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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  no.46 Canoas abr. 2015

 

ARTIGOS EMPÍRICOS

 

Trabalho infantil: um estudo sobre os danos biopsicossociais percebidos pelos pesquisadores

 

Child labor: a study about the biopsychosocial damage perceived by researchers

 

 

Elenise Martins Costa; Ricardo Luis Vieira de Souza; Patrícia Beatriz Argollo Gomes Kirst

Universidade Luterana do Brasil, Unidade Guaíba – RS

Endereço para contato

 

 


RESUMO

O presente artigo tem por objetivo analisar os principais danos biopsicossociais do trabalho infantil, percebidos pelos pesquisadores. Através de uma pesquisa qualitativa com nove voluntários, em idade adulta, foi possível verificar, além do sofrimento, os motivos que os levaram ao trabalho precoce, decorrente do funcionamento familiar, cultural e econômico. O instrumento para coleta de dados, foi uma entrevista semiestruturada. Na análise de conteúdo foi possível visibilizar quatro categorias: lembranças e cenários do trabalho na infância, a formação escolar apesar do trabalho, prejuízos e ganhos e infância pessoal e impessoal. Concluindo, entendemos que o trabalho infantil gerou danos na subjetividade desses sujeitos, no sentido de negar o acesso à escolarização, tirando ou reduzindo a vivência de atividades essenciais para o desenvolvimento, tais como as brincadeiras e o enfraquecimento de processos de socialização, devido à responsabilidade adquirida com o trabalho que auxiliava no sustento da família.

Palavras-chave: Trabalho infantil, Direitos, Danos.


ABSTRACT

The present paper aims to analyze the main biopsychosocial damage of child labor, perceived by researchers. Through of a qualitative study with nine adulthood volunteers, was possible to check, beyond the suffering, the reasons that lead them to the early work, due to the family, cultural and economic operation. The instrument used to data collection, was a semistructured interview. In the content analysis was possible to visualize four categories: memories and scenarios of work in childhood, school education despite the work, losses and wins and personal and impersonal childhood. Concluding, we understand that the child labor has generated damage to the subjectivity of these persons, in order to deny the access to education, removing of reducing the living of important activities for the weakening of socialization processes, due to acquired responsibility with the work that helped the familiar support.

Keywords: Child labor, Rights, Damage.


 

 

Introdução

A presente pesquisa configura-se como espaço de reflexão e crítica sobre a herança pessoal e social do trabalho infantil no Brasil. Este artigo tem por objetivo analisar os principais danos biopsicossociais, do trabalho infantil, percebidos pelos pesquisadores. Ao ressignificar o trabalho infantil através de relatos sobre a infância os sujeitos de pesquisa estavam resgatando e elaborando as experimentações de seu trabalho, nos primórdios de sua existência, do que entendiam, sobre suas tarefas desempenhadas na infância. Isso desencadeou e atualizou, além da pesquisa, uma experiência de escuta clínica. Tal objetivo se fundamenta em outros objetivos específicos. São eles: conhecer como se caracterizou a infância dos participantes; analisar o funcionamento e estrutura familiar destes; investigar os principais motivos que os levaram a trabalhar durante a infância; investigar formas de prevenção do trabalho infantil, a partir da opinião dos entrevistados.

O atual estudo justifica-se na medida em que foi possível dar visibilidade em relação ao trabalho infantil e suas consequências, sejam elas motoras, intelectuais, físicas: biopsicossociais. A escolha pelo assunto manifestou-se pelo interesse de conhecer a realidade vivenciada pelos trabalhadores que começaram suas atividades laborais, desde a infância, até hoje, e, também é uma contribuição para a psicologia social e do desenvolvimento através desta escrita.

