SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.28 número2Evidências de Validade do Authentic Leadership Integrated Questionnaire para uma População BrasileiraA Práxis Marxista para e como Politização do Trabalho do Psicólogo no SUS índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Estudos de Psicologia (Natal)

versão impressa ISSN 1413-294Xversão On-line ISSN 1678-4669

Estud. psicol. (Natal) vol.28 no.2 Natal maio/ago. 2023  Epub 14-Mar-2025

https://doi.org/10.69909/1678-4669.20230016 

Psicologia Social do Trabalho

O Trabalho Reprodutivo na Pandemia: entre Sobrevivência e Sobrecarga

Reproductive work in the pandemic: between survival and overload

Trabajo reproductivo en la pandemia: entre supervivencia y sobrecarga

Luiza Caetano Affonso1 

Bacharela em Psicologia pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), é pesquisadora no Grupo de Pesquisa Pulsional da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Endereço para correspondência: Rua General Telles, 863 apto 101-A, Pelotas/RS. Cep 96.010-310. Telefone: (53) 98462-1136. Email: luiza.affonso@hotmail.com


http://orcid.org/0000-0001-9661-2324

Camila Peixoto Farias1 

Doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é Professora da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Email: pfcamila@hotmail.com


http://orcid.org/0000-0002-3442-5512

Giovana Fagundes Luczinski1 

Doutora em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), é Professora da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Email: giovana.luczinski@gmail.com


http://orcid.org/0000-0001-8318-8157

1Universidade Federal de Pelotas


Resumo

O presente artigo aborda o trabalho reprodutivo, historicamente relegado às mulheres, e seus desdobramentos no contexto inicial da pandemia do Coronavírus. Para tal, foi analisado um recorte da pesquisa “Agora é que são elas: a pandemia de COVID-19 contada por mulheres” articulando dados quantitativos e qualitativos, numa triangulação metodológica entre abordagens da psicologia e as teorias feministas alicerçadas no materialismo histórico. Foram analisadas 584 respostas ao questionário divulgado, especificamente aquelas referentes ao maior desafio vivido nos meses iniciais da pandemia, elencando as mulheres mães heterossexuais que estiveram trabalhando nesse período. Os relatos evidenciam questões de sobrevivência e sobrecarga como os maiores desafios enfrentados pelas respondentes, expondo a necessidade de desgenerificar o trabalho doméstico em direção à responsabilização coletiva. As análises interseccionais desvelam especificidades nas vivências de mulheres brancas e negras, fundamentadas na articulação entre as dimensões de gênero, raça e classe, convocando as psicologias a explicitar o lugar em que se situam, localizando teorias, pesquisas e intervenções.

Palavras-chave: trabalho reprodutivo; pandemia; gênero; feminismo; psicologia

Abstract

This article aims to dicusss the reproductive work, historically relegated to women, and its consequences in the initial context of the new Coronavirus pandemic. To this end, an excerpt from the research “Now is who they are: the COVID-19 pandemic told by women” was analyzed, articulating quantitative and qualitative data, in a methodological triangulation between psychology approaches and feminist theories based on historical materialism. We analyzed 584 responses to the published questionnaire, specifically those referring to the greatest challenge experienced in the initial months of the pandemic, listing the heterosexual mothers who were working during this period. The reports show issues of survival and overload as the biggest challenges faced by the respondents, exposing the need to de-gender domestic work towards collective responsibility. The intersectional analyzes reveal specificities in the experiences of white and black women, based on the articulation between the dimensions of gender, race and class, inviting psychologies to explicit where they are placed, locating theories, researches and interventions.

Keywords: reproductive work; pandemic; gender; feminism; psychology

Resumen

Este artículo aborda el trabajo reproductivo, históricamente relegado a las mujeres, y sus consecuencias en el contexto inicial de la pandemia del nuevo Coronavirus. Para ello, se analizó un extracto de la investigación “Ahora son quienes son: la pandemia de la COVID-19 contada por mujeres”, articulando datos cuantitativos y cualitativos, en una triangulación metodológica entre los enfoques de la psicología y las teorías feministas basadas en el materialismo histórico. Se analizaron 584 respuestas al cuestionario publicado, específicamente aquellas referidas al mayor desafío vivido en los meses iniciales de la pandemia, enumerando a las madres heterosexuales que estuvieron trabajando durante este período. Los informes muestran cuestiones de sobrevivencia y sobrecarga como los mayores desafíos enfrentados por los encuestados, exponiendo la necesidad de des-generizar el trabajo doméstico hacia la responsabilidad colectiva. Los análisis interseccionales revelan especificidades en las experiencias de mujeres blancas y negras, a partir de la articulación entre las dimensiones de género, raza y clase, convocando a las psicologías a esclarecer el lugar donde se ubican, ubicando teorías, investigaciones e intervenciones.

Palabras clave: trabajo reproductivo; pandemia; género; feminismo; psicología

A pandemia de COVID-19 vem sendo considerada uma das maiores emergências internacionais de saúde pública das últimas décadas e, especialmente no contexto brasileiro, esse cenário não se limita a uma crise sanitária. Trata-se da crise inerente ao modo de produção capitalista, que se desdobra em catástrofe com as diretrizes político-econômicas mesclando o neoliberalismo a uma ideologia de extrema-direita, marca do governo de Jair Bolsonaro (2019-2022). Diferente das definições de catástrofe apoiadas nas ciências naturais ou exatas, Sá et al. (2020) afirmam que existe uma dimensão traumática coletiva em relação a COVID-19, engendrando uma catástrofe psicossocial, além de sanitária.

Os meses iniciais da pandemia, amplamente denominados de quarentena devido às medidas restritivas, foram marcados por angústias, medos, incertezas e adaptações. O distanciamento social, a falta de perspectivas sobre as vacinas e o pouco conhecimento sobre o vírus e sua forma de contágio fizeram deste um contexto especialmente crítico. Entre as medidas adotadas no Brasil naquele momento, com o Decreto nº 10.282, de 20 de março de 2020, tivemos o fechamento de instituições não consideradas essenciais à manutenção direta da vida. Escolas, creches, academias, escritórios, órgãos dos setores públicos e privados foram fechados, priorizando as atividades relacionadas aos trabalhos de cuidado como assistência à saúde, assistência social e atendimento à população em estado de vulnerabilidade. Nesse contexto, o trabalho reprodutivo adquiriu grande importância - ainda que temporária - pelo caráter essencial das atividades relacionadas ao cuidado e a sobrevivência. Destinadas preponderantemente às mulheres, são tarefas cuja importância é esvaziada de materialidade, não refletindo em valorização, visibilidade, salário ou respaldo institucional e social. Simultaneamente, aquelas que puderam trabalhar de forma remota, no período da chamada quarentena, viram o trabalho dito produtivo invadir o ambiente doméstico, dissolvendo a separação entre público e privado e intensificando as múltiplas jornadas (Lemos et al., 2020). Essa dissolução também expôs o que se tenta encobrir no ambiente privado sobre o trabalho reprodutivo: sua carga extenuante e interminável.

