A desigualdade de gênero na ciência é uma realidade mundial e nacional. Em relação às pesquisadoras brasileiras, tem-se uma difícil realidade, uma vez que elas a) são menos contempladas do que os homens com bolsas de pesquisa pelas agências financiadoras (Valentova et al., 2017); b) têm maior probabilidade de sofrer impactos em decorrência da maternidade e/ou das relações conjugais do que seus colegas pesquisadores (Staniscuaski et al., 2020); c) estão concentradas em áreas do conhecimento associadas a profissões "essencialmente" femininas (Olinto, 2012); d) estão mais vulneráveis a discursos que inferiorizam a capacidade intelectual feminina, bem como a assédios (morais e/ou sexuais) nas instituições universitárias e de pesquisa (Rosa et al., 2020); e) sofrem mais impactos na saúde em decorrência da sobrecarga do trabalho acadêmico (Borsoi & Pereira, 2013); e f) ocupam posições mais baixas na hierarquia da política de Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I) do País (Barros & Mourão, 2019).
Essa desigualdade se evidencia ao analisar a situação das mulheres bolsistas de produtividade em pesquisa (PQ) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) na hierarquia da política científica do país. Há uma expressiva presença de pesquisadores homens nas bolsas de maior prestígio da carreira de pesquisador(a) (PQ-1A) em diferentes áreas do conhecimento. Além disso, os homens são predominantemente os escolhidos como membros a) homenageados pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) (89,7% dos que receberam essa homenagem desde o início da solenidade no País); b) da equipe do Conselho deliberativo do CNPq (83,3%); c) da diretoria executiva do CNPq (66,7%); d) do Conselho Superior da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) (78,95%); e) da Comissão Nacional de Acompanhamento do Plano Nacional de Pós-Graduação 2011-2020 (60%). Esses pesquisadores, por sua vez, advêm das Engenharias e Ciências Exatas, áreas tradicionalmente com menor inserção de mulheres.
A condição desigual conferida às mulheres na carreira científica nos países ocidentais está relacionada à exclusão da intelectualidade feminina na ciência moderna. O estudo de (Schiebinger 2001) dá pistas de que o afastamento de pesquisadoras do campo científico se deu com a formalização das ciências nas universidades e com a migração dos laboratórios e observatórios mantidos outrora em ambiente familiar - como no caso das famílias aristocratas europeias -, pois o acesso à universidade não era permitido às mulheres. Nas instituições universitárias, entre os séculos XVII e XVIII, defendia-se amplamente a exclusão das mulheres do campo científico em razão de sua "menor" capacidade científica/intelectual, bem como da incompatibilidade da ciência com o desempenho das tarefas domésticas e familiares, dadas como naturalmente femininas. Para a autora, esse modo de operar das instituições acadêmicas foi forjado com base nas experiências masculinas e na suposição de que "os cientistas seriam homens com esposas em casa para cuidar deles e de suas famílias" (p. 69).
Para além disso, os estudos de Keller e Longino (1996) afirmam que, mais do que constituir instituições científicas a partir do descrédito da intelectualidade das mulheres, assim como da incitação ao isolamento feminino em atividades do âmbito privado e doméstico, a ciência moderna está ancorada nos princípios da racionalidade, universalidade e objetividade, que são construídos a partir de estereótipos de gênero e são reprodutores estratégicos das relações de gênero como instrumento de poder. A naturalização das ideias de sujeito, mente, razão, objetividade, transcendência e cultura, identificados como masculinos e mais valorizados nas produções científicas de diversas áreas (Lloyd, 1996), é um exemplo disso. Segundo Harding (1996), ao contrário do que a ciência moderna ocidental defende, a produção do conhecimento científico é impregnada de valores culturais. Os princípios de racionalidade, universalidade e objetividade foram determinantes para uma dupla exclusão das mulheres pesquisadoras, por um lado, impedidas de acessar instituições acadêmico-científicas; de outro, impossibilitadas de intervir nas concepções de cientificidade que determinaram a desigualdade de gênero no campo científico.
Um conjunto importante de produções feministas em todo o mundo passou a denunciar os efeitos da desigualdade de gênero na ciência (Harding, 1996; Lloyd, 1996). No contexto brasileiro, estudos sobre a participação das mulheres na carreira acadêmico-científica têm apontado que a ausência da análise de gênero penaliza cada vez mais essas profissionais, posto que as exigências de excelência são cada vez maiores. Nesse sentido, o tempo de permanência na universidade e em instituições de pesquisa é insuficiente para a realização de todas as tarefas exigidas, sendo necessária a extensão da jornada de trabalho para o espaço doméstico e familiar (Santos, 2016), lugar onde as mulheres são, em sua esmagadora maioria, responsáveis pelas tarefas domésticas e de cuidado. As pesquisadoras enfrentam assim uma dupla ou tripla jornada de trabalho.
Essa realidade alcançou um estágio ainda mais preocupante com a chegada da pandemia do SARS-CoV-2 no mundo em 2020. No Brasil, a pandemia foi deflagrada em um cenário político de ampliação das desigualdades de gênero e raça, uma vez que as medidas de restrição sanitária e isolamento social, necessárias para a contenção do vírus, intensificaram o trabalho doméstico das mulheres em geral.
