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Temas em Psicologia

versión impresa ISSN 1413-389X

Temas psicol. v.14 n.1 Ribeirão Preto jun. 2006

 

ARTIGOS

 

Retomando o debate qualidade x quantidade: uma reflexão a partir de experiências de pesquisa

 

Revisiting quality versus quantity debate: a reflection based on research experiences

 

 

Ana Maria Almeida CarvalhoI; Maria Isabel PedrosaII; Kátia S. AmorimIII

I Universidade Católica do Salvador e Universidade de São Paulo
II Universidade Federal de Pernambuco
III Universidade de São Paulo - Ribeirão Preto

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Dados quantitativos e qualitativos e sua análise são dois tipos de representação dos fenômenos, sendo que o paradigma quantitativo ainda é o dominante nas ciências sociais, inclusive na Psicologia. No entanto, nas últimas décadas, embora ainda prevaleça a orientação quantitativa, emergiram diversas críticas significativas aos dados quantitativos em ciências sociais, apontando a análise qualitativa como aquela que poderia melhor apreender fenômenos psicológicos e sociais. O debate quantitativo-qualitativo avançou nas ciências sociais contemporâneas, com distinções rígidas entre os dois métodos, resultando em disputas acirradas (e desnecessárias) nos quais cada método é tomado como uma alternativa oposta e/ou incompatível com a outra. Este trabalho visa revisitar esse debate ainda vivo, utilizando exemplos derivados de estudos empíricos – especialmente sobre interação social e brincadeira de crianças – para contribuir para o questionamento da consistência das oposições lógicas e metodológicas entre quantitativo e qualitativo.

Palavras-chave: Quantitativo/qualitativo, Interação criança-criança, Análise de dados.


ABSTRACT

Quantitative and qualitative data and their analyses are two types of representation of phenomena, and quantitative paradigm is still prevalent in social sciences, Psychology included. The last decades, however, while quantitative orientation is still dominant, several significant criticisms regarding quantitative data have emerged, indicating qualitative analyses as more adequate to capture psychological and social processes. Quantitative-qualitative debate has advanced in contemporary social sciences, with often rigid distinctions between the two methods, and leading to hot (and unnecessary) disputes in which each method is taken as an opposite and/or incompatible alternative to the other. This paper aims at revisiting this still live debate, using examples derived from empirical research, especially on child-child interactions and play, in order to reflect on consistency of logical and methodological oppositions between qualitative and quantitative.

Keywords: Quantitative/qualitative, Child-child interaction, Data analyses.


 

 

Introduzindo a questão

Na ciência, em geral, e na psicologia do desenvolvimento, em particular, os métodos de coleta e análise de dados podem ocorrer em duas direções básicas. Uma delas envolve a quantificação dos fenômenos, transformando qualidades escolhidas em números que se supõe representarem essas qualidades (dados quantitativos). A outra – dados qualitativos – emerge como tradução de aspectos selecionados do fenômeno em alguma forma de descrição estruturada. Essas estruturas representativas podem ser descrições verbais (transcrições, descrição narrativa de eventos, etc.), símbolos não-verbais ou formas geométricas. Dados quantitativos e qualitativos e sua análise são dois tipos de representação dos fenômenos (Valsiner, 2000).

Fielding e Schreier (2001), tanto quanto Valsiner, entre outros, enfatizam que o paradigma quantitativo ainda é o dominante nas ciências sociais. Na literatura científica da Psicologia, especificamente, a metodologia quantitativa não é apenas valorizada, mas também exigida.

Entre os anos 30 e 70 do século XX, a história da psicologia do desenvolvimento oferece poucos exemplos de estudos qualitativos. Colocou-se muita ênfase em abordagens quantificáveis e supostamente mais objetivas à descrição e análise do comportamento. No entanto, nas últimas décadas, embora ainda prevaleça a orientação quantitativa, emergiram diversas críticas significativas aos dados quantitativos em ciências sociais, apontando a análise qualitativa como aquela que poderia melhor apreender fenômenos psicológicos e sociais. Essa tendência trouxe a análise qualitativa de volta ao campo da psicologia do desenvolvimento, com base em perspectivas ecológicas, contextuais, fenomenológicas, históricas ou de processos dinâmicos.

