grupos (Bion, 1961/1977) indica que a resistência se origina do ódio à Verdade - indissociável da presença de dor, e não de prazer. Seu negativo é o amor à Verdade. Ontogeneticamente nascidos juntos, constituem mais um entre os muitos paradoxos transcendentais que alguns de nós aprendem a tolerar (Sandler, 2003) caso sejam psicanalistas praticantes. Os dois emergem no que denominamos de insight (Freud, 1933/1964b) - Einsicht e Einblick -, um dos combustíveis que mantêm vivos o casal psicanalítico, “que não seja imortal posto que é chama/ mas que seja infinito enquanto dure” (Moraes, 1939/1957, p. 22). Empresto a expressão verbal do “poetinha camarada” (Toquinho, 1974) sobre o que o senso comum (Locke, 1690/1973) classifica como amor. Sob o vértice psicanalítico, também vale para o ódio: a forma mais primitiva de amor (Freud, 1915/1957a; Winnicott, 1949).
Insights correspondem a atos materiais e psíquicos compostos por lampejos de percepção consciente sobre autoamor e auto-ódio e seus negativos, menos-amor e menos-ódio (-L e -H) (Sandler, 2011/2022a). Acontecem se e quando um casal analítico recorre a uma “linguagem de consecução” durante suas interações mútuas, por associações livres do paciente e atenção livremente flutuante do analista. Produzem cognições internas. Klein (1946/1952) observou ser o fato de que o aparato psíquico ocupa, transitoriamente, a posição depressiva (d) algo sempre seguido de retornos, igualmente transitórios, a ocupar a posição esquizoparanoide (ps). A “ocupação” vai se dar em outra magnitude, que pode ser tanto maior quanto menor. Bion sugeriu uma notação quase matemática para esse contínuo movimento em tandem: ps ↔ d.
Há consequências fenomênicas desse movimento em tandem, em direção ao desconhecido e, no seu inverso, de retorno ao conhecido. Proponho denominá-las, respectivamente, de evolutivas e involutivas. Sob o vértice político-religioso, juízos de valor construtivos e destrutivos. Sob o vértice biológico, avanços nutritivos e retrocessos depauperantes. Podem caracterizar desastres e tragédias e seus contrários. Ameaçam e por vezes determinam destruição para os processos de conhecer individual e, consequentemente, para o conhecimento. Não ameaçam o que é Verdade, mas obstruem ou previnem sua cognição intuitiva, naquilo que Bion qualificou como tornar-se. No caso, tornar-se cientista, tornar-se psicanalista etc.
Alguns, em especial os indisciplinados quanto à sua própria submissão à memória e ao desejo, ficam perplexos frente à duração do insight, que lhes parece demasiado variável. À medida que se qualificam para o trabalho analítico, dão-se conta da necessidade cognitiva da repetição dessa experiência, observada por Klein (1932/1959), condenada ao esquecimento pela nossa notável capacidade (funcional?) de esquecer.
No estudo A apreensão da realidade psíquica (Sandler, 1997), atualizado por outras publicações, tentei demonstrar - com fatos extraídos da clínica psicanalítica individual, acoplados a eventos factuais na história do conhecimento humano em nossa civilização - níveis de observação que sugeri denominar, respectivamente, de micro e macrossocial. Em todos esses níveis, existe a possibilidade de constatação de que insights, pelo grupo humano como um todo, estão entremeados pelo mesmo movimento ps ↔ d. Neles ocorre a apreensão da realidade material e psíquica da natureza humana, afetando a teoria da ciência. Evoluem e involuem, provêm avanços nutritivos e retrocessos depauperantes. Nos últimos, podem alcançar desastres e tragédias nos vários movimentos grupais. O presente estudo focaliza os percursos históricos da psicanálise e do movimento psicanalítico - de suas origens.