No caso das pesquisadoras, a pandemia fez também com que a produtividade científica, principalmente entre as que são mães, entrasse em declínio (Staniscuaski et al., 2020). Conhecer como essa realidade se apresenta na Psicologia é imprescindível. Estudos anteriores têm demonstrado que, apesar de ser um campo majoritariamente feminino (Lhullier, 2013), mulheres pesquisadoras da área, sobretudo se não brancas, enfrentam difíceis desafios para manter-se na carreira acadêmico-científica (Cunha et al., 2021). Isso, certamente, está relacionado às desigualdades de gênero, às relações hierárquicas no campo científico e às disputas de saber/poder que silenciam vozes femininas, negras, indígenas, não ocidentais, dentre outras, impondo, assim, por meio de sua racionalidade e neutralidade, uma ciência androcêntrica, sexista, classista e colonial (Harding, 1996). Diante dessas questões, propusemo-nos a compreender como as desigualdades de gênero na ciência brasileira impactam o cotidiano das bolsistas PQ/CNPq da Psicologia, bem como entender como as pesquisadoras se posicionam em relação ao seu agravamento com a eclosão da pandemia do Sars-COV-2.
Aspectos metodológicos
Escolhemos enquanto sujeitas-participantes bolsistas PQ do CNPq da Psicologia. Para a realização do estudo, partimos de entrevistas individuais e semiestruturadas com as 24 bolsistas PQ da Psicologia que demonstraram interesse em participar da pesquisa, sendo elas pertencentes ao conjunto amostral de 204 bolsistas PQ ativas no sistema PQ/CNPq. Utilizamos as seguintes estratégias para a formação dessa amostra não probabilística: a) mapeamento de todos os bolsistas ativos da Psicologia no sistema PQ em abril de 2020, período da coleta, totalizando 314 pesquisadores e pesquisadoras, e b) envio de convite por e-mail exclusivamente às mulheres bolsistas PQ da área (204 pesquisadoras). Para a entrevista, utilizamos um roteiro que combinou questões previamente formuladas e outras abertas sobre dados sociodemográficos, jornada de trabalho e rotina no período pandêmico.
Em função das implicações para a condução das pesquisas decorrentes do distanciamento social (pandemia da COVID-19) em 2020, a realização das entrevistas se deu por meio do uso de plataformas de videoconferência do tipo Google Meet, Skype ou WhatsApp, de forma síncrona, com interação simultânea. Para análise dos dados obtidos nessas entrevistas, baseamo-nos nas proposições de Gaskell (2018), a partir das quais a) realizamos leituras e releituras das transcrições das entrevistas, tomando notas e adicionando realces no conjunto de dados; b) buscamos padrões de conexões para a formação de códigos e temas; e c) inserimos esses códigos e temas em uma matriz construída a partir das questões norteadoras da pesquisa. A análise da matriz de dados ocorreu à luz das epistemologias feministas decoloniais, isto é, conforme a compreensão de que as atuais relações de poder resultam de um sistema multifacetado de raça e gênero, com diferenças substanciais entre homens e mulheres e entre mulheres brancas e as mulheres racializadas (negras e demais não brancas) no território latino-americano e outros territórios do Sul Global (Lugones, 2008).
Por fim, destacamos que esta pesquisa integra um estudo mais amplo de doutoramento, obtendo aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), sob o Certificado de Apresentação para Apreciação Ética - CAAE nº 32033620.0. 0000.5537, de acordo com o parecer nº 4.072.688.
Recrudescimento das Desigualdades de Gênero e Raça na Carreira Científica de Pesquisadoras da Psicologia
No Brasil, a pandemia da Covid-19 foi deflagrada em um cenário de intensificação dos efeitos da crise estrutural do capitalismo e de instabilidade política que são profundamente deletérias para mulheres. Nesse cenário, desempregadas ou não, inúmeras mulheres assumiram uma carga de trabalho ainda maior no ambiente doméstico-familiar em razão da impossibilidade de utilizar, para a terceirização do trabalho de cuidado, redes de apoio como instituições escolares, outros membros da família e/ou vizinhos. Assim, passaram a dedicar mais tempo na preparação do alimento, na limpeza e no cuidado com as crianças e adolescentes (incluindo o auxílio na educação à distância) e com pessoas doentes e idosas (Melo & Morandi, 2021).
Essa reviravolta no âmbito doméstico-familiar foi profundamente sentida pelas mulheres pesquisadoras do país. Ficar como a principal responsável pelas funções reprodutivas e de cuidado tem impactado o desempenho do trabalho científico de muitas pesquisadoras. Segundo Staniscuaski et al. (2020), elas tiveram mais dificuldade de trabalhar no regime de home office, por exemplo. No nível da pós-graduação, dentre mestrandos e doutorandos, somente 27% das mulheres e 36,4% dos homens conseguiram manter as atividades acadêmico-científicas em dia no formato remoto. No caso das pós-doutorandas e pós-doutorandos, esse número cai um pouco: 13,9% das mulheres e 27,9% dos homens. Já entre docentes-pesquisadores, esse índice é ainda mais preocupante: 8% das mulheres e 18,3% dos homens conseguiram trabalhar remotamente.