De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2012), 86,9% dos alunos que responderam ao questionário da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar relataram que não trabalhavam, 11,9% responderam que trabalhavam e recebiam dinheiro para desempenhar as atividades, e 1,2% responderam que trabalhavam sem remuneração. O maior percentual de alunos que responderam não trabalhar está na Região Sudeste (88,5%). Os dados também revelaram que o maior percentual de alunos que responderam trabalhar com remuneração estão na Região Sul do País, aproximadamente 15,1%. Há uma evolução do percentual de menores que trabalharam, observa-se uma tendência de elevação conforme o aumento da idade. Dentre os estudantes com 13 anos ou menos de idade, 8,6% responderam ter algum trabalho, emprego ou negócio. A Região Sul apresentou as maiores proporções para este indicador, em relação às demais regiões do País, não só entre os estudantes com 13 anos ou menor idade (11,9%), como também entre aqueles com 16 anos ou mais (29,5%).

Existem mais de 90.000 entre crianças e adolescentes de 5 a 17 anos trabalhando nos lares do Brasil (Patriota & Alberto, 2014). Para Alberto (2013), o Trabalho Infantil Doméstico Remunerado é aquele no qual o sujeito realiza as atividades em troca de uma remuneração, pode ser realizado em casa de terceiros, bem como na própria casa da criança ou na casa de parentes. No caso do "Trabalho Infantil Doméstico Ajuda", as crianças ou adolescentes assumem atividades de manutenção da casa; no "Trabalho Infantil Doméstico Socialização", as atividades realizadas decorrem da divisão de tarefas entre os membros da família, sendo sempre realizadas na casa da criança ou do adolescente.

O trabalho é permitido em caráter de jovem aprendiz entre 14 a 16 anos, sendo que após os 16 anos o adolescente pode trabalhar, desde que seus direitos não sejam violados. A legalidade do trabalho infantil é complexa e se liga ao problema contraditório do trabalho na sociedade capitalista, onde ocorrem modos inaceitáveis de intensificação da jornada que prejudicam o desenvolvimento da criança e os modos de trabalho considerados necessários para a formação do ser humano (Conde, 2013). De acordo com o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. O trabalho infantil surge como uma forma de desigualdade e, para as famílias, surge como "necessidade" que cumpre um duplo papel: auxilia no sustento do grupo familiar e "educa" para a vida adulta (Marchi, 2013). Scarton (2014) afirma que o trabalho infantil traz danos nos aspectos social, econômico, escolar e psicológico, sendo que a partir do momento que a criança se sente obrigada a assumir a responsabilidade do trabalho ela perde sua inocência, constituindo assim a perda da mais tenra infância.

 

Método

Para este estudo foi utilizada uma pesquisa qualitativa do tipo exploratória, na qual foram analisadas algumas características da infância dos participantes, o funcionamento e a estrutura familiar, os motivos que levaram ao trabalho na infância e as formas de prevenção do trabalho infantil.

O instrumento para a coleta de dados empregado foi a entrevista semiestruturada, que ofereceu a possibilidade de nomear quatro categorias, sendo elas: lembranças e cenários do trabalho na infância, a formação escolar apesar do trabalho, prejuízos e ganhos, infância pessoal e impessoal (eu e os outros).

Participaram deste estudo indivíduos que trabalharam na infância, atualmente na faixa etária dos 37 aos 81 anos, sendo quatro mulheres e cinco homens, independentemente do nível socioeconômico. Os participantes foram escolhidos por conveniência dos pesquisadores, são eles:

 

 

Os nomes dos entrevistados são fictícios, com a finalidade de preservar suas verdadeiras identidades. Neste estudo, utilizou-se a técnica de análise de conteúdo, através da análise categorial, proposta por Bardin (2009), e segue-se de três fases distintas: a pré-análise, a exploração do material e o tratamento dos dados obtidos com a consequente interpretação. A primeira fase consta com a organização do material que será coletado, com o intuito de torná-lo objetivo para utilização em situações práticas. Podemos destacar a escolha dos documentos, a formulação das hipóteses e dos objetivos e a busca de subsídios para fundamentar a conclusão final. Na segunda, a mais demorada, será a administração sistemática e prática da organização efetuada na primeira fase. Na terceira fase, procura-se descobrir as mensagens implícitas subjacentes ao qual foi dito, como as ideologias, as tendências, entre outras.

 

Resultados

A partir da leitura e da construção de nexos com base nas entrevistas com nove adultos voluntários que em sua infância trabalharam, emergiram quatro categorias.