O trabalho reprodutivo, portanto, em oposição ao conceito de trabalho produtivo, não produz imediatamente mercadorias (Góis, 2019). Na esfera da reprodução social, temos o trabalho doméstico não remunerado, invisível, desempenhado majoritariamente por mulheres, que consiste na produção do bem mais precioso do capitalismo: a força de trabalho (Federici, 2019). Segundo Federici (2019), os afazeres domésticos não só têm sido impostos às mulheres, como também atribuído a uma natureza feminina e tem na sua condição de não remuneração o fortalecimento da ideia de que as mulheres o fazem por amor. O trabalho de manter e reproduzir a vida vai muito além de limpar a casa: “é servir aos assalariados física, emocional e sexualmente, preparando-os para o trabalho dia após dia” (Federici, 2019, p. 68), além de cuidar das crianças, idosos e outros familiares. Segundo um estudo apresentado por Melo et al. (2016), o trabalho do cuidado não remunerado representa mais de 12% do PIB nacional no período de 2001 a 2011. Estima-se que em torno de US $10,8 trilhões por ano na economia global. É o que vem sendo chamado de “economia do cuidado” (OXFAM, 2020).

A teoria feminista da reprodução social colocou no centro da análise uma questão pouco elaborada por Marx, que há muito vem sendo desenvolvida por pesquisadoras e feministas dentro da tradição viva do marxismo: se a força de trabalho produz valor, como a força de trabalho é, ela mesma, produzida? (Bhattacharya, 2019). Neste artigo, temos a intenção de analisar e refletir sobre o trabalho reprodutivo em nossa sociedade, historicamente relegado as mulheres, e seus desdobramentos no contexto inicial da pandemia do novo Coronavírus. A análise se dará a partir de um recorte de dados coletados pela pesquisa “Agora é que são elas: a pandemia de COVID-19 contada por mulheres” - realizada pelo laboratório Pulsional (UFPel), em parceria com os laboratórios Epoché (UFPel) e marginália (UFRJ) - em diálogo com as teorias e com o movimento feminista. Entre as respostas à referida pesquisa, elegemos os seguintes marcadores para a análise: mulheres brancas e negras, heterossexuais, mães, de baixa renda (de 0 a 4 salários mínimos), que continuaram trabalhando durante a pandemia e cuidavam de filhos e outros familiares. Vale aqui ressaltar que não partimos de uma ideia universalizante da categoria mulher, um mito construído e amplamente difundido, mas das múltiplas e mutáveis formas de “mulheridades”1 possíveis, por uma perspectiva que articula classe, raça e gênero com as diferentes experiências engendradas.

O marcador social da heterossexualidade se justifica, em um primeiro momento, pelo fato de que a heteronorma é base da reprodução do sistema capitalista, na medida em que “o patriarcado, a família e o casamento estão diretamente imbricados na esfera da reprodução, sendo uma construção social, cultural e histórica” (Passos & Nogueira, 2020, p. 2). Partindo desta constatação, a investigação também buscou entender se o parceiro/cônjuge, quando houvesse, ocupava ou não um lugar de familiar a ser cuidado na dinâmica do trabalho doméstico na pandemia. A pergunta desencadeadora escolhida para a condução da análise aqui apresentada foi “Quais estão sendo seus maiores desafios frente à pandemia de COVID-19?”.

Como pesquisadoras brancas, psicólogas, implicadas com a temática de gênero e engajadas na desnaturalização dos processos sexistas evidenciados pelas respostas analisadas, assumimos a postura ética de uma pesquisa situada, identificada e comprometida com as participantes - mulheres que dedicaram seu tempo para relatar suas experiências em um momento de perplexidade e terror: os meses iniciais da pandemia de COVID-19.

Inicialmente, abordaremos o caminho metodológico delineado no encontro com os dados e os afetos provocados nesse trajeto. Em seguida, faremos uma breve contextualização do trabalho doméstico, analisando as narrativas a partir das teorias e da apresentação da discussão proposta pelas autoras e militantes feministas Angela Davis e Silvia Federici. Por fim, localizaremos o trabalho doméstico na pandemia, dialogando com as narrativas no cenário pandêmico. O aprofundamento do debate entre as referidas autoras e as participantes da pesquisa tem como horizonte a psicologia e seu vasto campo de atuação - o qual é convocado urgentemente a localizar teorias, pesquisas e práticas.

Método

A pesquisa “Agora é que são elas: a pandemia de COVID-19 contada por mulheres” foi desenvolvida entre os meses de abril e junho de 2020, fruto da inquietude em não encontrar nas narrativas hegemônicas a pluralidade de realidades vivenciadas por mulheres durante a pandemia. Foi elaborado um instrumento virtual, em forma de questionário, que permitisse respostas objetivas, mas também o compartilhamento de experiências, histórias e sentimentos vividos no período. Em seguida, o questionário online foi divulgado em diferentes plataformas com um convite às mulheres para compartilharem, de forma anônima, percepções sobre suas vidas durante a pandemia. A preservação da identidade das participantes e a proteção das mesmas quanto a riscos ou perdas fazem parte das considerações éticas da pesquisa, que só foi divulgada após a aprovação do comitê de ética da instituição de ensino a qual está vinculada (CAAE: 31203220.3.0000.5317). Contendo perguntas diretas como idade, cor/raça, orientação sexual, renda e questões abertas e reflexivas sobre as mudanças enfrentadas nesse contexto, o questionário ficou disponível por 14 dias, tendo a surpreendente marca de quase 6 mil participantes. Esta ampla adesão sugere que o instrumento se constituiu como um campo acolhedor para os relatos das diferentes realidades trazidas pelas respondentes, produzindo uma riqueza de narrativas de dentro do contexto pandêmico e que foram analisadas ainda durante a pandemia.