Ciência, arte, mitos
São modos, cada um com seus próprios métodos e instrumentos, pelos quais todos nós, seres humanos, temos podido, há milênios, fazer apreensões e descrições de aspectos fundamentais da realidade material e psíquica da natureza humana e de seus sofrimentos e vicissitudes. Por uma questão de necessidade, e tantas vezes, de sobrevivência. Há outros modos? Bion sugere que há, desenvolvidos por poetas e teólogos da tradição mística (Bion, 1965/2021b; Sandler, no prelo).
Desde a Antiguidade, tem havido pontos de maior confluência entre ciência e arte. Muitos autores trouxeram à nossa consciência a poesia, principalmente aquela sob a forma de mitos, uma forma primeva de fazer ciência. Podem funcionar como “uma ferramenta para procurar fatos”, embora “careçam de precisão - daí a necessidade de formulações sofisticadas como na ciência” (Bion, 1963/2023, pp. 12 e 93). Freud intuiu o quanto o mito poderia ajudá-lo na iluminação científica das suas observações clínicas, feitas nele mesmo e em pacientes, descobrindo o método investigativo e terapêutico que chamou de psicanálise. Nele, em suas pacientes e em um mito, a tragédia de Édipo, por intersecção de alguns fatores ontológicos e filogenéticos encontráveis em qualquer ser humano, havia algo que denominou complexo de Édipo. Sob o vértice da teoria da ciência aplicada à clínica também pode ser chamado de Édipo complexo (E. H. Sandler, 2015).
Meritocracia técnica (ou científica, ou artística) e meritocracia política
P.A.: Mistério é vida real; e a vida real é o interesse da análise real. Jargão passa por psicanálise, assim como se substitui música por som, poesia e literatura por fluência verbal, pintura por trompe l’oeil.
W. R. BION, Uma memória do futuro, volume 2: o passado apresentado
“O ser humano é, por natureza, um animal político” (Abbate, 2016, p. 58) tornou-se uma frase banal, idêntica a “Ser ou não ser” (Shakespeare, c. 1600/2003, p. 96). Sob o vértice antropológico (Darwin, 1859/1952) e psicanalítico (Jaques, 1976/1981), expressa um fato: todos nós, seres humanos, precisamos nos organizar em grupos. Não o fazemos por desejo, mas por necessidade instintiva de sobrevivência, agravada pelo fato de que o ambiente extrauterino é predominantemente hostil, e não facilitador. Por muitos fatores, na maioria desconhecidos, grupos descambam, tão facilmente quanto alguns dos indivíduos que os formam, para a hostilidade interna e externa, que tem sido chamada de beligerante. Sob o vértice psicanalítico, individual, é possível observar alguns fatores. Entre eles, falta de autoamor e excesso de auto-ódio; levo em conta que ódio é a expressão mais primitiva de amor. Tanto em indivíduos como nos grupos por eles formados, o que era interno torna-se, material e psiquicamente, expelido, a partir do indivíduo, alcançando o ambiente. Assume a forma de “social-ismo”: os instintos de morte são voltados para o ego; simultaneamente, os de vida voltam-se para o grupo social, às expensas do narcisismo, estado material e psíquico no qual os instintos de vida se voltam para o ego, e os de morte, para o grupo (Sandler, 2005/2021b).
Tomarei emprestada a concepção de meritocracia (Young, 1958/1994), especificando-a nos grupos científicos e artísticos. Observei a existência, desde a Antiguidade, de duas qualificações sociais: meritocracia técnica (ou científica, ou artística) e política (Sandler, 2012/2015, 2024).