Lembranças e cenários

O discurso dos participantes revela implicações positivas e negativas em relação ao trabalho infantil. Dentre as positivas, reproduzem o discurso da sociedade acerca do trabalho infantil como formador e que confere a responsabilidade.

Conforme conseguimos observar nas falas abaixo, o discurso da sociedade é em parte produzido pelos pais que incentivavam o trabalho infantil e através da responsabilidade e valores que os entrevistados adquiriram com este trabalho.

Fátima: "Eu fazia de tudo para que eles sentissem orgulho de mim... meus pais nos elogiavam".

Carlos: "Eu com oito anos já trabalhava é claro que eu não fazia o serviço de um homem, mas tinha o compromisso de trabalhar".

Segundo Souza (2011), o trabalho infantil é negativo por: atrapalhar a escolarização, trazer implicações para a saúde e para a obtenção de emprego na vida atual.

Fátima: "A gente levantava em torno de cinco horas da manhã e ia para a lavoura, em época de colheita, colhia o fumo e depois ia na sanga e tomava banho, podia ser inverno ou verão e depois ia para casa pegava um saquinho e colocava os cadernos e ia para o colégio e caminhava muito até chegar à escola".

Segundo Franklin (2001), em se tratando de horas trabalhadas por semana, no Rio Grande do Sul, uma grande parcela dos jovens cumpre uma carga horária exagerada e incompatível com suas necessidades escolares e de desenvolvimento.

Carla: "Não era muitas horas, se trabalhava na parte da manhã (das 8 às 11 horas) e na parte da tarde das 15 às 17 horas. A roça não era muito grande".

Anderson: "A gente chegava a trabalhar 15 horas por dia e depois da colheita trabalhava no engenho na secagem do arroz".

"O enfoque de trabalho é na unidade de economia familiar, no qual todos os membros da família trabalham em conjunto e, nesse caso, incluem-se crianças e adolescentes." (Souza, 2011 p.583).

Os entrevistados se referiram à agricultura familiar da seguinte forma:

Roberta: "Me lembro de tudo que a gente fazia, acordava cedo ia para a lavoura e plantava de tudo um pouco. Era gostoso de fazer aquilo porque era aquilo que a gente tinha para fazer".

Alberto: "Trabalhava na lavoura plantando arroz de muda, cortava arroz com a foice, trabalhei na lavoura até os dezesseis anos".

A formação escolar apesar do trabalho

Para Souza (2011), as explicações a respeito do "fracasso escolar", ao longo da história, apresentam diferentes ênfases. O preconceito dos professores a respeito das famílias pobres se evidencia na maneira como se expressam a respeito do trabalho infantil. Sublinhamos que como está exposto por alguns sujeitos o comportamento em relação ao trabalho infantil é de omissão.

Fátima: "A escola apoiava mais aqueles que eram filhos de fazendeiros e que iam bem arrumados, e a diretora os recebia na porta e aqueles que iam de chinelinho eles nem olhavam".

Alberto: "A escola não fazia pressão nenhuma, se fosse, fosse e se não fosse não dava nada".

De acordo com Oliveira (2011), o aspecto psicossocial é refletido dentro da sala de aula, com um notório desinteresse dos jovens pelo estudo. A não concentração, dentre outros fatores, é uma das principais características que dificultam a aprendizagem. Assim, a dificuldade de aprendizagem é um grande fator psicossocial que necessita de uma análise reflexiva, pois mesmo a criança ou o adolescente quando exerce uma atividade regular, esta em nenhuma hipótese poderá prejudicar o seu desempenho intelectual na sua vida acadêmica.

Para Bezerra (2011), a evasão escolar é a maior consequência do trabalho infantil, limitando assim as perspectivas pessoais e sociais desses sujeitos que trabalharam na infância.

Vimos através dos relatos de nossos participantes que muitos tiveram que sair da escola para trabalhar.

Carla: "Eu estudava. Parei na 4ª série".

Roberta: "A gente ficava fraca nas matérias. Repeti duas vezes a quarta série, uma vez valida e a outra por vontade da professora".

Prejuízos e ganhos

Para Souza (2011), no meio rural, a criança é vista não em função de sua faixa etária, mas considerando a possibilidade de trabalhar como um adulto. A tendência da criança é imitar os pais. Assim, é natural que, quando os pais vão trabalhar na lavoura, as crianças os acompanhem e procurem imitá-los, sendo isso reforçado por elogios. O que começa com uma brincadeira aprazível vai tornando-se obrigação com o passar do tempo, reproduzindo-se por gerações. Os participantes relataram durante as entrevistas que não eram obrigados a trabalhar, mas que iam para acompanhar e ajudar os pais. Um ganho pode ser identificado pelo sentido dado ao trabalho que denota bom humor, compreensão da parceria com o pai e da pouca noção das questões básicas como contar.

Ana: "Meu pai e minha mãe nunca nos obrigava a trabalhar, íamos por livre e espontânea vontade. Eu recordo que o pai me perguntava quantos grãos de semente você botou na cova, quatro? Eu respondia sim, mas botava mesmo um punhadinho, pois não sabia contar (risos), na hora da capina apareciam oito ou mais pés de feijão plantados ao invés dos quatro, mas o pai levava na brincadeira."

Percebemos que um ganho importante era a memória de que não havia imposição, era algo da vida, do dia a dia, da cultura e dos hábitos da família. Não observamos violência psicológica e nem apelo ostensivo, e muito menos coerção. Alguns apontam gratificação e espontaneidade.

Carlos: "O pai não pedia para a gente fazer um serviço que visse que a gente não tivesse força ele mandava a gente fazer o serviço de acordo com a força da gente e não éramos obrigados".

Franklin (2001) afirma que as crianças são mais vulneráveis às doenças e aos acidentes de trabalho devido a alguns fatores, dentre os quais se podem citar imaturidade e inexperiência desse grupo de trabalhadores, distração e curiosidade naturais à idade, pouca resistência física, menor coordenação motora (quanto menor a idade), desconhecimento dos riscos do trabalho, tarefas inadequadas a sua capacidade, locais e instrumentos de trabalho desenhados para adultos.

Manoel: "Mesmo perdendo todos os dedos da mão direita, mas se bem que não foi bem trabalhando foi mais fazendo arte, na verdade os trabalhadores foram para o café e eu e um colega colocamos o moinho para funcionar e tocar o serviço foi neste dia que perdi meus dedos".

Manoel afirma que sofreu o acidente enquanto não estava a trabalho. Entretanto é claro que apresenta uma defesa e não cogita que "brincava" no local onde trabalhava. Brincava em área de risco.

De acordo com Bezerra (2011), as péssimas condições de trabalho, a falta de orientações e assistência específica, ou mesmo a falta de mecanismos de proteção no desempenho das atividades que a criança realiza, gera situações de comprometimento para a saúde dos pequenos trabalhadores. As implicações mais observadas se apresentam pela excessiva carga física e psíquica, o envelhecimento precoce, atrasos no desenvolvimento, acidentes de trabalho, deformidades físicas, abandono da escola e baixa qualificação profissional. As consequências da inserção da criança no trabalho aparecem de forma imediata ou em longo prazo, dependendo do tipo de atividade que a criança realiza e, logo, do nível de insalubridade e periculosidade no qual desenvolve o seu trabalho.

Os entrevistados relatam alguns prejuízos em decorrência do trabalho infantil.

Carla: "Eu gostaria de ter estudado. Eu queria ter sido professora até porque antigamente não precisava muito".

Fátima: "Tudo que eu fiz era porque eu tinha que fazer, e eu tinha que ajudar. Talvez assim no corpo, algum tipo de doença, dores".

Roberta: "Acho que tive bastante atraso em minha vida, não pude estudar. Hoje me arrependo de não ter persistido mais e ter tentado completar meus estudos. Trabalhei até os 13 anos na lavoura e depois comecei a trabalhar em casa de família. Me lembro que eu chorava muito porque queria ir para a escola".

Roberta: "A gente trabalhava muito e se desgastou muito e agora a gente vê que nessa idade que eu estou não consigo fazer mais nada e acho que tudo foi do serviço braçal que fiz".

Alberto: "Às vezes eu recordo e acho brabo e se eu tivesse estudado seria melhor. E às vezes conto para os meus filhos o que passei, pois hoje tudo é mais fácil, tem transporte para levar os alunos para estudar e na minha época tínhamos que caminhar muito até chegar à escola".

Anderson: "O pai era muito bêbado e corria todos de casa (chora)".

Carlos: "Andava de pé descalço. Cansei de chorar no meio do campo de frio sem calçado e com roupa de saco de adubo".

Segundo Souza (2011), a criança e o adolescente passam por uma etapa, sem ter a oportunidade de vivenciá-la e sem a possibilidade de retomá-la mais tarde. Essa etapa não volta mais, deixando assim o adolescente sem vivenciar a possibilidade de desenvolver a experimentação do seu novo corpo e de sua nova mente, uma vez que precisa assumir responsabilidades e trabalhar para ajudar a família. Vimos nos relatos de nossos participantes a falta de vivenciar essa fase da vida.

Roberta: "Não tinha tempo de brincar, trabalhávamos até nos finais de semana. Infância mesmo eu não tive. Não saia nem de casa. A gente tinha que trabalhar para sobreviver senão não teríamos o que comer. Eles diziam tal hora à gente ta levantando para ir para a lavoura e todo o dia era assim. A gente era criança e não tinha tempo para brincar, não podia, porém acho que nossa vida foi muito escravizada sendo criança e tendo que trabalhar".

Alberto: "Nunca tive tempo de jogar futebol, nem sabia o que era uma bola e nunca tive tempo para isso. Não sabia o que era brinquedo, nunca tive brinquedo, nem bola. Éramos entre quinze irmãos e era bem difícil. A gente vivia em função de trabalho".

Infância pessoal e impessoal

Para Campos (2003), as crianças ficam privadas de brincar, ou seja, de uma das atividades que mais contribuem para o desenvolvimento saudável de aspectos físicos, cognitivos e sociais. O autor afirma que no exercício de atividades lúdicas a criança "faz o que mais gosta de fazer, porque o brinquedo está unido ao prazer". Outros dois aspectos determinam a importância do brincar. O primeiro é ser uma atividade que favorece a maturação de certas necessidades da criança, estando assim, diretamente associado ao desenvolvimento; o segundo, possibilitar à criança em idade pré-escolar a efetivação de desejos não realizáveis no mundo real.

Nossos entrevistados demonstraram em seus relatos que mesmo trabalhando muitos conseguiram brincar e viver a sua infância plenamente. Houve, pois, infância.

Ana: "Consegui brincar e viver porque nós tínhamos horário para estudar e para brincar, depois que se chegava do trabalho pela manhã até o almoço podíamos brincar, mas eu com nove anos podia tomar conta da casa e fazer todo o serviço, pois sabia tudo".

Carla: "Consegui brincar".

Fátima: "A gente brincava até com uma tampa de pasta de dente, tampinha, latinha de sardinha e esse eram nossos brinquedos e nós éramos felizes. A gente tinha as obrigações, mas também tínhamos o nosso lazer, tinha hora que o pai e a mãe iam dormir e a gente brincava até cansar. No próprio trabalho a gente brincava, o trabalho era um brinquedo".

Anderson: "A gente brincava, fazia umas carretinhas, mas não tive uma infância normal".

Carlos: "Eu brincava e tinha meus brinquedos, nunca deixei de brincar por causa do trabalho. Aos domingos eu brincava e durante a semana a gente pouco brincava, era só quando sobrava um tempinho. Brincava com caminhãozinho, tratorzinho e fazia os brinquedos com lata de azeite e carretel de linha".

Manoel: "Carrinho de lomba era o xodó, brincar de carrinho de lomba era a festa, nos domingos íamos à missa e coisa e tal, o negócio era brincar de corrida de carrinho de lomba".

Paulo: "Eu não tive brinquedos (tristeza no olhar) a gente morava pra fora, eu varria os terreiros, então dividia o terreiro com as outras crianças e corria carreirinha para ver que terminava primeiro (risos), aquilo era nossa brincadeira, nos domingos corríamos carreiras a pé, mas nos dias normais o próprio trabalho era uma brincadeira".

Dentro do tema da vivência pessoal da infância e dos depoimentos acima que apontaram o "brincar" como sendo possível. Os sujeitos a partir deste ponto refletiram sobre condições ideais para o início do trabalho na vida humana.

De acordo com o programa Gira Solidário (2007), diversas razões levam crianças e adolescentes ao trabalho precoce, sendo a mais perceptível a pobreza. Outros aspectos que incentivam a prática são: a visão cultural de que trabalhar é uma forma de evitar o envolvimento com a marginalidade, e a ideia de que as crianças devam trabalhar nas lavouras para dar sequência às atividades ocupadas pela família.

Nossos entrevistados tem uma opinião referente ao trabalho infantil que expressaram da seguinte forma:

Ana: "Eu sou a favor do trabalho, dos doze anos em diante, pelo menos os afazeres de casa eles podem fazer e aprender com isso".

Carla: "Acho que as crianças têm que estudar".

Fátima: "Depois dos quatorze anos pode trabalhar, acho que a partir dessa idade tem que ter uma responsabilidade".

Roberta: "Acho que criança não, mas adolescente já poderia. Acho que a partir dos treze anos eles já poderiam ter tarefas até para terem compromisso, mas não um serviço braçal como o nosso".

Alberto: "Acho que a partir dos treze anos podem trabalhar, mas não deixar o estudo porque hoje em dia tem tantas formas de estudar".

Anderson: "A partir dos doze anos podem trabalhar para não ficarem desocupados até os dezesseis e se criarem marginais, só que o trabalho não deve ser tão forçado que nem o nosso".

Carlos: "A partir dos quinze anos poderiam trabalhar, porque com quinze anos eu assinei a minha carteira. Que hoje esses empregos de aprendiz é uma boa".

Manoel: "Não tem uma idade certa só não devem trabalhar quando bem no inicio, ou bem na infância, mas podem ajudar pai e mãe".

Paulo: "Não sou a favor do trabalho infantil, pois eu sei muito bem o que é isso".

Podemos observar que a idade varia, segundo os entrevistados, entre 12 a 15 anos. Isso torna claro essa discordância em relação à idade que iniciará a vida de trabalhador e expressa uma postura crítica, mostrando esperança que as próximas gerações iniciem na puberdade suas práticas laborais e não na tenra infância como foi de nossos participantes.

 

Conclusão

Ao analisarmos os principais danos biopsicossociais causados pelo trabalho infantil na vida adulta vimos que o trabalho na infância, mesmo sendo visto como atividade positiva pela família, é prejudicial para o desenvolvimento sadio da criança. Os entrevistados traziam consigo a ideia de que deixaram de concretizar alguns objetivos que sonharam para sua vida e que agora, depois de adultos, pensam que se tivessem a oportunidade de alcançar seus objetivos tudo poderia ser melhor. Tal discurso é trazido da seguinte forma: "Às vezes eu recordo e acho brabo e se eu tivesse estudado seria melhor" (Alberto).

O trabalho precoce é um dos maiores causadores do atraso no desenvolvimento infantil, pois, além de prejudicar a cognição, as crianças ficam privadas de sua infância, não podendo brincar plenamente e tendo como responsabilidade o trabalho para o sustento. Ao verificar o discurso de nossos entrevistados, percebemos que para alguns ficou um sentimento de infância roubada pelo trabalho, enquanto outros conseguiram viver uma infância dita "normal".

O trabalho como formador de caráter está muito arraigado na vida das pessoas que trabalharam na infância, de tal forma que elas não se sentiam obrigadas a trabalhar e conseguiam apontar gratificação com o trabalho. Mas também é possível perceber que para muitas o passado traz sofrimento e que o trabalho era encarado como uma forma de ajudar a família, pois não viam outra solução. Percebemos, através de alguns discursos de nossos entrevistados, que a afirmação de terem tido ganhos com o trabalho foi uma forma de se defender do sofrimento a que eles eram submetidos nessa fase, ou talvez de amenizar os prejuízos que tiveram.

