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Interações
Print version ISSN 1413-2907
Interações vol.8 no.16 São Paulo Dec. 2003
ARTIGOS
Modelos de família e intervenção terapêutica
Family models and therapeutic approach
Edna Lúcia Tinoco PoncianoI, 1; Terezinha Féres-CarneiroII, 2
I Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Programa de Psicologia Clínica
II Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Psicologia
RESUMO
A família nuclear é um modelo construído na história da sociedade ocidental. O questionamento desse modelo torna visível outros tipos de configurações familiares. Na história da terapia de família observamos a relação existente entre o modelo de família nuclear e a intervenção do especialista. Realizamos um percurso histórico com o objetivo de referir as diferenciadas práticas terapêuticas à diversidade de famílias. A partir de definições alguns autores sistêmicos, analisamos relatos de terapeutas de família entrevistados na cidade do Rio de Janeiro. Concluímos que as variadas perspectivas devem ser consideradas pelas transformações que produzem, redefinido as práticas terapêuticas.
Palavras-chave: Terapia de família, História, Sociedade ocidental, Modelo de família, Intervenção terapêutica.
ABSTRACT
The nuclear family is a model constructed in the history of the western society. Raising questions about this model brings visibility to other types of family configurations. We observed, through the history of family therapy, a relationship between the nuclear family model and the specialist’s intervention. In order to relate the different therapeutic practices to the diversity of the families, we traced a historical course. Based upon definitions of family of some systemic authors, we analyzed the speeches of family therapists interviewed in Rio de Janeiro. We concluded that the different perspectives should be considered for the transformations they bring about, thus redefining the therapeutic practices.
Keywords: Family therapy, History, Western society, Family model, Therapeutic approach.
Dividimos este artigo em duas partes com o objetivo de traçarmos uma comparação entre duas histórias. Na primeira é desenvolvido um panorama histórico da família na sociedade ocidental, culminando com a hegemonia ideológica do modelo nuclear. A elaboração desta parte inicial permite-nos construir uma história da terapia de família relacionando dois aspectos: a formação da família nuclear na modernidade e o surgimento da intervenção do especialista com fins terapêuticos. O mode-lo nuclear, pautado na intimidade e fechado à sociabilidade pública, constitui a família como algo inteiramente novo, sem parâmetros anteriores. São os especialistas, aliados ao Estado moderno, com seus modos de intervir e suas práticas terapêuticas, que irão esclarecer às famílias quais são as normas de funcionamento desse novo modelo. Na segunda parte do trabalho exemplificamos com o relato de entrevistados. Estes são terapeutas de família, pioneiros na cidade do Rio de Janeiro, com os quais podemos ilustrar a história da terapia de família.
Da pesquisa realizada privilegiamos um aspecto: as definições de família oferecidas por esses terapeutas comparadas às de alguns autores, em diferentes momentos históricos da Abordagem Sistêmica. Essa comparação permite-nos apreciar a relação entre o modelo de família nuclear, as definições de autores sistêmicos e as respostas dos terapeutas entrevistados. Procuramos analisar possíveis compromissos ou críticas ao modelo nuclear. Nossa perspectiva, portanto, é a da análise e interpretação de como se insere uma prática terapêutica em um determinado contexto histórico-social, fortalecendo ou transformando o modelo encontrado.
Transformação das relações familiares: antes e depoisda modernidade
Houve um tempo em que as relações familiares incluindo pai, mãe, filhos, parentes, agregados, vizinhos, amigos, entre outros perdiam-se em meio a uma ampla comunidade. As relações familiares, como a do casal e a dos pais com seus filhos, eram permeadas por relações comunitárias, consideradas mais importantes, na maioria das vezes.
Quando as relações extensas faziam parte das relações familiares não existiam poderes especializados ou seculares, externos a essas relações, que ditassem as normas do comportamento: os papéis eram definidos “desde sempre”. A comunidade de pertença não deixava dúvidas quanto ao que fazer. A família era a sociedade, confundindo-se com ela. O indivíduo perdia sua visibilidade em meio às relações. A hierarquia ditava as regras para as relações familiares, e os conflitos, quando surgiam, submetiam-se ao rigor da lei. A desobediência equivalia à exclusão e à falta de proteção, que era o mesmo que ser entregue ao pauperismo e à morte (Ariès, 1986; Shorter, 1995). Nessa configuração não havia necessidade de uma prática terapêutica, conforme relatam os estudos de Costa (1989) sobre o Brasil, de Donzelot (1986) sobre a França, e de Lasch (1991) sobre os Estados Unidos, referindo-se à transformação das relações familiares, que na modernidade caracterizam-se pela intervenção do Estado em aliança com especialistas da saúde. Nessa mesma direção encontram-se os estudos de Sennett (1993) a respeito da transformação da sociabilidade pública em domínio privado, com a conseqüente psicologização das relações sociais.
Em um momento anterior havia uma concepção particular da família: a linhagem. Compreendida como solidariedade estendida a todos os descendentes de um mesmo ancestral, a linhagem constituía proteção na ausência do Estado, não levando em conta os valores da coabitação e da intimidade. A posição social era sustentada pelo patrimônio material, pela herança familiar (Casey, 1992).
Todos os membros do grupo familiar deviam obediência e respeito ao pai, aquele que os deveria proteger, vigiar e corrigir. Nos séculos XVI e XVII, os “sentimentos dolorosos” e “maus” eram os predominantes nas relações familiares, e não o amor. De acordo com Antoine de Blanchard (apud Flandrin, 1995), eram vários os sentimentos “maus”, como: inveja, ciúme, aversão, ódio, desejo de morte etc. A moral caracterizava-se mais pelo pecado do que pelo amor.
Podemos observar a diferença que nos separa da antiga sociedade pela relação pais-filhos e pelos sentimentos surgidos e expressos na convivência doméstica: de um lado os “maus sentimentos” gerados pelo poder total, direito de vida e de morte, que era concedido ao pai; de outro, caracterizando o modelo nuclear, o dever paterno de proteção, baseado no sentimento de amor.
