Este artigo objetiva problematizar repercussões da Chacina do Curió, também conhecida como Chacina da Grande Messejana, que se deu na madrugada do dia 11 para o dia 12 de novembro de 2015, em territorialidades periféricas de Fortaleza, vitimando 11 pessoas, todas do sexo masculino, nove delas entre 16 e 19 anos. Essa chacina teve ampla repercussão nacional e foi considerada a maior da história recente do Ceará, até janeiro de 2018, quando ocorreu outra chacina envolvendo a morte de 14 pessoas. O texto é fruto de um período de 3 anos de execução da pesquisa intitulada “Juventude e Violência Urbana: Cartografia de Processos de Subjetivação na Cidade de Fortaleza-CE”, financiada pela Chamada Universal 01/2016 do CNPq e desenvolvida pelo VIESES: Grupo de Pesquisas e Intervenções sobre Violência, Exclusão Social e Subjetivação, que têm problematizado aspectos psicossociais implicados na problemática dos homicídios infantojuvenis em Fortaleza e efeitos das dinâmicas da violência letal no cotidiano das margens urbanas cearenses e na saúde mental de suas populações. Sete meses após a Chacina, a primeira etapa da investigação sobre o caso foi concluída. Em junho de 2016, foram entregues à Justiça os relatórios de denúncia da comissão composta por procuradores de justiça do Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) contra policiais e ex-policiais militares que teriam envolvimento nos 11 homicídios em questão. Em agosto do mesmo ano, foi decretada prisão preventiva de 44 deles. Até o final de 2018, porém, época da finalização da escrita deste artigo, não havia ocorrido julgamento e responsabilização pelos homicídios. Somente em junho de 2023 ocorreu o primeiro dos julgamentos previstos, que culminou na condenação dos quatro primeiros policiais acusados. Uma série de movimentos, organizações da sociedade civil e políticas públicas, bem como de grupos acadêmicos, dentre os quais o VIESES-UFC, mobilizaram-se para acompanhar o julgamento, através de vigílias, e prestar apoio a familiares das vítimas da chacina durante o júri. O resultado desse primeiro julgamento foi considerado um marco para a justiça cearense e brasileira, simbolizando uma vitória do movimento de Mães e Familiares do Curió, bem como dos setores da sociedade que se aliançaram a tal movimento ao longo dos anos em busca de memória, justiça e reparação. Ainda que se trate de uma resposta parcial do sistema de justiça, pois, além da completa responsabilização dos autores da chacina, faz-se necessária, também, a devida reparação a qual as famílias fazem jus, o que demanda outras ações de diversas instâncias do poder público, o resultado desse primeiro julgamento pode ser compreendido como uma sinalização importante de que o modelo de segurança pública implementado nas periferias deve ser revisto e que episódios brutais de violência, com a Chacina do Curió, não podem ser admitidos social, política e juridicamente.
Além do número de mortes, um aspecto que contribui para que a Chacina do Curió ganhasse destaque local e nacional, em meio a acontecimentos relacionados à violência urbana que se tornaram cada vez mais intensos no Ceará, foi sua relação com a problemática da violência institucional praticada por agentes do campo da segurança pública em periferias urbanas, num cenário de “guerra às drogas” e adesões à lógica de maximização seletiva de aparatos punitivos frente a quadros de insegurança social (Cavalcante et. al, 2021).
A partir de entrevistas, acompanhamento de processos de mobilização social e atos em busca de memória e justiça desencadeados pela Chacina do Curió entre 2015 e 2018, refletiremos sobre tal episódio tomando como base produções discursivas de jovens que conheciam as vítimas, os quais são profissionais de um equipamento social para jovens de uma região próxima ao local da Chacina - lugar frequentado por algumas das vítimas, assim como familiares dos jovens assassinados. Partimos da premissa de que essa Chacina não se tratou de um caso isolado. No contexto cearense, o aumento de chacinas nos últimos anos tem sido um fenômeno emblemático do processo de intensificação dos homicídios no Brasil (Cavalcante et. al, 2021; Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência - CCPHA, 2020; Costa et. al, 2020; Rodrigues & Barros, 2019).
Na época da pesquisa, de acordo com o Índice de Homicídios na Adolescência (IHA) dos nove estados com o maior IHA, oito eram do Nordeste, ficando o Ceará em 1º lugar (Melo & Cano, 2017). Sua capital, Fortaleza, por sua vez, tinha o maior IHA entre as capitais brasileiras, efetuando 10,94 assassinatos para cada 1000 jovens e adolescentes. Desde 2006, a mortalidade de adolescentes por homicídio na capital supera o da população geral, tendo apresentado um de seus menores valores no primeiro semestre de 2019 (CCPHA, 2020). Informações do Atlas da Violência mostram que, entre 2005 e 2015, houve um crescimento do número de mortes dos/das jovens brasileiros/as em 17,2%. De 2015, ano em que ocorreu a chacina em discussão neste artigo, a 2017, a situação piorou: a taxa de homicídio de jovens em 2015 era de 60,9 para cada 100 mil jovens, passando, em 2017, para 113,6 para cada mil (Cerqueira et al., 2017).
