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Aletheia
Print version ISSN 1413-0394
Aletheia no.40 Canoas Apr. 2013
ARTIGOS EMPÍRICOS
Perdas e ganhos: compreendendo as repercussões psicológicas do tratamento do câncer de mama
Losses and gains: understanding the psychological repercussions of breast cancer treatment
Vanessa Souza Santana; Rodrigo Sanches Peres
Universidade Federal de Uberlândia
RESUMO
Este estudo teve como objetivo analisar as repercussões psicológicas do tratamento do câncer de mama a partir dos relatos apresentados espontaneamente por mulheres acometidas pela doença durante as sessões de um grupo de apoio. Trata-se de um estudo qualitativo, com desenho metodológico documental e enfoque naturalístico, cujo corpus foi constituído por 18 sessões do referido grupo, nas quais estiveram presentes, no total, 93 mulheres. O critério de saturação foi adotado para a composição do corpus, sendo que o mesmo foi submetido à análise temática de conteúdo. Observou-se que, além de repercussões psicológicas negativas que refletem perdas associadas à esfera simbólica da feminilidade, o tratamento do câncer de mama pode também implicar em repercussões psicológicas positivas, passíveis de uma melhor compreensão a partir do recurso à noção de "crescimento pós-traumático". Novos estudos dedicados especificamente a esse assunto, contudo, são necessários.
Palavras-chave: Psico-oncologia, Neoplasias mamárias, Crescimento pós-traumático.
ABSTRACT
This study aimed to analyze psychological repercussions of breast cancer treatment from the reports presented voluntarily by women during the sessions of a supportive group. It is a qualitative study with documental methodological design and naturalistic approach. The corpus was composed by 18 sessions of a supportive group which participated 93 women. Saturation criterion was adopted for the corpus composition and thematic content analysis was used for the corpus exploration. The results show that, in addition to negative psychological repercussions which reflect losses associated with the femininity symbolic sphere, breast cancer treatment may also result in positive psychological repercussions, capable of a better understanding using the "post-growth traumatic" concept. New studies specifically devoted to this subject, however, are needed.
Keywords: Psycho-oncology, Breast neoplasms, Posttraumatic growth.
Introdução
As mais recentes projeções do Ministério da Saúde apontam que aproximadamente 52.600 novos casos de câncer de mama seriam registrados somente em 2012 no território nacional (Brasil, 2011). Trata-se do tipo de neoplasia maligna mais comum e de uma das principais causas de morte na população feminina do Brasil. Desse modo, ações voltadas ao controle do câncer de mama – sobretudo por meio de medidas de prevenção secundária – têm sido enfatizadas em serviços de saúde pública no país nas duas últimas décadas, na medida em que, favorecendo o diagnóstico precoce, viabilizam a diminuição dos índices de mortalidade e morbidade nos casos de malignidade (Abreu & Koifman, 2002).
A cirurgia, a radioterapia e a quimioterapia são as modalidades terapêuticas mais utilizadas no tratamento do câncer de mama. De acordo com diversos estudos nacionais, todas elas podem acarretar importantes repercussões psicológicas, visto que a doença acomete um órgão que simboliza a feminilidade, a sensualidade, a sexualidade e a maternidade (Peres & Santos, 2007). Em um desses estudos, Rossi e Santos (2003) observaram que os prejuízos estéticos associados à cirurgia – sobretudo à mastectomia, um tipo de cirurgia que envolve a extração completa da mama – muitas vezes implicam em uma sensação de degradação não apenas física, mas também emocional, afetando, como consequência, a autoimagem da mulher. Além disso, Majewski, Lopes, Davoglio e Leite (2012) destacam que a mastectomia, em comparação com cirurgias conservadoras, comumente incorre em maiores comprometimentos à qualidade de vida.
