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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641Xversão On-line ISSN 2175-3601

Rev. bras. psicanál vol.58 no.3 São Paulo  2024  Epub 28-Mar-2025

https://doi.org/10.69904/0486-641x.v58n3.16 

Resenhas

Integrando e diferenciando: Matemática e psicanálise

Anie Stürmer1 

Psicóloga. Psicoterapeuta. Especialista em psicologia clínica. Participante do Gradiva Grupo Atlântico de Psicoterapia Psicanalítica (Ggapp). Uma das idealizadoras do Instagram @bion_em_expansao.

Liége Saltiél Webber2 

Psicóloga. Psicoterapeuta. Especialista em psicologia clínica. Especialista em psicoterapia de orientação psicanalítica. Uma das idealizadoras do Instagram @bion_em_expansao.

1Diretora, docente e supervisora do Instituto de Psicologia (Ipsi), Novo Hamburgo, Rio Grande do Sul. Docente e supervisora do Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia (Iepp).

2Supervisora clínica e coordenadora de grupos de estudos sobre Bion. Porto Alegre

Cecílio, Sandra Bulhões . Integrando e diferenciando: Matemática e psicanálise. Edição da Autora, 2018. p. 278


Ao recebermos o convite de Sandra Bulhões para escrever a resenha do seu livro, em um primeiro momento, sentimos um temor de não estarmos à altura dessa proposta e nos questionamos: como poderíamos realizar as integrações necessárias e pontuais para resumir todas as ideias inovadoras presentes nesta obra - e, além das integrações, seguindo a proposta do livro, estabelecer as diferenças como consequência dessa integração?

Lembramos de Jorge Luis Borges, que de maneira brilhante afirmou em Cinco visões pessoais que, “dos diversos instrumentos utilizados pelo homem, o mais espetacular é, sem dúvida, o livro” (1979/1996, p. 5). Por sua vez, Mario Quintana, ao discorrer sobre livros e leitura, expressou poeticamente que “livro bom, mesmo, é aquele de que às vezes interrompemos a leitura para seguir - até onde? - uma entrelinha… Leitura interrompida? Não. Esta é a verdadeira leitura continuada” (2013, p. 23).

Essas citações refletem a profundidade e a riqueza que os livros podem proporcionar. No caso do livro de Sandra Bulhões Cecílio, não é diferente. A autora nos conduz por um caminho repleto de reflexões, onde cada página nos convida a uma pausa contemplativa, instigando-nos a pensar sobre a possível relação entre matemática e psicanálise.

A obra é estruturada de forma a permitir que o leitor se perca e se encontre nas entrelinhas, como bem descreveu Quintana. Cada capítulo é uma nova descoberta. Sandra não apenas escreve; ela cria uma sinfonia de palavras que ressoam na mente e no coração de quem lê.

Como se darão os encontros entre o livro, a leitura, o escritor e o leitor? Como podemos integrar e derivar (diferenciar) o que lemos daquilo que somos e do que pensamos que sabemos? Sandra nos convida a explorar diferentes universos ao propor esse encontro entre psicanálise e matemática, desafiando-nos a expandir nossa forma de pensar. O livro chega até o leitor como uma ferramenta. Como iremos utilizá-lo?

Quintana nos resgata e nos dá um norte, ao sugerir que não nos preocupemos em interromper a leitura. Portanto, pare, reflita, observe, amplie, integre, diferencie. Fique tranquilo, não é tão incomum. Um bom livro causa esse efeito. Nas entrelinhas, nos parágrafos suspensos, a escrita de Sandra vai criando espaço e unindo significados. Além disso, há a poesia…, a sensibilidade e a emoção que nos fazem parar, sonhar, nos levando à busca de integração junto aos números, aos cálculos, tornando-os mais compreensíveis, dotando-os de sentido e sensações, ou seja, uma experiência emocional.

Mas o que nos moveu a ler o livro de Sandra?

Em Aprender da experiência (1962/2021), Bion retira da matemática os termos função e fator, porém intencionalmente usa esses termos de maneira ambígua e não discute o que a função poderá vir a se tornar; diz que usa o termo com a intenção de indicar que, se determinada pessoa está realizando um cálculo matemático, caminhando de um modo característico ou praticando um ato invejoso, estas seriam funções da personalidade. No nosso caso, somaríamos aqui “lendo um livro”, mas Bion acrescenta que se preocupa com a precisão da matemática dessa pessoa, porque essa é uma função da personalidade daquele indivíduo, e ele se interessa em saber os fatores. Sem dúvida, a curiosidade foi um dos fatores que nos fizeram ler o livro de Sandra e aceitar seu convite, tendo um tema instigante e desafiador à nossa frente, e que nos levaram/levam à pergunta: “O que vamos descobrir?”.