De acordo com Waiselfisz (2016), em média nacional, 94,4% das vítimas de assassinatos por arma de fogo são homens. Além das questões de idade e gênero, vale ressaltar que a questão racial se apresenta historicamente como um marcador importante no tocante aos assassinatos no Brasil. Ainda conforme o Atlas da Violência (Cerqueira et al., 2017), no período de 2005 a 2015, observa-se um aumento da taxa de homicídios de negros/as em 18,2%, ao passo que se registra uma diminuição da mortalidade de pessoas não negras em 12,2% no mesmo período - sendo este um dos indicadores mais proeminentes da forte presença do racismo no Brasil.
Abordaremos as questões propostas pelo artigo por meio do diálogo com produções de Achille Mbembe (2014, 2017, 2019), sobretudo utilizando as noções de “necropolítica” e “resistência visceral”, e com reflexões de Judith Butler (2015, 2018), especialmente seu debate sobre “vidas não passíveis de luto” e “corpos em aliança” frente aos processos de precarização da vida. Dessa maneira, consideramos a Chacina do Curió, vista, até janeiro de 2018, como a maior da história recente do Ceará e suas repercussões sociais como um potente analisador de três processos articulados: 1) operações necropolíticas voltadas à produção de “zonas de morte” e à instrumentalização e gestão do extermínio de “corpos matáveis”, tendo como base um estado de exceção permanente e a ficcionalização do/a inimigo/a, através de processos de racialização, aspectos discutidos por Mbembe (2017); 2) precarização sistemática e induzida de certas vidas a partir não só de enquadramentos que as desqualificam, como também da perpetuação de desigualdades e desamparos socioinstitucionais que abrem passagem à retroalimentação de violências a partir da consideração de tais vidas como “não passíveis de luto”, conforme debate Butler (2015); 3) movimento de “corpos em aliança” e produção de “resistências viscerais” frente à brutalização da violência, conectados pela maximização de sua condição precária, não só contra a naturalização da morte, mas, sobretudo, em busca de uma “vida vivível”, concretizando aspectos contidos nas reflexões de Butler (2018) e Mbembe (2019).
Método
Tipo de Pesquisa
A investigação da qual deriva este artigo foi orientada pela perspectiva da pesquisa-inter(in)venção (J. P. P. Barros et al, 2018; Leonardo et al, 2020), uma modalidade de pesquisa participativa voltada à investigação do cotidiano de sujeitos e grupos em sua diversidade qualitativa (Rocha & Aguiar, 2003). Isso implicou apostar em estratégias voltadas à análise coletiva de sentidos e práticas socioinstitucionais nos contextos investigados.
A pesquisa-inter(in)venção foi tecida a partir do método da cartografia (E. Passos et al., 2009; E. Passos et al., 2014). Por isso, uma das tarefas de sua etapa de campo foi o acompanhamento de processos de mobilização social em torno da Chacina do Curió durante os anos de 2015 a 2018, por meio de um exercício de atenção à espreita e de uma análise coletiva do plano das forças e dos efeitos relacionados à Chacina.
Locais e Participantes do Estudo
Os dados foram produzidos entre novembro de 2015, quando ocorreu a Chacina do Curió, e novembro de 2018, quando ocorreu a última mobilização social em torno dessa chacina e que foi acompanhada por nossa equipe de pesquisa. Cabe salientar que novas ações de mobilização aconteceram nos anos seguintes - as quais, no entanto, fogem do escopo deste artigo, visto que aconteceram após sua finalização.
Quando a chacina aconteceu, nossa equipe de pesquisa estava iniciando sua inserção na região do Grande Jangurussu, periferia de Fortaleza. Esta fica próxima à Grande Messejana e Curió, onde ocorreu a Chacina. No Jangurussu, residiam duas vítimas da Chacina, o que fez com que fôssemos interpelados/as por esse ocorrido e nos voltássemos a investigar suas repercussões psicossociais. Passamos a considerar tal chacina como um importante analisador tanto de operações necropolíticas e da maximização da condição precária de certas vidas, quanto de processos de mobilização e luta política contra a violência por parte de diferentes segmentos, grupos e organizações sociais no contexto cearense. Aquela região do Jangurussu possui um dos equipamentos sociais voltados à juventude mais importantes da cidade, conhecido como Centro Urbano de Cultura, Arte, Ciência e Esporte (Cuca), que tem uma das suas sedes no Jangurussu. Aquele equipamento era frequentado por amigos/as de algumas das vítimas da chacina em questão e também foi um ponto de apoio estratégico para nosso percurso cartográfico. O Cuca consiste em um equipamento social voltado a jovens de 15 a 29 anos, ligado à coordenadoria de juventude da Prefeitura de Fortaleza, onde são ofertados cursos profissionalizantes, atividades artísticas, culturais, esportivas, atendimentos psicossociais e ações de educação em direitos humanos.
Os resultados trazidos neste artigo foram produzidos em interlocução com os/as seguintes participantes: 1) adolescentes e jovens de 15 a 29 anos, de ambos os sexos, que tiveram amigos/as ou conhecidos vitimados na chacina; 2) profissionais do Cuca Jangurussu que conheciam jovens assassinados naquele episódio; 3) familiares de jovens mortos na Chacina do Curió.