Na antiga mentalidade, o pai tinha todo poder sobre os filhos, como o senhor sobre os seus escravos; eles pertenciam-lhe em propriedade plena, porque os fizera; ele nada lhes devia. Na nossa mentalidade contemporânea, pelo contrário, o fato de os ter feito confere-lhe mais deveres do que direitos para com eles. Eis uma viragem fundamental dos princípios da moral familiar (Flandrin, 1995, p. 147).
Na Europa, no fim do século XVII e início do XVIII, ocorreu uma mudança marcante no lugar da criança e da família (Ariès, 1986). A afeição tornou-se necessária entre os cônjuges, e entre os pais e os filhos. O “sentimento de família” nasceu simultaneamente com o “sentimento de infância”: com o objetivo de melhor cuidar de suas crianças, a família recolheu-se da rua, da praça, da vida coletiva, em que antes se encontrava, para a intimidade, fazendo desaparecer a antiga sociabilidade. Paulatinamente, através dos séculos, o valor social da linhagem transferiu-se para a família conjugal. Quando essa passagem se consolidou, a família tornou-se a “célula social”, a “base dos Estados”.
A família afastou-se, assim, cada vez mais da linhagem, da integridade do patrimônio, prevalecendo a “reunião incomparável dos pais e dos filhos”, firmando o modelo nuclear. Passou-se a privilegiar e marcar as semelhanças físicas entre pais e filhos, inclusive nas situações de adoção. A criança tornou-se a “imagem viva de seus pais”. A família assumiu uma função moral e espiritual. Os pais tornaram-se responsáveis pela criação de seus filhos, mudando a concepção de educação (Ariès, 1986).
Quanto à relação conjugal, o casal moderno pauta-se pelo comportamento expressivo, enquanto o casal tradicional achava-se limitado aos seus papéis, sem “procurar saber se eram felizes”. A partir do século XVIII, porém, os jovens começaram a considerar os sentimentos para a escolha do cônjuge, desvalorizando aspectos exteriores como propriedade e desejo dos pais. Esta, para Shorter (1995), foi a primeira revolução sexual. O casamento por amor só foi defendido abertamente no século XIX, quando o essencial do capital herdado passou a ser o capital cultural: as transformações econômicas, advindas da Revolução Industrial, permitiram as condições materiais necessárias para uma liberação da escolha conjugal, que não ameaçava mais o patrimônio familiar.
Shorter (1995) estuda o que chamou de um “surto de sentimento”, ocorrido desde o século XVIII, fazendo desaparecer a família tradicional. Este surto desenvolveu-se em três áreas: primeiramente no namoro, caracterizado pela busca de felicidade e desenvolvimento individual; depois na relação mãe-bebê, que passou a se caracterizar pelo bemestar do bebê acima de tudo; e por último na mudança da relação entre a família e a comunidade circundante, na qual os laços entre os membros da família reforçaram-se, caracterizando a “domesticidade”.
O namoro transformava-se, incorporando duas características: a substituição de um sistema de valores baseado na fidelidade, na cadeia de gerações e na responsabilidade perante a comunidade, por um sistema de valores baseado na felicidade pessoal e no autodesenvolvimento; e com a possibilidade de escolha, o controle pela comunidade dos encontros dos dois sexos cessa-se. Esta segunda característica está ligada ao desejo de ser livre, de desenvolver a própria personalidade e de realizar ambições pessoais. Desse modo, na forma do amor romântico, o sentimento tomou o poder. A espontaneidade permitiu a substituição dos roteiros tradicionais pelo diálogo, e a empatia iniciou a quebra da divisão sexual do trabalho, modificando os papéis desempenhados pelos sexos. O casal afastou-se da comunidade, buscando isolar-se dos “olhares curiosos” e investiu na “experimentação e inovação” dos “jogos do amor” (Shorter, 1995).
Só é possível entender a formação do que Shorter (1995) denomina “domesticidade”, isto é, a “malha de privacidade e intimidade que cerca a totalidade da família”, ao entendermos a nova relação surgida entre mãe e bebê. O autor retoma o estudo de Ariès quanto à indiferença das mães com seus bebês, concluindo que a família nuclear tomou forma em torno da relação mãe-bebê quando passou a ser predominante o amor maternal.
Com a difusão das relações igualitárias, a autoridade patriarcal reforçada pela comunidade tornou-se intolerável. O conceito de “domesticidade” como unidade emocional, constituída pela privacidade e isolamento da família, foi a terceira área na qual o surto de sentimento na modernidade manifestou-se: “Os membros da família passaram a sentir muito mais solidariedade uns com outros...” (Shorter, 1995, p. 244). Nas palavras de Sennett, a família deixou de ser vista como uma região “não-pública, e cada vez mais como um refúgio idealizado, um mundo exclusivo, com um valor moral mais elevado do que o domínio público” (Sennett, 1993, p. 35).
A família na modernidade, além de ser o lugar privilegiado para o domínio da intimidade, é também o agente ao qual a sociedade confia a tarefa da transmissão da cultura, consolidando-a na personalidade (Lasch, 1991). Para realizar sua tarefa a família conta com duas fontes de tensão: uma originada da nova relação com a infância, e a outra de uma transformação no papel da mulher. As crianças, que ocuparam um lugar central nessa família, são da responsabilidade dos pais, gerando sobrecarga para estes devido ao seu isolamento da comunidade. A mulher, ao mesmo tempo “degradada e exaltada” nesse novo sistema familiar (Donzelot, 1986), precisava ser “educada” para criar seus filhos, precisava ser companheira de seu marido e executar as tarefas domésticas. Ao domesticar a mulher provocou-se uma “desordem geral”. Surgiram aspirações ao crescimento pessoal, o feminismo. A estas aspirações a união conjugal e a família não podiam mais satisfazer, gerando uma crise do casamento no final do século XIX. Estas tensões no interior da família levaram-na à busca dos especialistas, que consideravam os pais inaptos e necessitados de suas informações. Os atos mais íntimos passaram a ter uma publicidade sem precedentes (Lasch, 1991).