Em razão disso, as pesquisadoras produziram e submeteram um menor número de artigos em periódicos científicos em relação aos homens. Isso é problemático porque, em se tratando de pesquisadores e pesquisadoras PQ/CNPq - líderes na condução das atividades de Ciência & Tecnologia (C&T) no País - todos são avaliados, principalmente, pela produção científica qualificada. Assim, na medida em que as cientistas não conseguem manter o ritmo anterior de submissão e publicação, poderão ter mais dificuldades para acessar recursos financeiros para pesquisa científica e renovar a bolsa PQ. De acordo com diversos estudos, esse cenário incide diretamente em suas carreiras e em suas aspirações por promoção, remuneração e reconhecimento, ampliando as desvantagens já enfrentadas pelas cientistas na carreira científica brasileira (Staniscuaski et al., 2020; Valentova et al., 2017).
No caso das mulheres bolsistas PQ da Psicologia, essa realidade pode ser ainda mais desafiadora. Cunha et al. (2021) identificaram que, tal como nas demais áreas do conhecimento, na Psicologia as mulheres estão proporcionalmente em desvantagem nos níveis mais privilegiados do sistema PQ (bolsas PQ1-A e PQ-1B), sendo essa desvantagem ainda maior para as bolsistas negras e indígenas. A autora aponta que esse desequilíbrio de gênero (e sua intersecção de raça e região) está relacionado a uma estrutura sexista e racista que tem tomado contornos mais complexos na atual configuração do trabalho acadêmico e no cenário de disputa e concorrência interna da C&T do país. Os agravos dessas condições têm gerado impactos diretos na vida doméstica e familiar que se agudizaram na pandemia, provocando danos à saúde física e psíquica das profissionais.
Além disso, as pesquisadoras precisaram lidar com as consequências da desvalorização científica e dos ataques diretos aos cientistas e instituições de pesquisa sofridos por órgãos governamentais do País. Na percepção das pesquisadoras PQ/CNPq da Psicologia, o cenário de cortes de bolsas de pesquisa e de ameaça de apagão da ciência brasileira, vivido durante o governo de extrema-direita, foi uma catástrofe. O CNPq e o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), ligados ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), ligada ao Ministério da Educação, principais instituições de incentivo e regulação da ciência nacional, funcionaram, cada vez mais, com menos recursos (SBPC, 2021). Situação resultante de uma sangria progressiva iniciada em 2016 e que tomou proporções desmedidas nos últimos anos (Negri & Koeller, 2019).
Segundo as pesquisadoras, as ações adotadas pelo governo federal anterior e a ausência de programas destinados a combater as desigualdades de gênero na ciência no Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) e no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH), como o Programa Mulher e Ciência (então sem ações)1, deram indícios do "aumento da desigualdade em relação à distribuição de recursos [...], das incertezas em relação às possibilidades da pesquisa, do aumento de pressão e insegurança em relação à liberdade de pensamento e do medo de repressão política" (Bolsista PQ da Psicologia, entrevista nº 15), de maneira especial em áreas com maior participação de mulheres e com abertura para discussões que visassem à equidade de gênero como as Ciências Humanas, Sociais Aplicadas, Letras, Linguística e Artes (CHSSALLA). Ademais, esses fatores forneceram indicativos de crescimento de "uma narrativa [...] que coloca as mulheres em condições de subalternidade e inferioridade" (Bolsista PQ da Psicologia, entrevista nº 03) e, portanto, distantes de espaços de poder, dentre os quais se situa o campo científico.
Isso afeta todas as mulheres que optam pela carreira acadêmico-científica, tal como as bolsistas PQ da Psicologia. Contudo, o maior prejuízo é conferido às mulheres negras (e demais não brancas), uma vez que, nas condições estruturais em que se estabelecem a destituição ontológica do Outro (feminino e doméstico) em Nome do Um (masculino, branco e público), as mulheres negras são o Outro do Outro (Kilomba, 2019). Na lógica binária de gênero da modernidade, mulheres brancas foram normatizadas em uma posição associada à fraqueza (tanto corporal quanto cognitivamente) em relação ao homem (branco). A elas se delegou a reprodução da família burguesa.
Por outro lado, as mulheres negras foram consideradas animais no sentido de serem marcadas sexualmente como fêmeas, sem as características da feminilidade atribuídas às brancas (Lugones, 2008). A elas se direcionou a exploração de sua força de trabalho e o castigo, imposto a elas na mesma medida que aos homens negros escravizados. Também a elas se imputou um cotidiano desumano de exploração sexual para fins da reprodução de outros escravizados. Em função dessas condições, a mulher branca se constituiu hierarquicamente como a Outra do Um (homem branco, sujeito universal, isto é, humano) e a mulher negra se estabeleceu como a Outra da Outra (mulher branca, que apesar de inferior ao homem branco, também é reconhecida como humana) e, portanto, foi posicionada em lugar de mais difícil reciprocidade a esse Um (Kilomba, 2019).
Como apresentado anteriormente, no campo científico, os efeitos dessa hierarquia racial entre as mulheres brancas e negras (e todas as não brancas) se efetivam no predomínio de brancas na carreira científica, que, para a manutenção da própria produção de conhecimento científico, delegam inteiramente ou compartilham partes do trabalho doméstico e de cuidado com outras mulheres, geralmente pretas, pardas, pobres e periféricas. Esses efeitos se concretizam também na sub-representação das mulheres negras dentre os cientistas e na sistemática desqualificação de suas produções acadêmicas (Kilomba, 2019).