A escolha dos/as participantes se deu seguindo a técnica “bola de neve” (J. P. P. Barros et al, 2018), em que cada um/uma indicava outro/a que pudesse colaborar com o estudo. O número de participantes foi definido por critério de “saturação”, por meio do qual a etapa de produção de informações se encerra quando se identifica que o campo ofereceu elementos suficientes para fundamentar respostas ao objetivo proposto pelo trabalho. A fim de garantir o anonimato dos/das participantes do estudo, com vistas à sua proteção, tendo em vista a complexidade da temática abordada, profissionais, adolescentes/jovens e familiares serão identificados apenas por números (Ex: Profissional 1 = P-1; Jovem 1 = J-1; Familiar 1= F-1).
Ferramentas Metodológicas
Como estratégias de produção de dados sobre o foco deste artigo, utilizamos duas ferramentas: 1) nove entrevistas semiestruturadas com pessoas que conheciam vítimas da chacina e que estivessem inseridos/as em contextos territoriais próximos à região onde se deu aquele episódio (sendo sete profissionais que atuavam na região do Jangurussu e dois jovens que conheciam vítimas da chacina); 2) acompanhamento de mobilizações sociais e atos públicos ocorridos de novembro de 2015 a novembro de 2018, em Fortaleza, em torno daquela Chacina, com participação de coletivos juvenis, familiares, profissionais que atuam com jovens e militantes pela garantia de direitos de crianças, adolescentes e jovens. As entrevistas foram audiogravadas e se deram sob o manejo da cartografia (Tedesco et al., 2013), privilegiando a experiência do dizer e a polifonia de vozes em jogo sobre o episódio da Chacina do Curió. Acerca do contexto, espaço e momento em que se deram as nove entrevistas, salientamos que: 1) elas aconteceram em 2016, nos primeiros meses após a chacina, a fim de investigar como repercutiram em periferias próximas aos locais em que ocorreu; 2) foram realizadas nas instalações do Cuca Jangurussu, a fim de garantir que se dessem em espaços reservados e com maior segurança aos participantes, permitindo também que fossem devidamente audiogravadas; 3) elas foram semiestruturadas, tiveram duração média de 90 minutos e abordaram como os participantes narram o episódio da chacina, que sentidos e significados atribuem a essa e outras violências institucionais nas periferias de Fortaleza, assim como suas repercussões na vida de jovens, familiares e trabalhadores das periferias urbanas mais afetadas pelas dinâmicas violentas; 4) os dados das entrevistas foram organizados com auxílio do software ATLAS.TI.
Já o acompanhamento de mobilizações sociais e atos públicos que reivindicavam memória, justiça e reparação por ocasião da Chacina do Curió foram registrados em diário de campo por nossa equipe de pesquisa. Nesses atos, nossa equipe participou dos momentos de organização e concentração, bem como de cortejos e dispersão, podendo, nesse ínterim, tanto registrar falas públicas, que se deram com uso do microfone, ao longo dos atos, quanto manifestações na forma de cartazes, faixas, cânticos e palavras de ordem. Também registramos em diários de campo os momentos mais significativos de conversas que tivemos com jovens, familiares e profissionais de políticas públicas ao longo dos atos.
Resultados e discussão
“Vidas Matáveis” e “Não Passíveis de Luto”
No período em que se deu a Chacina do Curió, nossa equipe começava sua inserção na região do Grande Jangurussu, na periferia da cidade, a qual apresenta uma das maiores taxas de homicídio da capital cearense (CCPHA, 2020). Dois dos jovens assassinados na Chacina moravam naquela região e frequentavam o Cuca Jangurussu, nosso então apoio institucional para a inserção naquele contexto territorial.
A princípio, segundo apontam alguns/algumas entrevistados/as, a Chacina do Curió foi um acontecimento que desestabilizou a lógica de “naturalização social” das mortes juvenis que acontecem em contextos periféricos como aqueles, gerando comoção coletiva entre profissionais e jovens que frequentavam o Cuca Jangurussu, como mostra o seguinte trecho de uma das entrevistas.
No dia desse episódio lamentável eu cheguei aqui no Cuca tava assim um clima moribundo, um clima muito triste. Eu cheguei pela manhã, quando eu abro o face aí vejo que um dos jovens tinha postado que estava muito triste porque um amigo tinha sido assassinado. No primeiro momento eu não dei muita importância, porque a gente tá acostumado com assassinato todo dia, mais um e mais luto e tal... É aquela coisa, que aí não dei importância no primeiro momento, depois eu vi que tinham vários compartilhamentos, apontando para um jovem em específico, dois. Aí nesse dia eu “caramba!”. Quando foi de tarde começou a comoção coletiva aqui dentro, era muito jovem chorando, muito jovem; e desmaiando. Ficou um clima pesado. Eu nunca tinha visto antes tanta gente ao mesmo tempo tendo aquela comoção. (P-4)
A despeito de tal episódio não ter passado alheio à vida de profissionais e jovens do Jangurussu e outros contextos periféricos da cidade, narrativas midiáticas sobre o ocorrido, disseminadas em todo o estado, corroboraram processos de culpabilização e criminalização dos jovens mortos. Esse tipo de repercussão da chacina foi ressaltado por Rodrigues e Barros (2019), J. P. P. Barros et. al. (2016) e J. P. P. Barros e Benício (2017).