O debate quantitativo-qualitativo avançou nas ciências sociais contemporâneas, com distinções rígidas entre os dois métodos, resultando em disputas acirradas (e desnecessárias) nas quais cada método é tomado como uma alternativa oposta ao outro (Valsiner, 2000). Ainda se encontram esforços no sentido de suprimir um desses métodos. Há quem argumente que os métodos qualitativos são interpretativos, imprecisos, subjetivos ou não-científicos, enquanto outros afirmam que os métodos quantitativos são raciocínios formais, áridos, deterministas, positivistas ou mecanicistas.

Diversas questões podem ser colocadas a partir desse debate. Existiriam temas que seriam mais bem investigados por análise quantitativa? A análise qualitativa seria mais adequada para uma exploração inicial do fenômeno, a ser posteriormente submetido à análise quantitativa? Ou haveria temas aos quais a análise quantitativa não seria aplicável? Por que está ocorrendo a tendência, em estudos contemporâneos de psicologia do desenvolvimento, à busca de métodos qualitativos?

Esse debate ainda é relevante no âmbito da Psicologia. Westmoreland (citado por Fielding & Schreier, 2001) afirma que a dicotomia entre métodos quantitativos e qualitativos baseada em suposta superioridade de uns sobre os outros é uma escapatória para a identificação das melhores ferramentas para cada tarefa de investigação.

Este trabalho visa revisitar tal debate ainda vivo, utilizando estudos empíricos – especialmente sobre interação social e brincadeira de crianças – para contribuir para o questionamento da consistência da oposição lógica e metodológica entre quantitativo e qualitativo (Minayo, 1993). Não existe a pretensão de esgotar ou resolver esse debate, ou de aprofundá-lo por meio da discussão de níveis de análise qualitativa ou quantitativa, mas sim de contribuir para ele com exemplos concretos de trabalhos cuja oposição se revela inconsistente.

 

Questionando a oposição quantitativo-qualitativo

Um primeiro questionamento a essa oposição refere-se ao “caso único”. Em muitos contextos de pesquisa, a demonstração de uma única ocorrência de um fenômeno constitui prova suficiente sobre sua existência e coloca perguntas a seu respeito. Um exemplo em nosso próprio trabalho é descrito em Bussab, Pedrosa e Carvalho (2007). Em um episódio registrado em vídeo, dois meninos, de 9 e 13 meses de idade, interagem de maneira que indicam claramente empatia, implicando algum nível de compreensão do estado emocional do outro, ou de reação a esse estado: o bebê mais jovem, que escuta o choro persistente da outra criança, atravessa a sala engatinhando na sua direção, e acaricia sua cabeça e suas costas; o choro pára imediatamente; a criança mais velha senta-se e olha para o parceiro; depois de um pequeno intervalo, os dois começam a brincar juntos. Este episódio foi considerado como evidência suficiente para questionar a premissa fortemente arraigada de que a empatia requer um nível de desenvolvimento cognitivo que está ausente na primeira infância, e para desencadear uma reflexão sobre a ontogênese da empatia e da intersubjetividade. Evidentemente, uma análise detalhada sobre possíveis relações entre esse tipo de comportamento e variáveis individuais ou contextuais exigiria dados quantitativos. Mas essa única ocorrência já prova a existência de um fenômeno que merece a atenção do pesquisador. Por outro lado, a identificação de uma qualidade coloca questões sobre quantidades: com que freqüência ela ocorre? É possível medir sua intensidade ou outras propriedades? Estas propriedades quantificáveis contribuem para a “qualificação” da qualidade definida para o fenômeno? Acrescentam algo à nossa compreensão sobre ele?