Apesar dessas particularidades entre as pesquisadoras, dentre os estudos que abordam a participação das mulheres na carreira científica em diferentes regiões do mundo e no Brasil, predominam enfoques analíticos que tomam a experiência da mulher branca e das classes alta ou média alta2 para explicar as condições desvantajosas de todas as mulheres nas instituições acadêmico-científicas. Esses estudos, comprometidos com as reivindicações dos feminismos hegemônicos, ou seja, de ordem branca e burguesa, omitem que, sob a lógica da matriz de opressão colonialista, as mulheres são posicionadas em diferentes lugares sociais (Akotirene, 2019). Assim, desconsiderando as intersecções entre o gênero, a classe, a heterossexualidade e a raça, tais produções e, principalmente, suas autoras e autores não produzem autoanálise em termos interseccionais, ou seja, desconhecem a si mesmos "na intersecção de raça, gênero e outras potentes marcas de sujeição ou dominação" (Lugones, 2008, p. 95).
O desconhecimento da relação entre o gênero, a raça e outras formas de dominação também são comuns no discurso das bolsistas PQ da Psicologia brasileira. Quando questionadas acerca dos obstáculos que enfrentaram ou ainda enfrentam sendo mulheres brancas na carreira acadêmico-científica (perfil étnico-racial majoritário do estudo), boa parte delas afirma que a única desigualdade à qual estão submetidas é a relacionada ao gênero. Parte das bolsistas PQ da Psicologia chega a estranhar que, para além do gênero, haja outras formas de dominação em seus cotidianos enquanto cientistas: "[...] moro (cidade e estado suprimido) [...]. Pelo meu biotipo dá para ver que eu faço jus ao meu sobrenome (suprimido) [...]. Então, assim, me diluo muito na maioria da região [...], nunca passei [outras formas de desigualdade]" (Bolsista PQ, entrevista, nº 15).
Dentre as pesquisadoras PQ da área, as bolsistas nordestinas mencionaram que, além das implicações das desigualdades de gênero nas universidades e instituições de pesquisa, sofrem os efeitos dos preconceitos regionais: "[...] na defesa de meu primeiro orientando [...], chamei uma pessoa (estado suprimido) [...] e a primeira frase dela foi: fiquei surpresa ao saber que o Nordeste faz pesquisa de qualidade [...]. Ali morreu para mim, sabe?" (Bolsista PQ, entrevista nº 09). Algumas profissionais do Sul e do Sudeste sentiram preconceitos apenas quando frequentaram instituições acadêmicas em outros países. Uma única cientista destacou que, apesar de ser uma mulher branca, sofreu por pertencer à classe social mais empobrecida: "[...] sofri preconceito por ser filha de agricultores, por já ter cortado cana, por já ter trabalhado como operária de fábrica [...]. Meu único privilégio é ser branca [...]" (Bolsista PQ, entrevista, nº 02).
Apesar desses relatos, a maior parte das pesquisadoras, quando questionadas sobre como se sentem enquanto mulheres brancas diante dos desafios da carreira científica, ao invés de avaliarem suas experiências, optaram por destacar a difícil situação das mulheres negras nas instituições acadêmicas-científicas: "[...] a mulher negra [...] sofre muito mais do que uma mulher branca [...]. Gostaria de viver num mundo em que isso fosse bem mais amenizado, sabe?" [...] (Bolsista PQ, entrevista, nº 03). Embora seja indispensável o entendimento de que as mulheres negras (e também indígenas) enfrentam desafios ainda mais tortuosos na ciência brasileira, do nosso ponto de vista, a convocação (imediata) de um saber (de mulheres brancas) sobre a experiência das mulheres negras na carreira acadêmico-científica, em primeiro lugar, aparenta reproduzir o processo de objetificação de pessoas negras, historicamente comum entre acadêmicas e acadêmicos brasileiros (Carneiro, 2005); em segundo lugar, demonstra como sujeitas e sujeitos brancos, ao partirem da concepção (consciente ou não) de que são seres "naturais" e "normais" (Nogueira, 1998), dispensam com frequência uma autoanálise étnico-racial.
Porém, no caso das bolsistas PQ da Psicologia brasileira, de maioria branca, pertencente à massa da classe média do país - estrato social que tem privilégio, sobretudo, por acessar um conhecimento mais valorizado do que o das classes populares, mas que também é explorada pela classe burguesa (Souza, 2017) -, essa posição é no mínimo problemática, pois, à medida que desconhecem o gênero e a classe como racializados, também deixam de reparar as fissuras existentes na branquitude (Schucman, 2012). Assim, não notam que suas realidades podem se diferenciar das de outras mulheres brancas, como as daquelas vividas por pesquisadoras brancas da alta classe média, minoria na ciência psicológica do País, ou das de mulheres negras e demais não brancas. É sobre essas diferenças entre as mulheres brancas, pesquisadoras da Psicologia, que vamos tratar a seguir.
O exame do perfil sociodemográfico das 24 bolsistas PQ da Psicologia brasileira traçado na presente pesquisa fez notar que o conjunto de pesquisadoras PQ da área é composto majoritariamente por mulheres brancas (23, número equivalente a 96%) e oriundas da classe média: recebem acima dos nove salários-mínimos, com média em torno de 12 a 15 salários (n = 25, 29,4%), obtidos mediante salário (ou aposentadoria), juntamente com a bolsa de produtividade em pesquisa e, em alguns casos, somado ao recebimento de honorários pela prestação de serviços profissionais ou recebimento de aluguel de imóveis. Elas apresentaram realidades socioeconômicas diversas em suas famílias de origem. Apenas uma pequena parcela provém de famílias das camadas superiores da sociedade ou da alta classe média.