A primeira constrói inicialmente o grupo científico (ou artístico), formado por pessoas que se agruparam para se dedicar a, ou fazer, ou apreender determinada disciplina (científica ou artística) na época em que foi descoberta, por avanço no desconhecido. Em decorrência do crescimento numérico do grupo, torna-se naturalmente necessário o aparecimento de uma meritocracia política, com finalidades de organização burocrática do grupo, onde as pessoas não se conhecem mais. Simultaneamente, sob a égide do princípio do prazer-desprazer, agora transformado no princípio do Nirvana (Freud, 1923/1961a), tenta-se institucionalizar o grupo, pois alguns membros engolfam-se na fantasia de que seu grupo ficará estabelecido para sempre, garantindo imortalidade aos fundadores e imobilização no conhecimento, tornados, em alucinação, novas divindades. Não há divindade sem seus apóstolos. Graças à imobilização em ps, tornam-se interessados no prestígio (status) intragrupal. Como se a transcendência eclodida com a descoberta científica pudesse ser mantida pelos membros da meritocracia política, e não pela Verdade eclodida com a descoberta. Uma complicação aguarda essa evolução involutiva: alguns membros comprazem-se com rivalidade beligerante por sentirem-se portadores de incapacidades de exercer a função prática decorrente da descoberta.
Seria surpreendente que o grupo psicanalítico continue seguindo o mesmo percurso dos grupos religiosos, descritos por Bion (1970/2007) em uma analogia aos resmungos irados dos relatos de Tiago e João a Cristo, dirigidos a competidores. Isso acontece pelo menos desde os tempos da Academia e do Liceu, com Platão e seu aluno rebelde preferido, Aristóteles.
Imobilizações na posição esquizoparanoide: uma ameaça à qualificação científica da prática dos membros dos movimentos psicanalítico e acadêmico
Suponho haver estudos científicos que são tão artísticos quanto as grandes obras de arte, e obras de arte que são tão científicas quanto as grandes obras da ciência. Se minha suposição for verdade, então a clivagem entre ciências e humanidades (Berlin, 1968/1997), tipificando a academia moderna, seria um exemplo de adesão não tão disfarçada a modos interacionais beligerantes “humanos, demasiadamente humanos”? Criaram-se, a partir do nada alucinado, e retornando ao nada, rivalidades entre arte e ciência, como se contendoras fossem, de modo antropomórfico e animista, em alguma arena? Teriam se instalado, no movimento psicanalítico, tipificando estados de alucinose compartilhada, impondo substituições autoritárias na teoria, negando à psicanálise sua cientificidade generandi, como herdeira de uma das práticas científicas mais antigas, a medicina?
Suponho, com evidências históricas, que nossa prática cotidiana em psicanálise é herdeira direta da medicina, vista por muitos como o “melhor benefício da humanidade” (Porter, 1999). Sua origem pode ter sido contemporânea à descoberta tecnológica dos instrumentos prevalentemente materializados, a faca e a roda, até hoje transcendentes a tempo, espaço e etnia. Precede a descoberta das pinturas rupestres: existem evidências de que há pelo menos 31 mil anos, já na época do Homo sapiens, alguém ou algum grupo descobriu a possibilidade de executar amputações, em uma técnica notavelmente similar à utilizada por ortopedistas na atualidade (Maloney et al., 2022).
Suponho que todas essas situações sociais têm tido consequências nos processos de formação em psicanálise. Manifestam-se, de modo principal, por exclamações acerbas de que a psicanálise seria outra forma de literatura, narrativa, arte, ou qualquer outra atividade, mas nunca ciência (Bloom, 1994/1995; Grunbaum, 1984; Ricoeur, 1977; Sulloway, 1978/1980; Wilson, 1998).
Um conceito vil em palavrório pomposo
Como um palhaço, travestido em imperial roupa púrpura…
Tanta vaniloquência, em tão estranho estilo,
Maravilha o leigo; e faz sorrir o perito
(Pope, 1836/1903, p. 109)
Minha experiência em psicanálise e na historiografia das ideias psicanalíticas demonstra que nem todas as críticas de acadêmicos dirigidas ao que eles pensam ser a psicanálise são errôneas. Algumas devem-se à falta de prática desses acadêmicos. Outras focalizam a infiltração idolátrica - anticientífica -, com rituais indistinguíveis daqueles praticados por religiões, entronizando alguns autores, criando seitas iniciáticas em torno de ídolos alucinados. Usam linguagem antes dada por conceitos reais, mas agora não mais apreendidos, apenas decorados por aprendizado intelectual, por racionalizações palatáveis a audiências fascinadas por algum jargão da moda.