Se dúvidas e incógnitas fazem parte dessa aventura exploratória, será possível tolerá-las? Como dito antes, sabemos que Bion usou a matemática como modelo para pensar a psicanálise, referindo-se às ideias de função e fator. Sandra propõe essa aventura provocando e pondo em ação a máquina do pensar, desenvolvendo uma função, que evolui para um conceito que, segundo ela, pode ser entendido como uma “máquina de transformação”. Como produto desse encontro entre o autor e o leitor, temos a transformação daquilo que lemos.

Quando Sandra integra e diferencia Leibniz e Klein, somos informados de que Leibniz foi quem apresentou o termo matemático função num momento em que o “mundo passava a ganhar novas ferramentas matemáticas” (p. 89). Sandra nos conta que Leibniz foi um filósofo, mas suas construções matemáticas suplantaram as ideias filosóficas e, junto às do físico Newton, desenvolveram o cálculo diferencial e integral. A autora tece um caminho de diferenças e integrações entre Leibniz e Newton, entre matemática e física, e acrescenta a psicanálise na figura de Klein. Leibniz e Klein têm em comum as perdas e a criação de conceitos inovadores que abriram pontos estruturais na história do conhecimento humano.

A história de Newton e Bion nos é contada através de um diário/sonho em que a autora passeia pelo passado e pelo futuro, fazendo uma costura (integração) de ideias. Ela nos conduz a expectar e acolher o novo pensamento que surgir, tal como a maçã que caiu da árvore, acrescentando a recomendação de Newton para que deixemos a mente aberta, como um paraquedas. Essa experiência foi fundante para a teoria da gravidade, um pensamento que já estava lá, como nos diz Bion, apenas necessitava de uma mente para pensá-lo. Então, observa Sandra, a experiência de Newton é conceituada mais tarde por Bion, levando à integração entre passado e presente.

Para a autora, o encontro do cálculo com a psicanálise é o que dá razão para a existência do seu livro. Fazendo uma analogia, ela nos convida a pensar a psicanálise como uma máquina que foi inventada “para se responsabilizar pela análise das transformações no pensamento e no coração” (p. 149). Quanta poesia!

Com beleza e sensibilidade, sugere que sejamos uma “máquina que dobra a potência de tudo o que entra nela”, a lei da formação y = 2x. “Entra 2, sai 4. Entra 21, sai 42. Entra zero, sai zero. Entra -3, sai -6. Entra coragem, sai aventura. Entra curiosidade, sai descobertas” (p. 149).

E as descobertas se fazem também com as histórias vividas e sonhadas pela autora, as quais ela generosamente compartilha com o leitor. Estão lá Eva, Adão, João, Édipo, Éden, Babel, entre curiosidade, conhecimento, amor, ódio e integração.

Na análise, cada encontro é único e concebe máquinas originais. Assim, Sandra vai apresentando e integrando a ideia de função entre matemática e psicanálise. Na matemática temos a ideia de função como matéria-prima do cálculo diferencial e integral, objeto matemático. Já o objeto da psicanálise é a relação de responsabilidade, entre realidade interna e externa, tornando-se a matéria-prima do fazer analítico. Ambas têm elementos que se ocupam com variáveis e transformações. Como Sandra reforça, estamos “uns em função dos outros”, envolvidos em relações com responsabilidades, cada qual com suas variáveis, mas sem amalgamar-se.

Há uma construção, um diálogo entre matemática e psicanálise, duas senhoras saboreando chá com bolo e conversando, fazendo digressões e aproximações sobre suas infinitas possibilidades de ser no mundo. A matemática aborda sua teoria sobre o cálculo diferencial e integral e explana sobre a arte de limitar, derivar (diferenciar) e integrar funções. Já a psicanálise, olhando espantada com a possível integração de ideias, vislumbra as ideias de Bion para ajudar a pensar por esse vértice. Sandra nos fala de “emoções infinitesimais”, tendo como bússola a psicanálise de Bion, que nos propõe ferramentas para pensarmos as experiências emocionais, que são infinitas e pertencem ao universo que nos compõe como sujeitos, um “vir a ser sendo”.

Mas na matemática da vida, na sua estrada afora, numa analogia com Chapeuzinho Vermelho, Sandra relaciona o cálculo diferencial e integral com a teoria das transformações de Bion, sugerindo que seja um pensamento selvagem extraviado na estrada, e aí nos presenteia com um “peixe”: “Cálculo e psicanálise se constituem em ferramentas instrumentais” (p. 158), e esse instrumental pode ser desenvolvido e utilizado na técnica psicanalítica, pois estamos no século 21 com ferramentas do século 19, como diz Stitzman.

A autora lembra então a diferença entre Freud, que trabalhava com interpretações definidoras, e Bion, que nos incentiva a lidar com alterações infinitesimais, e dispara: “As relações que envolvem responsabilidades, ou seja, funções, são objeto matemático e objeto psicanalítico” (p. 160). Retomamos aqui a questão de estarmos todos em função uns dos outros, como indicado antes.

