Embora a pesquisa sobre comportamentos antiéticos no trabalho tenha ficado mais evidente nos últimos anos (p.ex., De Cremer & Moore, 2020), o fenômeno é reconhecidamente antigo. Se de um lado se manifesta por formas bem distintas, em função, por exemplo, dos métodos e das tecnologias empregadas, de outro parece seguir uma mesma dinâmica básica para a quebra das normas. Os transgressores têm em comum a busca de justificativas psicológicas que lhes tragam algum conforto moral diante do errado, antes e depois de cometê-lo (Bandura, 2016). Elas ficam mais notórias pelo fato de que alguém acusado por uma transgressão geralmente nega a culpabilidade e com frequência elabora argumentos para atribuir as causas a outros fatores ou pessoas. Por isso, compreender o uso dessas justificativas é um recurso fundamental para um maior controle dos comportamentos antiéticos e sobretudo para os esforços de sua prevenção.
No serviço público brasileiro os comportamentos antiéticos são agravados por motivos tão complexos que não permitem distinção clara entre o que é causa e o que é consequência (Neves & Iglesias, 2021). Por exemplo, eles incluem alta burocratização, valores culturais permissivos, relações muito hierarquizadas, impunidade, brechas no sistema legal ou mesmo a sua própria corrupção. Mas esse contexto tem o agravante, ao contrário do setor privado, de que os efeitos negativos dos comportamentos se estendem mais claramente a toda a sociedade - a quem os servidores públicos devem prestar contas de forma direta. Comportamentos antiéticos de servidores geram altos custos, minam a confiança nas instituições e deslocam recursos que deveriam ser usados para ações propositivas, ao invés de investigativas ou punitivas.
Levando em consideração a recorrência de comportamentos antiéticos no serviço público brasileiro, em forma de infrações disciplinares, este trabalho teve o objetivo de identificar mecanismos cognitivos que atuam na presença e manutenção de comportamentos contrários à norma social estabelecida por meio de legislação. Nomeadamente, são mecanismos de desengajamento moral, visto que servem para justificar de forma conveniente quaisquer comportamentos transgressivos que gerem culpa ou outro tipo de censura.
A discussão sobre ética e moral é reconhecidamente complexa e abordada por diferentes áreas do conhecimento, representando a base de nossa legislação e das normas sociais compartilhadas. Catafesta (2017), por exemplo, propõe que a moral de uma sociedade se compõe dos princípios e valores tidos como corretos, aceitos e condutores do comportamento social. Entretanto, não há uma moral absoluta per se, uma vez que deriva do caráter de cada indivíduo e as pessoas não costumam concordar em todos os assuntos. Assim, a ética se compõe dos traços de caráter comuns dos indivíduos, ou seja, é uma construção coletiva em que os membros de determinado grupo concordam com os princípios e valores eleitos como norteadores da vida social. Esse compartilhamento é hoje reconhecidamente um processo bastante intuitivo e bem menos racional do que se concebia (Bicchieri, 2016).
Quando aplicada no contexto organizacional, a ética sugere quais comportamentos seriam aceitáveis neste ambiente, ajudando a diferenciar o legal do que é ilegal, o lícito do ilícito, o conveniente do inconveniente e até o honesto do desonesto (Bedani, 2013). Especificamente no contexto do serviço público brasileiro, o documento que indica quais são os comportamentos esperados e não esperados de um servidor público no seu ambiente de trabalho é formal e amplamente divulgado (Decreto nº 1.171/94, que dispõe sobre o Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal). Entretanto, a mera existência de tal legislação não faz com que os servidores públicos se comportem exatamente como o esperado em seu ambiente de trabalho, dado que a cultura organizacional costuma refletir aspectos da cultura nacional. Desta forma, o jeitinho brasileiro é frequentemente utilizado para burlar a burocracia (Resende & Porto, 2020), enfatizando a necessidade de levar vantagem nas mais diversas situações. Esse cenário propicia, portanto, a ocorrência de desvios de conduta ética ou comportamentos antiéticos no serviço público.
Os comportamentos antiéticos são deliberados e com foco na obtenção de alguma vantagem material ou imaterial, violando as normas do grupo social em decorrência de qualquer dano que o comportamento produza (Jaakson et al., 2017). Isso vale especialmente para contextos organizacionais, em que o termo denomina toda uma área de estudo (Treviño et al., 2014). O trabalho de Guimarães et al. (2016), por exemplo, parte de um estudo de caso de assédio moral vertical descendente, para analisar o conteúdo de entrevistas de profundidade e de documentos de processos administrativos. Os autores apontam que a mera existência de infrações disciplinares fere a sociedade ao prejudicar a qualidade do trabalho no serviço público e ao provocar forças contraprodutivas.
Há várias explicações possíveis para a existência e, principalmente, a manutenção de tais desvios de conduta no ambiente organizacional, privado ou público: uma diferença entre fatores individuais, organizacionais e situações específicas (Jaakson et al., 2017); a necessidade de exaltar qualidades da organização em detrimento de atividades antiéticas da mesma (Fehr et al., 2019); e até o uso de mecanismos de desengajamento moral (MDM) para justificar as ações antiéticas cometidas por alguém (Herath et al., 2018). Liu et al. (2012) discutem que, dentro do ponto de vista das trocas sociais, os “malfeitos” no ambiente de trabalho podem ocorrer como consequência de um ambiente de trabalho desfavorável. Incluem situações em que os trabalhadores resolvem economizar esforços ao perceber que o emprego não está nutrindo oportunidades de desenvolvimento pessoal. Essa justificativa está amplamente disseminada no imaginário brasileiro de como funciona o serviço público, comumente caracterizado como ineficaz, precário, adoecedor e com mais demandas do que recompensas aos servidores (Santi et al, 2018).
Mecanismos de Desengajamento Moral
Os MDM partem da teoria social cognitiva de Bandura (1986, 2016) e são processos cognitivos utilizados quando se precisa justificar moralmente condutas antiéticas ou desonestas. Eles operam com base em padrões morais desenvolvidos ao longo da nossa socialização e que se transformam em guias da conduta diária. Assim, estes padrões morais orientam a apresentação de condutas que tragam satisfação e aumentem o senso de valor, enquanto distanciam as pessoas de condutas que possam acarretar em autocondenação. Bandura (1986, 2016) denomina esse fenômeno de mecanismos autorregulatórios. Porém, os padrões morais não servem como mecanismos autorregulatórios o tempo todo, pois precisam ser ativados. Essa possibilidade de ativação acarreta, por exemplo, em pessoas com padrões morais similares, mas que praticam diversas ações diferentes, desonestas ou não. Deste modo, ele propôs oito MDM, pelos quais se pode desativar o processo cognitivo de autorregulação e justificar para si mesmo as condutas desonestas ou antiéticas praticadas, diminuindo a autocondenação. São eles: justificação moral, linguagem eufemística, comparação vantajosa, difusão da responsabilidade, deslocamento da responsabilidade, distorção das consequências, desumanização e atribuição da culpa.
Considerando essa reflexão sobre ética, especialmente no serviço público, de que forma podem ser identificados MDM? Na sua racional teórico-conceitual, são situações em que a pessoa sabe que está fazendo algo errado, mas ignora seus princípios éticos em nome de um bem-estar interno. Considerando, por exemplo, um cenário em que diversos servidores públicos estão furtando esporadicamente materiais de escritório para uso pessoal, podem se defender dizendo que muitos colegas fazem a mesma coisa. Essa situação pode ser, portanto, caracterizada como um MDM de difusão da responsabilidade - quando a responsabilidade é distribuída por mais pessoas, não há um sentimento pessoal de culpa (Bandura, 2016; Iglesias, 2008).
O servidor que, por exemplo, esgotou sua cota de folhas A4 para a semana e que, para ter acesso a mais folhas, passa a utilizar a cota de algum colega, pode se justificar argumentando que este colega não utiliza totalmente a própria cota. Identifica-se, então, um MDM de atribuição de culpa, ou seja: culpabilizar a vítima, ao mesmo tempo em que o autor se exime de culpa (Bandura, 2016; Iglesias, 2008). Finalmente, quando um servidor público que costuma chegar alguns minutos atrasado para seu turno é questionado, pode se defender dizendo que seria muito pior se ele faltasse, então um atraso pequeno não parece tão ruim assim. Configurando um MDM de comparação vantajosa, essa estratégia consiste em declarar que, perto de situações piores, o ato deflagrado não precisa ser considerado condenável.
Como definir o construto não é suficiente para pesquisas empíricas, há que se discutir suas implicações práticas-operacionais. Moore et al. (2012) elaboraram uma escala para medir a propensão ao desengajamento moral de trabalhadores e relacionar essas medidas com comportamentos antiéticos no ambiente de trabalho. Essa medida foi depois explorada por Hsieh et al. (2020), que incluíram as variáveis de liderança ética e comportamento ético de colega de trabalho para explicar por que trabalhadores podem apresentar comportamento antiético pró-organizacional, ou seja, relaxar as próprias convicções éticas para proteger a organização. Herath et al. (2018) também trabalharam com essa mesma estratégia de que as organizações podem influenciar positivamente, por meio de treinamento, os empregados que utilizam frequentemente mecanismos de desengajamento moral.
O Processo Administrativo Disciplinar no Serviço Público
Comportamentos antiéticos no serviço público podem ser identificados como infrações disciplinares (definidas dentro de um rol taxativo), que são denunciadas e investigadas a partir de um processo administrativo disciplinar. Esse procedimento, regulamentado na Lei no 8.112, de 11/12/1990, Título V (Do Regime Disciplinar), inicia com uma denúncia em desfavor de um servidor (processo disciplinar) ou mais de um servidor público (sindicância). Ao ser publicado em Diário Oficial (instauração), a comissão processante inicia a investigação, juntando documentos e entrevistando testemunhas (oitivas), numa etapa denominada instrução processual. Dentro do devido processo legal, é garantida ampla defesa e contraditório durante todas as etapas; portanto, o servidor acusado é informado e pode participar dessas oitivas. Ao final da instrução, o servidor acusado participa de um interrogatório, que se trata de uma entrevista para esclarecer alguns fatos para a comissão processante. Finalmente, o acusado junta um documento escrito de defesa, a comissão elabora um relatório e o processo é julgado pela autoridade competente.
Considerando a relação empiricamente investigada entre MDM e comportamentos antiéticos, esta pesquisa teve o objetivo de identificar MDM nas verbalizações dos servidores públicos em seus interrogatórios. Trata-se de oportunidade empírica bastante estratégica para a pesquisa sobre MDM, visto que os interrogatórios são comumente uma oportunidade de autodefesa para as acusações de infrações disciplinares supostamente praticadas. Essa estratégia analítica faz-se necessária, já que esse fenômeno parece ainda ser pouco investigado no contexto do serviço público brasileiro, apesar de sua frequência, abrangência e relevância prática.
Método
Visão Geral do Desenho de Pesquisa
A partir de uma abordagem qualitativa com desenho transversal, foi utilizado o método de análise de conteúdo categorial temática, conforme descrito por Bardin (1977/2015), para análise de interrogatórios constantes de processos disciplinares e de sindicância (Lei Federal no 8.112, de 11/12/1990, Título V, Do Regime Disciplinar) selecionados convenientemente por uma corregedoria de uma organização pública brasileira. Conforme a classificação epistemológica elaborada por Burrell e Morgan (1979) - que considera quatro paradigmas contíguos, apesar de excludentes - o presente trabalho é considerado funcionalista. Seus pressupostos incluem um modo de teorizar que busca identificar ordem e regras nos fenômenos, a partir da investigação objetiva e regulatória, portanto, positivista do problema de pesquisa. Assim, considerando a fundamentação positivista do processo de criação das regras disciplinares no Serviço Público (O Regime disciplinar, constante na Lei 8.112/1990, e o Código de Ética Profissional do Servidor Público Federal), essa abordagem orientada ao problema, pragmática por definição, também inspirou a maneira como a pesquisa foi delineada, conduzida e relatada.
Foram analisados interrogatórios dos servidores públicos acusados em processos disciplinares e de sindicância. Dentro da dinâmica dessa etapa, os servidores da comissão processante formulam perguntas e as respostas são reduzidas a termo pelo secretário. Assim, todos os depoentes são os próprios acusados nos processos administrativos disciplinares e as verbalizações nem sempre são elaborações apenas dos servidores acusados, mas também provenientes de respostas às perguntas de servidores que compõem a comissão processante.
Amostra
Em 2019, a corregedoria contatada recebeu 325 denúncias contra comportamentos de servidores públicos. Essas informações resultaram na instauração de 356 Procedimentos Disciplinares, variando de investigações preliminares (334) a Processos Administrativos Disciplinares (13). Esses procedimentos foram instaurados para apurar casos de suposta agressão em contexto de trabalho (103 registros), de suposta conduta inadequada (103), dentre outros temas. A partir dessa população, a própria corregedoria selecionou uma amostra composta por seis processos disciplinares e de sindicância dos anos de 2017 e 2018, transitados e julgados. O primeiro processo possuía um interrogatório e o assunto era quebra de sigilo de informação sensível; o segundo possuía dois interrogatórios, sobre assédio moral descendente; o terceiro possuía cinco interrogatórios e o assunto era descumprimento do dever funcional; o quarto possuía um interrogatório e o assunto era comportamentos perturbadores no ambiente de trabalho; o quinto possuía um interrogatório e o assunto era agressão física em ambiente de trabalho e, por fim, o sexto possuía 16 interrogatórios e o assunto era uso excessivo de banco de horas.
O total de 26 interrogatórios foi codificado em função de cada acusado, usando as letras do alfabeto, de A até Z2. O último interrogatório, denominado Z2, foi excluído do corpus de análise, uma vez que serviu como exemplo de análise para os juízes, durante a etapa de capacitação. Isso gerou um corpus textual composto de 26 interrogatórios (total de 81 laudas) e o destaque de 410 verbalizações. Os participantes somam 13 homens (um com dois processos distintos) e 11 mulheres (uma com dois processos distintos). No intuito de garantir o sigilo dos dados, não serão realizadas análises em função do sexo do servidor.
Procedimentos
Os autores solicitaram acesso ao inteiro teor de interrogatórios de processos administrativos disciplinares encerrados sem possibilidade de recurso. Após a autorização dos setores responsáveis, foram concedidos seis processos administrativos digitalizados, escolhidos conforme a conveniência da corregedoria. Os autores não coletaram diretamente os dados de pesquisa, portanto não houve acesso direto aos participantes, apenas aos materiais constantes nos processos.
Análise de Dados
Os dados foram tratados de acordo com o método de análise de conteúdo categorial temática de Bardin (1977/2015). O processo de análise dos dados iniciou-se a partir da leitura exaustiva do corpus textual dos interrogatórios, seguindo uma lógica de raciocínio indutiva (considerando temas emergentes das verbalizações) e dedutiva (considerando a ocorrência de MDM nas verbalizações). Durante essa etapa, os três pesquisadores realizaram análises independentes, registrando temas representativos que atendessem aos critérios de exaustividade, representatividade, homogeneidade, pertinência e exclusividade como indicadores de validade das categorias elaboradas. Durante a análise individual, cada juiz teve a liberdade de nomear os temas emergentes, bem como destacar os trechos com verbalizações consideradas relevantes para este estudo.
A etapa de julgamento de juízes ocorreu durante 10 reuniões virtuais, com duas a três horas de duração cada, e consistiu de círculos de negociação entre os juízes. Primeiro cada um apresentou sua análise de conteúdo e depois todos os interrogatórios foram lidos em conjunto para definir: a) quais verbalizações seriam consideradas relevantes, e b) quais temas seriam escolhidos para representar essas verbalizações. Todas as decisões foram tomadas após a expressa concordância dos três juízes, endereçando e resolvendo quaisquer questionamentos de influência social no processo de discussão dos dados.
Com base na orientação de que temas mais fortes e recorrentes refletem um núcleo de sentido, foram identificadas oito categorias: cinco mecanismos de desengajamento moral (por exemplo, atribuição de culpa e justificação moral) e três categorias emergentes das verbalizações (por exemplo, Auto e Hetero Elogio). O status de categorias é dado pela força dos temas, que ao serem recorrentes criam um núcleo de sentido. Os temas que são importantes para o objeto da pesquisa, mas não são suficientemente recorrentes no corpus textual para agruparem-se numa categoria são denominados índices (distorção das consequências e problemas interpessoais).
Cuidados Éticos
As informações coletadas são confidenciais e possuem informações delicadas sobre servidores públicos. Foram, portanto, tomadas medidas diversas para garantir o sigilo e segurança dos dados. Antes de receber os depoimentos, todos os pesquisadores assinaram um termo de compromisso e confidencialidade, com a descrição de todos os cuidados éticos que deveriam ser realizados durante o procedimento da pesquisa. Assim, as verbalizações constantes neste relato foram modificadas minimamente para impedir a identificação de pessoas e lugares, bem como a origem das denúncias. Além disso, a pesquisa teve a submissão e aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade a que os autores estão filiados, com o registro CAAE n. 38928620.5.0000.5540.
Resultados
Os dados foram resumidos em uma tabela simples comparando a quantidade de ocorrências de cada uma das oito categorias e dois índices em função de cada interrogatório (A-Z), sendo as mais frequentes as Negativas (n = 105) de Acontecimento, de Lembrança e de Conhecimento; a Justificação Moral (n = 86); a Difusão da Responsabilidade (n = 58) e o Deslocamento da responsabilidade (n = 55). Além dos exemplos prototípicos que explicam a racional dos mecanismos, a Tabela 1 apresenta as categorias com suas respectivas frequências e verbalizações representativas.
Tabela 1: Categorias e Índices da Análise de Conteúdo das Verbalizações com Frequências e Exemplos
Categoria | n | Exemplo |
Justificação Moral | 86 | “A pessoa assumia funções sem a nomeação sair, mas a bem do serviço público, senão a Unidade não teria como girar.” (Servidor K, linha 34) |
Linguagem Eufemística | 14 | “O depoente respondeu, perguntando se a pessoa estava doida, como forma de expressão, sem se exaltar, não ofensivo.” (Servidor B, linha 49) |
Difusão da Responsabilidade | 58 | “Sempre viu diversos colegas tirarem banco de horas e nunca questionou. Em todas as unidades que a depoente trabalhou sempre teve banco de horas. A depoente sempre soube que as pessoas assinavam as folhas e usufruíam banco de horas.” (Servidor P, linha 51) |
Deslocamento da responsabilidade | 55 | “O baixo efetivo força os servidores a permanecerem além do horário para garantir a integridade física das pessoas.” (Servidor L, linha 80) |
Atribuição da Culpa | 44 | “A motivação para denúncia não era de irregularidades da depoente, mas com intuito de prejudicar o trabalho e a permanência na Unidade. A depoente acredita que os servidores ficavam incomodados com sua posição de se subordinar somente à chefia.” (Servidor I, linha 218) |
Negativa de Lembrança | 20 | “Não teria como se lembrar pois já tem dois anos e não se recorda.” (Servidor K, linha 64) |
Negativa de Acontecimento | 50 | “Depoente nunca assediou a servidora, também não cometeu nenhum ato que caracterizasse perseguição.” (Servidor C, linha 31) |
Negativa de Conhecimento | 35 | “Depoente não tem conhecimento que o servidor na comissão possui dedicação exclusiva e não faz jus a horas extras.” (Servidor N, linha 109) |
Auto e Hetero Elogio | 24 | “Depoente informa que já tem anos na Secretaria. Tem reputação ilibada e nunca respondeu qualquer tipo de processo, mesmo estando em cargo, zelando sempre pelo patrimônio público e se balizando pelos princípios da Administração Pública.” (Servidor K, linha 141) |
Desvalorização das acusações | 15 | “A afirmação é totalmente descabida. Em nenhum momento depoente ou equipe agiria com falta de profissionalismo.” (Servidor A, linha 115) |
Índice | N | Exemplo |
Problemas Interpessoais | 6 | “Clima organizacional da Unidade após a depoente retornar do afastamento estava tenso. Os depoimentos foram tensos.” (Servidora I, linha 89) |
Distorção das Consequências | 3 | “A depoente expunha o que passava junto aos servidores, não para expor, mas sim como uma maneira de mediação.” (Servidora I, linha 118) |
A primeira categoria foi denominada Justificação Moral (n = 86 verbalizações) e refere-se a reconstruções cognitivas que os servidores fazem para se convencer de que a falta ética cometida não foi tão grave assim, ou que se justifica por circunstâncias alheias à vontade do infrator. Sendo a segunda categoria mais forte desta análise, foi a única identificada pelo menos uma vez em todos os interrogatórios. Por exemplo: “Em virtude do déficit de servidores, (...) se prontificou a ir na escolta para não ter que desfalcar ainda mais os módulos.” (Servidor J, linha 32); “Depoente diz que recebeu banco de horas extras porque executou por muitos meses as atribuições relativas ao cargo de assessoria de modo informal.” (Servidor Q, linha 72).
A segunda categoria foi denominada Linguagem Eufemística (n = 14 verbalizações) e refere-se à maneira atenuada como são denominadas algumas ações moralmente condenáveis, a título de minimizar sua gravidade. Por exemplo: “Talvez a pessoa possa ter recebido algum tipo de admoestação verbal mais acentuada, ou até mesmo ter sido imobilizada (...), o que pode ter deixado ela mais chateada, estressada diante do acontecimento” (Servidor A, linha 131); “A fuga das jovens foi uma infelicidade da situação” (Servidor E, linha 49).
Já a terceira categoria foi denominada Difusão da Responsabilidade (n = 58 verbalizações) e refere-se à redução do controle moral quando se constata que outras pessoas estão agindo com intenções semelhantes, compartilhando, assim, a responsabilidade pelo dano. Por exemplo: “Havia outros servidores (...) presentes no evento.” (Servidor D, linha 56); “É tão rotineira a prática de banco de horas em várias Unidades, que ninguém nunca imaginou que isso poderia gerar um processo.” (Servidor O, linha 38).
A quarta categoria foi denominada Deslocamento da Responsabilidade (n = 55 verbalizações) e refere-se ao MDM usado pelas pessoas para retirar a responsabilidade de si próprias pelo comportamento imoral. Elas argumentam que foram provocadas por forças alheias à sua vontade, portanto se eximem de culpa e diminuem a autocensura. Por exemplo: “Quando foi anunciado o lanche, que não estava previsto, a depoente rapidamente tentou se posicionar próximo à porta, porém, devido à multidão presente, quando chegou à porta, elas já haviam saído.” (Servidor F, linha 38); “Essas pessoas não foram nomeadas por erro administrativo da Secretaria. O nome foi enviado e foi pedida a substituição, mas o nome não foi publicado.” (Servidor K, linha 113).
Uma quinta categoria foi denominada Atribuição da Culpa (n = 44 verbalizações) e refere-se ao mecanismo em que as pessoas se consideram vítimas das circunstâncias, desprovidas de culpa por suas ações, ou ainda que culpabilizam o alvo de suas ações. Por exemplo: “Desde a época em que o depoente assumiu a gerência (...), a relação entre o depoente e a servidora mudou por parte dela.” (Servidor C, linha 20); “A denúncia de agressão atribuída ao acusado é normal, visto que é rotineiro eles acusarem os servidores de terem perpetrado as agressões (...), o que lhe leva a acreditar que se trate de autolesão dos acusadores.” (Servidor J, linha 48).
A sexta categoria foi denominada Negativas (n = 105 verbalizações), para se referir a todos os tipos de discordância, e foi dividida em três subcategorias, criadas conforme as verbalizações dos servidores: Negativa de Lembrança (n = 20), Negativa de Acontecimento (n = 50) e Negativa de Conhecimento (n = 35). As Negativas foram as mais frequentes, mas não estão presentes em todos os sujeitos, como foi o caso da Justificação Moral. Entre as Negativas de Lembrança, por exemplo: “O depoente declara que não se recorda se estava presente no momento que o servidor (...) passou essa orientação.” (Servidor A, linha 19); “O depoente não se recorda qual período se afastou da Unidade, se não por férias, foi por banco de horas.” (Servidor K, linha 101). Entre as Negativas de Acontecimento: “Não fazia documentos particulares no trabalho.” (Servidor I, linha 304); “O depoente não usufruiu esses dias que constam na tabela, (...) os dados da tabela não configuram a realidade.” (Servidor X, linha 32). Já entre as Negativas de Conhecimento: “Não tinha conhecimento de que alguns servidores se sentiam constrangidos pelas suas atitudes; A depoente achava que as atitudes não eram constrangedoras.” (Servidor I, linha 203); “A depoente (...) não sabe se estava na Unidade nesse período. A chefia não tem como saber de todos plantões e todos servidores com relação às ausências.” (Servidor Y, linha 84).
A sétima categoria foi denominada Auto e Hetero Elogio (n = 24 verbalizações) e refere-se às verbalizações contendo informações positivas sobre si ou sobre algum colega de trabalho. Por exemplo: “Tudo isso é para mostrar que nunca foi de má-fé ou escondido. Todos os servidores da Unidade sempre quiseram agir da melhor forma, tanto que existem memorando e registros internos.” (Servidor Q, linha 67); “Espera que a Comissão tenha consideração porque o servidor presta o serviço de boa vontade e (...) o servidor está sempre disposto a vir ajudar a Unidade.” (Servidor S, linha 141).
A oitava e última categoria foi denominada Desvalorização das Acusações (n = 15 verbalizações) e refere-se às ocorrências em que os servidores desacreditam o teor das acusações, considerando-as sem fundamento. Por exemplo: “O depoente não sabe os motivos que ensejaram a denúncia feita pela servidora, que é uma denúncia mentirosa.” (Servidor C, linha 22); “Causa estranheza o fato de haver agressões muito mais aparentes, como as dos braços, que não foram apontadas pelo laudo do IML, mas que não aparecem nas fotos, o que reforça a sua crença da autolesão.” (Servidor J, linha 87).
Foram incluídos ainda, além das oito categorias, dois índices. O primeiro foi nomeado como Distorção das Consequências (n = 3 verbalizações, sendo 2 no interrogatório da servidora I), definido como o mecanismo em que a pessoa acredita fazer o mal pelo bem. Foi considerado um índice relevante por ser um dos oito MDM. Por exemplo: “Depoente manifestava a sua vontade de modificar algumas coisas na sala em que trabalhava, mas não de fazer distinção entre servidores; que não considera que esse ato de fechar a porta causava constrangimento aos demais servidores.” (Servidora I, linha 74). O segundo foi nomeado como Problemas Interpessoais (n = 6 verbalizações, das quais 5 estão presentes no interrogatório da servidora I), uma justificativa da ação infratora devido a um cenário de conflitos no trabalho. Por exemplo: “O depoente questionou alguns procedimentos adotados pela chefia. O chefe não concordou com alguns pontos questionados pelo depoente. Desde então ficou difícil o trabalho do depoente com o chefe.” (Servidor B, linha 23); “Quem tinha mais poder de influência era uma ou duas pessoas, que se manifestavam mais, e os outros seguiam as ideias deles. Isso foi criando atrito, pois acabou subordinando o administrativo à equipe técnica.” (Servidora I, linha 68)
Discussão
O objetivo deste trabalho foi analisar as verbalizações de servidores públicos por ocasião de interrogatórios em sede de processos administrativos disciplinares. De uma forma inicial e bastante abrangente, já se verificou que os servidores tendem a ser defensivos no momento do interrogatório, o que naturalmente ocorre quando se está enfrentando algum tipo de acusação. No processo legal o acusado deve ter diferentes oportunidades para se defender. O interrogatório, que inicialmente é utilizado pela comissão processante para esclarecer alguns fatos junto ao acusado, também é utilizado como uma oportunidade de defesa. É necessário ainda usar o termo “suposto” quando se registra a denúncia, já que a veracidade dos fatos será revelada ao final dos procedimentos. Nesses casos de processos formalmente instaurados com uma comissão de servidores e publicada em Diário Oficial, o julgamento pode gerar uma punição. Essa sanção pode ser mais branda, como uma advertência verbal; ou mais danosa, como uma suspensão do trabalho (com corte de salário e prorrogação da aposentadoria, por exemplo); ou ainda a pior punição, que é a demissão (Lei no 8.112/1990). Portanto, há que se discutir quais argumentos são apresentados pelos servidores acusados nesse ponto da investigação, com que frequência e que fenômenos psicológicos estão envolvidos.
Estudos empíricos sobre dissonância cognitiva mostram há mais de 70 anos como somos muito mais propensos a mudar nossas crenças e atitudes do que nossos comportamentos, em especial quando são ameaça à autoimagem (McGrath, 2017). No presente trabalho o foco foi na identificação de MDM nos processos cognitivos dos servidores acusados, mas é possível reconhecer também necessidades de redução da dissonância cognitiva, já que as pessoas precisam se convencer de que suas ações não foram tão danosas assim. No entanto, a investigação dessa teoria também apresenta fraquezas metodológicas e operacionais que dificultam seu teste empírico. O uso de elogios a si mesmo ou a outrem, bem como a desvalorização das acusações também são estratégias cognitivas para o gerenciamento da impressão (Peck & Levashina, 2017), criando uma imagem positiva que pode aumentar as chances de empatia da comissão de servidores que está conduzindo o processo. Embora essas teorias tenham sido acionadas após a análise de conteúdo dos interrogatórios, sua relevância para o tema desta pesquisa deve ser pontuada.
Iniciando pela categoria mais forte, a de Negativas, parece intuitivo negar que ocorreu alguma infração disciplinar em algum momento. Apesar de a Lei 8.112/1990 apresentar um rol taxativo definindo o que é considerado infração, no momento de categorizar as ações inadequadas, os servidores acusados negam que os fatos ocorreram, ou negam que conheciam as regras, ou não se lembram dos fatos. Tais verbalizações podem até indicar o mecanismo de Distorção das Consequências, quando as pessoas acreditam fazer o mal pelo bem, mas o comitê de juízes decidiu criar uma categoria separada para esse conteúdo. Os estudos psicanalíticos tecem a compreensão da negativa como um processo inconsciente, implícito, um mecanismo de defesa do self (Campos, 2019), muito semelhante aos processos cognitivos tradicionalmente investigados pela psicologia social.
Especificamente, negar conhecimento das regras, como se verifica em “O depoente não tem conhecimento que o servidor ocupante de cargo em comissão possui dedicação exclusiva e não faz jus a horas extras” (Servidor N, linha 109), acaba servindo como uma justificação moral para o comportamento que está sendo repudiado. Quando se diz ignorante de alguma norma emanada de uma ética supostamente compartilhada (Catafesta, 2017), fica fácil explicar porque ela não foi seguida. Contudo, negar conhecimento não significa negar os fatos ou a lembrança deles. Negar os acontecimentos ou ainda negar a lembrança deles, por outra via, pode se relacionar à necessidade que se tem de desvinculação pessoal do evento infracional, questionando sua materialidade e autoria: os elementos básicos que conferem existência a qualquer procedimento. Dizer que não se lembra de todos os fatos pode ser uma estratégia relevante (e legal, assim como mentir ou omitir em defesa própria) para evadir nas respostas. Nesse sentido, alegar desconhecimento de documento ou de prova pode ser ainda uma estratégia para descaracterizar as acusações.
Semelhante estratégia é a da categoria Desvalorização das Acusações, quando se questionam aspectos lógicos do processo, como se observa em “Causa estranheza as agressões constatadas nas fotos do processo, visto que não foram apontadas no laudo do IML.” (Servidor J, linha 50). No entanto, esse processo cognitivo exige um raciocínio mais elaborado do que somente negar. Por outro lado, talvez o índice Distorção das Consequências tenha sido pouco utilizado porque exige um processo cognitivo mais elaborado, minimizando as consequências da ação transgressora, como se confere nas verbalizações. Quanto ao índice Problemas Interpessoais, já que está majoritariamente presente no discurso de apenas um servidor, pode estar mais relacionado a um estilo de pensamento individual do que uma tendência do corpus. No entanto, ele pode ser considerado relevante num contexto geral, em que são identificados frequentes conflitos no ambiente de trabalho e que levam à percepção de perseguição quando se é acusado de algum comportamento inadequado (Baillien et al., 2017).
A categoria Justificação Moral apresenta conteúdos diversos entre si, tendo sido identificada dificuldade de estabelecer o critério de homogeneidade. Mas as justificativas para comportamentos antiéticos podem assumir estratégias cognitivas maleáveis ao contexto de necessidade de afirmação do self (Iglesias, 2008). Esse MDM, que foi usado pelo menos uma vez em todos os interrogatórios, requer uma transformação cognitiva, um raciocínio enviesado para ressignificar a conduta antissocial como sendo valorosa para a comunidade. Não foram encontrados, contudo, os MDM denominados Comparação Vantajosa e Desumanização, possivelmente porque os servidores estavam preocupados em gerenciar sua imagem perante a comissão processante. A Comparação Vantajosa, que opera quando se apresenta uma situação pior para amenizar a ação transgressora, não parece mesmo ser frequentemente utilizada, até porque seu uso incorreria em assumir responsabilidade pelo ato praticado. No caso da Desumanização, que é a atribuição de características animalescas à vítima da ação transgressora, provavelmente não apareceu porque a maioria das infrações não tem necessariamente uma vítima concretamente nomeável. Existe uma figura de linguagem na língua portuguesa chamada Zoomorfização ou Animalização, que se refere exatamente a esse efeito semântico de atribuir características animalescas a seres humanos.
A Linguagem Eufemística foi identificada em algumas palavras ou expressões usadas para atenuar moralmente o sentido das ações repreensíveis, como se percebe em “A fuga das jovens foi uma infelicidade da situação” (Servidor E, linha 49): uma construção frasal usada para descaracterizar o fato ocorrido como um grave erro da equipe, e ainda jogar a responsabilidade para fora de si. O eufemismo na cultura brasileira tem sido discutido como uma estratégia de naturalização e de aceitação ampla de fenômenos como a violência e o autoritarismo institucionalizado (Machado & Carvalho, 2019).
A maior parte das verbalizações para Difusão da Responsabilidade foi encontrada no último processo (n = 48, do total de 58), que incluiu os interrogatórios de K a Z, com o tema do uso excessivo de banco de horas. A própria natureza da denúncia, que partiu do fato de que muitos servidores estavam usufruindo de banco de horas positivo, está intrinsecamente ligada a esse MDM, que é normalmente confundido com o Deslocamento da Responsabilidade, que também foi predominante nesse mesmo processo (n = 39, do total de 55). Enquanto na Difusão a responsabilidade pessoal é diminuída em comparação com a responsabilidade geral (do grupo), no Deslocamento, a responsabilidade pessoal praticamente desaparece, como se verifica na verbalização “É tão rotineira a prática de banco de horas em várias Unidades, que ninguém nunca imaginou que isso poderia gerar um processo” (Servidor O, linha 38).
Quando o servidor usava o plural, retirando sua responsabilidade pessoal sobre o comportamento infrator, foi identificado Deslocamento de Responsabilidade. Também é claramente identificado quando o lócus de controle é externo ao servidor, como se verifica em “O baixo efetivo força os servidores a permanecerem além do horário” (Servidor L, linha 80), em que as pessoas são forçadas (atenção para a voz passiva nesta frase) a se comportar de maneira errada. Essa mesma concepção de que “não depende de nós” pode também ser constatada em “Alguém tem que legalizar isso” (Servidor R, linha 60).
O MDM da Atribuição de Culpa se baseia na auto-vitimização ou na culpabilização da vítima, como se pode verificar em “A denúncia de agressão atribuída ao acusado é normal, visto que é rotineiro eles acusarem os servidores de terem perpetrado as agressões (...), o que lhe leva a acreditar que se trate de autolesão dos acusadores” (Servidor J, linha 48). De acordo com o raciocínio desse servidor, a vítima resolveu se machucar para fazer parecer que foi agredido por ele. Esse mesmo processo cognitivo, baseado na ideia de perseguição, permeia grande parte das demais verbalizações caracterizadas como Atribuição da Culpa, um fenômeno que pode ser relevante para pesquisas tanto para organizações privadas quanto em públicas.
A categoria de Auto e Hetero Elogio, que emergiu diretamente da leitura exaustiva do corpus textual (assim como Negações, Desvalorização das Acusações e Problemas Interpessoais), parece um recurso intuitivo, quase automático, usado como estratégia de gerenciamento da impressão perante a comissão processante. Surgiu inclusive o argumento de que ser convidado para um cargo de chefia era um indício da boa índole do servidor, como se observa em “Durante esse período exerceu sua função sempre com conceito excelente e foi convidado para um cargo de chefia, exercendo durante um ano e meio sem nenhuma conduta que o desabonasse” (Servidor A, linha 144).
Aponta-se, finalmente, a necessidade de uma agenda de pesquisas utilizando a técnica de análise do discurso para investigar o raciocínio ao se defender de acusações administrativas. Algumas pessoas utilizaram, por exemplo, Atribuição de Culpa e Auto e Hetero Elogio, a título de argumento final no interrogatório. A servidora T estabeleceu uma estratégia coerente de argumentação quando primeiro negou que conhecia a existência do documento comprobatório de sua infração disciplinar (linhas 30-37). Depois usou Justificação Moral para explicar que trabalhou de boa-fé enquanto ainda não tinha sido nomeada para o cargo de chefia (linhas 39-43) e terminou adotando Atribuição de Culpa para expor que se sente injustiçada, vítima das circunstâncias impostas pela situação (linhas 45-49). O servidor N, por outro lado, justificou que o banco de horas existia para o servidor não ganhar duas vezes (linhas 57-58), um raciocínio oposto ao dos servidores Q, alegando que caso contrário seria duplamente prejudicada (linhas 58-59), e R, que mencionou a percepção de prejuízo pessoal ao ajudar no trabalho (linhas 56-57).
Considerações Finais
Como na proposta de Guimarães et al. (2016) para investigar o conteúdo de processos administrativos, a presente pesquisa tem como avanço o uso desse recurso metodológico não apenas com um caso, mas com 26 interrogatórios, analisados conjuntamente. O uso de material sigiloso como fonte de dados para pesquisas deve ser feito com cautela, respeitando informações pessoais ao mesmo tempo em que propicia a exploração semântica com base em fundamentos teóricos sólidos. Esta pesquisa pode ser usada como base para novos estudos empíricos, também com servidores públicos. Isso envolve investigar relações, interações de diferentes variáveis e modelos explicativos.
Ainda, com implicações práticas é possível desenvolver estratégias preventivas ao comportamento antiético. Achados assim servem de fundamento sistemático para treinamento de servidores públicos que atuam em comissões disciplinares e éticas. Isso inclui compreender a dinâmica psicossocial da infração, aprimorando a qualidade das oitivas, das perguntas elaboradas e da própria investigação de irregularidades. Por outro lado, também podem servir para o treinamento de servidores públicos de uma forma geral, instrumentalizando-os na detecção de pensamento moralmente desengajado que propicia a conduta irregular. O contato com esse conteúdo pode contribuir na elaboração de estratégias de auto monitoramento pelo próprio servidor.
Foram atentamente considerados os alertas sobre o uso de análise de conteúdo em pesquisas de psicologia brasileira discutidos por Castro et al. (2011). A estratégia pode ser considerada um ponto de valor deste trabalho, tendo em vista a oportunidade de investir em clareza e objetividade num cenário de relatos qualitativos ainda herméticos no que tange aos passos metodológicos. Adicionalmente, foram seguidos à risca os parâmetros da American Psychological Association para relato de pesquisas qualitativas, facilitando assim a verificação dos resultados e possibilitando a tentativa de replicação metodológica.
Como limitações deste estudo, aponta-se a necessidade de melhor definir e diferenciar os temas - cumprindo o critério de exclusividade das variáveis imposto pela estratégia de análise de conteúdo escolhida. No entanto, representa um conflito com a própria teoria dos mecanismos de desengajamento moral, que ressalta sua natureza complementar. A decisão em manter o raciocínio metodológico de acordo com os achados empíricos, sacrificando a proposição teórica, no entanto, tem sido uma decisão respeitada em psicologia social (Crochick, 2018). O estudo se limita também pelo acesso dos pesquisadores, já que a garantia do sigilo e proteção dos dados impede o registro de informações demográficas. Esse ponto pode ser melhor explorado no futuro, por exemplo, via entrevistas.
O conjunto de achados representa, finalmente, uma contribuição teórico-conceitual relevante para o desengajamento moral no contexto cultural brasileiro, considerando variáveis intra e interpessoais. É uma contribuição também para as organizações, na medida em que problematiza o setor público de atuação de trabalhadores e o efeito de suas irregularidades para a sociedade de forma geral. A proposta de ações preventivas para a seara correcional, além de inovadora para a gestão, se traduz em valorização do servidor e aprimoramento do resultado a ser entregue ao público.