Já Duarte e Andrade (2003) verificaram que mulheres mastectomizadas tendem a encontrar dificuldades importantes em situações de exposição do próprio corpo, inclusive evitando o contato visual com o espelho. Mas as referidas autoras salientam que, para algumas mulheres, a queda dos cabelos – efeito colateral frequentemente causado pela quimioterapia – produz um impacto emocional mais acentuado, em que pese o fato de ser provisória, na maioria dos casos. Pinto e Gióia-Martins (2006) também chegaram a essa constatação e propuseram que isso ocorre, sobretudo, devido à mobilização de sentimentos de vergonha, rejeição e preconceito.
Tais sentimentos podem comprometer de forma direta os relacionamentos sociais, familiares e amorosos das mulheres, conforme Ramos e Lustosa (2009). Além disso, amigos, entes e cônjuges também são abalados pelas ameaças de perdas associadas à doença, apresentando reações de atordoamento às quais, para Bervian e Girardon-Perlini (2006), podem se suceder tanto o distanciamento quanto a aproximação. Nos casos em que a primeira opção prevalece, uma importante fonte de apoio se perde, pois, de acordo com Fabbro e Westin (2009), as pessoas com as quais as mulheres convivem podem auxiliar sobremaneira no enfrentamento da doença, quer seja dividindo afazeres ou compartilhando emoções e transmitindo segurança.
Os estudos citados até aqui obviamente esclarecem importantes repercussões psicológicas do tratamento do câncer de mama, mas o assunto não se encontra esgotado na literatura nacional. Por esse motivo, considera-se imprescindível o desenvolvimento de novas pesquisas, nas quais a utilização de desenhos metodológicos diferenciados deve ser priorizada, buscando-se, com isso, contribuir para a obtenção de elementos capazes de subsidiar o avanço do conhecimento e o aperfeiçoamento do cuidado em saúde oferecido às mulheres acometidas pela doença. Assumindo essas assertivas e considerando que, conforme Die-Trill (2007), o contexto grupal se mostra especialmente favorável para a discussão de experiências vivenciadas em função do adoecimento por câncer de mama, optou-se por privilegiar um grupo de apoio voltado a essa população como locus para a coleta de dados do presente estudo.
Tal opção metodológica vem sendo adotada apenas recentemente na literatura nacional, sendo que os estudos de Scorsolini-Comim, Santos e Souza (2009) e Menezes, Schulz e Peres (2012) podem ser considerados ilustrativos nesse sentido. Porém, o desenvolvimento de pesquisas no âmbito de grupos de apoio voltados a mulheres acometidas por câncer de mama encontra respaldo, ainda que indiretamente, na literatura internacional. Afinal, uma série de autores – a exemplo de Cameron, Booth, Schlatter, Zi ginskas e Harman (2007), Classen et al. (2008) e Butler et al. (2009) – aponta que esse tipo de modalidade assistencial favorece o manejo de sintomas físicos e psicológicos e viabiliza a utilização de recursos adaptativos latentes frente aos percalços provocados pelo adoecimento.
Benefícios como esses são possíveis essencialmente porque a universalidade das queixas entre as participantes dos grupos de apoio fomenta, conforme Corey e Corey (2006), a redução do estigma associado à vivência de problemas comuns. É nesse sentido que o contexto grupal se configura como microcosmo do coletivo macrossocial, como bem observaram Scorsolini-Comim et al. (2009). Ocorre que, sentindo-se refletidas nas e pelas outras, as participantes tendem a encontrar nos grupos de apoio um espaço permissivo para a produção coletiva de significados passíveis de utilização na busca de soluções para os problemas comuns (Zimerman, 2000), os quais podem ser considerados matéria-prima de grande relevância para estudos voltados à compreensão das repercussões psicológicas do tratamento do câncer de mama.
A propósito do grupo de apoio adotado como locus para o presente estudo, vale destacar que o mesmo, no enquadre vigente à época da coleta de dados, foi implementado em Fevereiro de 2009 e apresentava periodicidade semanal. Seu objetivo básico era fornecer suporte para favorecer o restabelecimento do equilíbrio emocional das participantes. Contudo, o mesmo se afigurava também como uma possibilidade de refinamento de informações sobre a doença e o tratamento, considerando-se que, conforme Helgeson, Cohen, Schulz e Yasko (2001), a provisão de conhecimentos contribui para a ampliação do senso de controle de mulheres acometidas por câncer de mama em relação à nova realidade implementada pelo adoecimento e, assim, favorece o ajustamento à mesma.