A tentativa de legitimação social da morte de jovens nas periferias da cidade a partir de discursos que os taxavam de “envolvidos”, fazendo referência a uma suposta inscrição deles nas dinâmicas do varejo de drogas ilícitas, constitui-se como um dos elementos centrais a partir dos quais se efetivam, no Ceará, políticas de morte como ponto crucial no funcionamento do capitalismo atual (Valencia, 2010). O autor camaronês Mbembe (2017) nos apresenta a colonialidade tardia em termos de uma articulação entre disciplinamento, regulação biopolítica e uma necropolítica, essa última definida como produção, instrumentalização e gestão da morte de corpos racializados, aspecto intimamente relacionado à constituição de zonas de morte em que as tecnologias mortíferas operam com base num estado de exceção permanente e na produção de inimigos/as ficcionais (Mbembe, 2017). A exemplo dessas zonas de morte, podemos citar as periferias urbanas, como a região onde ocorreu a Chacina do Curió, ao passo que uma das principais ilustrações da ficcionalização do/a inimigo/a é a produção dos jovens mortos em chacinas ou outros episódios de violência letal como figuras virtualmente criminosas e “não-cidadãos/ãs”.
A partir de interlocuções com Butler (2015), nas suas discussões sobre “quadros de guerra”, observamos, então, a produção de “não-vidas”, isto é, vidas que não são reconhecidas como tal. A efetivação da lógica de guerra, operada nestes territórios, desemboca na legitimação de assassinatos, a partir da produção de sujeitos considerados potencialmente perigosos (Coimbra, 2001) e indignos de vida (Cavalcante et. al., 2021).
Butler (2015) reflete sobre como os modos de regulação dos afetos operam a partir de um enquadramento seletivo da violência, considerando que esse enquadramento afeta diretamente as formas de comoção acerca da violência. Indagado acerca da naturalização e indiferença social sobre essas mortes, um/uma dos/as entrevistados/as disse: “Eu acho que essa indiferença está mais para quando aquela realidade não faz parte da minha” (P-1).
Retirar a condição de reconhecimento de uma vida como “viva” implica torná-la “não passível de luto”, aspecto marcante na forma como a Chacina do Curió repercutiu no contexto cearense.
Um dos sentimentos relatados por diversos/as jovens amigos/as das vítimas da chacina foi a sensação de que “poderia ter sido eu” (J-2). Isso aponta que existe uma série de experiências compartilhadas entre esses/as jovens que os (des)subjetivam como “matáveis”, o que também fica explícito no relato de um/uma dos/as profissionais entrevistados/as:
Você viu ali uma galera que começou a conversar, né? “Podia ser eu”; “podia ser você”. E de fato era uma preocupação real da galera. E aí, você se liga que o negócio tá ali bem presente, bem próximo. Porque, até então, antes daquela chacina, apesar de vivenciar as questões da periferia, acho que muita gente não tinha visto uma chacina daquele tamanho ali tão de perto, tão próximo. (P-2)
Cabe, então, nos perguntarmos que experiências compartilhadas por esses/as jovens criam entre eles/elas esse sentimento de identificação com as vítimas da chacina. Refletir sobre sujeição criminal, então, torna-se interessante para este debate. Tal noção se refere a processos psicossociais que produzem e disseminam expectativas negativas sobre certos indivíduos e grupos, considerando-os mais propensos a cometerem violências (Misse, 2014). A sujeição criminal, então, é a operação que faz existir o/a criminoso/a antes do crime e constitui uma das formas de se operar a necropolítica. Num contexto de “guerra às drogas” como dispositivo necropolítico, ao legitimar estados de exceção, ficcionalização do/a inimigo/a e criação de zonas de morte, os processos de sujeição criminal não se restringem aos indivíduos a quem se atribui o cometimento de crimes ou atos infracionais, mas englobam pessoas que podem se tornar alvos de práticas de extermínio em função de suas existências interseccionarem marcadores sociais de raça, classe, gênero, geração e território (J. P. P. Barros et al., 2016).
Essa condição de sujeito “matável” é sustentada institucionalmente pela fragilidade dos processos de investigação e responsabilização no tocante a essas mortes (Costa et al., 2020). Segundo um dos/das profissionais entrevistados/as, uma questão marcante do processo de acompanhamento das famílias vítimas da chacina era a desconfiança destas quanto à investigação e responsabilização pelos assassinatos (efetivação de justiça): “A gente foi a reuniões, foi a atos que a gente realizou aqui na comunidade e fora também, em outros espaços. A gente teve todo esse acompanhamento e muitos da família diziam assim ‘isso não vai dar em nada!’’ (P-3).
Uma das formas da chacina se efetuar como um dispositivo necropolítico é através da comoção seletiva engendrada pelas narrativas dos principais dispositivos midiáticos locais. Tais dispositivos midiáticos, ao produzirem a figura do/da “envolvido/a” como um/uma dos/das principais inimigos/as ficcionais no cenário atual de intensificação do medo e da insegurança face à violência no Ceará, lançam esses corpos em uma zona de suspeição que lhes confere uma espécie de inumanidade e identidade abjeta (Butler, 2018), como permite pensar o trecho abaixo, extraído de uma das entrevistas:
Porque, quando a galera é envolvida, tipo assim, tem muito aquela sensação, assim, de que é um a menos, né? Agora, quando a galera é inocente, “pelo amor de Deus, era um inocente”, entendeu? Eu acho que essa dúvida, ou essa sensação de que eram inocentes ou não eram inocentes, ela é um elemento mobilizador. E quando a galera joga pelo menos a dúvida, a galera fica assim: “não, eu não sei se eu vou porque pode ser que eu esteja indo defender bandido”, entendeu? Então, isso desmobiliza um pouco, né?. (P-6)
Ao corroborar a produção de tal enquadramento, os dispositivos midiáticos locais contribuem para maximizar a precariedade desses corpos, fazendo com que haja uma regulação seletiva da comoção pública (Butler, 2015). Os/as participantes da pesquisa ressaltaram, como exemplo, o fato de um apresentador de um dos programas policiais ter chamado as vítimas de “almas sebosas”. A seguir, o trecho de uma das entrevistas demonstra operações de desumanização dessas vidas no bojo da produção de subjetivações sob uma lógica punitivista:
Eu acho que os programas policiais são muito diretos. Eles situam, eles são muito firmes nisso, assim, a polícia é a segurança e os bandidos são os bandidos ... Então, se a polícia está fazendo alguma coisa, é porque alguma coisa de errado tinha nesses meninos, entendeu?. (P-7)
Vera Batista (2003) afirma que o simples fato de pertencer a um determinado grupo social implica em ser portador/a de “atitude suspeita”. “O estereótipo do bandido vai-se consumando na figura de um jovem negro, funkeiro, morador de favela, próximo do tráfico de drogas, vestido com tênis, boné, cordões” (Batista, 2003, p. 36) e os procedimentos policiais se dirigem a esses sujeitos, buscando controlar seus deslocamentos e sua circulação pela cidade (Batista, 2003).
Segundo a Entrevistada 6, é comum os moradores se depararem com situações de violências produzidas pela polícia na periferia: “A história, ela se repete desde a primeira vez: é, mataram um policial e a polícia tá matando vários” (P-6). Leila Passos e Alba Carvalho (2015) destacam que sentimentos locais de medo, insegurança e “acuamento” se potencializam com tiroteios, abordagens e diversas violências praticadas nas periferias urbanas. Como questiona P-5: “Agora, de certa forma, isso meio que jogou o questionamento pra própria periferia, assim: será que a polícia é mesmo uma coisa de segurança (...) será que a militarização da polícia é um elemento que dá segurança pra gente?”.
Dialogando com Mbembe (2014), Suely Aires (2018) afirma que, na esteira da “guerra às drogas” e da estigmatização das territorialidades periféricas e de seus moradores, as violências institucionais como explicitação de um estado de exceção permanente são banalizadas. Pensando nesse contexto de produção de “vidas matáveis”, trabalhos como o de Cavalcante et al. (2021) apontam que a violência policial não é simplesmente um erro de procedimento advindo de policiais despreparados. Ana Cruz et al. (2017) também afirmam ser a violência policial uma política de Estado, apoiada e incentivada por parcelas da sociedade, que também mata muitos policiais nessa mesma lógica de extermínio que toma as ruas como campo de batalha.
Os tratamentos estigmatizantes de juventudes pauperizadas e inseridas em periferias urbanas que o episódio da Chacina fez novamente vir à tona têm se constituído um dos principais dispositivos de precarização induzida dessas vidas, articulando tecnologias biopolíticas e necropolíticas, a partir de:
um conjunto de técnicas de promoção de vida e da morte a partir de atributos que qualificam e distribuem os corpos em uma hierarquia que retira deles a possibilidade de reconhecimento como humano e que, portanto, devem ser eliminados e outros que devem viver (Bento, 2018, p. 7).
Bento (2018), ao apresentar como necropolítica e biopolítica são tecnologias de poder relacionadas e articuladas no contexto brasileiro, fazendo uma articulação dos estudos de Judith Butler, Michel Foucault, Achille Mbembe e Giorgio Agamben, contribui para a problematização de como o Estado participa fundamentalmente da distribuição desigual do direito à vida. Desse modo, a repercussão da chacina em termos de produção das vítimas como corpos “matáveis” e vidas “não passíveis de luto” corrobora com o engendramento de identidades abjetas, a engrenagem principal dessa dinâmica de produção e gestão da morte de corpos desigualmente precarizados no Brasil (Bento, 2018).
Sustentamos, não obstante, que episódios como a Chacina do Curió escancaram o que Mbembe (2017, p. 42) designa como “o corpo noturno da democracia”, argumentando que “a história da democracia moderna é, no fundo, uma história com duas faces e, até, com dois corpos - o corpo solar, por um lado, e o corpo noturno, por outro”. Com essa discussão sobre corpo noturno da democracia, o pensador camaronês realça que, em que pese a narrativa oficial sobre democracia liberal seja de pacificação ante a brutalidade das guerras e à violência, essas violências brutais e ilegais em plena democracia sempre foram abafadas nas metrópoles, ao mesmo tempo em que foram toleradas e exteriorizadas nas colônias, consideradas como “não-lugares”, em permanente estado de exceção e guerra generalizada e fora dos limites da lei, alvos de desejos de extermínio e controle sob a retórica de “pacificação dos costumes” (Mbembe, 2017, p. 37).
É em meio a essa problematização dos limites da democracia liberal moderna, a qual teria a mesma matriz histórica da ordem colonial e imperialista, que Mbembe (2017, p. 33) também denuncia o que ele chama de “democracia de escravos” ou uma “comunidade da separação” (p. 34). A principal característica da famigerada “democracia de escravos” ou comunidade da separação” é a coexistência de uma “comunidade de semelhantes”, regida pela lei da igualdade, formadas por sujeitos de direitos, e uma “comunidade de não-semelhantes”, regida pela lei da desigualdade. Nessa espécie de “dupla ordem”, fundamentada no preconceito racial, os “não-semelhantes” devem ser mantidos afastados e não gozam da condição de sujeitos de direitos. Com essa discussão, o autor pós-colonial nos indica que políticas da inimizade amparadas no racismo e na violência necropolítica são ameaças à plenificação de uma real democracia.