Pode-se estabelecer uma relação entre a vida familiar, baseada na intimidade, e a noção de democracia. Hoje, pela crescente democratização das relações, a intimidade é definida pela via do “relacionamento puro”, isto é, nada externo seja a comunidade ou patrimônio familiar, dentre outras possibilidades pode determinar o início ou continuidade de um relacionamento (Giddens, 1993). O amor, vinculado ao direito de escolha, permitiu a contaminação da família pelos valores democráticos. A diversidade estendeu-se ao casal, aos pais e filhos, aos parentes e amigos, gerando uma multiplicação de novas relações. Nessa nova configuração, as relações familiares baseiam-se na intimidade, na comunicação livre e aberta, pautando-se no diálogo e na democracia. Desse modo, novos caminhos são indicados, caracterizando o que pode ser chamado de pós-modernidade.
Há um paradoxo na construção moderna da família nuclear: é uma imposição modelar, mas não pode mais ser controlada, já que se advoga o direito à livre escolha. A esse paradoxo segue-se outro: a liberdade é regulada pelo saber médico-psicológico, prescrevendo as normas do comportamento de todos os membros da família. Na convivência dessas duas alternativas, aparentemente opostas a do controle pelo saber especializado e a da liberdade de escolhas , constrói-se a possibilidade de não se seguir a um modelo único, tal qual o da família conjugal. Surge a imprevisibilidade; surgem inúmeras configurações familiares, ou pelo menos elas têm a liberdade de se tornarem mais visíveis do que antes. Supondo uma caracterização para este momento, considerado o da pósmodernidade, a família tende a ser pautada na idéia da diversidade e da ausência de um parâmetro norteador único. Ainda há, entretanto, uma idéia de família determinada por valores, os quais pautam as relações, como: o sentimento de amor, a realização pessoal na convivência com o outro significativo, e por conseqüência a formação da identidade humana por meio da filiação e da transmissão intergeracional. Embora o modelo nuclear tenha sido questionado, a família não foi substituída por nenhum outro grupo ou instituição social. Enquanto isso, paralelamente instaura-se a exacerbação do individualismo, o que leva à flutuação das identidades pessoais e das relações familiares.
Modelos de família e intervenção terapêutica: relato dosterapeutas de família
Os relatos apresentados compõem uma parte da pesquisa empreendida sobre a história da terapia de família no Rio de Janeiro (Ponciano, 1999). Entrevistamos oito terapeutas pioneiros, com as seguintes características quanto ao aspecto da formação profissional e do gênero: T.1 Psicologia (1976), Mestre em Psicologia, formação em Terapia de Família em 1987, sexo feminino; T.2 Medicina Especialização em Psiquiatria (Início dos anos 70), Psicanalista, formação em Terapia de Família realizada em grupo de estudos no início dos anos 80, sexo masculino; T.3 Psicologia (1976), Psicanalista, formação em Terapia de Família em 1985, sexo feminino; T.4 Psicologia (1971), Psicanalista, formação em Terapia de Família “ao longo do caminho (no exterior)” com início nos anos 70, sexo feminino; T.5 Psicologia (1975), Mestre em Comunicação Social (1999), formação em Terapia de Família em 1978, sexo feminino; T.6 Psicologia (1972), Psicodramatista, Especialista em Psicologia Social, formação em Terapia de Família no início dos anos 80, sexo feminino; T.7 Psicologia (1978), Doutora em Psicologia Clínica (1995), Psicanalista, formação em Terapia de Família no final dos anos 70, sexo feminino; T.8 Medicina Especialização em Psiquiatria (1974), Psicanalista e Psicodramatista, formação em Terapia de Família com Andolfi, Minuchin, Whitaker, Haley no final dos anos 70, sexo masculino.
A terapia de família chegou ao Brasil nos anos 70. Foi, porém, no final dos anos 50 que ela começou a tomar forma nos Estados Unidos, orientando-se principalmente pela Teoria dos Sistemas. Nesse momento foi forte a presença do modelo de família nuclear, tendo o casal, com uma maior centralidade do que na sociedade tradicional, a função de constituir um núcleo em torno dos filhos. Esse modelo, característico da modernidade, tem sido questionado em sua forma nuclear, preservando-se algumas características, como a intimidade e a privacidade. Nesse sentido, para a terapia de família foi necessário, ao longo de sua história, posicionar-se de modos diferentes em relação à configuração familiar, constituindo o contexto da intervenção terapêutica em estreita relação com as transformações histórico-sociais. Uma das principais fontes de questionamento e transformação, tanto para a família quanto para a terapia de família, foi o movimento feminista, a partir dos anos 70 (Goodrich, 1990; Perelberg, 1994; Rampage e Avis, 1998).
Começamos com duas das falas dos entrevistados, terapeutas de família cariocas, que se vinculam à tradição da terapia de família, privilegiando a família nuclear fundada no biológico, na união heterossexual e na procriação. Para esses terapeutas, pode-se entender o que se convencionou chamar família a partir de um sentido único, compreendendo que “novas formas” devam receber novas denominações, diferenciando-as da família conjugal.
“Só acontece família com filho. A estruturação da família para mim necessita ter duas gerações. (...) Então, para mim, a formação básica da família é: três pessoas, necessariamente duas gerações diferentes” (T.2).
“Junção de um homem e uma mulher. Não vou entrar nas novas organizações familiares.É junção de um homem e de uma mulher e o nascimento de um primeiro filho. União deum homem e uma mulher e o nascimento do primeiro filho. É isso. Nascimento ou adoção do primeiro filho” (T.8).