O presente estudo teve como objetivo analisar as repercussões psicológicas do tratamento do câncer de mama a partir dos relatos apresentados espontaneamente por mulheres acometidas pela doença durante as sessões de um grupo de apoio.
Método
Considerando-se o objetivo proposto, optou-se por privilegiar análises descritivas e exploratórias a partir de um enfoque qualitativo. Conforme Camic, Rhodes e Yardley (2003), as pesquisas qualitativas não têm como objetivo descrever objetivamente um fenômeno, mas sim compreendê-lo a partir da análise de seus significados subjetivos. Partindo desse princípio, são particularmente oportunas, ainda na opinião dos referidos autores, para a abordagem de experiências humanas complexas em suas múltiplas facetas. No presente estudo, a opção por um enfoque qualitativo se justifica, sobretudo, tendo em vista que, como salienta Turato (2005), os significados que as pessoas conferem ao adoecimento e seus desdobramentos exercem um papel organizador para as mesmas. Logo, compreendê-los é essencial para o aprimoramento da assistência oferecida nos settings de saúde.
O corpus do presente estudo foi composto por 18 sessões do referido grupo de apoio. No total, 93 pacientes estiveram presentes nessas 18 sessões. Vale destacar que se tratava de um grupo de ocorrência única, ou seja, a cada sessão sua composição era diferente, já que dele participavam as pacientes com consulta médica agendada para o dia no ambulatório especializado ao qual as mesmas se encontravam vinculadas. Algumas dessas pacientes estiveram presentes em diversas sessões do grupo, ao passo que outras em apenas uma sessão. Ressalte-se que a periodicidade das consultas médicas no ambulatório em pauta variava muito, sendo mensal em alguns casos ou anual em outros. A isso, portanto, se deve o fato de o número total de pacientes ter sido relativamente elevado tendo em vista o número total de sessões do grupo consideradas para os fins do presente estudo.
É preciso salientar que a definição do número de sessões do referido grupo de apoio selecionadas para a composição do corpus foi executada com base no critério de saturação, o qual, a propósito, tem sido amplamente utilizado no campo das pesquisas qualitativas. Portanto, como preconizam Fontanella, Ricas e Turato (2008), envolveu a identificação, a partir da avaliação dos pesquisadores, de certa redundância nos relatos referentes às repercussões psicológicas do tratamento do câncer de mama apresentados pelas pacientes no grupo de apoio. Além disso, vale destacar que o presente estudo foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da instituição de filiação dos autores, em conformidade com as Resoluções 196/96 e 251/97 do Conselho Nacional de Saúde, e obteve parecer favorável (processo 377/09). Sendo assim, em seu desenvolvimento os procedimentos éticos preconizados para pesquisas científicas com seres humanos foram devidamente observados.
A coleta de dados foi realizada mediante consultas aos relatórios das sessões do grupo de apoio em questão. Tais relatórios foram elaborados a partir de anotações que reproduziam o mais fielmente possível os conteúdos apresentados pelo coordenador e pelas participantes do início ao final de cada uma das sessões do grupo. As anotações foram executadas durante as sessões por dois observadores silentes devidamente treinados e posteriormente organizadas pelos mesmos em um relatório único por sessão. Vale destacar também que os relatórios invariavelmente foram apreciados em supervisão e, quando necessário, reformulados, principalmente a partir da inserção de informações complementares. Esse cuidado era considerado importante tendo em vista que os relatórios se prestavam ao registro da história do grupo de apoio em questão.