O estudo foi realizado por pesquisadoras vinculadas à psicanálise e à fenomenologia, que assumem uma posição parcial, situada e corporificada frente aos dados-fenômenos e a implicação com o que se propõem a pesquisar. A costura entre essas perspectivas se dá a partir de uma análise clínico-qualitativa (Turato, 2013) alicerçada socialmente, que localiza tanto as pesquisadoras quanto as respondentes de forma interseccional. As discussões empreendidas também se ancoram no materialismo histórico, através das teóricas feministas, situando as opressões historicamente, evidenciado facetas da existência material. Distante de um modelo tradicional de ciência, que busca por resultados verificáveis e replicáveis, ou mesmo uma pretensa neutralidade, a pesquisa não objetiva universalizar ou oferecer respostas definitivas, mas se deixar afetar pelas narrativas e observar as reverberações que o encontro com os dados produz. Assim, o fazer científico na pesquisa localizada (Haraway, 1995) passa por descrever os processos do percurso metodológico, situar os saberes, levantar interpretações possíveis e colocá-las em diálogo com as teorias, por meio da narrativa transferencial (Figueiredo & Minerbo, 2006), que dá a marca da singularidade ao que se descobre e ao que se cria. No mesmo sentido, a psicóloga e pesquisadora Sofia Favero (2020) aponta que a escrita posicionada se desloca da essencialização das identidades para os encontros e para uma preocupação ética “que deixa de ser expressa em ‘culpa’ ou ‘receio’ quanto ao uso dos dados” (Favero, 2020, p. 12) e passa a ter centralidade nos efeitos gerados por um encontro.

Dentro do amplo conjunto de dados coletado na pesquisa supracitada, o recorte escolhido para o presente estudo refere-se aos seguintes marcadores: renda, raça, maternidade, orientação sexual e trabalho. Assim, configurando dois grupos de análise: (1) mulheres brancas, heterossexuais, mães, de baixa renda (de 0 a 4 salários-mínimos), que continuaram trabalhando durante a pandemia e cuidavam de filhos e outros familiares; e (2) mulheres negras, heterossexuais, mães, de baixa renda (mesmo valor acima), que continuaram trabalhando durante a pandemia e que cuidavam de filhos e de outros familiares. Foram 584 respondentes com tais características para a pergunta disparadora: “Quais estão sendo seus maiores desafios frente à pandemia de COVID-19?”. Entre elas, 135 mulheres se declararam negras e 449 mulheres se declararam brancas.

As respostas das 584 mulheres a pergunta escolhida foram lidas e analisadas transferencialmente. Diante dos múltiplos relatos, se constituiu a etapa de agrupar aqueles que afetaram e impressionaram as pesquisadoras, percebendo unidades de sentido, pontos de tensão e concordâncias (Figueiredo & Minerbo, 2006). Iniciou-se o processo de encontrar/construir os dois grandes eixos que abarcam as respostas selecionadas, para então traçar as discussões e o diálogo com as teorias. Os relatos apresentados de forma literal neste artigo foram referenciados de acordo com o número do questionário preenchido de maneira anônima. Cabe salientar que todas as respostas selecionadas foram analisadas, aparecendo, em sua grande maioria, os temas da sobrecarga e da sobrevivência como preponderantes. Assim, foram elencadas para o presente artigo as falas mais representativas.

Não é Amor, é Trabalho Doméstico!

Durante os primeiros meses da pandemia, já era possível afirmar que seu impacto e seus desdobramentos não seriam os mesmos para os diferentes grupos sociais. As adaptações necessárias para a contenção da proliferação do vírus, como a adoção de home office para uma parcela da população, a educação remota, as orientações de higiene e limpeza, o isolamento, o fechamento de diversos setores que impactam a economia, bem como a exigência de maior cuidado e vigília, expuseram essa diferença. Diante desse cenário, a pesquisa surge da necessidade de ouvir o que as mulheres tinham - e têm - a dizer para construir ações de enfrentamento e cuidado, no âmbito da psicologia. A pergunta disparadora - sobre quais os maiores desafios enfrentados, frente à pandemia - traz à cena uma infinidade de relatos a respeito da sobrecarga das múltiplas jornadas de trabalho e da luta pela sobrevivência.

Se são as mulheres que mais sofrem em situações de crise (Paiva & Cabral, 2020), as respostas da pesquisa evidenciam o que é notório e comprovado: que os marcadores sociais de raça e classe aprofundam as vulnerabilidades. Ocupando lugares sociais distintos, as mulheres negras enfrentam não só o machismo, mas o racismo, a disparidade econômica e uma série de violações de direitos, intensificadas na pandemia. Mas, antes de adentrar os relatos e suas análises, é preciso fazer alguns apontamentos sobre a historicidade do trabalho doméstico e suas diferenciações.

O trabalho doméstico e de cuidado consiste em um dos pilares da produção capitalista (Federici, 2021), imposto às mulheres e atrelado a uma “natureza” feminina como parte fundamental da opressão e desigualdade de gênero até os dias atuais. Angela Davis (2016), na obra “Mulheres, raça e classe”, aponta para o surgimento da “dona de casa” como um subproduto ideológico da separação estrutural entre economia privada do lar e economia pública do capitalismo. Segundo Davis (2016), as concepções do século XIX estabeleceram a dona de casa e mãe como modelos universais de feminilidade, ainda que esse papel não representasse a realidade de mulheres negras na coerção da escravidão e das imigrantes assalariadas nas fábricas.

Na esfera do trabalho reprodutivo, o trabalho doméstico pode ser não remunerado, quando feito para a manutenção de si e do próprio núcleo familiar, e remunerado quando feito fora de casa, com a “terceirização” das tarefas domésticas, realizado em geral por mulheres negras e pobres (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada [IPEA], 2020), que acumulam a jornada com o trabalho em seus lares. Essas trabalhadoras “assumem o trabalho doméstico de famílias mais abastadas, possibilitando que os homens sigam se desresponsabilizando por este trabalho e que outras mulheres, em geral brancas e com maiores recursos, possam ‘resolver’ sua sobrecarga de trabalho doméstico” (IPEA, 2020, p.7). O trabalho doméstico assalariado abarca uma das maiores forças de trabalho femininas no Brasil. Segundo publicação da ONU Mulheres sobre a campanha das trabalhadoras domésticas por direitos durante a pandemia de Covid-19, são 6 milhões de profissionais, sendo mais de 90% mulheres, das quais 60% são mulheres negras (ONU Mulheres, 2020).

Esse cenário expressa a divisão sexual e racial do trabalho, tendo no Brasil relação direta com uma herança colonial e escravagista, vinculada a construção da nossa formação social (Gouveia & Zanello, 2019) que permanece viva e incrustada na cultura. Assim, a experiência da pandemia atravessada pelo patriarcado-racismo-capitalismo (Saffioti, 1987) se expressa de diferentes formas e intensidades na vida de mulheres brancas e negras, e as narrativas a seguir, que respondem nossa questão central de análise, evidenciam essa diferença. Entre os desafios apontados pelas participantes negras, nas narrativas (09), (58), (68), (72) e (82) encontramos: “Enfrentar o transporte público e lugares públicos, que continuam cheios” (09). “Cuidar da minha saúde tendo que me deslocar para o trabalho todos os dias, ficar longe de minha família, usar o transporte público” (58). “Lutar pra sobreviver. Ficar longe do meu filho” (68). “Além de enfrentar a pandemia é triste termos de conviver com o preconceito” (72). “Lutar para o trabalho doméstico não ser incluído como atividade essencial” (82).