As pesquisadoras PQ da Psicologia brasileira fazem parte de uma geração que se beneficiou da entrada vertiginosa de mulheres nos cursos de pós-graduação, especialmente entre 1996 e 2015, de acordo com pesquisa de 2020 (Centro de Gestão e Estudos Estratégicos - CGEE), assim como da ampliação dos concursos em IES públicas (e particulares, em alguns casos) e das cotas de bolsas PQ/CNPq até 2016, quando teve início um processo intenso de cortes de verbas na ciência nacional. Enquanto docentes de IES públicas e bolsistas PQ/CNPq, elas se consideram bem-sucedidas profissionalmente. Os benefícios do emprego público no magistério superior como a estabilidade e o salário - embora defasado e desproporcional às exigências da carreira - garantem acesso à moradia e a outros benefícios sociais básicos. Tal como constatado por (Maia 2021) em seu estudo sobre mulheres brancas da classe média de Salvador/BA, essas cientistas valorizam a independência feminina e defendem a construção da carreira profissional baseada no esforço e mérito pessoal no âmbito público. Estão distantes dos ideais de donas de casa voltados exclusivamente para o trabalho reprodutivo e de cuidado. Ao contrário, desejam ter "poder" tanto dentro quanto fora de casa.
Nesse sentido, estamos tratando de mulheres cujas subjetividades e afetos foram sendo modulados a partir do ideário neoliberal da mulher empreendedora de si. Com base em Foucault (2010), entendemos que a governamentalidade neoliberal se organiza em um conjunto de táticas e estratégias de captura de todos nós, forjando processos de subjetivação, bem como o modo como nos tornamos sujeitos, como nos autorregulamos, como nos relacionamos com nós mesmos e nos tornamos personagens do tempo presente. Não à toa estamos inseridos em um contexto discursivo fincado no modelo de feminilidade "empoderada" e bem-sucedida.
No entanto, essa independência se estabelece, em muitos casos, em função da existência de outras mulheres, majoritariamente negras e pobres, que realizam o serviço doméstico e de cuidado. Foi o que detectamos nas famílias das pesquisadoras PQ da Psicologia, nas quais é comum a presença de empregadas domésticas e/ou diaristas e babás, boa parte das vezes denominadas como "a moça que me ajuda". Como argumentado estudo anterior de Cunha et al. (2021), sem a estrutura do trabalho de empregadas domésticas e/ou outras profissionais do cuidado, é pouco provável que as pesquisadoras da Psicologia tivessem tempo para investir na carreira científica, sobretudo, na atual configuração produtivista de organização do trabalho acadêmico. Contudo, isso passa despercebido ou é ignorado por muitas das cientistas da área que se subjetivam nessa ordem na qual o racismo, as desigualdades de gênero e de classe social ficam silenciadas.
Como efeito dessa racionalidade neoliberal-empreendedora, várias profissionais acreditam que o sucesso alcançado na carreira científica decorre de conquistas pessoais e não é resultante de um sistema "em que a disputa se dá a partir de lugares desigualmente pré-determinados na estrutura social, facilitando o sucesso de algumas mulheres e não de outras" (Maia, 2021, p. 65). Para justificar seus esforços e a posição alcançada na ciência, algumas rememoram os desafios superados nesse campo de trabalho. Porém, quando relembram determinadas situações, ficam capturadas em redes discursivas, em uma espécie de silêncio que as impede de contestar que, enquanto mulheres brancas, independentemente das condições sociais de vida, elas têm privilégios e vantagens em diversos setores sociais (Schucman, 2012).
Uma mulher (negra) foi muito direta comigo e disse: eu aceito que você fale em desigualdade quando você abrir mão da sua vaga para uma negra que não está aqui na universidade [...]. Eu pensei: não estou disposta [...]. Acho que eu cheguei aqui com muita dificuldade e eu não venho de elite e sim, eu estudei em escola particular porque tive bolsa [...] (Bolsista PQ, entrevista nº 17).
Segundo Souza (2017), as classes alta e média são constituídas de pessoas predominantemente brancas que acessam maiores oportunidades educacionais e, em função disso, conseguem construir trajetórias profissionais competitivas no mercado de trabalho formal. Por outro lado, sem gozar das mesmas condições educacionais e de renda da classe média, os mais pobres e desprivilegiados, majoritariamente negros e negras, na disputa por emprego, enfrentam muito mais desvantagens. Para esses últimos, sobram os trabalhos mais desvalorizados e mal remunerados. São essas circunstâncias que permitem à classe média (alta e baixa) "não só roubar o tempo da classe dos(a) trabalhadoras(o) (mais pobres) - ocupando funções repetitivas e desgastantes de serviço doméstico e do serviço pesado [...] como usá-los depois em tarefas melhor pagas em benefício próprio" (Souza, 2017, p. 64) - como no caso do investimento na carreira acadêmico-científica.
Uma análise detalhada do cotidiano das 24 pesquisadoras PQ da Psicologia evidenciou que, apesar de se tratar de um conjunto de mulheres brancas, cujo privilégio social se distancia das experiências de mulheres não brancas na academia, seus pertencimentos sociais diferentes derivam para experiências cotidianas desiguais. Destacam-se dois aspectos: há uma certa naturalização das desigualdades de raça e classe entre elas e as mulheres pretas/pardas/pobres e periféricas que viabilizam seu trabalho acadêmico. Outra evidência é que a pandemia reforçou as desigualdades de gênero e os papéis sociais tradicionais no âmbito doméstico e do trabalho, produzindo conflitos e sofrimento entre as bolsistas PQ por não conseguirem atender às demandas produtivistas e expectativas do mundo acadêmico. Há, então, um silenciamento das desigualdades entre homens e mulheres e entre as próprias mulheres na ciência que empurra essas mulheres pesquisadoras PQ da Psicologia a uma incessante e desgastante busca de superação. É isso que abordaremos a seguir.