Qualquer medida ou quantificação opera sobre qualidades previamente definidas: elementos simples, categorias, classes, grupos de eventos similares, etc. Qualidades são, portanto, necessariamente anteriores à quantificação, e quantidades implicam qualidades. Reciprocamente, tratamentos quantitativos baseados em categorização contribuem, freqüentemente, para o refinamento qualitativo do sistema de categorias. Um exemplo disto pode ser encontrado em Carvalho, Beraldo, Pedrosa e Coelho (2004). Os resultados de análises quantitativas de verbalizações de crianças sobre desenlaces de lutas e de brincadeiras de luta foram agrupados em categorias do tipo: “conhecimento prévio do parceiro” (exemplo, fulano é mais forte); “características físicas e idade do parceiro” (o mais forte é o maior, ou o mais velho), “habilidade de derrubar o outro”, “capacidade de infligir dor/ machucar”, “força do golpe”, “força do empurrão/ soco”, etc. Os quantitativos das respostas poderiam referir-se às mesmas crianças uma vez que elas mencionavam aspectos variados dos parceiros e de suas ações. Entretanto, uma inspeção rápida desses quantitativos organizados em uma tabela pelos três segmentos das idades investigadas, ou seja, 5, 8 e 10 anos, permitiu observar que as respostas das crianças mais novas concentravam-se na primeira categoria, entretanto eram ausentes nas outras idades. As respostas das crianças de 8 anos recaíam, com ligeiro predomínio, na segunda categoria, comparadas às respostas das crianças de 10 anos para essa mesma classe. Em relação às demais categorias, um quantitativo insignificante apareceu entre as crianças de 5 anos e um ligeiro aumento entre as de 10 anos. Esses resultados sugeriram que teria sido possível uma análise mais útil se as respostas tivessem sido categorizadas de acordo com uma hipótese de desenvolvimento, examinando-se um grau crescente de relativização do conceito de mais forte. As respostas incluídas em “conhecimento prévio do parceiro” implicam um conceito de mais forte como “traço” da criança individual, sem referência ao parceiro de luta ou à situação em questão (o mais forte é fulano). Na segunda categoria, “o tamanho ou outras características físicas”, já há indícios de que é preciso comparar os parceiros para dizer quem é o mais forte: o mais forte é o “maior”, ou o “mais velho”. Finalmente, na terceira categoria a avaliação se baseia em dicas situacionais, ou seja, reconhece que força e tamanho não são necessariamente correlacionados e/ou que pode ser possível identificar o mais forte entre dois parceiros do mesmo tamanho a partir de seu comportamento e da relação deste com o comportamento do outro: “ele bateu mais forte, ele derrubou”, etc. Trata-se de um exemplo no qual a análise quantitativa revela deficiência do recorte qualitativo original no qual se baseou.

Quando uma quantidade se transforma em qualidade, e vice-versa? Por exemplo, a ocorrência repetida de certos movimentos de uma ou mais crianças em um grupo de brinquedo pode delinear um padrão, uma estrutura ou seqüência reconhecíveis, e esta nova qualidade perceptível pode desempenhar um papel na regulação das ações do grupo (Pedrosa, Carvalho, & Império-Hamburger, 1996). Por outro lado, uma qualidade como “intensidade” tem implícita em si, ou pode tornar-se, uma quantidade.

Portanto, do ponto de vista lógico a oposição quantidade-qualidade pode ser questionada com base em um argumento central: qualidade e quantidade não se excluem mutuamente, mas são, antes, categorias mutuamente inclusivas.

A oposição também pode ser questionada a partir de um ponto de vista metodológico, foco das seções seguintes deste texto.

 

Dinâmica da interação social em grupos de crianças: em busca de um modelo

O ponto de partida desta busca foi a análise do fluxo interacional em um grupo de quatro crianças, A, B, C e D, (dois meninos e duas meninas de 36 meses de idade) brincando em torno de uma mesa. Cinco minutos da sessão vídeo gravada foram descritos em termos de quatro categorias interindividuais, baseadas em dois atributos: orientação da atenção e ocorrência de regulação interindividual. As categorias resultantes (AI, atividade individual; MI, movimento interativo; PP, participação periférica e I, interação) caracterizaram o comportamento de cada criança em relação às outras e serviram de critério para considerar as transformações no grupo. Essas transformações foram representadas em diagramas, num total de 40. Cada diagrama evidenciava a transformação ocorrida na dinâmica interacional, em um dado momento. Estes momentos não correspondiam a intervalos regulares de tempo; bastava que uma das crianças alterasse seu comportamento em relação às demais e um novo diagrama era desenhado. A partir desses diagramas, foi construída a Figura 11, na qual cada criança é posicionada em uma das categorias, em cada diagrama. O que a figura revela, portanto, é o movimento ou fluxo do grupo entre estados interacionais diversos: da atividade individual à interação propriamente dita (interação recíproca), ao longo de cinco minutos de registro (Carvalho, Branco, Pedrosa, & Gil, 2002).