Há um persistente problema irresolvido no trabalho desses acadêmicos críticos: confundem a psicanálise com a conduta de membros do movimento psicanalítico, que falam sobre psicanálise, sem praticar “psicanálise real” - a não ser por coincidência involuntária, pois inconsciente (Freud, 1910/1957e). Seria urgente diferenciar a meritocracia técnica da política no movimento psicanalítico?
Não se busca nem se realiza a autogeração interna de ódio. Erros de praticantes parecem explicar ou justificar a violência contra a prática da psicanálise, tantas vezes motivada por finanças (mercado) e “pouco saber - algo perigoso” (Pope, 1711/2003), principalmente em tempos de desespero social (Orsi & Pasternak, 2023). Atacar a psicanálise tornou-se fonte segura de prestígio para escritores e editores: o manto de idolatria (Thorner, 1981) sempre associado ao nome Freud recai sobre o iconoclasta, que é o negativo do idólatra. Duas transformações da mesma invariância (Bion, 1965/2021b), que pode ser nomeada violência destrutiva - tipificando tanto nós, que nos chamamos de seres humanos, quanto nossa capacidade para o esquecimento. Esquecemos a desumanidade que praticamos contra outros, humanos ou não.
Aparece no lugar-comum banal o postulado de que seres humanos seriam superiores a todos os outros (Chomsky, 1972; Pinker, 1994), pois seríamos os únicos seres na face da Terra que se comunicam por meio de linguagem, e não apenas por sinais auditivos, visuais, olfativos etc. O fator identificável sob o vértice psicanalítico é o excesso de fantasias de superioridade, observável individualmente quando há prevalência da personalidade psicótica, às expensas da personalidade não psicótica (Bion, 1957/2022a). Fantasias que expressam fenomenicamente nossos aspectos narcísicos (Freud, 1914/1957c), cujas consequências são identificáveis microssocialmente nas relações do paciente com o analista, na emergência do ciclo de avidez-inveja, tantas vezes primário (Klein, 1957). Sob o vértice macrossocial, têm reflexos no comportamento grupal, que podem ser vistos em obras de teóricos da ciência.
A psicanálise iluminou uma das persistentes diatribes entre filósofos que se dedicaram à investigação de estados de mente e Verdade (Sandler, 2000, 2002). Inundada por controvérsias beligerantes, tem tido responsabilidades nas falhas e retrocessos no conhecimento humano, em função de uma crença dicotômica, que deságua em oposição irreconciliável entre duas meras palavras, sem contrapartes reais: matéria ou mente - e também, de modo idêntico, matéria ou energia.
Estudando a obra de autores reconhecidos como criadores de “sistemas” filosóficos - por exemplo, Tomás de Aquino, Spinoza, Bacon, Descartes, Kant, Hegel, Schopenhauer e Nietzsche -, constatei a veracidade de uma observação de Bion sobre os processos de conhecer:
O pressuposto subjacente à fidelidade ao vínculo K é que as personalidades do analista e do analisando podem sobreviver à perda de uma capa protetora de mentiras, subterfúgios, evasões e alucinações, e podem até mesmo ser fortalecidas e enriquecidas pela perda. É uma suposição fortemente questionada pelo psicótico, e a fortiori pelo grupo, que se baseia em mecanismos psicóticos para sua coerência e sentido de bem-estar. (1965/2021b, p. 201)
Manifestam-se também, macrossocialmente, em aquisições construtivas e destrutivas efetuadas pelo grupo humano, evidenciadas historicamente nos caminhos seguidos de descaminhos e retornos aos caminhos, reiniciando o ciclo de ps ↔ d na história das ideias e na teoria da ciência. Aparecem nos grupos os mecanismos psíquicos “delineados pela observação de que inveja, avidez, rivalidade, superioridade ‘moral’ e científica operam em alucinose” nos indivíduos. Bion ofereceu provisoriamente as seguintes sugestões, como um exemplo do que denominou regras de alucinose:
A. Se um objeto é “o máximo’’, então dita “ação”; é superior em todos os aspectos em relação a todos os outros objetos; é autossuficiente; e independente deles; B. Objetos que podem ocupar tal posição incluem (a) pai, (b) mãe, (c) analista, (d) objetivo, objeto ou ambição, (e) interpretação, (f) ideias, sejam morais ou científicas. C. A única relação entre dois objetos é a de superior para inferior. (pp. 205206, grifo meu)
Duas ingenuidades responsáveis por desastres e tragédias, decorrentes de desamor à Verdade
Inspirado pela obra de Kant, e sob a ótica da clínica psicanalítica, sugeri a adoção de duas qualificações a respeito de movimentos na teoria da ciência: realismo ingênuo, a crença de que a apreensão da realidade se daria pelo uso exclusivo de nossos órgão sensoriais; e idealismo ingênuo, a crença de que a apreensão da realidade seria baseada apenas nos produtos da mente individual - haveria tantas realidades quantas mentes individuais houvesse.