O Cotidiano das Pesquisadoras PQ/CNPq da Psicologia em Tempos Pandêmicos
A partir da chegada da pandemia da Covid-19 em 2020, a vida das pesquisadoras sofreu alterações importantes. Entretanto, notam-se diferenças marcantes entre as mulheres quanto ao grau de interferência dessa nova realidade no cotidiano de trabalho. Entre as pesquisadoras PQ brancas e pertencentes à alta classe média, o desempenho na produção de artigos, capítulos de livros e outras atividades acadêmicas, indispensáveis para se obter sucesso e reconhecimento na carreira científica, aconteceu sem grandes intercorrências.
Na opinião da bolsista a seguir, independentemente do contexto atual (pandêmico e de crise social, política e institucional), seu trabalho científico "não pode parar". Por esse motivo, suas empregadas e empregados domésticos, mesmo que vulneráveis ao risco de contaminação pela Covid-19, deveriam continuar "trabalhando normalmente". Caso contrário, ela argumenta que se submeteria ao "ardor ideológico de determinados pesquisadores do país" que operam continuamente "pelo desejo de fazer assistência social" e não de desenvolver "uma ciência pelo mérito" (Bolsista PQ, entrevista nº 01).
Não presto como dona de casa, eu sou a dona da casa, né? Eu tenho funcionários. Ninguém pegou a doença, todo mundo mora em comunidade, são quase três meses e aqui não aconteceu nada e todos continuam me ajudando e entendendo que eu tenho que trabalhar [...] (Bolsista PQ, entrevista nº 01).
Já entre as bolsistas PQ da massa da classe média, esse período de pandemia e de crise institucional no país são causadores de uma realidade "desastrosa" (Bolsista PQ, entrevista nº 19). No caso delas, a ausência do suporte de empregadas, diaristas e/ou cuidadoras e a condição de confinamento interferiram diretamente no seu desempenho no trabalho acadêmico-científico, já que foi necessário assumir o trabalho doméstico, seja executando diretamente todo o serviço de casa, seja supervisionando as tarefas realizadas por cada familiar na habitação.
Na percepção dessas bolsistas PQ, essa rotina de trabalho doméstico e de cuidado e a situação da ciência brasileira, marcada pelo sufocamento de verbas e violência contra pesquisadores e o medo de contrair a Covid (estávamos no ápice da primeira onda de infecção no Brasil, em julho de 2020), provocaram intenso sofrimento psíquico. Nessas condições, elas se sentiram esgotadas e desestimuladas para desempenhar as demandas do trabalho acadêmico-científico com alta performance. O desejo era, tão logo fosse possível, que suas condições de vida, tal como antes desse período, fossem retomadas: "eu quero minha vida de volta [choro] [...]" (Bolsista PQ, entrevista nº 23).
Para compreender a realidade à qual essas bolsistas PQ se referem, em primeiro lugar é preciso situar o sucateamento das universidades públicas e da própria agência CNPq pelo governo vigente à época, incluindo a perseguição e ataques diretos a cientistas, impondo-lhes uma situação de descrédito e desprestígio diante da sociedade brasileira. Soma-se a isso a deterioração das condições de trabalho, do valor da bolsa-pesquisador e dos salários do funcionalismo público nos últimos anos. O congelamento de salários e outras medidas, impostas pela Emenda Constitucional nº 241/2016 - PEC do Teto de gastos públicos3, provocou nas pesquisadoras PQ da Psicologia brasileira "um misto de revolta, de indignação, de desesperança" (Bolsista PQ, entrevista nº 22). Para boa parte delas, assistir ao desmonte do CNPq traz ainda apreensão pela possibilidade de perda da bolsa PQ, uma vez que, com salários defasados e crescente custo de vida no País (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2021), a bolsa tem funcionado como um complemento financeiro que viabiliza o acesso a vários serviços pela classe média brasileira.
Em segundo lugar, não se pode desconsiderar a sobrecarga do trabalho acadêmico e doméstico. Esses fatores interferem diretamente em todas as dimensões da vida e, em particular, na capacidade cognitiva e na confiança intelectual, podendo afetar a produção de conhecimento em nível de excelência, conforme esperado de pesquisadoras de alta performance como as bolsistas PQ/CNPq. No auge da pandemia - período em que as desigualdades estruturais do País se agravaram - essas mulheres brancas e da massa da classe média assumiram o "serviço do lar", outrora transferido para empregadas domésticas e/ou cuidadoras, majoritariamente mulheres negras e pobres (Pinheiro et al., 2019). Nesse processo, as pesquisadoras se ocuparam integralmente da execução e/ou supervisão das tarefas domésticas e de cuidado. Com isso, tiveram menos tempo e menor disposição física e mental para o desempenho das demandas acadêmicas-científicas.
[No início da pandemia] [...] foi uma perda de identidade profissional que gerou muito problema [...]. Eu fiquei muito dedicada à casa [...] à família, até minha primeira banca de qualificação [...]. Ali eu desabei [...]. Eu perdi a minha identidade profissional [...]. Eu não estava conseguindo escrever, não estava conseguindo ler, eu não estava conseguindo fazer nada! Eu não tinha capacidade de concentração [...] eu me sentia emburrecer [...]. [Choro] (Bolsista PQ, entrevista nº 23).
Com a chegada da pandemia, as tarefas domésticas, antes delegadas a outras mulheres e distanciadas da realidade cotidiana das pesquisadoras, passaram a organizar temporal e espacialmente o trabalho acadêmico, acarretando mudanças significativas na gestão da vida, provocando, inclusive, a sensação de perda de identidade profissional. Ou seja, a presença inesperada no mundo doméstico e a centralidade que isso passa a ter nas vidas dessas mulheres é uma fonte de desânimo e gera muito sofrimento. Dessa forma, consideramos que a imersão compulsória em uma rotina sobrecarregada de trabalho, tanto em relação às tarefas domésticas quanto acadêmicas, afetou o lugar privilegiado e até de autonomia que as pesquisadoras usufruíam, já que, mesmo temporariamente, impediu a produção científica.
Apesar de demonstrar sutilmente uma reconfiguração da posição social e dos privilégios das cientistas brancas da ciência psicológica, a compreensão desse cenário passa despercebida para muitas delas. Na análise da bolsista PQ a seguir, o mais difícil do cenário pandêmico foi manter-se focada e produtiva entre as tarefas domésticas e as acadêmicas, as primeiras tratadas como menos nobres (marcas da destituição de poder do espaço doméstico) e as últimas como merecedoras de prestígio:
Acho que o mais difícil é o foco [...] porque às vezes estou fazendo feijão e aí você tem que parar [...] de repente mergulha na tela de um computador para discutir uma coisa muito nobre e daqui a pouco eu tenho que ir para uma reunião [...]. Então é essa coisa estranha em que você está fazendo faxina outra hora você tá discutindo uma coisa nobre [...]. Eu acho que essa é a parte mais difícil. É a flexibilidade de ter que ter foco uma hora em alguma coisa e outra hora estar fazendo outra (Bolsista PQ, entrevista nº 09).
A forma como as pesquisadoras descrevem a necessidade dessa conciliação, mostra, segundo Mbembe (2017), que o neoliberalismo traz um maquinário psíquico-alucinatório, ou seja, uma racionalidade própria que manipula a subjetividade dos indivíduos para assim regular suas necessidades e seus desejos, seja pelo consumo da mercadoria, seja pelo apreço ao prestígio. Nesse sentido, tomadas por essa racionalidade hegemônica e, principalmente, apegadas à crença de distinção social por estarem situadas em estratos mais privilegiados da hierarquia social brasileira, as pesquisadoras deixam de notar os efeitos das desigualdades de gênero e das múltiplas discriminações existentes no campo científico.
Embora a percepção das desigualdades de gênero, de classe e de raça na ciência ainda não sejam tão evidentes para algumas pesquisadoras, o mal-estar vivenciado durante a eclosão da pandemia provocou fissuras nas concepções instituídas e naturalizadas que sustentam as hierarquizações entre homens e mulheres e entre brancos e não brancos. Isso aponta, mesmo de forma embrionária, para a potência da desconstrução de ilusões quanto à igualdade de gênero entre pesquisadores e pesquisadoras de todas as áreas científicas, em particular, da Psicologia, e para a maneira como, no mundo acadêmico, as regras de excelência são orientadas por padrões masculinos que não levam em conta as diferentes realidades de vida de homens e mulheres.
Conforme indicado por Olinto (2012, p. 69), "dois tipos de mecanismos são geralmente identificados para descrever as barreiras enfrentadas pelas mulheres: a segregação horizontal e a segregação vertical". Assim, para algumas pesquisadoras da Psicologia, descortinou-se o fato de serem as mulheres, por um lado, levadas a escolher determinadas áreas e profissões e, por outro, mantidas sempre em posições subordinadas, como é o fato de ocuparem menos cotas PQ de maior prestígio no CNPq. Ou seja, elas se deram conta, nesse contexto, de como suas "carreiras científicas são entrecortadas por mecanismos discriminatórios" (Santos, 2016, p. 805) não só de gênero, mas de pertencimento regional e geracional, evidenciando a interseccionalidade das assimetrias.
Dessa maneira, surge a percepção, para algumas pesquisadoras, de que as mulheres enfrentam muitos mais obstáculos para o desempenho da carreira de pesquisadora PQ e, em função disso, têm mais dificuldade de atingir as metas estabelecidas em termos de produção bibliográfica, formação de recursos humanos e posições de maior destaque na área, além de vivenciarem maior risco para o desenvolvimento de ansiedade, depressão, estresse e outros tipos de sofrimento. Essas mulheres também notam que, no cenário desigual da ciência, estão vulneráveis a três escolhas imperfeitas: podem renunciar e/ou deixar de investir na carreira acadêmica-científica em detrimento do cuidado com os filhos e/ou demais membros da família, abdicar da maternidade e/ou de relações afetivo-conjugais tradicionais (se for uma escolha da pesquisadora) para se dedicar ao trabalho científico, ou decidir conciliar a produtividade acadêmica e as atribuições familiares, tendo assim que realizar um esforço desumano.
