Sobre o trabalho em Psicologia no Brasil
Desde o início de suas práticas, a Psicologia se organizou de modo polivalente como profissão e campo de trabalho, em virtude da pluralidade de demandas sociais, construindo tarefas e instrumentos específicos em cada uma das áreas e ambientes na qual se desenvolve.
Dessa forma, observa-se que a Psicologia tem atribuições determinadas a alguns de seus campos de atuação em três principais documentos: (i) a lei de regulamentação da Profissão ‑ Lei 4.119/1962; (ii) as atribuições profissionais do Psicólogo no Brasil – Catálogo Brasileiro de Ocupações (Ministério do Trabalho e Emprego [MTE], 2010); e (iii) a resolução do Conselho Federal de Psicologia (CFP) sobre especialidades – que compila as informações das anteriores e também as revoga, para reorganizar o fluxo orientativo da profissão (Resolução n.º 03/2022). Destes documentos se observam dois escopos de atribuições: (a) Uma atribuição geral aponta que o profissional de Psicologia: procede ao estudo e análise dos processos intrapessoais e das relações interpessoais, possibilitando a compreensão do comportamento humano individual e grupal, no âmbito das instituições de várias naturezas; promove em seu trabalho, em diferentes âmbitos, o respeito à dignidade e integridade do ser humano; analisa a influência de fatores hereditários, ambientais e psicossociais sobre os sujeitos na sua dinâmica intrapsíquica e nas suas relações sociais, para orientar-se no psicodiagnóstico e atendimento psicológico; promove a saúde mental, atuando para favorecer um amplo desenvolvimento psicossocial; participa da elaboração, adaptação e construção de instrumentos e técnicas psicológicas por meio da pesquisa; e outras possibilidades nas práticas psicológicas; (b) As atribuições por áreas de atuação estão representadas na Tabela 1.
Tabela 1 Atribuições por especialidade/área de atuação em Psicologia no Brasil
Área | Atribuições |
---|---|
Clínica | Atua considerando a complexidade do humano e sua subjetividade. As intervenções podem ocorrer no nível individual, grupal, social ou institucional. Realiza pesquisa, diagnóstico psicológico, acompanhamento e intervenção psicológica, em situações de crise, problemas do desenvolvimento ou quadros psicopatológicos. |
Organizacional e do Trabalho | Atua nas relações de trabalho, visando compreender, intervir e desenvolver as relações e os processos intra e inter (pessoais e grupais), e articulações com as dimensões política, econômica, social e cultural, em atividades de análise da ação humana nas organizações, desenvolvimento de pessoas e equipes, consultoria, seleção e saúde do trabalhador. |
Escolar/ Educacional | Atua no âmbito da educação e colabora para a compreensão e para a mudança do comportamento de educadores e educandos, no processo de ensino aprendizagem, nas relações e processos inter e intrapessoais. Participa também da elaboração de planos e políticas educacionais para promover qualidade, valorização e democratização do ensino. |
Jurídica | Atua no âmbito da Justiça, no planejamento e execução de políticas de cidadania, direitos humanos e prevenção da violência, centrado na orientação do dado psicológico para possibilitar a avaliação das características de personalidade e fornecer subsídios ao processo judicial. Desenvolve estudos e pesquisa nos campos legislativo e criminal. |
Social | Atua com o objetivo de problematizar e propor ações no âmbito social, compreendendo o sujeito em uma perspectiva histórica, para compreensão da dimensão subjetiva dos fenômenos sociais e coletivos, com permanente integração entre indivíduo e social. Operar nessa área significa desenvolver um trabalho desde esta perspectiva de homem e sociedade. |
Trânsito | Atua com processos psicológicos, psicossociais e psicofísicos relacionados aos problemas de trânsito, analisa a estrutura dinâmica dos indivíduos e grupos nos aspectos afetivos, cognitivos e comportamentais para a elaboração e implantação de ações de tráfego. Realiza avaliações psicológicas para fins de obtenção/manutenção de CNH. |
Esporte | Atua na identificação de padrões de comportamento de participantes de atividades físicas. Compreende teorias e técnicas que podem ser aplicadas ao contexto do esporte e do exercício físico, tanto em nível individual como grupal, com práticas diagnósticas e/ou interventivas (perfil, cognição, padrões de comportamento para atividade física). |
Hospitalar | Atua em instituições de saúde, prestando serviços nos três níveis de atenção. Visa o aperfeiçoamento de profissionais da área ou a complementação da formação de outros profissionais de saúde. Avalia e acompanha demandas psíquicas de pacientes submetidos a procedimentos médicos, para promover e/ou a recuperar a saúde física e mental. |