Destacamos a Chacina como um dos efeitos do que Mbembe (2014) chama de “devir-negro do mundo”, que alarga, no âmbito do neoliberalismo, as condições perversas de abandono e degradação a um amplo espectro de “desempregados, descartáveis, favelados, imigrantes” (Pelbart, 2018, p. 21). A condição de matabilidade passa a abranger, então, a um espectro cada vez maior de populações periferizadas, evidenciando que o neoliberalismo aprofunda um governo de morte, uma lógica brutalista de produção de existências supérfluas e espacialidades de morte, mormente regiões periferizadas simbólica e economicamente.
“Do Luto à Luta”: uma Cartografia de Práticas De Resistência após a Chacina
Na contracorrente das repercussões criminalizantes da Chacina, familiares, amigos/as e vizinhos/as das vítimas, junto a movimentos sociais e coletivos de juventudes, buscaram promover mobilizações cujo intuito era garantir o direito à elucidação do extermínio dos/das seus/suas e o não esquecimento daquele acontecimento. Assim, acompanhamos várias dessas mobilizações e o plano coletivo das forças que as constituíram, nas quais familiares e jovens de contextos periféricos atingidos mais fortemente pela violência, assim como militantes do campo dos direitos humanos e acadêmicos/as, sustentavam uma implicação ético-política com a desnaturalização e publicização da problemática dos homicídios juvenis. Segundo L. P. Barros e Kastrup (2010), uma das apostas da cartografia é estar em relação com os/as heterogêneos/as, agindo com eles/elas, isto é, uma aposta na política da ação que possibilite a transformação de quem pesquisa e do território existencial pesquisado, corroborando, portanto, com a relevância da nossa presença nos movimentos que fizeram alusão à Chacina.
Iniciamos o acompanhamento dessas cenas com a fala de um dos profissionais que atua contra o extermínio juvenil, pois, durante a entrevista, ele nos contou a respeito da mudança de alguns familiares, que levaram suas dores, em forma de luta e denúncia, do âmbito privado para o público:
Ela tá começando, de uma certa forma, se politizar mais diante do luto à luta. Começa a chamar outras mães, dizer que isso não pode acontecer mais porque quem morre na periferia são os jovens, começa a ter essa realidade a partir do que aconteceu com os dela. As famílias desses jovens que são chacinados dá uma outra oxigenação para a gente (P-4).
Uma das primeiras movimentações em referência à Chacina do Curió ocorreu em fevereiro de 2016. O Ato dos 100 dias, como ficou conhecido, concentrou-se na Praça Portugal e se encaminhou para a Beira-Mar, ambos, lugares considerados “nobres” da cidade de Fortaleza, e teve como lema uma exigência: “Queremos respostas!”. Um/uma dos/das familiares chegou a destacar a importância da manifestação acontecer em um ponto turístico da cidade, pois só assim eles/elas seriam notados/as: “Quando é um jovem de classe média, filho de rico que usar um piercing, uma tatuagem, é moda, é arte. Mas, quando é um jovem da periferia que usa isso é vagabundo, é criminoso” (F-1).
O Ato dos 100 dias da Chacina foi marcado por falas que giravam em torno de questões como a da atual política de drogas e da necessidade de desmilitarização da polícia e da política. As configurações do ato corroboram a leitura de Silva e Dara (2015, p. 85), segundo os quais “é contra esse sistema punitivo (penal e policial), racista e genocida” que movimentos sociais e familiares de vítimas de homicídio têm se levantado.
Em novembro de 2016, acompanhamos outras três ações que fizeram alusão à Chacina: o Ato de um ano em memória das vítimas; a IV Marcha da Periferia, que teve como tema “Luta contra o extermínio do povo preto”; e o Rebatismo de duas ruas do Grande Jangurussu, que receberam os nomes de dois jovens vitimados na Chacina do Curió. O volume dos movimentos no mês em que a Chacina completou um ano evidenciou a mobilização de pessoas que não banalizaram essas mortes.
O Ato em memória de um ano da Chacina reivindicou a liberdade, justiça e dignidade como bandeiras e motivos de lutas para moradores/as das periferias, tornando nítida a necessidade da construção de melhores condições de existência nessas territorialidades. Havendo uma ampliação das reivindicações nas manifestações em memória às vítimas, não se tratando apenas da busca por garantia de elucidação dos acontecimentos, mas também da luta por liberdade e dignidade aviltadas pelo extermínio da juventude pobre e negra. Ganhavam relevo reivindicações de políticas de segurança pública alinhadas à garantia de direitos humanos, e não à expansão do poder punitivo nas margens urbanas (Silva & Dara, 2015).