Salvador Minuchin, psiquiatra, terapeuta de família da Escola Estrutural, compreende a família pela forma predominantemente nuclear, fundamentado no biológico, coadunando-se com a posição dos terapeutas acima referidos. Minuchin é insistente quanto a importância do terapeuta possuir uma definição teórica de família que permita um nexo com a idéia de intervenção terapêutica, demonstrando assim a forte ligação entre ambos. Resumimos as idéias de Minuchin, que configuram a relação familiar a partir da relação conjugal: o casal, ao se constituir, precisa separar-se de suas relações anteriores, principalmente com os respectivos pais, isto é, “o investimento no casamento é feito a expensas de outras relações”; o casamento é um primeiro momento em que os participantes irão confirmar ou não suas novas identidades; “um contexto poderoso para confirmação e desqualificação”; “refúgio para as tensões de fora” (Minuchin, 1990b, p. 27). Pelo descrito, percebe-se a necessidade de a constituição familiar, iniciada pelo casal, separar-se como um núcleo isolado e diferenciado.
A terapia de família, por conseqüência, visa a separar as fronteiras com o exterior, nos casos em que o casal tenha essa dificuldade específica. Com a chegada dos filhos, o casal adquire uma nova função: a parental, que caracteriza a família como “uma instituição para educar as crianças”, sendo a vida familiar dependente “de um sólido vínculode casal” (Minuchin, 1995a, p. 202). É nesse momento que surgem mais especificamente as tarefas ligadas à socialização; a família exerce seu lugar de “matriz da identidade”, possibilitando a seus membros a experiência de pertinência a um grupo, assim como a experiência de sua separação, de sua autonomia. Entre pais e filhos, como entre o casal e o mundo exterior, é preciso que existam fronteiras bem definidas e reguladas por regras que determinam quem e como se participadas relações familiares. É indubitavelmente uma definição da família conjugal, constituída na modernidade.
Mais um dos entrevistados faz eco a essas formulações, concordando que família é necessária como grupo social, com a função de cuidar de um ser dependente biológica e psicologicamente. As mudanças impostas pelas novas tecnologias de reprodução refletem na família, possibilitando novas transformações, mas sua participação social como um grupo que cuida de um ser dependente permanece e permanecerá. Outras formas de cuidado poderão surgir, ainda que os papéis familiares não continuem os mesmos. Mantém-se assim a idéia de proteção fornecida por esse grupo formador das identidades pessoais, seja ele biológico ou não. O processo da construção da personalidade permanece localizado no interior da família e da convivência íntima, apesar das transformações sociais.
“... a gente necessita do relacional pra saber até quem eu sou. No meu referencial a família é necessária, importante para as organizações sociais. Não acho que é uma coisa falida, eu acho que ela está mudando as suas formas de constituição. Necessária e importante porque nós nascemos e a gente vem de um pareamento, se a gente pensar também em termos biológicos, um pareamento que nos faz ser um serzinho humano que é totalmente dependente, e ele precisa de um grupo para dar consistência a esse ser dependente, para ele vir a se desenvolver e poder ser um indivíduo. Então, a existência do grupo constituído para dar continente pra que esse ser venha a se desenvolver nunca vai deixar de existir, sempre existiu e sempre vai existir. (...) Então quando a gente pensa agora nessa reprodução assistida, bebê de proveta, clone, vão existir, talvez, novas estruturas de grupo. (...) o ser humano precisa de um grupo para provar a existência dele, dar identidade àquela existência. (...) Então, o núcleo que eu chamo de familiar é um grupo de pessoas que vai receber esse elemento, e na hora que recebe esse elemento cada um define um papel, um que vai cuidar dessa forma, um que vai cuidar daquela forma. (...) Talvez no futuro não seja pai, mãe e filho, possam ser outras coisas. O ser humano precisa dessa estrutura... ela vai mudar, mas nunca vai sair de foco” (T.6).
Na Abordagem Estrutural visualizamos a ênfase na família nuclear, caracterizando uma concepção moderna. Minuchin corrobora a afirmação de que a família é a melhor maneira para criar indivíduos autônomos, gerando estabilidade interior, diante da constante mutação do mundo exterior à família. Ela é, portanto, o meio mais eficaz de manutenção da sociedade enquanto protege contra o mundo exterior. Para Minuchin (1990b), a família nuclear pode estar correndo riscos devido à sobrecarga de suas funções. Outro dos entrevistados apresenta como entende a família, ressaltando esse aspecto nuclear e de proteção:
“...as pessoas estão dentro dessa cultura... que eu não sei se vai acabar... elas se agregam.É que precisam de um pacto de solidariedade, cumplicidade, um oásis, do anonimato do mundo, digamos, fora. Então eu acho que as pessoas vão se vinculando e escolhendo os seus parceiros por essa jornada. Por essa caminhada ao longo da vida. Eu acho que aí é importante ter esse núcleo para ir gerando uma outra geração e acompanhar essa outra geração...” (T.4).
A “família ampla”, por sua vez, é uma forma bem adaptada a situações de estresse e carência, na qual as funções são compartilhadas envolvendo membros da família extensa. Essa forma de funcionar é entendida por Minuchin como uma resposta às situações de pobreza, podendo ou não caracterizar estruturas familiares patogênicas com fronteiras não definidas. Minuchin é conhecido por seu trabalho com famílias carentes, às quais se atribui uma configuração extensa em oposição ao modelo nuclear, vinculado ao aburguesamento e à industrialização das grandes cidades. Entretanto, mesmo considerando tipos diferenciados de família, sua intervenção sempre privilegia uma constituição familiar que defina suas fronteiras ao constituir-se em separado. Afirma o autor:
Prefiro trabalhar com a família nuclear, algumas vezes modificando a composição do grupo (diferentes subsistemas: casal, pai e filho, irmãos etc). (...) Em algumas famílias (porém), o trabalho com membros significativos da família ampla é importante (Minuchin, 1990a, p. 139).