Psicopedagogia | Atua com processos de aprendizagem para a compreensão da cognição, emoção e motivação do sujeito. Articula o significado dos conteúdos do processo de ensino e a inserção no mundo cultural e social concreto. Possibilita a redução de índices de fracasso escolar e busca resgatar o ato de aprender. |
Psicomotricidade | Atua nas áreas de Educação, Reeducação e Terapia Psicomotora, para o desenvolvimento, prevenção e reabilitação do ser humano. Planeja, elabora, programa, implementa, dirige, coordena, analisa, organiza, supervisiona e avalia atividades clínicas. Realiza parecer psicomotor e dá assistência e tratamento especializado na área. |
Neuropsicologia | Atua no diagnóstico, acompanhamento, tratamento e pesquisa da cognição, das emoções, da personalidade e do comportamento frente ao funcionamento cerebral. Utiliza instrumentos para avaliação dessas funções e estabelece parâmetros para emissão de laudos. Pesquisa modelos estabelecidos e cria hipóteses sobre interações cérebro-comportamentais. |
Saúde | Atua em equipes multi e interdisciplinares no campo da saúde, utilizando princípios, técnicas e conhecimentos da produção de subjetividade para a análise, planejamento e intervenção nos processos saúde-doença, em diferentes contextos da rede de atenção à saúde. Estabelece estratégias de intervenção com populações e grupos específicos, contribuindo para a melhoria das condições de vida dos indivíduos, famílias e coletividades. |
Avaliação Psicológica | Atua na avaliação de fenômenos psicológicos, compreende estudos a respeito de técnicas e procedimentos de avaliação, teoria da medida e psicometria, análise integrativa de planejamento, realização e redação de documentos resultantes da avaliação em diferentes contextos. Compreende a totalidade do processo avaliativo como resultado integrado de informações da realidade sócio-histórico-cultural de indivíduos, grupos e instituições. |
Em qualquer local ou atividade à qual se dedique, a profissão tem por objetivo de trabalho promover a autonomia e resgatar a plenitude da subjetividade do(s) indivíduo(s), desempenhando essas atividades individualmente e em equipes multiprofissionais, ou seja, em áreas nas quais as questões concernentes à profissão se façam presentes e sua atuação seja pertinente (Borges-Andrade, Bastos, Andery, Guzzo, & Trindade, 2015; MTE, 2010).
A determinação de tais termos permite, em um foco mais estrito, relacionar ações entre diferentes campos e locais da prática profissional em Psicologia, de modo que se possa delinear um caminho que possibilite a compreensão de quais fatores psicossociais no trabalho podem atuar como demandas de risco ou proteção à saúde de psicólogas/os no Brasil.
Fatores psicossociais no trabalho
Das diferentes abordagens teórico-metodológicas que implicam práticas muitas vezes próximas e outras diferenciadas, pode-se observar que o conteúdo e o contexto do trabalho são amplos pela natureza das atividades profissionais desenvolvidas na atual realidade do mundo do trabalho.
Devido a inúmeras mudanças significativas na forma e conteúdo do trabalho nas últimas décadas, novos riscos à saúde do trabalhador começaram a surgir. Entre estes riscos estão os psicossociais e, nos últimos anos, eles ganharam marcada relevância dado o aumento de processos patológicos ocorridos com os trabalhadores (Costa & Santos, 2013).
Soma-se ao exposto uma tendência mundial no aumento dos casos de afastamento decorrentes de problemas psicossociais. A Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta a depressão como a quinta maior questão de saúde pública do mundo – e como a doença mental mais recorrente nos trabalhadores. Some-se a isso evidências de pesquisas realizadas em países desenvolvidos e em desenvolvimento – de que mais de 25% das pessoas apresentam um ou mais transtornos mentais e comportamentais durante a vida (OMS, 2001).
Assim, os fatores psicossociais são questão ampla e de grande relevância nas últimas décadas. Falar sobre esse fenômeno implica uma revisão da evolução conceitual, que começa na Europa, após a Segunda Guerra Mundial, e as subsequentes e constantes mudanças no mundo do trabalho, como a crescente industrialização, que demandam a necessidade de se reconhecer a preocupação com a saúde dos trabalhadores, devido aos aspectos psicossociais presentes no trabalho. Tais aspectos são apresentados na literatura com diferentes denominações (ora como fatores psicossociais, ora como fatores de risco ou ainda como riscos ocupacionais), o que se constituiu como desafio e desvantagem para o estudo adequado desses temas (Gil-Monte, 2012; Jimenez, 2011). Apresentar a amplitude do construto e consolidar uma definição se fez fundamental para a presente pesquisa.