Para a família, o infante era parte integrante de um sistema de subsistência daquele grupo, que muitas vezes dependia do pouco que tinha e da mão de obra infantil para sobreviver em meio às suas dificuldades. Ao mesmo tempo em que a criança é vista como um fator natural de produção, ela se torna vulnerável em relação à sua saúde física e mental, pois ela não está protegida pelas leis trabalhistas de uma pessoa adulta inserida no mercado de trabalho. As crianças são vítimas de um sistema capitalista cujas condições de pobreza e exclusão social lhes impõem um trabalho sem uma justa remuneração. Vimos em algumas entrevistas que a criança auxilia a família e recebe uma pequena gratificação de seu trabalho, que se caracteriza pela alimentação e moradia.

O trabalho infantil é a principal causa de evasão escolar. Através dos relatos de nossos entrevistados, pode-se perceber que a escola possuía três posições: uma que apoiava o trabalho, outra que se omitia e não se posicionava, e por último a que reprimia o trabalho infantil. A escola, na primeira posição, via-se obrigada a apoiar e liberar seus alunos para que esses não evadissem, principalmente no período de colheita, que é o momento de ápice do esforço empregado, e depois recuperassem as aulas perdidas. Na segunda posição, a escola não fazia nada em relação às faltas dos alunos. Podemos ver isso no relato: "A escola não fazia pressão nenhuma, se não fosse não dava nada" (Alberto). E, na última posição, a escola se posicionava de forma preconceituosa em relação aos seus alunos trabalhadores, diferenciando-os de forma discriminatória dos que possuíam melhores condições financeiras (filhos de fazendeiros).

Recentemente, no ano de 2014, foi premiado com o prêmio Nobel da Paz o senhor Kailasch Satyarthi pelo reconhecimento de seu trabalho no resgate de crianças em regime de escravidão. Foram resgatadas cerca de 80 mil crianças do trabalho infantil, isso comprova que o trabalho precoce é um assunto que ainda provoca discussão tanto no meio acadêmico quanto na mídia e na sociedade.

Ainda existe um abismo entre campo e a cidade no que se refere às políticas públicas voltadas para as crianças e os adolescentes. Muitas dessas políticas não chegam ao campo ou, quando chegam, apresentam distorções que colocam em risco sua efetividade. Ainda existe um déficit nas políticas públicas de defesa aos direitos da criança e do adolescente, pois o governo não investe recursos suficientes para a prevenção do trabalho infantil e para a promoção de entidades que defendam os direitos dessas crianças. Em resumo, a proteção integral dessas crianças depende da família, do poder público e da sociedade, cujo objetivo é fortalecer essa rede de proteção integral infantil. Esta pesquisa, portanto serve como um pequeno instrumento para intensificar o debate sobre a proteção infantojuvenil, garantindo o envolvimento da Universidade e dos futuros psicólogos nesta questão. Como promotores de saúde mental, sabemos que não adianta condenar estas famílias, mas nos aproximarmos de sua cultura e de seus modos de ser, de forma a auxiliar na libertação, mesmo que parcial, da criança e de seu trabalho na lavoura. Estudar o trabalho infantil é um passo que nos foi possível para significar e apostar em vidas mais plenas e em uma agricultura familiar que não esteja tão atrelada à miséria.

 

Referências

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Endereço para contato
E-mail: elenisemc@yahoo.com.br

Recebido em setembro de 2015
Aceito em junho de 2016

 

 

Elenise Martins Costa: Acadêmica do Curso de Psicologia da Universidade Luterana do Brasil, Unidade Guaíba – RS.
Ricardo Luis Vieira de Souza: Acadêmico do Curso de Psicologia da Universidade Luterana do Brasil, Unidade Guaíba – RS.
Patrícia Beatriz Argollo Gomes Kirst: Professora Orientadora do Curso de Psicologia da Universidade Luterana do Brasil, Unidade Guaíba – RS.

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