O acme do realismo ingênuo, iniciado por Descartes, ocorreu na adesão incondicional às sete crenças da religião positivista, uma das tragédias nocivas ao conhecimento (Sandler, 2022b). Ressalto três delas: 1) a crença em redes de causalidade, onde, “sabendo-se” a causa, “sabe-se” o efeito, um mero artifício ligado ao uso de formas narrativas; 2) a crença em predições, consequente à primeira; 3) a crença de que tais “causas” teriam uma localização concretizada, totalmente materializada, oferecendo a certeza de que a ciência defendida pela religião positivista seria a única possível. Essa crença se expressa em outras, como aquela de que haveria pontos ou áreas no cérebro responsáveis por doenças mentais.
Uma teoria da ciência derivada disso, que ganhou popularidade, é aquela que postula leis que confeririam cientificidade aos enunciados científicos. Seu inventor, Karl Popper (1963/1974), afirmou que seriam: 1) a falseabilidade, todo experimento que possa ser provado como falso será científico; 2) a reprodutibilidade. As racionalizações são as seguintes: a falseabilidade permitiria o crescimento da ciência, ao dar lugar a novas teorias; os experimentos seriam reprodutíveis por outros experimentadores, que se obrigariam a usar os mesmos métodos e a empregar amostras comparáveis. Aos dois postulados se acrescentou outro, de cunho ainda mais autoritário, quanto aos “paradigmas” científicos que orientam as pesquisas, resolvidos não mais a partir da prática empírica, mas impostos por comitês de notáveis politicamente no establishment acadêmico (Kuhn, 1970).
Hoje a autodenominada medicina baseada em evidências (Hunink, 2004) se propaga como superior e melhor que a medicina “antiga”, baseada no estudo empírico-intuitivo de casos individuais, origem da psicanálise. A medicina baseada em evidências resultou no que se chama atualmente de metanálise. Acadêmicos que em épocas passadas se dedicavam a experimentações clínicas, ou de campo, agora alimentam modelos computacionais com milhares de trabalhos de outros pesquisadores, para extrair “protocolos” a serem aplicados na clínica, sem a menor discussão. Dispensam a intuição individual clinicamente treinada, que necessita de décadas para se desenvolver. Médicos e psicólogos clínicos, usando inventários de sintomas e protocolos de tratamentos, alucinam ser proprietários da verdade última.
Paralelamente à entronização da religião positivista, reemergiu a tendência idealista, apregoada pelos autointitulados pós-modernistas, relativistas, hermeneutas e outros (Gadamer, 1960/1999; Lyotard, 1979/1984; Norris, 1997; Sokal & Brickmont, 1997), especializados em interpretações da linguagem e das formas narrativas. Na época de Freud, eram chamados de subjetivistas e solipsistas. Acreditando que o universo e as pessoas seriam produto dos pensamentos oriundos da mente individual do observador, tornam-se indistinguíveis, nesse aspecto, dos pacientes que em psiquiatria são denominados de esquizofrênicos (Bleuler, 1911/1955).