Para a Organização Internacional do Trabalho (ILO, 1986) os Fatores Psicossociais no Trabalho (FPT) são aqueles suscetíveis de influenciar a saúde, o rendimento e a satisfação no trabalho e que consistem em interações do ambiente de trabalho, do conteúdo, da natureza e das condições de trabalho, e as capacidades, necessidades, cultura e condições de vida do trabalhador fora do trabalho. Cox e Griffiths (1995) pontuam que os Riscos Psicossociais podem ser entendidos como aqueles aspectos do desenho e gestão do trabalho e dos contextos social e organizacional que têm potencial para causar danos físicos ou psicológicos.
Já para Ocaña e Rodríguez (2010) e Gollac e Bodier (2011), os Riscos Psicossociais se agrupam em função da ausência, escassez ou excesso de determinadas condições em termos do trabalho e das quais advêm consequências para a saúde do trabalhador e podem ser agrupados em seis aspectos: a intensidade do trabalho e o tempo de trabalho; as exigências emocionais; a falta/insuficiência de autonomia; a má qualidade das relações sociais no trabalho; os conflitos de valores; e a insegurança na situação de trabalho/emprego.
Em estudo europeu conduzido pela Agência Europeia para a Segurança e a Saúde no Trabalho (EU-OSHA) em 2014, esses riscos são vistos como aqueles aspectos do desenho, da organização e gestão do trabalho, e seu contexto social e ambiental, que têm o potencial para causar dano psicológico, social ou físico. Já em estudo latino-americano conduzido por Ansoleaga, Vézina, e Montaño (2014) no Chile, os Fatores Psicossociais no Trabalho são descritos como um aumento da carga psíquica e mental no trabalho que, se sustentado ao longo do tempo, provocará efeitos na saúde mental.
A composição do contexto sobre os FPT faz com que o estudo em tela também considere insumos advindos da: (i) Psicologia da Saúde Ocupacional (PSO) – que está relacionada à saúde do trabalhador na busca por melhorias na qualidade de vida no trabalho, proteção e promoção de um ambiente organizacional saudável e mitigação dos FPT frente a contextos de trabalho cada vez mais complexos, por meio de promoção, diagnóstico e intervenção (Guimarães et al., 2018; Liu, Mo, Song, & Wang, 2016); e, (ii) Psicossociologia do Trabalho (PST) – que pensa em possibilidades de transformação das situações de trabalho com vistas a promover saúde, segurança e bem-estar, e ampliar a consciência do trabalhador sobre o mundo do trabalho que vivencia (Cunha, 2014; Hamraoui, 2014).
Assim, o conceito a ser adotado no presente estudo será o de Fatores Psicossociais no Trabalho [FPT] como o conjunto de percepções e experiências do trabalhador resultantes da interação entre indivíduo, condições de vida e condições de trabalho – e que trazem risco ou proteção à saúde dos trabalhadores – impactam no desempenho, na satisfação no trabalho e na saúde do trabalhador, e se devem às mudanças e à evolução contínua da natureza e organização do trabalho.
Diante desse quadro e da falta de estudos sobre a relação da saúde de psicólogas e psicólogos, a partir de suas relações de e com o trabalho, esta pesquisa teve por objetivos: (i) verificar os principais Fatores Psicossociais no Trabalho presentes nas práticas profissionais em Psicologia no Brasil, de forma geral e nas diferentes áreas de atuação; (ii) correlacionar FPT e dados sociodemográficos da amostra; (iii) para assim, possibilitar a compreensão de demandas de risco ou proteção à saúde de psicólogas/os no Brasil, e poder contribuir para questões de saúde e qualidade de vida, a partir do ambiente de trabalho.
Método
A pesquisa foi aprovada por Comitê de Ética em Pesquisa e realizada com psicólogas e psicólogos brasileiros inscritos em todos os Conselhos Regionais de Psicologia (CRPs) do país, por meio de protocolo on-line, construído na plataforma SurveyMonkey, disponibilizado de 1º de março a 31 de maio de 2020.