Em outro texto, ao abordar o trabalho com famílias amplas, Minuchin relativiza a afirmação anterior, sugerindo ao terapeuta uma maior flexibilidade para não separar completamente uma avó e seu neto, quando a avó cumpre funções parentais. Pode-se observar a diferenciação das funções sem correr o risco de uma separação mais prejudicial que terapêutica, e sem transformar essa família necessariamente no reflexo do modelo nuclear: “a influência da família extensa nas funções da família nuclear nunca deverá ser subestimada” (1990b, p. 61). A mesma ênfase quanto à delimitação das fronteiras encontra-se na situação de famílias que se constituem por meio de um segundo casamento, um recasamento. Dessa vez, porém, as fronteiras referem-se às relações entre pais e filhos.
Os estudos sobre famílias por recasamento mostram a importância crítica de se reforçar os vínculos entre os parceiros recasados, e não deixar que as clamorosas necessidades dos filhos destruam a intimidade do novo casamento. Cada novo casal precisa ter um tempo para namorar sozinho (tempo para as crianças serem crianças e para os casais ficarem sozinhos) (Minuchin, 1995a, p. 203).
Outro de nossos entrevistados também vê a família como uma união heterossexual visando à procriação, mas levanta a questão trazida pelas “novas formas” que não se enquadram nessa visão.
“A família sempre se forma com a união de duas pessoas, sendo essa união oficializada ou não. (...) Tradicionalmente essa união se deu entre diferentes sexos, mas atualmente existem certas uniões que estão se dando até entre homossexuais que adotam filhos, e que dessa forma estariam concebendo núcleos familiares... chamados atualmente de novas famílias” (T.7).
Durante os anos 60 e 70, quando várias escolas já tinham se consolidado, e uma nova revolução sexual realizava-se na sociedade, as situações de recasamento e de casais homossexuais tornaram-se visíveis, a partir dos debates advindos do movimento feminista. Uma nova interpretação quanto à ligação entre os membros da família e o sistema social mais amplo foi oferecida pela Terapia de Família Feminista, que questionando a família nuclear, centrada no casal heterossexual e na criação de filhos, aponta para outras formas: famílias monoparentais, famílias compostas por homossexuais e seus filhos etc (Perelberg, 1994; Goodrich et al, 1990).
A maior parte das outras formas de composição familiar ou era encarada como patológica ou era simplesmente invisível para eles (terapeutas americanos, homens brancos de classe média) (Rampage e Avis, 1998, p. 190).
Assegurando a experiência da diversidade, as feministas ressaltam algumas características surgidas do modelo moderno de família nuclear, como a liberdade de escolha e a intimidade. O estabelecimento de um modelo fixo deve ser superado, democratizando ainda mais as relações familiares. Os pais devem ter autoridade sobre seus filhos, e ao mesmo tempo respeitar a igualdade entre os sexos. As relações familiares devem ser fundamentadas tanto na igualdade quanto no respeito às diferenças. Orientando o trabalho terapêutico e caracterizando ainda a idéia de um modelo a seguir, as feministas mantêm uma definição do que seria uma família saudável.
A partir de uma perspectiva feminista, a família saudável é aquela em que seus membros se encontram comprometidos com o estímulo do potencial de todos, com a evitação de todo tipo de exploração interpessoal, e com o recíproco oferecimento de apoio, cuidados, assistência e afeição (Rampage e Avis, 1998, p. 203).
O exemplo seguinte indica como variadas posições podem estar presentes em um mesmo terapeuta, demonstrando a dificuldade, própria do relativismo pós-moderno, de se buscar uma definição exclusiva de família. Despontam, por conseqüência, posições paradoxais: ao lado de variadas possibilidades de formas relacionais permanece uma configuração de família definida pelo surgimento de um filho.
“Família é o sistema que está na minha frente(...). É o sistema de relações que está acontecendo diante do terapeuta (...), mas acho que existem outras maneiras de ver, diferentes formas de relação ocorrem (...) família só existe quando tem filho. (...) Não necessariamente são os genitores que estão com a criança, podem ser pais adotivos, podem ser outras formas, recasamento... há uma enormidade de relações familiares” (T.1).
Maurizio Andolfi é conhecido por juntar diferentes referências: a Teoria Estrutural, com sua ênfase no presente, e a Teoria dos Sistemas Familiares de Bowen, voltada para o passado e para a família de origem, definindo a família como um campo emocional que abarca três gerações (Andolfi, 1980; 1989a; 1989b; 1996; 1998). Essa conjugação pode ser observada no relato que se segue, e em uma citação de Andolfi. A família, mesmo quando desconhecida, é um fator determinante, tanto no nível biológico quanto no simbólico, para a formação do indivíduo, gerando questões a respeito da pertinência ao grupo e da autonomia individual. Esta é uma visão diferenciada da família nuclear moderna, propondo uma saída e acentuando a importância da família de origem, porquanto sua influência se faz sentir até na ausência. Não se diluindo completamente, as relações nucleares são permeadas pelas histórias de gerações anteriores.
“É... o indivíduo entra para uma família quando nasce e só sai dela quando morre. (...) Então, você faz o genograma da família, você vai encontrar traços de sua família de origem com certeza, mesmo que essa família renegue. (...) Mesmo com famílias adotivas é... onde eu também... quando eu faço o genograma, eu incluo o adotado, a família adotiva e a família biológica. (...) Mesmo o adotado que teve um contato com a família biológica de repente por dez minutos, aquela família tem uma influência ali. A família biológica tem uma influência na vida dessa criança adotada. Não estou dizendo que uma influência negativa nem de problema não. Mas uma influência que você faz um estudo, você encontra traços” (T.3).