Diante do exposto, conclui-se que o desenho metodológico documental foi privilegiado, uma vez que os referidos relatórios se afiguram como documentos. Partindo da categorização proposta por Bauer, Gaskell e Allum (2000/2002), tais relatórios podem ser considerados um meio-termo entre os documentos formais e os documentos informais, posto que, tal como os primeiros, demandam treinamento específico para sua produção e, a exemplo dos segundos, registram o modo como as pessoas se expressam. Sendo assim, os relatórios retratam, de maneira sistematizada, os conteúdos veiculados espontaneamente no grupo de apoio da maneira que o mesmo vinha sendo realizado rotineiramente, ou seja, sem criar uma situação especial para a coleta de dados, o que alinha o presente estudo ao enfoque naturalístico.
A análise temática de conteúdo proposta por Bardin (1970/1979) foi adotada com o intuito de viabilizar, a partir de inferências e deduções, a identificação de significados latentes nos relatos das pacientes acerca das repercussões psicológicas do tratamento do câncer de mama. Desse modo, tais relatos foram analisados mediante a execução dos três procedimentos básicos que constituem a análise temática de conteúdo. O primeiro é chamado de pré-análise e envolve o empreendimento de uma leitura flutuante do conjunto do material e a organização do conteúdo em temas. Já o segundo, chamado de exploração do material, consiste essencialmente na administração de técnicas voltadas à codificação do conteúdo e à agregação dos temas. Por fim, o terceiro, chamado de tratamento dos resultados, se caracteriza basicamente pela elaboração de interpretações e sínteses.
Resultados e discussão
Das 93 pacientes que participaram das 18 sessões do grupo de apoio consideradas para os fins do presente estudo, 52 veicularam espontaneamente, no total, 95 relatos referentes às repercussões psicológicas do tratamento do câncer de mama. Tais relatos foram agregados, em função das unidades de sentido identificadas a partir da análise de conteúdo, em 5 temas principais, a saber: (1) revisão da autoimagem; (2) transposição de perdas; (3) aceitação e colaboração; (4) reconfiguração do círculo social e familiar e (5) recurso à fé.
Vale destacar que o fato de uma parcela das participantes das sessões do grupo de apoio consideradas para os fins do presente estudo não ter veiculado relatos sobre o assunto ora abordado era esperado. Afinal, como já mencionado, frequentavam o ambulatório em pauta, e, como consequência, o grupo de apoio, mulheres que se encontravam em diferentes momentos, atravessando cada uma das distintas etapas que se sucedem do diagnóstico à reabilitação. Logo, confirmou-se a expectativa de que referências sobre as repercussões psicológicas do tratamento do câncer de mama seriam mais comuns nos relatos das pacientes que o vivenciavam no presente ou haviam vivenciado em um passado recente.
Revisão da autoimagem
A cirurgia é um procedimento adotado comumente para o tratamento loco-regional do câncer de mama e com frequência acarreta como repercussão psicológica a revisão da autoimagem da mulher, uma vez que, como já mencionado, afeta sua relação com uma parte do corpo dotada de grande valor simbólico (Rossi & Santos, 2003; Silva, 2008). Esse processo se traduziu em estranhamento para algumas pacientes (n=12), possivelmente em função de uma sensação de mutilação corpórea, como se percebe no relato 1: Eu tive de amputar minha mama, tirar mesmo... Perder um pedaço da gente em vida não é fácil, não (Maria1).
Para outras pacientes (n=8), a perda da mama trouxe desdobramentos psicológicos mais negativos, comprometendo de forma direta seus relacionamentos amorosos. O relato 2 pode ser considerado um exemplo desse fenômeno:
Com certeza tenho receio, vergonha. Depois que operei, ele [marido] não me viu mais. Tranco a porta, por medo de ele me ver, procuro tomar banho quando ele não está em casa, não fico muito perto dele. Estamos dormindo em cama separada, não faço também questão de procurar ele, e ele está respeitando (Inês).
Tal relato aponta que, em função da perda da mama, algumas pacientes passaram a se sentir incompletas, como se estivessem tolhidas daquilo que as fazia mulher. Esse achado é compatível com a conclusão de uma ampla revisão da literatura realizada por Santos e Vieira (2011). E o referido sentimento, atribuído pelas autoras em questão ao ideal de beleza presente nas sociedades ocidentais, tende a se desdobrar em um marcante receio da rejeição por parte de seus cônjuges ou companheiros. Justamente para evitar a mobilização afetiva que poderia ser causada por essa rejeição é que muitas pacientes, de acordo tanto com Duarte e Andrade (2003) quanto com Ramos e Lustosa (2009), se afastam dos parceiros e diminuem de forma significativa a frequência dos atos sexuais. Mas deve-se destacar que esse tipo de comportamento tende a ser mais comum entre pacientes submetidas à mastectomia, dado que tal procedimento cirúrgico implica em um prejuízo estético mais acentuado, conforme Maluf, Mori e Barros (2005) e Majewski et al. (2012).
Transposição das perdas
Embora não ocorra em todos os casos, a queda dos cabelos é um dos efeitos colaterais mais notórios do tratamento do câncer de mama, sendo causado, mais especificamente, pela ação que os medicamentos adotados na maioria dos regimes de quimioterapia exercem indiferenciadamente sobre as células responsáveis pelo desenvolvimento capilar. Para algumas pacientes (n=9), tal experiência foi impregnada de um caráter traumatizante, como se depreende a partir do relato 3: Não acostumei a ficar careca, ninguém viu, não me sentia bem, não gostava de sair careca na rua (Roberta). Achado semelhante foi reportado por Pinto e Gióia-Martins (2006), sendo que tais autoras sustentam que o efeito colateral em questão provoca esse tipo de vivência porque confere maior visibilidade à doença e, assim, concretiza a transposição de perdas do plano físico para o plano psíquico. Justamente por essa razão, a utilização de perucas, lenços e chapéus é uma prática comum entre mulheres acometidas por câncer de mama.
Aparentemente, a queda dos cabelos, quando provocada pela quimioterapia adjuvante, potencializa o comprometimento da autoimagem decorrente da terapêutica cirúrgica, o qual foi abordado anteriormente. Já quando é causada pela quimioterapia neoadjuvante, tende a antecipá-lo. De uma forma ou de outra, a queda dos cabelos – talvez até mais do que a perda da mama – afetou de modo substancial as representações das pacientes em questão sobre o próprio corpo, fazendo com que as mesmas, ao longo de todo o tratamento, se sentissem menos femininas, como sugere o relato 4: Sabe como fica um cachorro pelado? Eu fiquei assim. [Minha cabeça] ficou lisinha (Joana). É nesse sentido que Scorsolini-Comin et al. (2009) afirmam que certas experiências pelas quais passam muitas mulheres acometidas por câncer de mama confrontam o cerne corpóreo da identidade.
Não obstante, algumas pacientes (n=6) apresentaram relatos que sugerem um processo de ressignificação das perdas decorrentes do tratamento, particularmente no que tange à queda dos cabelos. Assim sendo, essas pacientes conseguiram, inclusive, identificar alguns ganhos significativos em meio a tais perdas. O relato 5 exemplifica esse processo, na medida em que aponta que o adoecimento foi vivenciado como uma espécie de experiência de renovação: Caiu o cabelo [...], troquei a pele, tô novinha em folha! (Lurdes). Trata-se de um fenômeno ainda pouco explorado na literatura nacional. Todavia, conforme Urcuyo, Boyers, Carver e Antoni (2005), o mesmo comumente ocorre em pacientes que apresentam uma percepção otimista da vida, característica considerada preditora da adaptação tanto ao diagnóstico quanto ao tratamento do câncer de mama.
Aceitação e colaboração
Algumas mulheres (n=6) mencionaram que a aceitação da própria experiência de adoecimento foi essencial para a superação das adversidades associadas à mesma, na medida em que ensejou uma postura colaborativa face ao tratamento. Tal achado corrobora as proposições de Ramos e Lustosa (2009), os quais apontam, inclusive, que a aceitação não se traduz apenas na adesão às recomendações médicas, pois pode levar à adoção de um estilo de vida mais saudável. Ou seja, trata-se de um outro tipo de repercussão psicológica positiva do tratamento. Como se vê no relato 6, esses movimentos benéficos de mudança podem refletir a busca, intensificada com o passar do tempo, do restabelecimento da "normalidade" da vida a partir da intensificação do autocuidado: [Com o passar do tempo] a vida continua, normal. É só a gente se cuidar (Madalena).
Não obstante, o presente estudo fornece elementos para o avanço do conhecimento sobre o assunto tendo em vista que os relatos de algumas participantes (n=5) sugerem que, nos casos em que a aceitação assume um caráter ativo, diferenciando-se, assim, da resignação passiva, pode-se verificar a ocorrência de um fenômeno mais amplo, chamado "crescimento pós-traumático". O relato 7 o exemplifica:
Mudou muito [a vida após a doença]. Eu acho que hoje eu dou mais valor às coisas boas da vida. Não esquento tanto a cabeça com problemas pequenos [...] Tenho um monte de planos, coisas que antes eu nem pensava. [...] Tenho orgulho de mim mesma por ter conseguido passar por tudo que eu passei (Manoela).
Conforme uma recente revisão da literatura empreendida por Araújo (2013), apenas estudos internacionais – e essencialmente a partir dos anos 2000 – têm se ocupado especificamente da investigação de tal fenômeno em mulheres acometidas por câncer de mama. Ressalte-se que o crescimento pós-traumático consiste em mudanças positivas, em uma diversidade de domínios, resultantes do enfrentamento de um evento potencialmente desestruturante (Calhoun & Tedeschi, 2004; Vazques & Castilla, 2007). Essas mudanças podem ser mais ou menos duradoras, porém, promovem benefícios importantes do ponto de vista psicológico e existencial. Justamente em função disso o crescimento pós-traumático vem se destacando como um tema de pesquisa promissor no campo da Psico-Oncologia, como observam Carver, Lechner e Antoni (2009).
Reconfiguração do círculo social e familiar
Familiares e amigos podem contribuir com o tratamento do câncer de mama atuando como fontes de apoio à mulher. Mas, entre as pacientes em questão, os familiares foram percebidos de diferentes formas. Algumas delas (n=6) relataram que os cônjuges e companheiros se revelaram atenciosos, como exemplificado no relato 8: Meu marido me ajudava a tomar banho. O relacionamento não mudou nada (Geralda). Outras (n=4), contudo, se queixaram da falta de colaboração, conforme mostra o relato 9: Eu não tenho apoio dentro de casa (Jandira). Para Bervian e Girardon-Perlini (2006), variações dessa natureza são relativamente frequentes e podem ser melhor compreendidas considerando-se a família ou o círculo social como um sistema cujo funcionamento se assemelha a um móbile. A partir de tal analogia, evidencia-se que qualquer acontecimento que afete uma das peças da família/móbile é capaz de desorganizar as outras, as quais, com o passar do tempo, podem se reorganizar ou não. Porém, esse sistema, de uma maneira ou de outra, assume uma nova configuração.
Vale destacar que o arranjo familiar e social anteriormente vigente pode ser aprimorado a partir do estreitamento dos laços que unem as pessoas. Algo que muitas mulheres acometidas por câncer de mama entendem que podem fazer para favorecer esse estreitamento é, ao invés de se isolar, procurar compartilhar com aqueles que as cercam as experiências desencadeadas pelo diagnóstico e pelo tratamento. O relato 10 aponta que foi justamente o que fez uma das pacientes em questão: Não me afastei dos meus amigos [...] As pessoas até me perguntavam como eu tava fazendo tratamento se eu tava bem com todo mundo (Beatriz). Em resposta a esse comportamento, amigos e familiares tendem, por meio de demonstrações de afeto e compreensão, a transmitir segurança e proteção à mulher, segundo Fabbro e Westin (2009). Obviamente, porém, os mesmos poderão fazê-lo apenas se possuírem uma mínima disponibilidade para entrar em contato com o sofrimento alheio.
Recurso à fé
Para parte das pacientes em questão (n=9), o recurso à fé se destacou como uma importante repercussão psicológica do tratamento. Esse fenômeno ocorreu essencialmente por meio da intensificação do engajamento em práticas coletivas preconizadas por uma determinada religião. Afinal, tais pacientes referiram que passaram a frequentar mais missas, cultos ou outras celebrações institucionalmente socializadas após o adoecimento, buscando, assim, encontrar forças para superar as dificuldades inerentes ao tratamento. O relato 11 o exemplifica: Antes eu não ia na igreja, não. Eu comecei a ir mais depois mesmo [do início do tratamento]. Pra mim, foi muito bom, me dava, assim, uma sensação boa (Fernanda). O achado em questão é compatível com as proposições de Fornazari e Ferreira (2010), segundo as quais a religiosidade pode trazer benefícios emocionais relevantes para pacientes oncológicos, tanto promovendo uma sensação de acolhimento quanto viabilizando a construção de significados positivos sobre a nova realidade implementada pelo câncer.
Para Paiva (2007), a religiosidade é capaz de conferir ao sujeito uma maior capacidade de entendimento e uma melhor condição de enfrentamento diante de acontecimentos que fogem a seu controle, como é justamente o caso do adoecimento por câncer de mama. Ocorre que atribuir o controle desses acontecimentos a uma entidade suprema, que ultrapassa o humano, pode ter um efeito libertador, provendo o sujeito de uma visão de mundo que favorece a reavaliação positiva de eventos adversos e o instrumentaliza com rituais que facilitam as grandes transições da vida (Koenig, 2001). Porém, como alertam Panzini e Bandeira (2007), a religiosidade pode, em certos casos, provocar efeitos negativos, sobretudo quando é utilizada como justificativa para o abandono da assistência médica tradicional. De qualquer forma, é preciso esclarecer que esse tipo de situação não foi observada nos relatos das participantes do presente estudo.
Considerações finais
O presente estudo, como já mencionado, teve como objetivo compreender as repercussões psicológicas do tratamento do câncer de mama. É possível afirmar que tal objetivo foi atingido tendo-se em vista que, referendando os achados de pesquisas anteriores, verificou-se que, para muitas mulheres acometidas pela doença, o tratamento promove uma série de repercussões psicológicas negativas que refletem perdas associadas, em menor ou menor grau, à esfera simbólica da feminilidade. Além disso, o presente estudo avança em relação às pesquisas anteriores e oferece novas contribuições para o conhecimento atualmente disponível acerca do assunto ao salientar que o tratamento pode também ser vivenciado por algumas mulheres como uma experiência de renovação e implicar em ganhos significativos, tais como a adoção de um estilo de vida mais saudável e a intensificação do engajamento em práticas religiosas capazes de favorecer o enfrentamento de adversidades.
Os referidos ganhos podem ser entendidos como repercussões psicológicas positivas do tratamento do câncer de mama, as quais ainda são pouco compreendidas por não terem sido exploradas a fundo pela literatura científica especializada – sobretudo nacional – até o momento. Portanto, novas pesquisas dedicadas especificamente às mudanças benéficas associadas ao adoecimento e seus desdobramentos são necessárias. O presente estudo fornece elementos para a reversão de tal situação ao apontar que, nessas pesquisas, a utilização do contexto grupal como locus para a coleta de dados representa uma estratégia metodológica promissora. E ainda sugere que o recurso à noção de "crescimento pós-traumático" é capaz de auxiliar na identificação dos diferentes meios pelos quais transformações positivas podem resultar de eventos potencialmente desestruturantes como o adoecimento por câncer de mama.
Referências
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Endereço para contato
E-mail: rodrigosanchesperes@yahoo.com.br
Recebido em novembro de 2011
Aceito em outubro de 2013
Vanessa Souza Santana: Psicóloga, aluna do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia.
Rodrigo Sanches Peres: Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia.
1 Deve-se esclarecer que o nome verdadeiro das pacientes foi substituído por nomes fictícios quando da apresentação de seus relatos com o intuito de preservar-lhes o anonimato.