Tratou-se de um estudo exploratório-descritivo, de corte transversal, que objetivou avaliar os Fatores Psicossociais no Trabalho de profissionais de Psicologia no Brasil, os quais, no início da aplicação da pesquisa totalizavam 366,7 mil profissionais inscritos no Sistema Conselhos (CFP, 2020).
Foram realizados os convites para participação a uma base de endereços eletrônicos válidos (N = 103.053), de forma probabilística, por meio de amostragem estratificada proporcional (pela quantidade de inscritos por CRP, respectiva proporção na base total de profissionais do país, utilizando nível de confiança de 95% e erro amostral de 2%).
Após recebimentos das respostas e realizados os procedimentos de limpeza do banco de dados, desconsiderando missing values que pudessem afetar a aferição do resultado, foi constituída a amostra de protocolos válidos (n = 1.659), que passou pelas demais fases de análises de dados.
Os resultados foram coletados pela plataforma SurveyMonkey e depois analisados por meio dos sistemas R (v.3.5) e R-Studio, que são softwares livres para análise estatística, cujos testes têm como critério de significância um percentual de 95%. Foram realizadas análises descritivas (média, desvio padrão e frequência relativa) e inferenciais (comparação de médias e correlações) para consecução dos objetivos do presente estudo.
Por fim, os instrumentos utilizados foram:
(i) Questionário Sociodemográfico e Ocupacional (QSDO), construído para esse estudo e fundamentado em estudos do Conselho Federal de Psicologia (1988), 2004) e Bastos e Gondim (2010), e que abordou questões sobre – sexo, idade, estado civil, cor da pele/etnia (autodeclarada), maior escolaridade completa, renda, atuação profissional em Psicologia, se exerce outras atividades profissionais além da Psicologia, tempo de atuação em Psicologia, carga horária semanal de trabalho, área/s de atuação prioritária em Psicologia, tipo de instituição em que trabalha, tipo de vínculo trabalhista, se está subordinada a algum tipo de gestor;
(ii) o Copenhagen Psychosocial Questionnaire II (COPSOQ II), em sua versão curta, que inclui somente as dimensões psicossociais com evidência epidemiológica relacionada à saúde, para mensuração de indicadores de exposição psicossocial e do seu efeito, por meio de questões voltadas para as práticas do ambiente de trabalho. Tem sete dimensões e 23 subescalas com consistência interna adequada para utilização em estudos científicos (Pejtersen et al., 2010; Rosário et al., 2017).
Este instrumento possibilita, a partir de uma proposta multiteórica, atender ao diagnóstico, avaliação e documentação dos FPT, e fornece informações sobre iniciativas para promover a saúde, segurança e bem-estar, com base em evidências no local de trabalho e dados coletados com a participação direta dos trabalhadores, e pode ser utilizado em qualquer tipo de trabalho/ocupação (Massuda, 2019; Silva et al., 2011; Vazquez, Pianezolla, & Hutz, 2018).
Faz-se importante ressaltar, também, que para a utilização do COPSOQ II (versão curta) no Brasil – e na presente pesquisa – foi seguido um modelo de adaptação transcultural (Hambleton & Zenisky, 2010; Oliveira et al., 2019), que garantiu a robustez do instrumento. No entanto, a descrição da adaptação e a subsequente validação psicométrica da escala, não constam do escopo deste artigo e serão apresentadas em manuscritos futuros.
Quanto aos resultados quantitativos obtidos a partir do COPSOQ II, as 23 subescalas que compõem o instrumento em sua versão curta foram analisadas pelo recorte tripartido (em tercis). Utilizou-se o padrão de 2,33 para o corte de baixo e 3,66 para o corte de alto. Assim, valores médios abaixo de 2,33 são considerados críticos (risco à saúde) e valores médios acima de 3,66 são considerados satisfatórios (ausência de risco/fator protetivo).
Resultados e discussão
Dos 1.659 profissionais de Psicologia participantes, as características sociodemográficas prevalentes e significativas (p ≤ 0,05 – teste de uma proporção) foram: 83,7% mulheres; 41,9 anos de média de idade; tempo médio de atuação/formação em 14,1 anos; 49,8% casados; 73,8% brancos; 55,7% com especialização completa; carga horária semanal média de 32 horas de trabalho; Psicologia como atividade profissional principal (84,8%); Psicologia como única atividade profissional (65,9%); principais áreas de atuação são: Clínica (45%), Políticas Públicas (Social, Saúde e Trânsito – 24%), Organizacional e do Trabalho (10%) e Escolar (6%); tipos de vínculo de trabalho predominantes são: autônomos (40,58%), estatutários (24,75%) e CLT (23,84%) e 59,6% atuam sob a subordinação de algum tipo de gestor.