Quando falamos de família não podemos nos limitar a pensarmos em termos de genitores e filhos, devemos sempre ter uma visão mais ampla que leve em consideração as gerações anteriores e as regras sociais próprias de cada época. De fato, a história das gerações que precederam o indivíduo é cheia de significados, mesmo quando não se atinge diretamente: é possível obter informações a partir das narrações dos próprios genitores, de seus hábitos de vida e de objetos que clarificam suas relações passadas; além disso, reexaminar a imagem de uma figura parental, mesmo que física ou emotivamente distante do núcleo familiar e torná-la viva dentro da dinâmica familiar, pode permitir uma releitura dos eventos (Andolfi, 1996, p. 56).
Para outro entrevistado a família é igualmente vista como formada por um padrão, tanto biológico quanto simbólico, construído em gerações anteriores. Acrescenta, porém, que esse modelo vem sendo questionado pelas novas tecnologias reprodutivas, ao permitir a geração de seres com histórias não convencionais, e que dificilmente poderão ser compreendidos por meio de visões anteriores.
“... eu acho que nós somos herdeiros da história dos nossos antepassados. É... então a gente carrega essa bagagem. Acho que a família se forma a partir das histórias que as famílias vão contando não importa por onde. Seja pelo silêncio, seja pelas narrativas. Porque nem todas as famílias contam. Aliás, a maioria das famílias não conta. Mas isso vem. Vem pelo corpo, vem pelo inconsciente... não importa qual inconsciente a gente nomeie. Mas eu acho que teoricamente eu diria que as famílias... as famílias são montadas a partir de um padrão geracional, da herança. (...) de repente dá um clic e de onde eu vim, de onde eu nasci. Eu acho que agora a gente já está num momento importante de bebê de proveta, de bebê de barriga de aluguel, onde a família está questionada em termos dessas premissas que eu estou trazendo” (T.5).
Na terapia de família hoje existe um movimento acompanhando a propagação do pós-modernismo e do pós-estruturalismo, que nega qualquer noção de estrutura interna à família (Lax, 1998). Dessa forma, alguns terapeutas de família formados na Teoria dos Sistemas, como Harlene Anderson, Harry Goolishian e Lynn Hoffman, passam a ter como referência a Hermenêutica, e a entender a terapia como uma conversação, um diálogo intersubjetivo (Anderson e Goolishian, 1988; 1998). Originados de diferentes movimentos, o Construtivismo (vinculado à Biologia) e o Construcionismo Social (oriundo da Psicologia Social) caracterizam uma mudança que necessita ser mais pesquisada entre nós devido à sua diferenciação de autores tradicionais como Minuchin e Andolfi.
Salvador Minuchin (1998), ao observar outros terapeutas de família, construtivistas e/ou construcionistas sociais em ação, pergunta-se onde estão as famílias nessas intervenções terapêuticas. No início, a importância de uma teoria sobre família era acompanhada de uma proposta de intervenção. A Escola Estrutural, com sua técnica de delimitar fronteiras, vincula-se a um modelo de família constituído por um casal e seus filhos, conforme o modelo nuclear. Caso não haja uma delimitação nítida entre as fronteiras, o terapeuta tem a tarefa de ajudar a família a separar seus subsistemas, para que cada indivíduo cumpra seu papel, de acordo com seu pertencimento ao grupo familiar.
Hoje pouco se escreve sobre uma noção de família ou sobre uma proposta que se pretenda minimamente generalista; escreve-se muito sobre as variedades das formas encontradas, caracterizando um relativismo exacerbado (Minuchin, 1991). Pouco se relaciona à construção da técnica uma idéia generalista de família; muito se propala a respeito de técnicas específicas, aplicadas às situações familiares específicas, de acordo com situações e tipos de problemas (Nichols e Scwartz, 1998). A crítica de Minuchin (1991) dirige-se ao abandono da sistematização de teorias, já que “constatou-se” não haver realidade “em si”. Ao se abrir mão da idéia de verdade, não há mais necessidade de produzir sistemas teóricos explicativos. Restam a experiência, a linguagem e a conversação entre o terapeuta e seus “clientes”. Sucede-se, desse modo, a transformação do saber especializado em experiência a ser compartilhada, tendo implicações quanto à construção do conhecimento e à prática clínica. A ênfase anteriormente estava no poder do terapeuta para gerar a mudança. Este poder sendo questionado é posto de lado, enquanto o poder da família ou do cliente para dirigir as mudanças que deseja passa a ser enfatizado.
Salvador Minuchin costuma fazer constantes relações entre a autoridade dos pais e a tarefa do terapeuta. Com o desvanecimento do modelo de autoridade tradicional, o patriarcal, ele é substituído por um modelo flexível e racional. Aumentam as dificuldades parentais no enfrentamento da “complexidade da educação infantil”. O reconhecimento dessa mudança ajuda a julgar imparcialmente os pais na execução de sua tarefa de ao mesmo tempo “proteger e guiar”, enquanto “controlam e reprimem”. Os filhos, por sua vez, devem crescer e tornar-se indivíduos autônomos, rejeitando e atacando os pais. O processo de socialização, portanto, torna-se conflitante. O terapeuta deve buscar apoiar todos os membros da família (1995b). Nesta perspectiva, ele é o responsável pelo sistema terapêutico; assume a liderança e é “fonte de apoio e cuidados” (1990a). A família convida o terapeuta (especialista)a ajudá-la a mudar. É possível que haja divergências entre terapeuta e família quanto aos objetivos da terapia, mas o terapeuta, ao atender um pedido de ajuda “mude-nos sem nos mudar” , ampliará as alternativas do sistema desafiando as regras estabelecidas. Desafia, assim, a família em seu modo de experimentar a realidade.
O autor enfatiza a família como a “matriz da cura e do crescimento de seus membros”. Se, no entanto, o terapeuta observar que a autonomia dos filhos está sendo tolhida, deverá ajudar a família a ter uma compreensão sobre as diferenças individuais, reconhecendo diversos estágios de desenvolvimento (1990a). Concluindo que o terapeuta de família é “um agente de mudança limitado”, Minuchin reconhece os perigos das imposições dos modelos do terapeuta. Faz parte de seu trabalho de especialista reconhecer suas imposições e limitações. Seu saber deve conformar-se aos “dramas familiares”, não buscando sua própria confirmação, e sim a autonomia do sistema familiar.
