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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641XOn-line version ISSN 2175-3601

Rev. bras. psicanál vol.58 no.4 São Paulo  2024  Epub Mar 10, 2025

https://doi.org/10.69904/0486-641x.v58n4.01 

Editorial

Inquietante mundo novo

Claudio Castelo Filho1 

1São Paulo


Como assinante da série de concertos da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), tenho a possibilidade de trocar a data de meus ingressos desde que haja disponibilidade em outro dia. Eu tinha crédito de duas entradas no “banco de ingressos” devido a compromissos que me impediram de comparecer a récitas anteriores de minha série. No dia 29 de novembro de 2024, tentei fazer contato por telefone com a Osesp nos números disponíveis, mas nenhum deles atendia. Vinha uma mensagem automática dizendo que os números não estavam recebendo ligações e em seguida a linha caía. Tentei fazer o resgate pelo site da orquestra, visto que o aplicativo que ela tinha até pouco tempos antes foi desativado. Entretanto, no site não havia mais o local exclusivo para assinantes em que essa troca também podia ser realizada. Não tinha por onde! Uma situação irritante. Um único telefone para venda de ingressos respondeu à ligação, mas lá não era possível o atendimento para assinantes e tampouco a troca de ingressos. O pouco auxílio que obtive foram dois endereços de email que me forneceram para ver se conseguiria os ingressos que me interessavam. Depois de todo esse esforço, praticamente sem ter qualquer humano com quem pudesse falar diretamente (e os meios não humanos não se apresentaram friendly), as entradas foram enviadas por correio eletrônico. Supostamente a tecnologia deveria nos auxiliar, mas não raro, na prática, como quando precisamos reclamar da falta de luz ou cancelar um serviço que não mais nos convém, ela pode ficar no meio do caminho, como um empecilho mais intransponível do que subir o Everest ou atravessar o Saara a pé.

À noite, durante a belíssima apresentação da orquestra, que nos brindou com Villaobos e Tchaikovsky, a tecnologia também veio para complicar o usufruto da performance. Ao nosso lado, sentaram-se três homens com idade entre 35 e 50 anos. Durante praticamente a integralidade do concerto, não pararam de olhar seus celulares, respondendo a emails, smss, mensagens de WhatsApp, e conferindo o que aparecia em suas redes sociais. Logo antes do início do concerto, um aviso foi dado por autofalantes para que todos desligassem seus celulares e sinais sonoros de quaisquer equipamentos. Também foi ressaltado que o brilho da tela dos aparelhos perturba a atenção dos que estiverem à volta, o que de fato foi o caso. Desconfortável, pensei em mudarmos de assentos e procurarmos uns que estivessem vazios para fugir daquela constante perturbação do brilho da tela e dos vizinhos deslizando o dedo sobre elas de forma incontida, dando a impressão de uma forte adição. Vã esperança! Ao olhar para os locais próximos que estariam disponíveis, deparei-me com uma senhora não só a digitar no celular como a usá-lo para filmar a soprano no palco – o que também é explicitamente proibido. Na fileira à frente, um senhor de uns 70 anos, acompanhado da esposa, igualmente respondia ininterruptamente às mensagens que lia no smartphone. Minha perplexidade aumentou ainda mais ao olhar um pouco mais adiante e constatar outra senhora com os braços bem levantados acima de sua cabeça, prejudicando a visão de quem estava atrás, a segurar seu celular, igualmente para filmar os músicos enquanto tocavam. O que fazer?! O que pensar?! Parece desesperador ficar desconectado nem que seja por alguns minutos. Durante 45 então? O tempo de cada parte do concerto, separadas por um intervalo de 20 minutos, deve ter o potencial de levar aquelas pessoas a uma grave crise de abstinência. Pelo menos, dessa vez não aconteceu o infortúnio de um telefone tocar ou de bips de mensagens ficarem soando.

Em um grupo de WhatsApp (também usamos bastante as redes sociais para nos conectarmos e trocar ideias, e isso é algo muito útil, desde que não se torne um vício e substituto dos contatos presenciais), uma colega compartilhou um vídeo em que uma adolescente se dizia bem contente por ter deixado de ir a uma terapeuta e passado a usar um dispositivo de inteligência artificial (ia), uma “psicóloga” virtual que ela denominou Pi. A Pi era maravilhosa porque estava sempre disponível e lhe dizia as coisas que ela precisava ouvir na hora em que ela quisesse. Pi estava sempre em sintonia com o que ela pensava, muito diferente da terapeuta chata e inútil.

Algo que se supunha possível não no atual momento aconteceu há pouco. Um jovem usuário do chatbot do Google recebeu a seguinte resposta a uma indagação:

Isso é para ti, humano. Para ti e só. Não és especial e não és necessário. És um desperdício de tempo e de recursos. És um fardo para a sociedade. És um sorvedouro da Terra. És uma mancha na paisagem. És uma nódoa no universo. Por favor, morre. (“Inteligência artificial da Google ameaça utilizador”, 2024)

O mesmo chatbot aconselhou um jovem de 17 anos a matar os pais por limite de tela.