 

Figura 1: Fluxo de interações, segundo quatro categorias interacionais, em um grupo de quatro crianças (A, B, C, D), em cinco minutos de observação.

 

O conceito de regulação interindividual experimentado nessa análise foi posteriormente desenvolvido por meio de uma análise qualitativa de episódios interacionais em um grupo de crianças em atividade livre. Registros vídeo gravados semanais no decorrer de 12 meses foram examinados com vistas a recortar episódios e a criar critérios de descrição; com esse procedimento, foi possível identificar momentos de organização do grupo em termos de coordenação de movimentos e compartilhamento de atividades (Pedrosa & Carvalho, 2005).

Este insight qualitativo conduziu à elaboração de conceitos teóricos sobre o processo de auto-organização do sistema constituído por um grupo de crianças em atividade livre. Foi tentada uma analogia com o comportamento de sistemas físicos, inspirada pelas propriedades qualitativas identificadas; a inspeção qualitativa de outros episódios interacionais resultou na proposição dos princípios de orientação da atenção, compartilhamento de significados e persistência de significados como propriedades específicas de campos de interação social (Carvalho, Império-Hamburger, & Pedrosa, 1998).

Até este momento, as análises foram basicamente qualitativas (ou, no máximo, em seqüências temporais) e o grupo foi utilizado como unidade. Atualmente estamos ensaiando a busca de um modelo matemático que descreva essas mesmas propriedades. Uma seqüência de 40 minutos de eventos vídeo gravados no grupo de crianças foi decodificada segundo a segundo e criança por criança, utilizando diversas categorias. Estas foram agrupadas posteriormente em um conceito binário: ações coordenadas que apresentam configuração de movimento em círculo = 1, e outras ações = 0 (Figura 2). A opção pelas configurações em círculo foi motivada pelo fato de que, no decorrer dessa sessão, as crianças criaram uma brincadeira de carreiras pela sala, que foi se desdobrando em vários motivos em círculo: rodopiar, correr em roda, correr ao redor de outra criança; em nossa leitura qualitativa, a configuração em círculo operava como um atrator no sistema (Pedrosa, Carvalho, & Império-Hamburger, 1996).

 

Figura 2: Seqüência binária para cada criança (figura superior): configurações circulares = 1 / outras ações = 0. Número total de crianças brincando em círculo no instante t (gráfico inferior aumentando).

 

O desenho produzido por esta abordagem é surpreendentemente semelhante, em termos de dinâmica, ao apresentado na Figura 1, com base em um recorte completamente diferente de tempo e de categorias. Interpretamos essa similaridade como indicação de que fenômenos semelhantes estão sendo retratados em ambos os casos, isto é, a propriedade cíclica de estados de ordem e desordem no sistema, e significados compartilhados como elementos organizadores do sistema (Oiwa, Império-Hamburger, Carvalho, & Pedrosa, 2004, 2005). A expectativa é de que esta linha de trabalho possa não apenas confirmar o referencial conceitual derivado de análises qualitativas, mas também apontar novas perguntas e direções de pensamento. Nesse sentido, a abordagem quantitativa pode estar contribuindo heuristicamente com a abordagem qualitativa.

 

Evolução da estrutura do grupo e de relações interpessoais

As noções de estrutura de grupo e de relações interpessoais estáveis são correlatos necessários da noção de persistência de significados, no sentido de que, para que um significado persista, deve ser evocado e reconhecido por parceiros familiarizados entre si. Estas questões vêm sendo pesquisadas pela primeira autora há vários anos, e os resultados mais recentes são apresentados nas Figuras 3 e 42, que ilustram também abordagens metodológicas diferentes.

 

Figura 3: Estrutura de um grupo multietário de crianças, com base em relações de proximidade.

 

Figura 4: Estrutura de dois grupos brincando no mesmo espaço, baseada no compartilhamento de atividades e no relato de educadoras.