Já para o COPSOQ II, em nenhuma das 23 subescalas houve valor médio inferior ao recorte do menor tercil (2,33). Existem 13 subescalas que apresentaram valor intermediário (menor do que 3,66), sendo o menor valor observado na E1 (exigências quantitativas) média de 2,7 com desvio-padrão de 1,1.
Os resultados da escala por análise do tercil podem ser comparados com o resultado geral do COPSOQ II para a amostra pesquisada, por meio da avaliação do diagrama de semáforo (escala tricolor) apresentada na Figura 1. A representação visual da figura apresenta os percentuais em cada partição e a distribuição, por escala, entre os diferentes níveis de risco: grave (preto), moderado (branco) e ausente (cinza).
Assim, destacam-se valores intermediários (risco moderado – entre 2,8 e 3,6 pontos, respectivamente) para Estresse; Conflito Trabalho-Família; Burnout; Qualidade da Liderança; Autoavaliação de saúde geral; Ritmo de Trabalho; Previsibilidade; Justiça e Respeito; Exigências Emocionais; Influência no Trabalho; Apoio social de superiores; e Recompensas/Reconhecimento.
Sobre os resultados observados na Figura 1, observa-se que as subescalas variam entre os níveis moderado e o de ausência de risco, com algumas altamente favoráveis, tendo percentuais superiores a 80%: possibilidades de desenvolvimento, significado do trabalho, assédio sexual, ameaças de violência, violência física e bullying.
Para a escala de exigências quantitativas, há uma maior ocorrência do nível moderado com 77% somado o valor de risco à saúde, superior a 20% (20,6%). Também se destacam como dimensões com valores de risco à saúde, superiores a 20%: Previsibilidade (23,4%), Ritmo de trabalho (23,7%) e Qualidade da liderança (25%). Ainda há de se ressaltar que três escalas apresentam valores de risco iguais ou superiores a 30%: Burnout (30%), Estresse (30,2%) e, o pior resultado do conjunto, Conflito Trabalho/Família com 35,3% de risco.
As possibilidades de desenvolvimento e o significado do trabalho podem ser vistos como preditores positivos, por se expressarem na multiplicidade de práticas e caminhos que o profissional pode seguir, e que permitem o uso da criatividade e geração de novas competências no exercício profissional, para a autopercepção de importância da própria práxis (Abbad & Mourão, 2010; Castelar & Daltro, 2015).
Isto corrobora as definições do CBO (MTE, 2010), que apontam para a atuação generalista em Psicologia descrita com componentes de: (a) compreensão do comportamento humano individual e de grupo, no âmbito das instituições de várias naturezas; (b) promoção do respeito à dignidade e integridade do ser humano; (c) análise da influência de fatores psicossociais sobre os sujeitos, para orientar-se no psicodiagnóstico e atendimento psicológico; (d) promoção da saúde mental, atuando para favorecer um amplo desenvolvimento psicossocial; (e) elaboração, adaptação e construção de instrumentos e técnicas psicológicas.
No entanto, essa multiplicidade também pode ser vista como risco pela falta de previsibilidade das demandas de trabalho, bem como pela exigência quantitativa que o preparo para atuação pode trazer. O atendimento constante a demandas emocionais de outrem caracteriza um trabalho emocional, que pode levar à exaustão e à baixa realização profissional, caracterizando Estresse, Burnout e, possivelmente, o conflito trabalho/família (Moraes & Cavalcante, 2009; Patterson-Hyatt, 2016).
Quanto ao conflito trabalho/família, foi possível observar, com outros grupos ocupacionais, que quando se configura como um fator de risco tende a reduzir a satisfação com a vida, a satisfação conjugal e o bem-estar psicológico, aumentando problemas de saúde mental, como depressão e Burnout (já relatadas como fatores de risco para a amostra estudada). A demanda de preparo profissional, o contato constante com questões emocionais e o sigilo profissional, podem interferir na forma como profissionais de Psicologia organizam as relações entre as demandas de trabalho e as relações familiares (Braunstein-Bercovitz, 2013; Jiménez Figueroa, Bravo Castillo, & Toledo Andaur, 2020).