No primeiro relato, a seguir, o terapeuta intervém a partir de um modelo de família. Para que a terapia seja efetiva é preciso que a família se adapte a um modelo. No segundo, o terapeuta cumpre sua função dando lugar à família, tornando a terapia um espaço privado, de proteção e elaboração de conflitos. Em ambos encontramos a perspectiva da presença ativa do especialista, característica de uma imagem que os terapeutas de família têm sobre si, principalmente em seu início histórico, que corrobora a visão moderna da intervenção.
“Eu não posso mexer com uma terapia familiar... sem ajudá-los a criar situações, a fazer modificações às vezes práticas, reais, dentro das casas, para poder ter essa estruturação de família” (T.2).
“As famílias estão precisando de espaços onde elas estejam confortáveis, e a Terapia de Família é um desses espaços. A família perdeu um pouco de espaço na sociedade” (T.1).
As primeiras escolas marcam sua diferença a partir de uma intervenção ativa do terapeuta de família, criticando a suposta passividade do psicanalista. No exemplo seguinte encontramos as duas posições no mesmo entrevistado. A expressão do cliente e a ação do terapeuta ganham prioridades diferentes, dependendo da intervenção a ser realizada. Na primeira posição, a passividade é por vezes confundida com a idéia de neutralidade; supõe, de qualquer forma, um afastamento do terapeuta. Já na segunda, a atividade do terapeuta corresponde a sua presença, e em poder para levar a família à mudança desejada.
“Eu faço o seguinte, na psicanálise a situação é a pessoa que percebe os seus sentimentos, pensa e modifica. Na minha terapia familiar é exatamente o contrário. Eu introduzo uma modificação. Depois é que vai gerar um pensamento sobre essa modificação (na família)” (T.2).
A união da pessoa com o especialista é mais um dos temas recorrentes no campo da terapia de família. Podemos encontrá-la em Minuchin (1990b; 1995a), Andolfi (1996), Elkaïm (1990; 1998), entre outros. Cada encontro terapêutico cria momentos de participação con-junta. Nossos entrevistados contam essa história, levando-nos da noção de especialista à idéia de uma pessoa real consolidada com os anos de experiência. O terapeuta, com seus recursos pessoais, para além de suas técnicas, ajuda a família a encontrar seus próprios recursos rumo à autonomia na resolução de seus problemas.
“... eu diria que tem muito pouca diferença hoje em dia do que eu sou fora daqui, do que eu sou aqui dentro. Eu acho que, quando eu comecei, eu era talvez uma terapeuta mais engomadinha. Hoje em dia eu acho que estou muito confortável nesse lugar. Isso é uma conquista com a idade” (T.4).
“Os recursos que eu posso usar, os meus, como pessoa, para ajudar aquela família. E de que maneiras eu posso, principalmente, ajudar uma família a descobrir os recursos que ela tem, não os meus técnicos. Os meus técnicos são muito limitados. Terapeuta de família que usa sua técnica, ele tem... os seus instrumentos muito limitados. Ele tem que ajudar a família a desenvolver a sua técnica ou os seus recursos pra seguir... porque você não pode fazer milagre. Numa hora de sessão não consegue transformar as pessoas” (T.3).
A trajetória da noção de especialista é exemplificada na formação de um dos entrevistados: de interventor, especialista que traz a melhor saída para o problema com seu saber teórico-técnico, transforma-se naquele que busca com a família uma “narrativa mais útil”. O ápice da relativização do especialista é exemplificado com um segundo relato, em que a terapia é vista como uma “conversa”. De um observador objetivo passa-se a um participante de uma conversação que constrói novas histórias.
“Depois da psicanálise, a descoberta da terapia sistêmica, depois a leitura contextual, aí ficar namorando um pouco aquele fascínio daquela coisa estratégica que tinha um observador tão objetivo. (...) Hoje em dia eu sou muito mais cada um tem sua narrativa, constrói... Então o que vai ajudar o paciente é entrar na narrativa que não é útil pra ele e começar talvez a mexer com ela, e poder criar outra que seja mais útil pra necessidade dele naquele momento” (T.4).
“Mas, quando você consegue transformar a situação grave numa conversa chata, a terapia de família está acontecendo. Mais pra linha do construtivismo mesmo” (T.5).
Esses dois últimos relatos permitem-nos finalizar, referindo nova-mente ao movimento mais atual da terapia de família. Se antes era possível pensar em uma imagem do terapeuta como conhecedor e especialista, agora a viabilidade do conhecimento e, portanto, a possibilidade de vinculálo à oferta terapêutica encontram-se questionados. A experiência de Lynn Hoffman ajuda-nos a compreender o que vem ocorrendo no campo.
(...) a evolução de minha posição superou minha capacidade de traduzi-la para a prática. Eu continuava a “pensar Zen”, mas nem sempre sabia como “agir Zen”. Foi então que um colega da Noruega, Tom Andersen, surgiu com uma idéia fascinante, embora simples: a Equipe Reflexiva (Andersen, 1987). O recurso de pedir que a família assista à discussão da equipe sobre ela e que depois comente o que ouviu mudou tudo subitamente. O profissional não era mais uma espécie protegida, observando famílias patológicas por trás de uma tela ou falando sobre elas na privacidade de um escritório. A premissa da Ciência Social normal de que o especialista tinha uma posição superior a partir da qual poderia ser feita uma avaliação correta desmoronou. Para mim, pelo menos, o mundo da terapia foi alterado da noite para o dia (Hoffman, 1998a, p. 24).
Ao enfatizar o papel da linguagem, da conversação, da história e do self, o terapeuta ocupa uma posição de “não-saber”. O trabalho clínico deixa de estar baseado em narrativas teóricas preexistentes (Anderson e Goolishian, 1998). Anteriormente, as perguntas do terapeuta refletiam uma compreensão teórica do ser humano. Perguntando, o terapeuta ia gerando maior entendimento sobre a situação. Nessa nova postura, também conhecida como “postura narrativa”, as perguntas são geradas pelo “não-saber”, e o terapeuta deixa-se conduzir pelo conhecimento e experiência de seus clientes (Anderson e Goolishian, 1993). O sentido é gerado localmente e fundamenta-se no diálogo. O “poder” do terapeuta advém de sua responsabilidade nos limites do domínio relacional/social, construído em cada sistema terapêutico (Fruggeri, 1998; Gergen e Warhus, 1999). A posição do especialista vê-se assim transformada tanto quanto as relações familiares, não exigindo mais uma teoria específica para uma intervenção terapêutica específica.
Diversidade: algumas reflexões finais
No quadro atual, a terapia de família refuta a busca de uma estrutura universal, cedendo espaço à pluralidade de idéias. Desde o feminismo e o advento da pós-modernidade mudanças vêm ocorrendo, principalmente na crença quanto a encontrar uma causa para o sofrimento psíquico no interior das relações familiares. Hoffman (1998b) descreve seu próprio movimento inicial como a procura de uma chave adequada que a levava de um modelo a outro. No entanto, um ponto de referência estabelecido para a avaliação da família e intervenção terapêutica foi se tornando cada vez mais incerto. Ela afirma ter adquirido um estilo de “livre-flutuação”, e pergunta-se: poderá isto se chamar terapia?
Para Anderson e Goolishian (1998), o termo tratamento, que de-nota uma intervenção para a cura, não identifica mais sua prática terapêutica. A terapia é redefinida como a criação de um espaço de mútua conversação, que pode gerar novas realidades entre parceiros de um processo terapêutico. Baseada na prática desses autores, Lynn Hoffman (1998b) começa a refletir sobre a possibilidade de deixar de lado a própria noção de um modelo, preferindo olhar para fora de um enquadramento. Desse modo, a autora declara descobrir uma “tapeçaria luminosa” de práticas que se estendem para todos os lados. Já não há mais a necessidade da fixação de um modelo ou de uma resposta definitiva. Estabelece-se a diversidade como um valor fundamental.
A sociedade tradicional caracterizava-se pela ausência da necessidade de um especialista e pela presença inquestionável de uma ordem estabelecida. O poder de organização e controle era dado à comunidade e seus representantes. A sociedade moderna constrói-se com a intensa colaboração de diversos especialistas, que detendo o poder passam a ditar as regras do comportamento, levando a ordem a vigorar no plural. Os especialistas promovem novas ordens, livrando os indivíduos e as famílias do ditame da comunidade de pertença.
Atualmente, ao lado da flutuação das identidades pessoais (Gergen, 1992; Morin, 1996), ocorrem simultaneamente a flutuação das identidades familiares (Roudinesco, 2003) e a dos terapeutas de família. Trata-se, porém, de um processo que caracteriza a terapia de família desde seu início. Ackerman já assinalava para a diversidade quando, em 1971, afirmou que há tantas terapias de família quanto terapeutas: cada terapeuta contribui com sua trajetória e característica pessoal. A “tapeçaria da diversidade” vem sendo tecida desde o início da terapia de família, embora nem sempre seja assumida e/ou discutida na proporção devida. Por isso, gostaríamos de levantar ao menos duas questões para futuros debates. Como formar terapeutas de família, ressaltando suas características pessoais ao lado da ausência de um modelo unitário? Como lidar com a diversidade, diminuindo o risco de instaurar uma desordem mais prejudicial que benéfica? Pensamos que este debate pode ser iniciado com uma discussão sistemática a respeito de uma proposta de articulação entre diferentes teorias e práticas (Féres-Carneiro, 1994; 1996; Goutal, 1985; Lebow, 1997). E justamente porque as teorias são construções, devemos esperar que daí floresça a diversidade, e não a uniformidade. Conforme nos indica Falicov (1998): é possível apreciar similaridades enquanto honramos a diversidade; é possível aproximar os diferentes modelos em uma fértil região fronteiriça. Neste sentido, ressaltamos a necessidade de considerar as transformações da família, relacionando-as às transformações das identidades pessoais, que modificam as formas de intervenção terapêutica.
De acordo com o movimento pós-moderno, defende-se uma solidariedade a ser construída. O poder é repartido, levando todos, terapeutas e seus clientes, a navegarem no mesmo barco do fazer terapêutico, em busca de alcançar realidades alternativas (Anderson e Goolishian, 1988; 1998; Gergen, 1999; Mcnamee e Gergen, 1998). As perguntas, que antes se referenciavam a um saber específico, são vistas agora como desencadeadoras de novas narrativas. Mudou-se a perspectiva da intervenção terapêutica, mas a “intervenção” permanece como uma forma de desencadear transformações na vida daqueles que nos pedem ajuda. Portanto, considerando a diversidade e reconhecendo as particularidades de cada terapeuta, não podemos abandonar uma discussão que nos ajude a compreender a construção histórica da terapia de família, de suas teorias e de suas práticas (Ponciano e Féres-Carneiro, 2001). Um bom caminho para isso é olharmos para a nossa própria história, refletindo sobre ela e identificando continuidades/descontinuidades de nossas trajetórias, comparando-as com os autores que nos influenciam.
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Endereço para correspondência
Edna Lúcia Tinoco Ponciano
Praia do Flamengo, 16 / 301 Flamengo
22220-030 Rio de Janeiro RJ
Tel.: +55-21 2265-5021
E-mail: ponciano@uol.com.br
Recebido em 27/06/03
Aprovado em 03/11/03
1 Doutoranda do Programa de Psicologia Clínica (PUC-RJ).
2 Professora Titular do Departamento de Psicologia (PUC-RJ).