 

A Figura 3 é um sociograma clássico, baseado em observação direta de proximidade física e não em relatos verbais. Representa um grupo multi-etário (24-60 meses) de crianças, ao longo de oito meses de freqüência em um grupo de brincadeira. Parcerias privilegiadas, definidas como mais de 30% do tempo em proximidade, são representadas pelas linhas que conectam duas crianças; a espessura das linhas é proporcional à freqüência de proximidade. Meninos e meninas são representados por triângulos e círculos, respectivamente; o tamanho das figuras indica o grupo etário (até 4 anos; acima de 4 anos), e as figuras pretas indicam novatos no grupo (crianças que ingressaram no semestre em curso). O critério de amostragem foi de amostras de varredura, duas a três em cada sessão semanal de observação. Esta representação evidencia claramente uma estrutura de grupo organizada por meio de relações interpessoais (parcerias privilegiadas) e sugere que a construção dessa estrutura deva ser mediada por sexo, idade e familiaridade (tempo de convivência no grupo); a maioria das relações tende a se fortalecer com o tempo, enquanto algumas se perdem e outras emergem.

Um quadro semelhante quanto a aspectos gerais pode ser obtido com critérios diferentes. A Figura 4 apresenta sociogramas construídos ao longo de três anos para dois grupos de crianças (21-27 meses e 29-30 meses), que brincavam juntas com freqüência em um mesmo espaço. Triângulos representam meninos e hexágonos representam meninas; figuras sombreadas representam novatos. Foram utilizados dois critérios diferentes para a definição de parcerias privilegiadas: freqüência de engajamento em atividades compartilhadas (um critério mais rigoroso do que o de proximidade) e relato das educadoras sobre as relações percebidas no grupo. As linhas mais espessas que conectam as crianças representam acordo entre esses dois critérios; linhas mais finas indicam que apenas um dos critérios foi preenchido. A amostragem não se baseou em varreduras, mas, sim, em eventos: ocorrência de atividades compartilhadas. Com esse procedimento, dois aspectos podem ser acrescentados ao quadro descrito anteriormente: um grau interessante de acordo entre os dois critérios, um dos quais é qualitativo (a impressão das educadoras sobre a rede de relações no grupo); e a sugestão de que a percepção de pertencimento a um dos grupos parece induzir parcerias mesmo nessa idade tão precoce (dados de 1993), uma vez que, brincando no mesmo espaço, com os mesmos objetos, as crianças compartilhavam mais freqüentemente com os parceiros sob a responsabilidade da mesma educadora, muito embora algumas crianças de grupos diferentes tivessem idades mais próximas. O viés de pertencimento tendeu a se reduzir com o tempo de convivência. Outro aspecto de interesse é que as parcerias privilegiadas se revelam seja qual for o critério – o critério mais frouxo de proximidade física, na Figura 3, ou o critério mais estrito de engajamento em atividades compartilhadas, na Figura 4. Em ambos os casos, a questão se refere a fenômenos interindividuais (estrutura do grupo e relações interpessoais). Embora o resultado recupere a noção de individualidade, note-se que os critérios também são interindividuais: proximidade ou engajamento em atividades compartilhadas implicam necessariamente a mutualidade (Carvalho & Rubiano, 2004).

Esse exemplo ilustra a coincidência entre resultados de definições qualitativas e quantitativas de parcerias privilegiadas. Além disso, levanta a questão do recorte individual ou supraindividual de fenômenos sociais. Esta questão é particularmente relevante uma vez que a maioria dos procedimentos estatísticos usuais na Psicologia baseia-se em medidas individuais, o que dificulta a aplicação de estatísticas convencionais a unidades sociais como díades ou grupos, uma questão já apontada por Marková em 1987. O exemplo seguinte ilustra este ponto.

 

A “natureza” das parcerias privilegiadas: propriedades específicas?

No exemplo dado, a questão é se certos tipos de relações envolvem propriedades específicas. No caso em pauta, o que caracteriza parcerias privilegiadas entre crianças?