Nota-se, portanto, um crescente aparecimento dos/das familiares na cena pública, tendo como aliados/as à sua luta movimentos sociais e coletivos de juventudes organizadas da periferia, compondo um mosaico de atos pela cidade de Fortaleza. Importante, todavia, salientar o uso do verbo “aparecer”, pois, de acordo com Butler (2018), a luta por reconhecimento de vidas que são precarizadas de maneira maximizada por meio de abandonos institucionais e indução de desigualdades dá-se pela política do aparecimento. A persistência em aparecer e fazer aparecer publicamente as vidas que as violências negligenciaram e/ou ceifaram diretamente é uma das principais formas a partir da qual tem sido exercida, no cenário local, aquilo que Mbembe designa de “resistência visceral”. Tratam-se de formas de resistência à necropolítica que se dão pela ocupação de espaços públicos e pela “luta dos corpos por se tornarem (corporal, física, visivelmente) diante da produção de ausência e silêncio pelo poder. São formas exemplares de resistência, pois o poder funciona hoje produzindo ausência: invisibilidade, silêncio e esquecimento” (Mbembe, 2019, p. 16).
A IV Marcha da Periferia, por sua vez, foi composta eminentemente por jovens e eles/elas ressaltaram diversas vezes o racismo que sofrem cotidianamente. Seguindo na marcha, ao passarem próximos/as a um dos shoppings de Fortaleza, alguns/umas deles/as fizeram denúncias ao microfone sobre o constrangimento que passam ao serem barrados/as na entrada daquele estabelecimento. Durante a caminhada foram ditas palavras de ordem como “A juventude quer cultura, chega de polícia, baculejo e viatura!” (J-2).
Butler (2018) ajuda-nos a compreender a resistência como a afirmação do valor de vidas “não passíveis de luto”, tendo em vista que o aliançamento dos corpos possibilita a produção de fissuras na naturalização da impassibilidade do luto diante de determinadas mortes, “decretando valor em meio a um esquema biopolítico que ameaça destituir essas populações de valor” (p. 228). Não esquecer seria um modo de persistir e afirmar o valor dessas vidas, entendendo essa persistência como uma luta política por memória coletiva. Trazer isso à baila ajuda-nos a pensar em uma frase recorrente durante todos os atos em memória às vítimas da Chacina: “Jamais esqueceremos!”, ressaltando também que a mobilização para o não esquecimento da ganha materialidade no Rebatismo das duas ruas. Isto é, quando os/as familiares dizem que não esquecerão os/as seus/suas, eles/elas não dizem isso apenas a partir de um âmbito privado; esse não esquecimento implica, portanto, a movimentação política necessária à luta por aparecimento. As placas com os nomes das vítimas são um indicativo de uma disputa pela memória coletiva, mas é na ação para se chegar a isso que o corpo político é fundado, tecendo a face precípua da história das territorialidades periféricas que muitas vezes não é visibilizada: a das resistências.
Nota-se, portanto, que a memória está na ação, na movimentação do corpo, na aliança de atores e atrizes sociais em atos que exigem o direito à existência digna. A partir de uma leitura butleriana poderíamos tomar essas lutas como uma reivindicação por uma vida que se torne “vivível” para aqueles e aquelas que têm sido invisibilizados/as em relação às suas necessidades básicas, porém, hipervisibilizados/as pela mira do Estado punitivo penal. Percebe-se aí um processo de “(in)visibilidade perversa” (Sales, 2007) que precisa ser desmontado.
É necessário tomar a disputa pela memória como um analisador dos processos de subjetivação que são produzidos nesses engajamentos que resistem à invisibilização, à naturalização e à banalização da morte do/a jovem negro/a, pobre e periférico/a. Quando nos damos conta, principalmente, de mulheres e jovens em atos de resistência contra uma lógica de (in)segurança que tem vitimado a população pobre e negra, baseada muitas vezes em salvos condutos nomeados autos de resistência, notamos ali uma tomada da própria vida dessas mulheres e jovens em atos de re-existência, ou seja, de reinvenção da própria vida ao exigir que esta tenha a possibilidade de ser vivida.
Um jovem, amigo de vítimas da Chacina, com quem conversamos sobre o fenômeno, falou sobre sua transformação a partir da construção de um coletivo que, de início, tinha o intuito de dar visibilidade à Chacina do Curió. O coletivo passou a pautar uma série de violências institucionais sofridas por quem mora nas periferias, o que permite entrever, mais uma vez, a ampliação das lutas de quem buscou se posicionar politicamente para que aquelas mortes não fossem esquecidas e para que outras não fossem perpetuadas. O jovem disse, emocionado: “eu só queria que ninguém esquecesse deles” (J-1).
“A favela não vai morrer calada” (J-3); “o sangue não pode jorrar assim no meio do tempo” (F-2); “não tem arrego, se mexer com nossos filhos, a gente tira o seu sossego” (F-1); “arrasa a mulher negra, mata policial: a guerra às drogas tá matando geral” (J-4); “não é de borracha, na favela a bala da polícia mata!” (J-5); essas foram algumas das manifestações feitas pelos/as presentes na V Marcha da Periferia que aconteceu em novembro de 2017 e levou o lema “Por Memória e Justiça”. Além de mães, familiares e amigos/as das vítimas que levaram fotos para lembrar e pedir justiça pelos/as seus/suas, havia jovens, coletivos e movimentos sociais que se somaram a este ato. Como, por exemplo, o Movimento Mães de Manguinhos, que levou uma faixa com as fotos de jovens vítimas de homicídios e com a frase “Contra o extermínio do Estado! Nossos mortos têm voz!”. Já as Mães de Maio carregavam uma faixa que tinha a frase “Contra o terrorismo do Estado”. Alguns cartazes diziam “Mães do Brasil exige fim dos autos de resistência”; “Basta de Extermínio da Juventude. Queremos paz na periferia já”. Algumas mães exigiam a responsabilização da morte dos seus filhos, dizendo que mataram seus filhos, mas eles tinham mães para lutarem por eles. Durante a caminhada uma das mães das vítimas da Chacina fez esta fala: “Não podemos aceitar, não é porque é pobre que tem que ser morto... eu escolhi a Beira-Mar juntamente com esse povo pra mostrar que polícia bonitinha trabalha aqui, mas nas periferias tem esse derramamento de sangue” (Diário de Campo da V Marcha da Periferia, em 12 de novembro de 2017).