Assim foram vistos, também comparando aos resultados gerais do COPSOQ II, conforme proposto nos estudos de Fischer (2012) e Guimarães (2015), exemplos comuns de fatores de risco no trabalho, como a insegurança laboral, as crescentes exigências emocionais, o conflito entre as exigências do trabalho e da vida privada, e a carga de trabalho. E em contrapartida, como fatores de proteção foram observadas as relações sociais cordiais e produtivas, a vivência do significado pleno do trabalho e ambientes saudáveis de trabalho.
Como o modelo de FPT prevê características tanto do trabalho quanto do trabalhador em constante movimento para que se alcance a saúde, ao se observar a análise do corpus das principais atribuições da Psicologia descritas na Tabela 1 se evidencia a congruência de fatores incluídos nas atribuições das diferentes áreas de atuação em Psicologia, por meio dos termos: (i) avaliação, (ii) social, (iii) saúde, (iv) intervenção, (v) desenvolvimento, (vi) processos, (vii) psicológica e (viii) diagnóstico. Assim, observam-se as características sob as quais a Psicologia, em linhas gerais, estabelece bases para sua práxis.
Intervir em fatores como a imprevisibilidade, as crescentes demandas emocionais e o conflito trabalho/família consolidam a visão da PSO e da PST sobre a importância do diagnóstico dos FPT, pois assume o pressuposto da centralidade e do papel estruturante do trabalho na vida das pessoas, e aponta a necessidade de se buscar formas de reduzir os riscos ou danos à vida humana no trabalho (Enríquez, 2014; Guimarães et al., 2018).
Quanto às correlações entre os instrumentos da pesquisa (QSDO e COPSOQ II) foram apresentados resultados com diferenças estatisticamente significativas (p-valor < 0,05), para alguns dos testes realizados. A primeira correlação ocorreu entre seis subescalas e o sexo dos participantes (F para Feminino, M para Masculino), conforme resultados apresentados na Tabela 2.
Tabela 2 Valor médio das subescalas do COPSOQ II de acordo com o sexo
Subescalas | F | M | MÉD | DP | p-valor |
---|---|---|---|---|---|
Ritmo de trabalho | 3,2 | 2,9 | 3,2 | 1,2 | <0,0001* |
Possibilidades de desenvolvimento | 4,4 | 4,3 | 4,4 | 0,7 | 0,007* |
Significado do trabalho | 4,6 | 4,4 | 4,6 | 0,7 | <0,0001* |
Compromisso com o local de trabalho | 4,0 | 3,8 | 4,0 | 1,0 | 0,005* |
Burnout | 2,9 | 2,7 | 2,9 | 1,1 | <0,0001* |
Estresse | 2,9 | 2,7 | 2,8 | 1,1 | 0,017* |
Nota: F = participantes do sexo feminino; M = participantes do sexo masculino.
*p < 0,05
Nas categorias em que as diferenças foram estatisticamente significativas, após análise de variância (ANOVA), o valor médio para o sexo feminino se apresenta maior do que para o sexo masculino, nas seis escalas a seguir: (i) Ritmo de trabalho; (ii) Possibilidades de desenvolvimento; (iii) Significado do trabalho; (iv) Compromisso face ao local de trabalho; (v) Stress; e (vi) Burnout.
Da associação geral entre FPT, Burnout e trabalho em Psicologia, Spiendler Rodriguez e Carlotto (2017) apontam a sobrecarga laboral como maior preditor explicativo de Burnout em psicólogas/os. Do trabalho emocional, quanto maior o esforço para controlar as emoções no trabalho, menor o entusiasmo pelo trabalho.
Para as diferenças entre os sexos se observam dois aspectos importantes: (i) relação direta com as exigências, organização e conteúdo do trabalho, nas quais mulheres se apresentam mais comprometidas, envolvidas e dedicadas ao trabalho que homens (Tanrikulu, 2017; Weymer, Schuber, & Eskenazi, 2018); e (ii) na saúde mental relacionada ao trabalho, mulheres se mostram mais suscetíveis que homens (numa razão 2:1) para transtornos mentais comuns (não-psicóticos), e homens são mais suscetíveis a transtornos mentais graves (psicóticos). Resultados mais destacados em Estresse e Burnout, para mulheres, se devem à maior disponibilidade ao autocuidado, à menor estigmatização para buscar ajuda, além de maior comprometimento com o trabalho (Amato, Pavin, Martins, Ronzani, & Batista, 2010; American Psychiatric Association, 2014; OMS, 1993; Spiendler Rodriguez, Carlotto, & Barcinski, 2015).