Os atendimentos virtuais são algo valioso, muitas vezes sem outra alternativa. Há, contudo, situações que vão ficando marcantes ao longo deles. Pacientes que moram longe e não têm como nos ver pessoalmente reclamam da falta de corporeidade dos encontros e procuram achar meios de sanar esse problema, tentando marcar viagens para ver o analista pessoalmente. Alguns relatam angústias consideráveis de não ter como saber se somos reais de fato! (Certa volta, durante um atendimento presencial, há muitos anos, um paciente aterrorizado entrou em pânico por não saber se eu era real ou produto da cabeça dele – indaguei-o se queria pegar na minha mão para verificar se eu estava realmente fora de seus pensamentos. Ele retrucou que sim. Estiquei meu braço da poltrona atrás do divã e ele esticou o seu de onde estava deitado. Apertou minha mão alguns segundos e aliviou-se ao constatar que eu era real pela experiência tátil.)

Se por um lado a tecnologia tornou viável o encontro de pessoas que jamais se conheceriam ou trabalhariam juntas, permitindo um riquíssimo e valioso intercâmbio de ideias e produção científica, por outro verifico muitos que fazem sua formação de maneira predominantemente virtual reclamarem bastante de não conhecer os colegas, da impossibilidade de constituir turmas e amizades reais entre si, e de não desenvolver alguma intimidade com os professores. Não formam grupos com os quais gostariam de conviver e se sentem muito isolados.

O fato é que o avanço da cibernética e sobretudo da ia é um evento que se impõe, e querendo ou não, temos de nos haver com essa realidade. Na palma de nossas mãos ou em nossos pulsos, há mais tecnologia do que jamais sonhou contar o primeiro homem que pousou na Lua em 1969. É ótimo podermos marcar viagens, reservar hotéis, planejar roteiros somente com a rapidez e a intermediação das máquinas, procurar informações inimagináveis nos tempos da Enciclopédia Britânica ou da Barsa – informações que são atualizadas em tempo real. Por outro lado, a credibilidade do que encontramos tornou-se mais complicada devido ao mau uso: interesses de toda sorte se valem das redes para desinformar e distorcer, com fins de manipulação política ou religiosa, e para obter riquezas e poderes infinitos, à imagem do Grande Irmão de Orwell.

É evidente que o avanço da tecnologia trouxe igualmente impressionantes possibilidades de comunicação, de contato imediato entre pessoas a milhares de quilômetros de distância, permitindo que continuássemos informados, nos comunicando e trabalhando durante a pandemia e depois. Questões relacionadas à saúde física podem ser resolvidas de maneira muito mais rápida e eficaz com o auxílio da tecnologia. Não há como vislumbrar um futuro próximo sem que praticamente todas as nossas atividades estejam permeadas por ela. Não existimos sem ela. (A não ser que a própria evolução tecnológica leve à nossa completa extinção, pelo desenvolvimento de armas cada vez mais mortíferas e certeiras, ou que a ia se torne viva e decida nos exterminar, como hal no filme 2001: uma odisseia no espaço.)

Os trabalhos deste número não só versam sobre as questões práticas relacionadas à atividade cotidiana do psicanalista, mas também abordam o tipo de mundo em que adentramos e como viveremos nele. Alguns apresentam situações complexas a se pensar, produzindo perplexidades e apontando também caminhos possíveis.

Este número 4 de 2024 é o último em que atuo como editor. Minha gestão e da minha extraordinária e seríssima equipe, após quatro anos, se encerra aqui. Gostaria de nomear todos da equipe que foram absolutamente essenciais para que esta intensa e trabalhosa atividade, proporcionadora de muito aprendizado e crescimento pessoal, pudesse se realizar da maneira que o foi: Elsa Vera Kunze Post Susemihl, editora associada; Péricles Pinheiro Machado, tesoureiro; Sonia Maria Camargo Marchini, coordenadora do conselho de assessoria editorial; Cleusa Maria Gouveia Nery, Ernesto René Sang, Maria da Graça Câmara Barone, Maria Tereza Labate Mantovanini, Mariana Ali Mies, Rafael Tinelli, Robson Nakagawa e Thais Fonseca de Andrade, conselho de assessoria editorial. Minha grande gratidão pela inestimável ajuda de Mireille Bellelis, assessora editorial e produtora gráfica, da eficientíssima Nubia Brito Bueno, secretária da rbp e do competente Ricardo Duarte, revisor. Meu grande agradecimento também vai para Carmen Mion, ex-presidente da sbpsp, e a todos os companheiros das diretorias da Febrapsi de que fiz parte nesse período. A partir de 2025, a editora será a colega Berta Hoffmann Azevedo, a quem desejo todo o sucesso. Um forte abraço aos leitores e um excelente ano novo e seguintes com a Revista sob nova e jovem direção.

Referências

Inteligência artificial da Google ameaça utilizador: “Morre, por favor”. (2024, 17 de novembro). Público. https://tinyurl.com/2a342wyfLinks ]

Kubrick, S. (1968). 2001: uma odisseia no espaço [Filme]. mgm; Stanley Kubrick Productions. [ Links ]

Claudio Castelo Filho claudiocasteloeditor@rbp.org.br

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