Para a bolsista PQ (entrevista nº 03), ficar restrita às limitações dessas condições causa "muita indignação [...] especialmente dentro da universidade [...] lugar em que deveria existir mais oportunidade". O que ocorre na prática é que, sem o devido apoio, muitas acabam com suas trajetórias na ciência prejudicadas. Porém, como defende uma minoria das bolsistas entrevistadas, a superação dessas barreiras requer a compreensão de que os desequilíbrios de gênero se dão na academia interseccionados às desigualdades estruturais de raça e classe. Portanto, as pesquisadoras brancas precisam reconhecer que os piores obstáculos à participação na universidade e demais instituições de pesquisa são experimentados por mulheres negras e demais não brancas, já que são as últimas aquelas impactadas pelo epistemicídio, processo de indigência cultural contra a população negra (Carneiro, 2005). Por isso, não só ficam responsáveis pelo trabalho considerado menos nobre como são praticamente impedidas de serem incluídas nos diversos campos profissionais e no campo científico, sendo mantidas historicamente em posição social subalterna.
Os posicionamentos das pesquisadoras quanto à perpetuação das iniquidades entre as próprias mulheres (e demais sujeitos negros) no âmbito da educação e da ciência dão pistas de que algo se move na direção da desnaturalização das estruturas hierárquicas que fazem parte da formação histórica da estrutura social do País. Tais desigualdades se manifestam nas universidades e demais instituições científicas a partir de estereótipos e de intolerância em torno da diversidade de raça, gênero e classe. Como se sabe, a organização do trabalho científico, sobretudo nos moldes neoliberais, beneficia a produção acadêmica de homens brancos, de classes mais privilegiadas, sem filhos. Essa mesma organização impede o acesso, a permanência e a própria segurança e saúde das mulheres, especialmente das mulheres não brancas, no campo científico.
Porém, a busca pela superação dessas barreiras exige uma reconfiguração da academia, a começar pelo rompimento com a
[...] perspectiva capitalista, racista, capacitista e colonialista da ciência ocidental [...]" (Bolsista PQ, entrevista nº 02). Diante do desmantelamento da ciência nacional e do recrudescimento das iniquidades de gênero, raça e classe, essa restruturação deve ser estabelecida como ponto de partida, pois, como afirma uma das pesquisadoras, "[...] a gente não pode se entregar. Se a gente ficar esperando o barco correr, a gente vai desaparecer. A ciência como um todo [...]. (Mas) primeiro vão desaparecer as mulheres [...] e as mulheres negras nem se fala. Não tenho a mínima dúvida. (Bolsista PQ, entrevista nº 04)
A certeza de que as mulheres e, em maior medida, as mulheres negras e demais não brancas (assim como os homens não brancos) serão as principais afetadas com as consequências do recrudescimento das desigualdades no País articula-se à compreensão de precariedade defendida por Butler (2015), que destaca como, embora todos os sujeitos estejam naturalmente expostos à vulnerabilidade e à contingência de suas condições, a atual realidade do mundo demonstra que as pessoas, a depender dos fatores de classe, raça, gênero e orientação sexual, estão expostas assimetricamente a cenários e a condições degradantes.
Assim, nesse percurso pelo rompimento com a estrutura colonialista da universidade e da ciência, estrutura essa que sustenta as desigualdades de gênero e raça, dentre outras, há muito o que aprender com as mulheres negras, que, ao serem histórica e atualmente desencorajadas por um cotidiano de epistemicídio, lutam diariamente, desde a margem, "contra a asfixia de suas vidas e de suas ideias" (Xavier, 2021, p. 52). E o fazem impondo suas próprias regras científicas, afinal, sabem que as desigualdades no âmbito científico só cessarão quando os juízes (masculinos e brancos) e as regras que os sustentam forem completamente desmanteladas (Lorde, 2013).
Considerações Finais
Nesse estudo, discutimos como os efeitos das desigualdades de gênero, classe e raça têm impactado o cotidiano de mulheres pesquisadoras PQ da Psicologia brasileira, bem como analisamos como as pesquisadoras se posicionam em relação à realidade de recrudescimento dessas desigualdades durante a pandemia da Covid-19.
Os achados encontrados constataram, por um lado, que, apesar das repercussões das desigualdades do trabalho acadêmico no período de pandemia, a adesão de algumas pesquisadoras da Psicologia à racionalidade neoliberal impediu o reconhecimento de que, atualmente, ser professora universitária e pesquisadora PQ/CNPq não garante privilégios, já que são trabalhadoras submetidas a níveis de exploração e precarização cada vez mais ampliados.
Por outro lado, entre outras pesquisadoras PQ, notou-se um deslocamento nas concepções que naturalizam as iniquidades entre homens e mulheres e as desigualdades de raça entre as mulheres brancas e não brancas. Assim, notamos que as pesquisadoras se encontram diante de um tensionamento de forças que as mobilizam em direção à desconstrução das desigualdades de gênero, classe e raça, bastante sedimentadas na ciência e na Psicologia. Destacamos que o presente estudo apresentou limitações importantes quanto à sua amostra. Dentre as pesquisadoras entrevistadas, somente uma pesquisadora se declarou não branca, o que impossibilitou discutir as desigualdades de gênero e raça a partir da realidade de pesquisadoras negras da Psicologia em maior extensão. Outros trabalhos nessa direção, na área da Psicologia, podem avançar nessa discussão.











Curriculum ScienTI