Não ter direito ao isolamento social, ficar longe da família, conviver com o risco de contágio nos espaços públicos e com o racismo são alguns dos agravantes da experiência da pandemia narrada por respondentes negras. No relato (68), une-se ao desafio de ficar longe do filho, a luta pela sobrevivência. O racismo e o sexismo na cultura brasileira, como apontado por Lélia Gonzalez (1984), produz efeitos violentos sobre a mulher negra em particular, efeitos estes intensificados em contextos de crise. O relato (82) revela com precisão a aparente contradição da essencialidade do trabalho doméstico no contexto pandêmico, pois mesmo se tratando de um trabalho essencial para a reprodução da vida e da ordem capitalista, sua terceirização, na forma de trabalho doméstico remunerado, não é uma atividade indispensável as necessidades da população e mesmo assim é preciso lutar para que não seja incluído como tal. Os relatos (74) e (208) abaixo, de participantes brancas, exemplificam alguns aspectos importantes sobre as diferentes experiências narradas: “Os maiores desafios estão sendo cuidar da casa, filho, mãe, trabalho e faculdade. Decidimos liberar a pessoa que nos ajuda nos cuidados da casa em razão dela estar grávida e ser asmática” (74).

Estar dependendo dos outros, o que me deixa sem autonomia; acúmulo de serviços domésticos que tomam tempo precioso para o desenvolvimento de estratégias e ideias para trabalhar e retomar minha independência financeira.... me tornei a empregada da casa e meus planos e projetos pessoais acabam ficando pra depois. (208)

Observamos que o maior desafio apontado pela participante negra, no relato (82), foi o de lutar para que o trabalho doméstico não estivesse na lista de atividades essenciais. Já o da participante branca, no relato (74), foi o de não contar com a terceirização das tarefas domésticas, ao dispensar a trabalhadora doméstica. O relato (74) permite esmiuçar aspectos da branquitude atrelados ao discurso da participante, quando ela apaga o gênero e a condição de trabalho da trabalhadora doméstica, ao utilizar “pessoa que nos ajuda no cuidado da casa”. A tentativa de atenuar a relação de trabalho da empregada doméstica, por parte de seus empregadores, é algo recorrente na cultura do trabalho doméstico (mal) remunerado e racista no Brasil. O uso do termo “liberar” (da exploração desse trabalho?), também chama a atenção para afirmar que a dispensa foi uma decisão dos patrões, parecendo um favor em função de sua condição de grávida e de asmática, e não por orientações de decretos governamentais. Para a psicóloga e pesquisadora de relações raciais com foco na branquitude, Lia Schucman (2014),

a branquitude é entendida como uma posição em que sujeitos que ocupam esta posição foram sistematicamente privilegiados no que diz respeito ao acesso a recursos materiais e simbólicos, gerados inicialmente pelo colonialismo e pelo imperialismo, e que se mantêm e são preservados na contemporaneidade. (p. 84)

O relato (208), de uma participante branca, traz a falta de autonomia e o acúmulo do trabalho doméstico vivido na pandemia como maiores desafios enfrentados, e revela uma situação bastante expressiva da diferença entre as experiências narradas, quando fala “me tornei a empregada da casa”. Essa narrativa possibilita refletir sobre como a pandemia, para muitas respondentes brancas, significou passar a realizar os serviços domésticos que antes não realizavam, ou fazê-los com maior frequência e intensidade. Ao relacionar esse trabalho desempenhado no próprio lar ao papel de empregada, a participante indica que as tarefas domésticas não eram sua principal responsabilidade antes, mesmo sendo mulher, mas configuram a ocupação que agora lhe é atribuída por sua condição de gênero: a de empregada. A correlação direta que a participante faz entre o trabalho doméstico e a impossibilidade da independência financeira também expõe a dimensão da subordinação e o apagamento de si imposto às mulheres diante da carga das tarefas domésticas, quando coloca “meus planos e projetos pessoais acabam ficando pra depois”.

Diante disso, não se pretende individualizar a questão do trabalho doméstico e de cuidado ou apontar como um problema privado das famílias, mas discutir as diferentes formas e contextos em que ele se apresenta na organização social capitalista, especialmente nesse momento de pandemia. A Teoria da Reprodução Social (TRS) se debruça sobre o trabalho de reprodução como parte sistêmica totalizante do capitalismo e como componente fundamental do processo econômico. Essa visão expandida contribui para a compreensão das diferenças marcadas nas narrativas, na medida em que “revela que o processo histórico real pelo qual o capitalismo emergiu em nosso mundo envolveu integralmente relações sociais de raça e dominação racial, de gênero e dominação heterocispatriarcal” (Fonseca, 2019, p. 292). No período inicial da pandemia, dois casos são emblemáticos para ilustrar a situação exposta pelas narrativas. A primeira morte oficialmente registrada por Covid-19 no estado do Rio de Janeiro, em 17 de março de 2020, foi de uma trabalhadora doméstica negra que contraiu a doença de sua empregadora, que havia regressado da Itália (IPEA, 2020, p. 7). A patroa sobreviveu à doença, mas a trabalhadora, usuária do SUS, que não teve direito à quarentena, não resistiu. O segundo caso foi a trágica morte do menino Miguel, de apenas 5 anos, no dia 2 de junho de 2020, que caiu do 9º andar de um prédio de luxo em Recife, no qual sua mãe, uma mulher negra, trabalhava como empregada doméstica. Nos dois casos, as trabalhadoras domésticas estavam em atividade, sem que o trabalho doméstico remunerado estivesse incluído na lista de serviços essenciais e contrariando a Nota Técnica 04/2020 do Ministério Público do Trabalho que, entre outras orientações, recomendava “que a pessoa que realiza trabalho doméstico seja dispensada do comparecimento ao local de trabalho, com remuneração assegurada, no período em que vigorarem as medidas de contenção da pandemia do coronavírus” (Ministério Público do Trabalho, 2020, p. 6).

Essa realidade escancara o quanto o trabalho doméstico remunerado foge as relações de trabalho formalizadas por normas, decretos e leis, mesmo após toda a luta da categoria pela regulamentação e a aprovação da Emenda Constitucional n.º 72/2013, que ficou conhecida como a “PEC das Domésticas”, com destaque para a atuação da Deputada Federal Benedita da Silva na conquista. Também expõe o quanto o racismo acabou por tornar o distanciamento social na pandemia um direito não disponível às pessoas negras (Menezes et al., 2020). Além disso, o cenário exposto possibilita abrir a discussão acerca da proposta de exigir salário ao trabalho doméstico, pautada por alguns movimentos e coletivos feministas desde a década de 1970 como o Movimento pela Remuneração das Tarefas Domésticas, na Itália.