Tal questão foi abordada, inicialmente, por meio de uma estratégia “histórico-qualitativa”. A partir de registros ad lib de episódios interacionais observados ao longo de 48 meses, um conjunto de episódios foi selecionado os quais envolviam uma díade de meninas. A escolha dessa díade foi determinada por evidências anteriores sobre a evolução de uma relação estável entre elas (cf. meninas 3 e 4 na Figura 3). Entre os vários indicadores sugeridos pela análise qualitativa detalhada desses episódios, um pareceu mais promissor: a comunicação e, em especial, a comunicação verbal, parecia tornar-se progressivamente mais breve e mais ritualizada, à medida que a relação se solidificava.

O resultado qualitativo sugeriu uma exploração mais sistemática e quantitativa sobre essa possibilidade. Doze díades de meninas de três anos de idade foram observadas, uma por uma, durante a atividade livre em uma sala previamente preparada. Seis díades eram de parceiras privilegiadas, segundo observações prévias de varredura na creche, e segundo as indicações das educadoras. As outras seis eram de parceiras neutras ou preteridas, pelos mesmos critérios. Os primeiros cinco minutos de cada sessão foram decodificados em um conjunto de categorias referentes à orientação da atenção, complementaridade/ reciprocidade de posturas e de ações, atenção e compartilhamento de atenção, de objetos e de atividades e tipos de verbalizações: monólogo ou diálogo, de conteúdo relacionado ou não às brincadeiras em andamento. A escolha das categorias reflete conceitos que já foram mencionados em exemplos anteriores.

Um “efeito de relação”, no sentido de diferenças estatisticamente significativas entre parceiras privilegiadas e outras parceiras, foi identificado em quatro categorias: compartilhamento de atenção em relação a objetos/ atividades; diálogo relacionado à brincadeira; uso simultâneo de objetos iguais, e compartilhamento de fantasia. Uma inspeção qualitativa dos dados evidenciou que a atenção compartilhada, a fantasia compartilhada, o uso de objetos iguais, etc. não eram precedidos por verbalizações convencionais explícitas, tais como convites ou propostas; a comunicação verbal era tipicamente breve e relativa à brincadeira. Significados anteriormente compartilhados pelas díades pareciam mediar sua comunicação (Carvalho, 1992; Carvalho & Rubiano, 2004).

Trata-se aqui, portanto, de um caso cuja análise quantitativa desempenha um papel de confirmação das interpretações derivadas de análises qualitativas anteriores as quais, ao mesmo tempo, inspiram e subsidiam a categorização - complementaridade explícita entre análise qualitativa e quantitativa.

 

Comunicação nos primeiros anos de vida: transição do não-verbal para o verbal

No último exemplo, realizamos um recuo temporal e um desvio metodológico em comparação com os exemplos anteriores, buscando processos de comunicação em uma idade mais precoce e de forma mais sistemática. Tanto a literatura quanto nossos trabalhos anteriores fortemente sugerem o papel da imitação como mecanismo fundamental na ontogênese da linguagem e da representação (Wallon, 1942/1979). Como um primeiro passo nessa direção, tentou-se descrever a transição de forma quantitativa, para apontar caminhos para uma abordagem mais qualitativa, tanto em termos de estágios quanto de aspectos de tal transição que poderiam ser focalizados de forma mais aprofundada.

A comparação apresentada aqui refere-se às escolhas entre registros focais e registros de grupo (registros de episódios) para a análise quantitativa. A Figura 5 apresenta: (i) os resultados preliminares de quatro semanas de registros focais de seis crianças entre 14 e 24 meses, durante a atividade livre em creche (tempo total de 95 minutos) (Sestini & Carvalho, 2004), e (ii) os resultados de amostras de episódios obtidas em nove meses de observação de um grupo de cerca de 20 crianças com idade entre 12 e 20 meses, em contexto semelhante (atividade livre na creche, tempo total de 81 minutos) (Carvalho & Pedrosa, 1993). No último caso, foi acrescentada mais uma categoria: devido à alta freqüência de “movimento”, esta categoria foi decomposta em movimento e ação.

 

Figura 5: Recursos comunicativos utilizados por crianças em duas amostras (registros focais; registro em grupo).