Realistas e idealistas, cada um a seu modo, odeiam a mera concepção de que exista algo que possa ser denominado Verdade. Formaram partidos filosóficos beligerantes verbais, sustentando que a “sua” verdade exclusiva é superior à “outra” verdade exclusiva. Realistas ingênuos negam a Verdade postulando que toda teoria, para ser considerada científica, precisa provar ser falsa; seria, portanto, mera temporalidade. Tarefa fácil, pois acreditam que o universo e as pessoas são apreensíveis apenas pelo sensório. Ignoram a existência de descobertas transcendentais, como a roda - que pode ser construída por equações euclidianas não de todo racionais, pois os gregos descobriram o primeiro número irracional, π, a base do círculo - e as forças gravitacionais - descobertas por Newton para grandes corpos, desenvolvidas por Einstein para micropartículas, imaterializáveis, e para o grande universo, e também estudadas através da mecânica quântica. Poderiam ser provadas como falsas? Até hoje não, apesar de tentativas caídas no ridículo rival. São, como o sistema inconsciente, transcendentes a tempo, espaço e etnia. O complexo de Édipo compartilha a qualidade transcendente de E = mc2. Não se sabe se tais descobertas serão provadas como falsas, mas os dois ingênuos, em suas certezas, odeiam o que lhes é desconhecido.
Freud e Bion, entre outros autores, sugeriram que a psicanálise poderia fornecer um vértice para investigar o estado psíquico dos investigadores, socialmente qualificados como cientistas, pensadores, filósofos, teólogos. Seguindo essa sugestão, observei que a clivagem dos processos de pensar é a invariância que une as transformações aparentes, realistas e idealistas ingênuos. Os primeiros demonstram a prevalência de fenômenos esquizoides, hipervalorizando a realidade materializada. Os segundos hipervalorizam os produtos da mente individual - a realidade psíquica, imaterializada. Alucinam, por clivagem, que haveria realidade material ou realidade psíquica; mas e nunca, realidade material e psíquica.
Negação (Freud, 1925/1961b) e racionalização (Freud, 1911/1958c) são os dois mecanismos psíquicos produtores de estados psicóticos. São a base de lançamento da fantasia inconsciente de identificação projetiva, cujo único efeito real é a clivagem nos processos de pensar. Igualam-se na habilidade em efetuar manipulações engenhosas de símbolos verbais, produzindo formas narrativas racionalizadas, palatáveis para certas audiências. São portadoras de “um superego sem praticamente nenhuma das características do superego conforme compreendido em psicanálise: é um ‘super’ ego … uma asserção invejosa de superioridade moral sem qualquer moral” (Bion, 1962/2021a, p. 162). Tipificam o “cientista cujas investigações incluem a matéria da própria vida”, o qual se encontra
em uma situação paralela à dos pacientes que estou descrevendo. O colapso no equipamento para pensar leva à dominância de uma vida mental em que o universo do paciente fica povoado por objetos inanimados. A inabilidade de fazer uso dos próprios pensamentos, mesmo nos seres humanos mais avançados, porque a capacidade de pensar é rudimentar em todos nós, significa que o campo para investigação - toda investigação sendo em última análise científica - fica limitado, por inadequação humana, aos fenômenos que têm as características do inanimado. Assumimos que a limitação psicótica é devida a uma doença, mas que a limitação do cientista não o é. A investigação dessa suposição ilumina, de um lado, a doença, e, de outro, o método científico. (p. 42)
Formulações verbais: linguagem
Há um esforço transdisciplinar de paleontologistas, antropologistas, etologistas, geneticistas, anatomistas, fisiologistas e neurologistas (Hurford, 1990; Sandler, no prelo) para dotar a linguística de base científica, através de evidências empíricas. Abertos à possibilidade de comprovar ou refutar hipóteses, tornam desnecessárias adesões a escolásticas, crenças em decretos de autores idolatrados pela massa acadêmica (Chater et al., 2009; Ibbotson & Tomasello, 2016; Taraban & Bandara, 2017), ao descobrirem um fato na formação e nas transformações da linguagem: a distinção entre sentenças e sintagmas não é essencial para que exerçamos essa ação materializada e psíquica, a formação de sintaxes, ou linguagem dita civilizada. Nossa capacidade para a linguagem se deve a um mero acidente na seleção natural: a formação de uma estrutura osteoneuromuscular que os anatomistas chamam de laringe e epiglote (Carstairs-McCarthy, 1994).
A base genética da aquisição e processamento da linguagem humana não coevoluiu com a linguagem: antecede o surgimento da linguagem. Como sugerido por Darwin, ajustes entre linguagem e seus mecanismos subjacentes surgiram porque a linguagem evoluiu para se ajustar ao cérebro humano, e não ao contrário. (Chater et al., 2009, p. 1015)
Andrew Carstairs-McCarthy descobriu que formulações verbais, como os processos de pensar (Bion, 1961/2022b), foram impostas por necessidade externa, de sobrevivência, por uma realidade que já está “lá”.
Vico (1725/1974) observou que formulações verbais sob a forma de poesia, etimologicamente poiesis, foram o modo mais primitivo de fazer ciência. Os primeiros estudos sistematizados a respeito de poiesis parecem ter sido escritos por Platão (século 4 a.C./1952), que lhe deu três sentidos, dos quais escolho dois para o objetivo deste texto. Implica um ato real, que traz à luz algo que parecia não existir antes: 1) pode se referir à criação sexual; 2) pode se referir a alguma aquisição importante de alguém em um grupo humano.
Para finalidades comunicacionais, a poiesis foi paradoxalmente desenvolvida e degenerada sob a forma de mitos: edifícios verbais linearizados por formas narrativas (Bion, 1965/2021b).
A psicanálise tem como instrumento formulações verbais. É exercida em um ambiente o mais resguardado possível de estímulos excessivos, por duas pessoas, uma com a função de ser um paciente, e a outra, de ser um psicanalista daquele paciente. É análoga a um laboratório, como o de cientistas, ou à oficina de um artesão. Com uma diferença crucial: não lidamos com objetos materializados, mas com pessoas individuais. De maneira idêntica ao que acontece na física, nosso objeto e nosso método coincidem: os dois são personalidade (ou qualquer nome que se dê: mente, aparato psíquico etc.). A psicanálise inclui uma observação participante (Malinowski, 1929/1971): o observador participa da própria observação (Heisenberg, 1958/1991) - daí a necessidade de uma análise pessoal do analista.
Há parentescos entre os problemas enfrentados pelo teórico ou pelo filósofo da ciência que ainda se interesse por estudos sobre mente e Verdade. Antes do advento do pós-modernismo, a filosofia era qualificada como se tivesse uma “reserva de mercado” dos estudos sobre mente e Verdade. Isso seria uma condição da própria existência da filosofia, a ponto de alguns filósofos terem tomado os psicanalistas por intrusos desinformados. No entanto, certos filósofos passaram a criticar acerbamente a “psicologização” da filosofia - pelo menos a partir das contribuições de Hume para a teoria do conhecimento. Essa crítica levou outros a observar que a função do filósofo seria negar estados emocionais, indissolúveis de consideração à verdade e respeito pela vida. Um deles, Bion, enfatizou que o filósofo
cai derrotado quando o fator dos impulsos emocionais se intromete. Tenho certeza de que isso será habilmente negado. Este é o meu ponto: é função da filosofia negá-lo. … Não tão facilmente apreciado é o imediatismo do impacto dos problemas com os quais o filósofo da ciência está familiarizado nos fenômenos mentais que os métodos psicanalíticos modernos tornam evidentes. (1959/2000b, p. 9; 1947/2000a, p. 345)
Caso a psicanálise, tantas vezes considerada um estudo sobre a mente por excelência, seja confundida com - ou substituída por - filosofia, arte, literatura, poesia, ela perderá irremediavelmente seu ethos prático e científico? Penso que a resposta é: sim.