A reivindicação de salário para o trabalho doméstico, reiterada por Silvia Federici em suas obras, é tratada como uma estratégia revolucionária pelo potencial de enfraquecer o papel designado às mulheres na divisão sexual do trabalho. Angela Davis, ao contra-argumentar a proposta, expõe que as mulheres de minorias étnicas, principalmente as negras, já vêm sendo pagas pelo trabalho doméstico há incontáveis décadas e que são as faxineiras, empregadas domésticas e arrumadeiras “que sabem melhor do que ninguém o que significa ser remunerada pelas tarefas domésticas” (Davis, 2016, p. 238). Davis (2016) coloca que a luta das trabalhadoras domésticas esteve na recusa do papel de donas de casa substitutas e no delineamento nítido do trabalho a ser realizado. Para a autora, diferente do que pauta o Movimento pela Remuneração das Tarefas Domésticas, a condição dessas trabalhadoras, mesmo remuneradas, continua sendo a mais miserável do que qualquer outro grupo profissional no capitalismo (Davis, 2016).

Diante dos argumentos expostos, é preciso considerar a realidade do trabalho doméstico mal remunerado no Brasil e seu caráter racista, que tem na figura da empregada doméstica uma herança colonial simbólica - e não apenas prática - dos serviços prestados. Nesse sentido, a estratégia de exigir salário para o trabalho doméstico parece não dialogar com as demandas materiais, históricas e atuais, das mulheres trabalhadoras do sul global. É compreendido que essa estratégia não se reduza somente a demanda do pagamento por esse trabalho, mas no desvelamento das questões ocultas da expropriação do trabalho reprodutivo das mulheres, que acontece ao exigi-lo, bem como a denúncia da jornada invisível que sustenta toda a organização social e produtiva.

Na tentativa de nos afastarmos de dicotomias excludentes e do fechamento desse importante debate, propomos dar continuidade as reflexões trazidas pelas autoras e militantes, que vêm sendo desenvolvidas desde muito antes do período pandêmico, na seção a seguir.

O Trabalho Doméstico na Pandemia

O contexto inicial da pandemia foi marcado por uma experiência de ruptura que localiza a dimensão coletiva do trauma vivido nos meses de maior angústia, incertezas e boletins epidemiológicos assustadores (Sá et al., 2020). Durante esse período, uma parcela da população teve a possibilidade de trabalhar de forma remota, no chamado home office. Desde então, as mulheres vêm apontando a perspectiva de gênero como imprescindível para compreender os diferentes impactos causados pela pandemia. A violência doméstica e a violência sexual contra mulheres e meninas teve um aumento exponencial nas configurações impostas pela quarentena, pois muitas vezes a própria casa é um dos lugares mais inseguros para as mulheres (Lobo, 2020). A essa altura, a ONU Mulheres (2020) já havia classificado como preocupante o prognóstico da pandemia para a população feminina mundial e explicitou isso no relatório “Gênero e Covid-19 na América Latina e no Caribe”.

O relatório da pesquisa “Sem Parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia”, indica que 41% das mulheres que seguiram trabalhando durante a pandemia, com manutenção de salários, afirmaram trabalhar mais na quarentena, sendo 55% delas brancas e 44% negras (Sempreviva Organização Feminista, 2020). Nas respostas do questionário da pesquisa “Agora é que são elas” muitos relatos evidenciam esse aumento de trabalho como um dos maiores desafios enfrentados no período pandêmico. Nas respostas das participantes brancas, aparecem com maior frequência questões relacionadas a sobrecarga, isolamento e trabalho remoto, como vemos a seguir: “Tenho trabalhado e estudado muito mais (89). Conciliar infinitas atividades remotas” (108). “Teletrabalho, capacitações para teletrabalho, reuniões online, junto com todos afazeres diários” (168). “Ter que lidar com a sobrecarga e o isolamento” (187).

Nos relatos das participantes negras, o desafio de conciliar as tarefas e o aumento de trabalho durante a pandemia se apresentam com diferentes elementos: “Manter meu trabalho de fora com as atividades de casa e das tarefas do meu filho” (23). “Lidar com uma rotina diferente, preocupação com os cuidados da família toda, trabalhar com tecnologias que não domino, ficar longe de familiares, amigos” (28).

Mesmo com os ajustes impostos pela pandemia, presentes nas respostas dos dois grupos, os relatos (23) e (28) de participantes negras não apontam a sobrecarga de tarefas domésticas como principal desafio ou preocupação, mas sim a mudança na rotina, conciliar as atividades com tarefas do filho, preocupação com os cuidados da família e uso de tecnologias. Já nos relatos das participantes brancas é possível concluir que o formato do trabalho remoto, para muitas, inaugurou ou intensificou a sobrecarga com os afazeres domésticos, como aponta, por exemplo, o estudo de Araújo e Lua (2021) que analisou o trabalho remoto e diferenciais de gênero no contexto de pandemia. Também podemos perceber nos relatos (30) e (70) a seguir, de participantes brancas, que aquelas que vivem com seus parceiros acumulam ainda o cuidado com a relação e veem como um desafio o manejo da convivência familiar na quarentena. “A preocupação de proteger meus filhos, conciliar o trabalho com as tarefas de casa e da escola, conviver com meu marido” (30). “Manter as medidas de prevenção mesmo sem colaboração de outros membros da família. A convivência familiar e conciliar o home office com a maternidade e o trabalho doméstico. Mesmo com a ajuda do meu marido, ainda assim, fico sobrecarregada” (70).

Esses relatos confirmam afirmações encontradas em estudos sobre a responsabilidade com o trabalho de o cuidado ser historicamente relegada às mulheres e evidenciam que “embora seus parceiros estejam em casa, o peso dos afazeres domésticos recaiu em seus ombros” (Lemos et al., 2020, p. 394). Além disso, para discutir os maiores desafios enfrentados pelas mulheres na pandemia de Covid-19 é preciso debater a maternidade nesse contexto, tendo em vista que entre as mulheres, as mães foram ainda mais impactadas pela crise, e as mães solo foram especialmente atingidas. Como apontado por Silva et al. (2020), além das consequências do fechamento de escolas e creches e as restrições de deslocamento, o isolamento social impede também que as mulheres acessem suas redes de apoio. Conciliar a maternidade com as demais jornadas de trabalho durante a pandemia, também esteve mais presente entre os desafios elencados pelas participantes brancas, como vemos nas narrativas (21), (46), (59) e (284): “Tarefas domésticas diárias e cuidado do filho em tempo integral”(21). “Dar aula online e ficar em casa com um bebê de 1 ano e 9 meses” (46). “Dar aula online e conciliar os cuidados com as filhas em casa” (59). “Estar o dia todo cuidando do meu filho, lidar com o sentimento de retrocesso profissional” (284).