Como parte das cenas que indicam processos de resistência, em 2017, logo após a Chacina completar 2 anos, também foi criado o Fórum Popular de Segurança Pública do Estado do Ceará (FPSP Ceará), do qual também integram as Mães do Curió, nome da organização criada pelas mães e outros familiares das vítimas da Chacina. Esse fórum é uma articulação de movimentos sociais, coletivos, organizações da sociedade civil e pesquisadores/as que têm como objetivo criar um espaço de debates, monitoramento, denúncias e propostas de políticas públicas de segurança que respeitem os direitos humanos e defendam a democracia, compreendendo que a luta por democracia não pode estar apartada da luta pelo direito à vida nas margens urbanas (J. P. P. Barros & Benício, 2017).
A VI Marcha da Periferia contou com a participação das Mães do Curió, Mães do Socioeducativo, jovens secundaristas e universitários/as, professores/as, sindicalistas, pessoas do movimento LGBTQIA+, mulheres e homens do movimento negro, representantes do “Movimento Cada Vida Importa”, do “Fórum Popular de Segurança Pública do Ceará”, dos “Círculos Populares” e também de alguns/umas outros/as trabalhadores/as sociais. A Marcha integrou as atividades da “I Semana Estadual de Prevenção de Homicídios”, que virou lei estadual e surge em 2018 com o intuito de fazer frente às diversas chacinas que têm sido perpetradas no Ceará. A data da Semana, 12 de novembro, faz alusão direta à Chacina do Curió como mais um indicativo das mobilizações produzidas após esse acontecimento. O lema da Marcha “E se fosse seu filho? E se fosse sua filha? Todas as vidas importam” permite observar que a luta também se dá pela disputa e produção de sensibilidades que possam reconhecer a importância de vidas tidas como desimportantes e indica que seria necessário reconhecer eticamente a existência dessas alteridades por via de alianças políticas que busquem torná-las vivíveis, pois, de acordo com Butler (2018), a política da performatividade de pessoas consideradas indignas de apoio em um esquema biopolítico é um modo de anunciar o valor do qual essas vidas são destituídas.
Considerações Finais
A Chacina do Curió pode ser considerada uma das marcas de uma nova configuração da dinâmica criminal no Ceará, em que fenômenos de chacinas passam a ser cada vez mais frequentes e naturalizados. Não obstante, diferentemente de outras situações de violência que se tornaram crescentes no Ceará a partir dos anos 90, a Chacina do Curió teve uma expressiva repercussão, tanto nos principais dispositivos midiáticos locais e nacionais, quanto em diversas regiões da cidade, extrapolando os territórios em que o crime se deu e as redes familiares das pessoas assassinadas. Neste artigo, ao ouvirmos e acompanharmos familiares e amigos/as de jovens mortos na chacina, assim como profissionais de um equipamento social frequentado por algumas das vítimas, argumentamos que a forma como repercutiu a Chacina do Curió escancara não apenas a maquinaria necropolítica de produção de zonas de mortes, corpos matáveis e vidas não passíveis de luto, como também evidencia a participação direta de forças estatais na acentuação de disparidades quanto à definição de quem (não) pode viver.
Discutimos, ainda, como fenômenos como a Chacina do Curió, na condição de dispositivo necropolítico, ancoram-se na materialização de estados de exceção permanente e na produção de inimigos/as ficcionais, mais especificamente a partir de dinâmicas de criminalização das vítimas da violência letal nas periferias urbanas, as quais, no contexto de adesão subjetiva e institucionalizada à lógica de guerra, corroboram com a naturalização de ações violentas e extralegais desempenhadas por agentes estatais ligados ao campo da segurança pública.
Por um lado, a Chacina em análise repercutiu de modo a ratificar que os homicídios juvenis são uma das principais expressões locais da operação de tecnologias políticas de produção e gestão da morte de existências vistas como “invivíveis”, ilustrando o que as reflexões mbembeanas concebem como “o corpo noturno da democracia”. Por outro, as diversas mobilizações suscitadas pelo episódio de 2015 a 2018, período em que se deu a etapa de campo desta pesquisa, em busca de memória e justiça mostram a força dos movimentos dos corpos aliançados pela luta contra o extermínio de juventudes periféricas e o silenciamento de suas famílias, que, a partir de “resistências viscerais” (Mbembe, 2019), passaram a denunciar a violência, os (des)caminhos das (im)políticas de (in)segurança pública, os efeitos locais das dinâmicas da violência no cotidiano das margens urbanas, assim como a proposição popular de uma agenda pública que seja capaz de anunciar um futuro que rompa com a naturalização das repetidas violências contra jovens e seus familiares nas territorialidades periferizadas.