Também houve correlação com a variável “desenvolve outra atividade além da Psicologia” que mostrou diferenças significativas em outras subescalas do COPSOQ II. Após a análise de variância (ANOVA), os resultados apresentaram: Influência no local de trabalho (p = 0,001), Possibilidade de desenvolvimento (p = 0,001), Previsibilidade (p < 0,0001), Recompensas (p =0,008), Transparência nas atribuições de trabalho (p = 0,009), Qualidade da liderança (p = 0,003), Satisfação laboral (p = 0,005), Confiança vertical (p < 0,0001), e Justiça e Respeito (p < 0,0001), com valores médios menores para exclusivamente atuantes na área.
A insatisfação com a remuneração e reflexos das vivências ou dificuldades no exercício profissional, aliadas à baixa remuneração média da profissão, apontam para possíveis fatores que levam os profissionais a desenvolverem outra atividade profissional (CFP, 1998; Yamamoto & Costa, 2010).
Nessas correlações, a subescala Recompensas foi a única que apresentou diferença na escala tricolor entre participantes que realizam outra atividade profissional (ausência de risco à saúde) e participantes que atuam exclusivamente em Psicologia (risco moderado à saúde). Pode-se observar que o trabalho dessa profissão exige constante atualização, que houve mudança no sistema de formação e que há transformação no mercado de trabalho da área, o que pode levar a profissionais com mais de um vínculo de trabalho, como indicador da baixa remuneração na profissão e da sobrecarga de trabalho que impactam a saúde desses profissionais (Almeida, 2012; Bastos & Gondim, 2010).
Quanto às áreas de atuação, aquelas que apresentam resultados significativos e diferentes dos resultados gerais são as que mais concentram profissionais participantes: (i) Psicologia Clínica (42% [n = 697]); (ii) Psicologia Social (13,6% [n = 225]); e (iii) Psicologia da Saúde (11,4% [n = 189]). As subescalas da dimensão “exigências laborais” (ritmo de trabalho e exigências emocionais) contribuem com mais risco à saúde de Psicólogas/os Clínicas/os que nas demais áreas, e as subescalas da dimensão “valores no local de trabalho” (confiança vertical e justiça e respeito) impactam mais negativamente em Psicólogas/os Sociais e da Saúde.
Das diferenças entre as áreas que possam explicar os resultados apresentados, aponta-se que a Clínica está vinculada a uma atuação que pode ser vista como autônoma, voltada à intervenção psicoterápica para a compreensão de processos intra e interpessoais, por meio de diferentes abordagens teóricas (MTE, 2010; Resolução n.º 03/2022). Dos participantes da pesquisa que se denominaram Clínicos, 71,3% também se apresentaram como “autônomos” em relação ao seu principal tipo de vínculo trabalhista, característica que denota atuação emancipada de estruturas institucionais e organização do trabalho diferente de outras áreas de especialidade.
Para Spiendler Rodriguez, Carlotto, Ogliari, e Giordani (2015), os principais estressores no trabalho de psicólogos clínicos são a preocupação constante com pacientes, a longa duração da jornada de trabalho e o atendimento às expectativas de ser um modelo de saúde mental. Apontam uma diferença fundamental entre Clínicos assalariados e autônomos: assalariados, não percebem o reconhecimento pelo esforço no trabalho e autônomos denotam forte insegurança em dezembro e janeiro, devido às férias dos pacientes.
Já para as áreas social e de saúde, a perspectiva é de atuar com a dimensão subjetiva do fenômeno social, da atuação em equipe multi e interprofissional, ou seja, há a perspectiva de uma atuação que condiz com a estrutura de um ambiente de organização de trabalho mais hierarquizado, com estrutura definida e relações com clientes internos e externos semelhantes a uma organização (MTE, 2010; Resolução n.º 03/2022).
Estudo de Sousa e Coleta (2012) com 66 psicólogas/os da saúde pública no estado de Minas Gerais apontou que aspectos negativos do trabalho afetam o bem-estar, a saúde física e mental, a vida pessoal e familiar, e o desempenho no trabalho. Assim, foram fatores de risco: problemas de gestão, problemas com a equipe e falta de condições adequadas de trabalho. Já no Espírito Santo, Duarte e Moraes (2016) estudaram 32 psicólogos de serviços públicos de atenção à saúde e observaram um nível elevado de adoecimento mental e baixa qualidade de vida dos participantes, destacada a influência da demanda psicológica do trabalho.
A pesquisa de Almeida (2012) com profissionais portugueses de instituições de saúde, identificou estressores resultantes da estrutura e organização do trabalho, como a sobrecarga de trabalho, a falta de tempo para realizar as tarefas profissionais, o envolvimento excessivo com as demandas burocráticas, as dificuldades derivadas da relação com os superiores, o ato de assumir papeis indesejados e a falta de desenvolvimento e promoção de carreira.
Apresentadas essas discussões, ressalta-se que as diretrizes que guiam as ações profissionais de psicólogas e psicólogos no Brasil, como o Código de Ética Profissional (Resolução nº 010/2005), trazem características que reforçam o que foi apresentado até aqui: a constante atualização técnica (demandas cognitivas), a interação e preocupação com as demandas de outrem (demandas emocionais) e a ampla leitura de contexto e inserção de condicionantes sociais e culturais no preparo de sua atuação (carga de trabalho e conflito família/trabalho).
A amplitude de ações e práticas que profissionais de Psicologia podem realizar, aliadas à demanda ética de constante atualização, tendem a se tornar fatores que ampliam o risco à saúde desses profissionais pela atuação com demandas psicossociais de outras pessoas.
Esses fatores precisam ser observados com atenção para que possam ser acompanhados de modo a permitir o desenvolvimento de medidas de prevenção, pensando que aspectos como possibilidades de desenvolvimento, significado e satisfação laboral possam atuar como mediadores protetivos à saúde das/os Psicólogas/os.
Considerações finais
Compreender as relações trabalho-trabalhador da Psicologia pode permitir um conhecimento mais assertivo sobre estratégias que possam proporcionar um melhor repertório de condições de trabalho que atuem protetivamente na saúde dessas/es profissionais nas diferentes práticas profissionais, de modo que se possa pensar em ações preventivas a possíveis agravos à saúde que o ambiente laboral venha a causar.
O presente estudo identificou, a partir das respostas das/os próprias/os Psicólogas/os, os Fatores Psicossociais do Trabalho que lhes causam risco ou proteção à saúde em um espectro geral, bem como considerando diferenças e particularidades, notadamente, entre as áreas Clínica, Social e da Saúde.
A distribuição dos resultados em escalas, conforme a estrutura do instrumento utilizado, mostrou as prevalências e predominâncias frente à categoria profissional como um todo: o enfrentamento adequado das demandas apresentadas como Fatores de Risco, que precisam ser estudadas de forma mais detalhada para a devida prevenção/intervenção; bem como os principais fatores protetivos, compreendidos como uma direção na construção e/ou a implementação de estratégias de prevenção ao risco psicossocial para a profissão.
Ainda se ressaltam diferenças entre os variados ambientes de trabalho para as áreas com mais praticantes (Clínica x Saúde/Social), quando se percebe que o risco é maior para Psicólogas/os Clínicas/os em itens como: (i) Conflito Trabalho/Família, (ii) Estresse, e (iii) Burnout. E para Psicólogas/os Sociais e da Saúde em: (i) Satisfação Laboral, (ii) Autoavaliação da saúde geral, e (iii) Confiança vertical.
A considerar que tanto no âmbito geral como nas diferentes áreas de atuação obteve-se resultados positivos para as questões de organização e conteúdo do trabalho, sugere-se a ampliação e aprofundamento de estudos que demonstrem de forma mais detalhada fatores vinculados à essa temática, de modo a utilizá-los como mediadores protetivos e como possíveis diretrizes para a construção de ambientes de trabalho mais saudáveis para psicólogas e psicólogos no Brasil.
É determinante apontar que respostas de autorrelato também podem ser consideradas limitadoras devido ao viés da desejabilidade social, pela dificuldade em demonstrar ou admitir o risco frente a situações que tendem a ser reconhecidas pela sociedade como questões em que psicólogas e psicólogos não se veem confrontados com tais percalços.
Adiante, realizar pesquisas longitudinais, consolidar o (re)conhecimento da realidade profissional e a adequada caracterização para buscar intervenções e mudanças adequadas nos ambientes de trabalho, pode potencializar a qualidade do trabalho da profissão e consolidar ações de promoção e prevenção psicossocial desse grupo ocupacional, se possível, por meio de uma construção coletiva advinda da sociedade, do poder público e da própria categoria profissional.