Dois dos relatos trazem a sobrecarga do ensino remoto para mães que são profissionais da educação, mostrando também o “outro lado” do fechamento das instituições de ensino. O relato (284) fala do sentimento de retrocesso profissional vivido pela participante branca, questão que não apareceu nas respostas das participantes negras. Cabe ressaltar que se o capital explora ao limite a força de trabalho das mulheres em ambas as esferas da produção e reprodução social, obstaculizando melhores oportunidades profissionais, com as mulheres negras os obstáculos são ainda mais perversos (Passos & Nogueira, 2020). Em relação à vida profissional e a maternidade, as narrativas de participantes negras apontam desafios distintos dos elencados pelas participantes brancas, expressos nos relatos (29), (38) e (46): “Me manter atualizada profissionalmente, combatendo a sensação de desalento” (29). “Explicar a gravidade da situação aos filhos adolescentes que tenho em casa” (38). “Ter que lidar com os problemas de saúde do meu filho sem sequer conseguir ajudar” (46).

Para as participantes brancas, o desafio da maternidade na pandemia aparece como relacionado ao trabalho do cuidado em acúmulo com as demais tarefas. Para as participantes negras, parece estar mais ligado a preocupação com a saúde dos filhos e com a gravidade do contexto pandêmico. A psicóloga Valeska Zanello (2018) denomina o “dispositivo materno” enquanto um lugar de subjetivação em que as mulheres são constituídas como cuidadoras “natas” e que, junto ao modelo de “boa-mãe”, impõe que a mulher “deveria assim se apagar em favor de suas responsabilidades para com seus filhos (e marido), com a promessa de atingir a felicidade” (Zanello, 2018, p. 135). Por outro lado, para as mulheres negras, a maternidade é atravessada pelo colonialismo e racismo estrutural, que historicamente as relegou ao trabalho do cuidado de famílias brancas sem que pudessem, em sua grande maioria, cuidar de suas próprias famílias. Além disso, mulheres negras têm seus direitos sexuais e reprodutivos sistematicamente negados, sendo até mesmo alvo de políticas higienistas, ou perdem seus filhos assassinados pelo Estado. Dessa forma, é importante ressaltar que o “dispositivo materno” opera diferentemente na subjetivação de mulheres negras, em que o direito a exercer a maternagem configura-se, muitas vezes, como um elemento de luta e resistência (Lôbo & Souza, 2019).

Com a pandemia, do dia para a noite, recaiu também sobre as mulheres-mães o papel de educadoras, pedagogas e alfabetizadoras, com a realização de tarefas escolares e a responsabilidade pelo ensino-aprendizagem dos filhos com idade escolar. Os seguintes relatos apontaram essa nova tarefa das mulheres-mães como um dos grandes desafios na pandemia. As narrativas (08) e (12), de participantes negras, e a (11), (234) e (276) de participantes brancas, expõem essa dimensão: “Ser a principal responsável pela formação da minha filha. Me alimentar corretamente. Me exercitar” (08). “Manter uma rotina diária pra que as filhas não percam essa dinâmica. Acompanhar os estudos online com a filha mais nova” (12). “Conciliar todas as atividades diárias de bem estar da família com as atividades da aula do meu filho que está na alfabetização e depende da minha ajuda para ter as aulas” (11).

Organizar o meu tempo para ser mãe, esposa, filha, agente comunitária de saúde, “professora dos meus filhos”, fazer meus exercícios de pilates e dança de salão e me cuidar. Além, de ter tempo de mesmo distante, me fazer presente na vida de quem eu amo. (234)

Conseguir realizar as tarefas da casa, do trabalho, da escola da filha, organizar cardápio para todas as refeições e compras, brincadeiras para mantê-los entretidos, cuidar dos meus pais a distância sem colocá-los em risco, e manter estabilidade emocional! (276)

Mais uma vez, os desafios do novo papel imposto pela pandemia aparecem com diferentes focos e intensidades nas narrativas. Nas respostas das participantes negras, a preocupação se volta para a responsabilização pela formação, no acompanhamento dos estudos e na saúde. Nos relatos das participantes brancas, os maiores desafios estão em conciliar todos os papéis e tarefas com as atividades escolares dos filhos. O relato (234), de uma participante branca, exemplifica esse foco e expõe como desafiador a sobreposição de papéis e a organização deles para conseguir “se cuidar, fazer os exercícios de pilates e dança de salão”. Além do papel de professoras dos filhos, as narrativas (234) e (276) de respondentes brancas apontam para o acúmulo das tarefas de entreter, cuidar do cardápio diário da família e cuidar de familiares em suas casas e à distância, incorporando uma espécie de “cuidado remoto” nas tarefas domésticas. Esse cuidado à distância também aparece no relato (34), de uma participante negra: “Orientar quem está longe, pais, avós aos cuidados necessários (34)”. A modalidade do cuidado à distância não foi inaugurada na pandemia, mas foi igualmente naturalizada com as demais tarefas do cuidado, como uma responsabilidade específica das mulheres (Silva et al. 2020).

Assim, retomamos aqui a discussão feita pelas autoras Angela Davis e Silvia Federici acerca de como lidar com a questão do trabalho doméstico no movimento feminista e na luta das mulheres trabalhadoras. A proposta de Davis (2016) vai em direção a responsabilizar o Estado pelo trabalho reprodutivo, na medida em que as políticas neoliberais de desmonte do estado de bem-estar social e os cortes nas políticas sociais de assistência avançam, intensificando a chamada “crise do cuidado” (Fraser, 2020), enquanto uma crise da reprodução social. Davis (2016) também aponta os passos significativos dados pelos países socialistas, na eliminação da prisão do trabalho doméstico e reforça o interesse vital das trabalhadoras na luta pelo socialismo e na exigência de instituições como creches subsidiadas pelo poder público, as quais teriam um potencial revolucionário explosivo. Federici (2021) afirma que exigir salário contra o trabalho doméstico é uma forma de alcançar o reconhecimento do trabalho reprodutivo como tal, apontando tanto uma recusa da socialização da fábrica como a recusa da racionalização e da socialização do lar pelo capital. Para Davis (2016), a abolição das tarefas domésticas enquanto responsabilidade privada e individual das mulheres é nitidamente um objetivo estratégico da libertação feminina, mas propõe a socialização das tarefas domésticas e a necessidade de novas instituições sociais que assumam boa parcela das obrigações das “donas de casa”.