Então, a conclusão é a de que reconhecer a teoria dos infinitesimais é admitir que a vida é dinâmica, que nada é preestabelecido e que o mundo está em constante transformação e expansão, e cada indivíduo pode se apossar dos pequenos detalhes da sua história e seguir adiante, de infinitesimais em infinitesimais, tornando-se o que se é, ou seja: “A complexidade se constrói a partir dos pequenos detalhes” (p. 166). Assim, Bion se diferencia de Freud substituindo estruturas por funções e processos.

Sandra aponta: “Vamos otimizando e nos tornando o melhor que podemos ser e sempre mais do que julgamos ser”. E questiona: “Seriam estes os processos do cálculo ou da psicanálise?” (p. 175). E assim a autora vai delineando um percurso no qual vamos vislumbrando aproximações de áreas, aparentemente, tão distintas.

Observamos nas relações humanas infinitas formas de agir e pensar. Há tendências e limites, e a matemática nos ajuda a pensar melhor sobre isso. A matemática nos auxilia propondo que o limite é um conceito estruturante. Bion nos fala em frustração e na capacidade de maior ou menor tolerância a ela. Novamente Sandra nos ajuda a integrar matemática e psicanálise ao afirmar:

Ser capaz de tolerar a emoção desagradável põe o sujeito no caminho da modificação dessa mesma experiência. … Limite à tolerância define a possibilidade de pensar e transformar as experiências. O limite de tolerância estrutura toda a teoria do pensar de Bion. (p. 179)

Temos, assim, a possibilidade de ampliar a área de compreensão e ao mesmo tempo de ignorância a respeito do que se sabe. Conhecemos e desconhecemos, as possibilidades são infinitas. Assim é a matemática da vida, e Bion nos ajuda a pensar nesse infinito sem forma concebendo ferramentas que auxiliem em nosso fazer analítico: o uso de nossa intuição, a tolerância ao não saber, nossa capacidade negativa e a digestão de nossas indigestões emocionais.

Utilizando a teoria dos conjuntos, a autora vai nos mostrando como somos todos, analogamente, “formigas”: podemos trabalhar em conjunto, ou seja, uma formiga sozinha “não faz verão”. Desde que nascemos, dependemos do outro, e assim seguimos por toda a vida. Paradoxalmente nos deparamos com a solidão, pois pensar é um ato solitário.

O capítulo 8 nos dá uma bela compreensão do que é conviver em sociedade com a ajuda da matemática. Vamos então compreendendo a importante relação que existe entre o indivíduo e o social. Diz Sandra: “Podemos virar formigueiros e ir formando conjuntos. Descobri que formigas e matemática têm clorofila” (p. 211). Complementamos, precisamos fazer fotossíntese, nos abastecermos do outro, vamos vivendo uma “eussocialidade”. Para a autora, “o outro é o campo de fertilização que vai nos permitir o significado que ainda não tínhamos em nós, sobre nós mesmos e ainda não nascido” (p. 223).

Integrando e derivando (diferenciando), vamos compreendendo as relações entre matemática e psicanálise. Somos variáveis que vivem em relações que são funções. As funções são o objeto matemático do cálculo diferencial e integral, e o objeto psicanalítico, segundo a autora, “são as funções que estabelecem as relações de responsabilidade entre seres humanos interdependentes” (p. 246). Para ela, a psicanálise é “a arte de limitar, derivar (diferenciar) e integrar as funções mentais entre humanos” (p. 247).

E assim, ao chegarmos ao final da nossa contribuição em forma de resenha, retornamos ao nosso questionamento após o terror inicial ao receber o convite: teríamos conseguido integrar, diferenciar as ideias tão originais de nossa autora?

Fomos, sim, levadas pela curiosidade a caminhar por essa estrada, tirando o capuz e deixando que as ideias nos habitassem e frutificassem, para que pudéssemos passar ao leitor a riqueza e a poesia deste sonho/livro. Sem dúvida, este livro colocou em ação nossa “máquina de pensar”; muitas ideias desconstruídas, para fazerem parte de outras construções, brotando novas ideias a partir dessa semente. E, ao aceitarmos essa função, também desejamos ter despertado a curiosidade (fator) no leitor. Que a cada palavra e capítulo deste livro algo novo possa brotar, “infinitesimalmente”, na sua máquina de pensar.

Referências

Bion, W. R. (2021). Aprender da experiência. Blucher. (Trabalho original publicado em 1962) [ Links ]

Borges, J. L. (1996). Cinco visões pessoais (M. R. R. Silva, Trad., 3ª ed.). Universidade de Brasília. (Trabalho original publicado em 1979) [ Links ]

Quintana, M. (2013). Caderno H. Objetiva. [ Links ]

Liége Saltiél Webber liegeweb@terra.com.br

Anie Stürmer aniesturmer@hotmail.com

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