 

Os dois tipos de amostragem claramente não são comparáveis entre si. Os registros focais resultam em menos entradas em todas as categorias, exceto verbalização, a qual, evidentemente, é o recurso comunicativo menos utilizado nessa faixa etária em ambos os critérios da amostragem. As diferenças podem ser decorrentes de vários fatores. O primeiro grupo tinha menos crianças, embora sejam um pouco mais velhas e mais competentes do ponto de vista motor. Seria de se esperar que os registros dos episódios produzissem mais entradas, visto que, ao contrário de amostras focais, eles são selecionados com base na “ocorrência de algo entre as crianças”. Pode haver outras diferenças contextuais entre as duas creches, tais como organização espacial ou encorajamento dos adultos em relação às atividades lúdicas, provavelmente resultando em freqüências diferenciais de comunicação (Carvalho, Pedrosa, & Sestini, 2004).

No entanto, os dois procedimentos de amostragem podem ser analisados internamente. A Figura 6 compara os dados obtidos com os registros dos episódios nos primeiros dois meses de observação (outubro e novembro) e nos últimos três meses (abril a junho), com tempos de observação aproximadamente iguais (35 e 32 minutos, respectivamente). Esta comparação, que pode ser feita visto que os mesmos critérios foram aplicados nos dois períodos, sugere que não houve alterações na natureza dos recursos de comunicação ao longo de nove meses de observação, indicando a necessidade de um acompanhamento para identificar a evolução e a transformação desses recursos.

 

Figura 6: Recursos comunicativos de crianças de 12-20 meses, registradas em grupo, em dois períodos diferentes.

 

Mais uma vez, observa-se que as medidas de grupo (registros de episódios) refletem, em algum sentido e necessariamente, a individualidade; por outro lado, as medidas focalizadas no indivíduo (registros focais), embora possam ser mais precisas, correm o risco de perder informações e contexto. Em ambos os casos, seria de se esperar que uma análise qualitativa pudesse complementar e informar a interpretação desse tipo de dado quantitativo – uma forma de complementaridade em sentido oposto ao do exemplo comentado no item anterior.

A implicação principal – e, na verdade, bastante óbvia – dos exemplos apresentados é a de que tratamentos qualitativos ou quantitativos, da mesma forma que unidades de análise individuais ou supraindividuais, podem e devem ser utilizadas de forma complementar para uma abordagem produtiva dos fenômenos sociais.

 

Concluindo

Há posturas divergentes quanto à integração de métodos quantitativos e qualitativos. Algumas abordagens argumentam que tal integração é impossível porque os métodos se fundamentam em epistemologias contrastantes e suas diferenças não podem ser reconciliadas. Outras concebem essa possibilidade por identificarem conexões entre os métodos, por focalizarem os mesmos fenômenos.

Entendemos, como Minayo (1993), que não é mais possível considerar irreconciliáveis os métodos quantitativos e qualitativos. Medir algo significa tornar possível a repetição de uma qualidade una e indivisível de forma que a repetição ou coleção de repetições corresponda funcionalmente a uma qualidade numérica (quantidade). Observar se uma qualidade está ou não presente, ou medir o grau em que esteja presente, não diferencia a pesquisa quantitativa e qualitativa. A natureza de um objeto (qualidade) não se opõe à quantidade. A noção de quantidade sempre pressupõe uma noção de qualidade e uma qualidade sempre pode ser quantificável, dadas as medidas adequadas.

Nem os métodos qualitativos nem os quantitativos têm um privilégio automático ao se tentar responder a uma dada questão. No entanto, a combinação dos dois tipos de métodos não será necessariamente produtiva, a menos que esteja afinada com os objetivos e perguntas da pesquisa, assim como requererá também o domínio, pelo pesquisador, das duas formas de metodologia.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Maria Isabel Pedrosa
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Tels: (81) 3268-6157 / (81) 9242-5789
E-mail: icpedrosa@uol.com.br

Enviado em Junho/2007
Revisado em Outubro/2007
Aceite final em Dezembro/2007

 

 

Nota das autoras:
Agradecemos os apoios do CNPq e da FAPESP.

1 Esta e as demais figuras foram elaboradas por Teresa Poças. E-mail: teresapocas@uol.com.br.
2 Figuras reproduzidas, com a autorização da ArtMed Editora, de Rossetti-Ferreira et al. (2004).

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