É possível dizer que a pandemia provocou a possibilidade de abertura para o reconhecimento do trabalho reprodutivo, colocando à luz da sociedade que o trabalho não termina quando acaba e que “nunca pertencemos a nós mesmas, sempre pertencemos ao capital, em todos os momentos de nossa vida” (Federici, 2019, p. 82). Na mesma medida, o contexto pandêmico expôs a urgência da desnaturalização do trabalho doméstico como um trabalho feminino e da sobrecarga que consome a vida das mulheres, de forma ainda mais intensa das mulheres negras, que já vivenciavam muitos dos desafios elencados antes da pandemia. Essa diferença de intensidade, engendrada pela articulação entre o racismo e o sexismo, expõe a naturalização da subalternização das mulheres negras, ao destiná-las a um determinado lugar social que é o da servidão. Todavia, como coloca Passos e Nogueira (2020), “essa servidão não é a mesma da mulher branca, pois, em grande medida foram retiradas das mulheres negras o direito à maternagem, à família, aos cuidados e ao seu próprio corpo” (2020, p. 1).

As análises aqui empreendidas também apontam para uma dimensão ainda mais invisibilizada da chamada “economia do cuidado”: o cuidado afetivo-emocional, que pode ser compreendido como cuidado em saúde mental que não é passível de ser mensurado. Na literatura científica recente sobre trabalho reprodutivo e trabalho doméstico, ainda são poucos os estudos que aprofundam, ou sequer mencionam, a dimensão do cuidado em saúde mental como um tipo específico de trabalho exercido por mulheres. Não obstante, esse trabalho fundamental tem um peso basilar na reprodução da vida e nas relações de produção (Bhattacharya, 2019). No contexto brasileiro, Biroli (2018) também contribui com o debate, refletindo sobre a centralidade do casamento e a necessidade de ampliar os sentidos de família para outras formas de organização coletiva, reduzindo a dependência das pessoas a um núcleo doméstico convencional e “permitindo outros padrões de compartilhamento de recursos, apoio, divisão do trabalho doméstico e cuidado recíproco” (p. 73).

Esse cenário evidencia que as propostas de Davis e Federici não precisam ser excludentes, mas complementares, e que respondem a necessidade de articular a luta do agora com a luta de um horizonte emancipatório não só para as mulheres, mas para toda a classe trabalhadora.

Considerações Finais

Através da perspectiva de gênero em constante articulação com raça, classe, orientação sexual, idade e maternidade, a pesquisa possibilitou o conhecimento das repercussões subjetivas relacionadas ao contexto inicial da pandemia e para além dele, nas diferentes encruzilhadas (Akotirene, 2018) que localizam as respondentes e as pesquisadoras. Os relatos sobre os principais desafios no período inicial da pandemia revelam pistas importantes sobre as experiências vividas por mulheres brasileiras naquele período, fazendo eco a inúmeros estudos, evidenciando os diferentes impactos gerados pela pandemia. São questões fundamentais para diversos campos do saber, como aquele no qual a pesquisa se situa: a Psicologia. As discussões aqui apresentadas expõem problemas que convocam a psicologia a questionar o lugar que tradicionalmente ocupou, majoritariamente alinhado a teorias brancas, eurocentradas, generalistas e patologizantes. As análises interseccionais dos dados desvelam especificidades nas vivências de mulheres brancas e negras, convocando as diferentes psicologias a deixarem nítido o lugar em que se situam. Os relatos também expõem uma das facetas mais cruéis da separação entre produção e reprodução no capitalismo: a expropriação do tempo integral das mulheres trabalhadoras para o acúmulo de capital.

Os desafios enfrentados pelas respondentes negras e brancas evidenciam diferenças de contexto significativas e atravessamentos históricos que repercutem atualmente, trazendo consequências em termos de saúde mental. A partir da discussão realizada, é possível inferir que as mudanças de configuração impostas pela pandemia apresentaram novos desafios para as participantes brancas e uma espécie de “mais do mesmo”, porém em uma nova escala, para as participantes negras, que já vivenciavam parte dos desafios intensificados pela pandemia. Nas palavras de Lélia Gonzalez (1984, p. 233): “parece que a gente não chegou a esse estado de coisas. O que parece é que a gente nunca saiu dele”.

A realidade do trabalho reprodutivo, enquanto um trabalho extenuante e exercido majoritariamente pelas mulheres exige diferentes formatos de luta em movimentos que podemos considerar táticos e estratégicos. A discussão trazida nesse artigo entre as autoras Angela Davis (2016) e Silvia Federici (2019, 2021) possibilita, ao invés da escolha de um caminho em detrimento de outro, uma articulação de propostas enraizadas em epistemologias comprometidas com a superação da sobrecarga e com a luta pela sobrevivência. A proposta de reivindicar salário pelo trabalho doméstico, como a própria Federici (2019) denomina, é uma estratégia de potencial revolucionário. Já a proposta de Davis (2016) de responsabilização do Estado frente ao trabalho doméstico, com pautas como redução da jornada de trabalho e novas instituições que retirem o trabalho reprodutivo da esfera privada, dialogam com o tempo presente e com a luta pela sobrevivência. Assim, conciliar as lutas de manutenção da vida e de transformação social na construção de uma utopia comum, mesmo com as contradições que ambas possam apresentar, parece um caminho possível e uma tarefa necessária.

No campo psi, é fundamental articular estratégias de acolhimento e cuidado quanto ao adoecimento causado pelo patriarcado-racismo-capitalismo e pela carga desumana de “ter que dar conta de tudo” posta nos ombros das mulheres. Não podemos perder de vista, a inscrição social e histórica do psiquismo para discutirmos os desdobramentos das realidades vividas pelas mulheres nesse momento de pandemia. Isso é fundamental para que ações de cuidado e de construção de políticas públicas possam efetivamente considerar a pluralidade de realidades vivenciadas por mulheres e seus desdobramentos subjetivos interseccionais.

Referências

Akotirene, C. (2018). O que é interseccionalidade (Coleção Feminismos Plurais). Letramento. [ Links ]

Araújo, T. M., & Lua, I. (2021). O trabalho mudou-se para casa: trabalho remoto no contexto da pandemia de COVID-19. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional (online), 46, e27. https://doi.org/10.1590/2317-6369000030720Links ]

Bhattacharya, T. (2019). O que é a teoria da reprodução social? Revista Outubro, 32. http://bit.ly/Bhattacharya2019Links ]

Biroli, F. (2018). Gênero e Desigualdades: os limites da democracia no Brasil. Boitempo. [ Links ]

Davis, A. (2016). Mulheres, raça e classe. Boitempo. [ Links ]

Decreto n. 10.282. (2020, 20 de março). Regulamenta a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, para definir os serviços públicos e as atividades essenciais. Presidência da República. [ Links ]

Favero, S. R. (2020). Pesquisando a dor do outro: os efeitos políticos de uma escrita situada. Pesquisas e Práticas Psicossociais, 15(3), 1-16. http://www.seer.ufsj.edu.br/index.php/revista_ppp/article/view/e3518/2397Links ]

Federici, S. (2019). O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. Elefante. [ Links ]

Federici, S. (2021). O patriarcado do salário: notas sobre Marx, gênero e feminismo (Vol. 1). Boitempo. [ Links ]

Figueiredo, L. C., & Minerbo, M. (2006). Pesquisa em psicanálise: algumas idéias e um exemplo. Jornal de Psicanálise, 39(70), 257-278. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-58352006000100017&lng=pt&nrm=iso&tlng=ptLinks ]

Fonseca, R. S. R. (2019). Contribuições da Teoria da Reprodução Social para o debate contemporâneo sobre as opressões. Revista Marx e o Marxismo - Revista do Niep, 7(13), 272-294. https://www.niepmarx.blog.br/revistadoniep/index.php/MM/article/view/340Links ]

Fraser, N. (2020). O velho está morrendo e o novo não pode nascer. Autonomia Literária. [ Links ]

Góis, T. (2019). Trabalho reprodutivo e bem comum: entre a luta contra a exploração e a urgência de barrar mercantilização da vida. In Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Marx e o Marxismo (Org.), Colóquio Marx e o Marxismo 2019: Marxismo sem tabus - enfrentando opressões. Resumos (p. 42). Niterói, Rio de Janeiro. [ Links ]

Gonzales, L. (1984). Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, 223-244. https://tinyurl.com/3wcbv3m6Links ]

Gouveia, M., & Zanello, V. (2019). Psicoterapia, raça e racismo no contexto brasileiro: experiências e percepções de mulheres negras. Psicologia em Estudo, 24. https://doi.org/10.4025/psicolestud.v24i0.42738Links ]

Haraway, D. (1995). Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, 5, 7-41. https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773/1828Links ]

Iinstituto de Pesquisa Econômica Aplicada. (2020). Nota técnica: vulnerabilidades das trabalhadoras domésticas no contexto da pandemia de Covid-19 no Brasil. https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/200609_nt_disoc_n_75.pdfLinks ]

Lemos, A. H. C., Barbosa, A. O., & Monzato, P. P. (2020). Mulheres em home office durante a pandemia da Covid-19 e as configurações do conflito trabalho-família. Revista de Administração de Empresas, 60. https://doi.org/10.1590/S0034-759020200603Links ]

Lobo, J. C. (2020). Uma outra pandemia no brasil: as vítimas da violência doméstica no isolamento social e a “incomunicabilidade da dor”. Tessituras: Revista de Antropologia e Arqueologia, 8(1), 20-26. https://doi.org/10.15210/TES.V8I0.18901Links ]

Lôbo, J. A., & Souza, I. F. (2019). Na Encruzilhada da Maternidade Negra. In Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Org.), XIII Reunião de Antropologia do Mercosul. Porto Alegre, RS. https://www.ram2019.sinteseeventos.com.br/site/anais2?AREA=94Links ]

Melo, H. P., Considera, C. M., & Di Sabbato, A. (2016). Dez anos de mensuração dos afazeres domésticos no Brasil. In N. Fontoura & C. Araújo (Orgs.), Uso do tempo e gênero (pp. 173-185). UERJ. [ Links ]

Menezes, C. R., Neto, C. E. S., & Ferreira, T. (2020). Branca cansada, preta morta: apontamentos sobre o trabalho doméstico e de cuidados e o contexto de pandemia de Covid-19. Revista Feminismos, 8(3), 190-207. https://periodicos.ufba.br/index.php/feminismos/article/view/42050Links ]

Ministério Público do Trabalho. (2020). Nota técnica conjunta. https://mpt.mp.br/pgt/noticias/nota-tecnica-no-4-coronavirus-1.pdfLinks ]

Nascimento, L. C. P. (2021). Transfeminismo. São Paulo : Jandaíra. [ Links ]

Onu Mulheres. (2020). Trabalhadoras domésticas fazem campanha por direitos durante a pandemia Covid-19 e articulam apoio da cooperação internacional. http://www.onumulheres.org.br/noticias/trabalhadoras-domesticas-fazem-campanha-por-direitos-durante-a-pandemia-covid-19-e-articulam-apoio-da-cooperacao-internacional/Links ]

Oxfam Internacional. (2020). Tempo de cuidar: o trabalho de cuidado não remunerado e mal pago e a crise global da desigualdade. https://www.oxfam.org.br/wpcontent/uploads/2021/04/1579272776200120_Tempo_de_Cuidar_PT-BR_sumario_executivo.pdfLinks ]

Paiva, I. L., & Cabral, L. I. (2020, 29 de junho). Notas sobre os efeitos da pandemia na vida das mulheres e a luta feminista. Observatório da População Infantojuvenil em Contextos de Violência, UFRN. https://obijuvufrn.medium.com/notas-sobre-os-efeitos-da-pandemia-na-vida-das-mulheres-e-a-luta-feminista-d3dcf78d204Links ]

Passos, R. G., & Nogueira, C. M. (2020). A divisão sociossexual e racial do trabalho no cenário de epidemia do Covid-19: considerações a partir de Heleieth Saffioti. Caderno CRH, 33, 1-9, e-020029. https://doi.org/10.9771/ccrh.v33i0.36118Links ]

Sá, M. C., Miranda, L., & Magalhães, F. C. (2020). Pandemia Covid-19: catástrofe sanitária e psicossocial. Caderno de Administração, 28, 27-36. https://doi.org/https://doi.org/10.4025/cadadm.v28iEdição E.53596Links ]

Saffioti, H. (1987). O poder do macho. Moderna. [ Links ]

Schucman, L. V. (2014). Sim, nós somos racistas: estudo psicossocial da branquitude paulistana. Psicologia e Sociedade, 26(1), 83-94. 10.1590/S0102-71822014000100010 [ Links ]

Sempreviva Organização Feminista. (2020). Pesquisa sem parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia. https://mulheresnapandemia.sof.org.br/wp-content/uploads/2020/08/Relatorio_Pesquisa_SemParar.pdfLinks ]

Silva, J. M. S., Cardoso, V. C., Abreu, K. E., & Silva, L. S. (2020). A feminização do cuidado e a sobrecarga da mulher-mãe na pandemia. Revista Feminismos, 8(3), 149-161. https://periodicos.ufba.br/index.php/feminismos/article/view/42114/23913Links ]

Turato, E. (2013). Tratado da metodologia da pesquisa clínico-qualitativa: Construção teórico-epistemológica, discussão comparada e aplicação nas áreas da saúde e humanas. Vozes. [ Links ]

Zanello, V. (2018). Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação. Appris. [ Links ]

Nota

01. Compreendemos que o termo “mulheridades” é uma importante contribuição do feminismo negro e do transfeminismo, que aponta para os processos de produção social dessa categoria e as diferentes possibilidades de vivenciá-la (Nascimento, 2021).

Recebido: 13 de Janeiro de 2023; Revisado: 31 de Maio de 2023; Aceito: 10 de Agosto de 2023

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons