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Temas em Psicologia

Print version ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.16 no.2 Ribeirão Preto  2008

 

ARTIGOS

 

Crianças com/sem família de Mapele, Salvador

 

Children with/without family of Mapele, Salvador

 

 

Adelaide de Souza Brandão; Elaine Pedreira Rabinovich

Universidade Católica do Salvador - BA - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objeto deste estudo de caso foi o modo de viver de vinte famílias de Mapele, subúrbio ferroviário de Salvador, Bahia, tomando-se como fio condutor a complexidade, a rede de significações e a perspectiva ecológica. O método utilizado para a coleta de dados foi: observação participante, diário de campo e entrevistas semi-estruturadas. Os resultados, apresentados como cenários e trajetórias, foram organizados em torno dos temas: ontem e hoje; vida cotidiana das famílias; violência doméstica; vida de um pescador; brincadeiras. Esses temas conduziram a considerações sobre o modo de vida na comunidade dentro de uma visão dialética quanto ao significado relativo e conjuntivo de possuir ou não possuir recursos. A fim de não continuar a se propagar uma posição colonialista, apenas mudanças estruturais e culturais no micro-sistema, no meso-sistema e no macro-sistema podem oferecer uma rede de significados que a todos inclua, os possuídos e os "des-possuídos", de modo a que todos possam vir a escolher que caminhos desejam percorrer.

Palavras-chave: Desenvolvimento infantil, Família, Ambiente social.


ABSTRACT

The object of this case study was the way of living of 20 families living in Mapele, Metropolitan Area of Salvador, Bahia. It was conducted by the commitment with complexity, the network of meanings and the ecological perspective. The method used for the collection of data was: participant observation, field diary and semi-structured interviews. Results, presented as sceneries and trajectories, were organized around the following themes: yesterday and today; family daily life; domestic violence; a fisher life; children play. These themes leaded to considerations about the community way of living from a dialectical point of view related to the meanings of having or not having family resources. To overcome the colonialist position, only microsystem, macrosystem and mesosystem structural and cultural changes can offer a network of meanings that could include everybody, the ones that possess and the ones that don't possess, so that anybody could choose the ways he/ she wants to follow.

Keywords: Child development, Family, Social environment.


 

 

A família está imersa em processos de transformação da sociedade e seu estudo exige a consideração de tais condições e perplexidades. Como estruturar os dados sem limitar a sua complexidade? Como dar visibilidade a todos os elementos e relações da realidade pesquisada?

Vários organismos internacionais, entre eles a UNESCO, têm desenvolvido um exercício de reflexão no sentido de propor políticas afirmativas para este período de mudanças. Ao apontar a necessidade de um paradigma epistemológico da complexidade, e não da completude, u Edgar Morin (2002) explica que:.

Aprendemos, no final do século XX que, à visão do universo obediente a uma ordem impecável, é preciso substituir a visão na qual este universo é o jogo e o risco da dialógica (relação ao mesmo tempo antagônica, concorrente e complementar) entre a ordem, a desordem e a organização (p.83-84).

Morin (2002) refere-se ao paradigma do conhecimento em que a ciência, a partir de Descartes, separou sujeito e objeto, determinando os conceitos subalternos e prescrevendo uma relação lógica: a disjunção:

O paradigma está oculto sob a lógica e seleciona as operações lógicas que se tornam ao mesmo tempo preponderantes, pertinentes e evidentes sob o seu domínio. É ele quem privilegia determinadas operações lógicas em detrimento de outras, como a disjunção em detrimento da conjunção ( p. 25).

De fato, o uso de uma lógica conectiva - e - , e não disjuntiva - ou - , implica em uma visão não determinista e em uma causalidade não-linear. Pressupõe uma relação cíclica, uma hierarquia não linear em que um nível de análise e/ou de fenômeno equivale ao outro.

O cerne da expressão contida no título deste trabalho - com/sem família - está na conexão dialética que relaciona estes termos no sentido dos movimentos de conjunção / disjunção / conexão. Para pensar o objeto - crianças sem/com família -, o contexto de desenvolvimento dessas crianças deve ser levado em consideração.

A abordagem ecológica fornece uma resposta à problemática do presente trabalho ao interconectar vários ambientes ecológicos e culturais como participantes ativos no desenvolvimento humano. Bronfenbrenner (1994) concebe o contexto do desenvolvimento como uma série de estruturas encaixadas uma dentro da outra. No nível proximal, está o ambiente mais imediato de interações diretas da pessoa em desenvolvimento, como a vida na casa, na sala de aula, etc. O próximo nível implica nas relações entre níveis que podem ser tão decisivas para o desenvolvimento quanto os eventos que ocorrem em determinados ambientes. O terceiro nível de ambiente ecológico trabalha com a hipótese de que o desenvolvimento da pessoa é afetado por ambientes nos quais ela não está presente, por exemplo: condições de trabalho dos pais nas sociedades industrializadas modernas. O quarto nível é o da cultura, ou seja, dos valores e crenças que norteiam e integram os demais níveis. Aos níveis, o autor denomina respectivamente micro, meso, exo e macro sistemas. Dentro de qualquer cultura ou sub-cultura, ambientes de um determinado tipo, como as casas, as ruas ou os escritórios tendem a ser semelhantes, ao passo em que entre as culturas são distintamente diferentes.

No mesmo sentido, Rossetti-Ferreira, Amorim, Silva e Carvalho (2004) propõem que os processos de desenvolvimento são concebidos ocorrendo, durante todo o ciclo vital, por meio das "múltiplas interações estabelecidas pelas pessoas em contextos social e culturalmente organizados" (p. 23). As autoras têm como perspectiva teórica metodológica a metáfora de uma rede de significações que pode se constituir "numa ferramenta capaz de auxiliar tanto nos processos de organização como na compreensão sobre processos de desenvolvimento humano" (p. 23).

(...) a perspectiva da Rede de significações propõe que o desenvolvimento humano se dá dentro de processos complexos, imerso que está em uma malha de elementos de natureza semiótica. Esses elementos são concebidos como se inter-relacionando dialeticamente. Por meio dessa articulação, aspectos das pessoas em interação e dos contextos específicos constituem-se como partes inseparáveis de um processo em mútua constituição. (Rosseti-Ferreira et al, 2004).

Na medida em que a família realiza a ponte entre o privado e o público por meio dos processos de socialização primária, seu estudo é necessariamente multidisciplinar, sendo a interdisciplinaridade o grande desafio para evitar a fragmentação e o respeito à diversidade.

Dentro do contexto de transformações pelas quais tem passado, a família continua a desempenhar um papel fundante na organização social como produtora de cuidados, proteção, aprendizado dos afetos, construção de identidade e vínculos relacionais de pertencimento. Nessa dinâmica, ela é influenciada pelo contexto político, econômico e social, no qual está inserida (Petrini, 2005). Assim, Biasoli-Alves (2002) constata que as práticas de educação utilizadas pelas famílias com as gerações mais novas sofreram mudanças ao longo do século XX. Questões ligadas ao controle do comportamento de crianças e adolescentes dentro da família ganharam maior ênfase enquanto outras atitudes tidas como desejáveis caíram em descrédito, como é o caso dos pólos liberdade x restrições. Novas e diferentes configurações familiares emergem, em um movimento de organização, desorganização e reorganização.

Entre os fatores que demarcaram um novo perfil da família atual podemos citar: 1. a revolução industrial separou o mundo do trabalho do mundo da família, instituindo a sua dimensão privada; 2. o avanço tecnológico no século XX, notadamente na área da medicina, trouxe uma mudança significativa para a reprodução humana: com a separação entre a sexualidade e a reprodução humana, a maternidade, antes destino da mulher, passou a ser uma escolha, o que ampliou as possibilidades de atuação no mundo social, instaurando uma verdadeira revolução no mundo feminino e na família; 3. o controle da reprodução, somado à inserção da mulher no mercado de trabalho, abalou os alicerces da família nuclear, na recriação do mundo subjetivo da mulher, que deixa de ser a "rainha do lar", e passa a ser uma trabalhadora, contribuindo com o pagamento das despesas da casa (Arriagada, 2000); 4. o exame de DNA permite a identificação da paternidade e, juntamente com as mudanças anteriormente citadas, produz uma tensão no lugar do masculino na família que, até então, continuava preservado nas suas bases patriarcais como provedor de proteção para a mulher e os filhos, sendo o intermediário entre estes e o mundo fora de casa (Sarti, 2004); 5. o movimento feminista, que teve seu ápice nos anos oitenta, com as mulheres lutando para terem seus direitos reconhecidos, mais autonomia e mais respeito ao trabalho por elas desenvolvidos (Berquó, 1998); 6. no caso do Brasil, a luta pelos direitos das crianças foi marcada pela Constituição Federal (1988) que instituiu o fim da chefia masculina na sociedade conjugal. Os homens já não podiam dispor da vida dos filhos como se fosse uma propriedade deles. Além desses, citamos a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990 (Brasil, 1990), que tornou a convivência familiar um direito básico da criança.

Esta visão das mudanças no mundo familiar permite observar a ocorrência, nas últimas décadas, de uma desidealização do modelo da família nuclear. Vários e diferentes arranjos familiares surgiram desde então, em que o universo das famílias menos favorecidas economicamente foi duramente atingido pelo encolhimento das funções do Estado, ou do término do Estado do Bem-Estar social que, no Brasil, não chegou a ser plenamente posto em prática. Nos processos familiares, há a ocorrência de novos eventos, reconfigurando novos arranjos, novos papéis ou posições assumidas pelas pessoas em constantes interações.

A família é o lócus do afeto, sem dúvida, mas principalmente o lócus da formação e da formatação de cada ser humano em uma cadeia intergeracional genética e cultural: o lugar onde os vínculos abrem as portas para o mundo, onde privado e público ainda coincidem, principalmente quando em ambientes com características coletivistas.

Contudo, no foco descrito como "funções sociais", a família pobre passa a ser o lócus do sem, de atributos que lhe faltam e que são, ou devem ser, supridos por outras agências. A institucionalização marca a passagem de "responsabilidade funcional" a agentes/agências sociais, das quais as ONGs atualmente são representantes importantes, com o decréscimo das políticas sociais. Para Fonseca (2004), "há uma tendência a ver o comportamento familiar dos pobres como mais determinado pela biologia (apelos instintivos, etc.) enquanto aos ricos é atribuído o privilégio de escolha" (p. 230). Assim, ilustra-se o uso de termos com conotações opostas conforme a Tabela 1.

 

 

A essa família sem são atribuídos epítetos, bem apontados por Fonseca (2004) na tabela abaixo, fonte de preconceitos, onde a produção do auto-preconceito da família pobre, e de seus pares, não pode ser relegada a um segundo plano. Tais epítetos, como exclusão, excluídos, pobres, carentes, privados, etc., apenas aumentam o fosso que a separa da inclusão, esta sim uma meta a ser perseguida.

Os termos com/sem que intitulam este estudo indicam uma conexão que sintetiza os movimentos de disjunção e conjunção familiares, dependentes tanto de fatores culturais e intersubjetivos quanto de injunções macro-estruturais. As crianças e suas famílias da região estudada estariam concomitante, conjuntiva e conectivamente, excluídas e incluídas.

As crianças e famílias do presente estudo serão vistas inseridas em seu micro-sistema - práticas de cuidados, ambiente doméstico, presença parental; em seu meso-sistema - vizinhança, creche, escola, amigos, brincadeiras; em seu exo-sistema - mídia, comunidade, sistema escolar; e no macro-sistema - valores culturais, condição sócio-econômica, transformações ambientais.

Pretendemos, por meio desta operação lógico-metodológica, não prejudicar ainda mais os já prejudicados por contextos usualmente designados por pobreza.

Objetivo

Este estudo pretende apresentar alguns aspectos de um quadro compreensivo de famílias e de crianças do local denominado Mapele, visando um aprofundamento quanto às condições do contexto familiar onde ocorre o desenvolvimento das crianças. Seus objetivos específicos são: a) descrever os cenários onde ocorre a vida dos personagens; b) apresentar alguns personagens como sujeitos exemplares; c) descrever o modo de vida e alguns aspectos da relação mãe-filho; d) apresentar o brincar de crianças, visto como principal indicador do modo de vida infantil; e) descrever a qualidade ambiental ligada aos cenários e intervenientes no modo de vida das famílias.

 

Método

Foi realizada uma investigação qualitativa e longitudinal, centrada em histórias de vida, coletadas por meio de um trabalho de campo realizado por observação participante, entrevistas semi-estruturadas e investigação de tipo etnográfica, como diário de campo e registros fotográficos (Demo, 1991, 2000) e fontes iconográficas e censitárias.

A pesquisa de campo foi realizada no Município de Simões Filho; primeiramente, na Paróquia de São Miguel, depois no Centro de Referência da Família e na Casa da Criança. Nesses espaços estão sediadas as ações desenvolvidas pelo Programa "Famílias Unidas", da Pastoral do Menor - CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), Nordeste III, que possibilitou realizar este estudo por meio da aproximação com a comunidade do subdistrito municipal de Mapele.

Em conjunto com os gestores do projeto "Famílias Unidas", organizou-se um questionário com a finalidade de situar os indivíduos pesquisados em seu território, objetivando recolher dados que subsidiassem os focos do estudo como número de filhos, tipo de moradia, qualidade ambiental, relações familiares, saúde etc. Este questionário foi aplicado às 60 famílias atendidas pelo referido Programa. Das 60 famílias com as quais o Programa "Famílias Unidas" trabalha, foram escolhidas as vinte moradoras em Mapele para participar em profundidade do estudo. Essas assinaram o Termo de Consentimento.

Além do questionário, foi utilizado um diário de campo com registros sistemáticos, entrevistas semi-estruturadas e grupos focais.

Estabelecido um vínculo de confiança, foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com os profissionais do projeto: uma assistente social, um pedagogo, um psicólogo, uma missionária, duas pessoas de apoio e o pároco responsável pela assistência ao programa e com as famílias selecionadas.

O conjunto de dados coletados foi organizado na forma de: cenários: descrição, na forma de crônicas e de relatos com base em dados censitários e outros, de ambientes, localizados no tempo e no espaço; trajetórias: apresentação, a partir de personagens reais, dos elementos do contexto de desenvolvimento escolhidos: contexto das brincadeiras; modo de vida e relação mãe-filho; a qualidade ambiental e a vida familiar. Devido à história da pesquisadora principal em que o diário de campo, pelo registro de suas memórias, tornou-se fundamental, assumiu-se aspectos auto-biográficos como parte de material coletado, assim como o registro de sua imersão no campo (Canêdo, 1993; Jago, 2006).

 

Resultados e discussão

Os Cenários

Mapele ontem

Nos anos 60, Mapele era um lugar agradável. Havia o banho de mar em água límpida e despoluída, areia branca, fauna e flora diversificadas e fartura de peixe e mariscos. Festas nas grandes mansões animavam o carnaval; a estação do trem era o ponto de encontro vespertino de garotas e senhoras que ali esperavam maridos, noivos, namorados, paqueras, etc. que passavam o dia trabalhando no centro de Salvador. O trem chegava com seu ruído característico, suas cabines eram novas, confortáveis e com boa aparência. A máquina era movida a óleo diesel, o que era uma novidade para a época, pertencente à Rede Ferroviária Leste Brasileira, hoje desativada.

A estação ainda existe, o trem também, ainda presta serviços não somente à população local, mas também a outros subúrbios ferroviários. Entretanto, o cenário mudou: o antigo balneário tem a praia coberta por mato, perfurada pela Petrobrás que busca ali poços de gás natural. Dos casarões, só restam praticamente ruínas, como aquele em que o Sr. Balbino (nome fictício) mora com sua família, restando poucos veranistas e pescadores.

Mapele hoje

Mapele é um subdistrito de Simões Filho, município pertencente à Região Metropolitana de Salvador - RMS, que possui uma área de 17.350 ha e uma população de noventa e quatro mil e sessenta e seis habitantes.

Simões Filho é um município que se caracteriza pela atividade industrial desde a década de 60 quando foi concluído o Centro Industrial de Aratu, CIA, para onde se deslocou boa parte das indústrias situadas em Salvador. No entanto, o incremento de capital que o município recebeu não significou o desenvolvimento de políticas públicas que fossem capazes de estruturá-lo sócio-economicamente. Com o fim da década de 80, a diminuição da intervenção estatal na região provocou a saída de indústrias e empresas e uma conseqüente diminuição de investimento de capital e de geração de empregos.

A maioria da população encontra-se na faixa economicamente ativa de 0 a 2 salários mínimos mensais. A média da renda no município de Simões Filho é baixa, ratificando a Região Metropolitana de Salvador como um dos locais com mais alto índice de desemprego no país, tendo em vista o sucateamento da sua estrutura produtiva do setor secundário, principal fonte de renda do município estudado (CONDER/IBGE, 2000).

No entanto, a maioria (64,60%) da população de Simões Filho possui entre cinco e onze anos de instrução e 97,42 % possuem até o segundo grau de escolaridade. Este dado é coerente com o histórico do município, uma vez que seus moradores não correspondiam aos empregados de cargos superiores, que residiam principalmente em Salvador e Lauro de Freitas, onde o setor terciário era mais desenvolvido e existia uma melhor infra-estrutura. No entanto, tinham a qualificação mínima para serem absorvidos como mão-de-obra, ficando com menores salários.

Apesar da entrada significativa de capital ter sido por tempo limitada, cerca de vinte a vinte cinco anos, Simões Filho possui um bom índice de infra-estrutura para os padrões baianos: a maioria dos domicílios possui água em rede; do esgotamento sanitário, apenas cerca de 50% têm ligação com a rede municipal, e iluminação regular. Mapele encontra-se em posição desfavorável em todos os índices.

Trajetórias

Modos de vida: o cotidiano das famílias em Mapele

Crianças, adolescentes e mulheres conversavam e brincavam ao subir a ladeira que dá acesso às casas onde moram. Bem no topo da ladeira, em lugar chamado Boca da Mata, as mulheres carregavam na cabeça bacias de alumínio e outras traziam cestos de piaçaba com mariscos, colunas eretas, roupas simples. Na casa de Antônia (nome fictício), havia um forte cheiro de mar misturado com o do pescado.

Antônia é uma líder naquela comunidade. Estava arrumando os mariscos em sacos plásticos para serem levados pelo seu filho mais velho, no "carrinho de rolimã", ao Mercado Municipal de Simões Filho. Esta atividade é predominante entre as mulheres daquela comunidade, 35% delas são marisqueiras.

Têm, como outras atividades, roças de subsistência, plantações de batata doce, aipim, árvores frutíferas, tempero verde etc. e também catam piaçaba, retirada de uma palmeira para o fabrico de vassoura. A fibra da piaçaba é vendida na feira de Água de Meninos em Salvador.

Além dessas atividades, a comunidade também retira folhas da Mata Atlântica para rituais do candomblé, para uso próprio sob a forma de chás e de banhos, como também para comercializá-las na referida feira.

Contudo, 100% destas famílias disseram professar a religião católica, em evidente oposição ao observado.

Antônia tem 32 anos e 9 filhos que formam uma "escadinha" entre 12 e 1 ano de idade. Ela está fora da média quanto à idade, pois a maioria das mães daquela comunidade têm entre 13 e 19 anos, sendo, portanto, ainda adolescentes.

Ante a pergunta quanto aos documentos das crianças (certidão de nascimento e identidade), Antônia respondeu não os ter tirado ainda. Por isso, as crianças não freqüentavam a escola, sendo que ela própria não tinha esses documentos e vivia bem até hoje. Esta não é a situação predominante dos filhos das famílias pesquisadas, pois quase a metade deles (40%) freqüenta a escola do programa "Famílias unidas" ou a da rede municipal de ensino, e possue os documentos acima citados. A este respeito, 21,6% dos bebês nascidos no país no ano de 2003 (IBGE, 2003) não possuíam certidão em cartório, sendo, portanto oficialmente inexistentes, apesar de a identificação legal dos filhos ser obrigatória decretada no Capítulo II - Dos direitos individuais, Art. 106 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, ECA, 1900).

Segundo Antônia, "os homens deste lugar não querem nada, são desempregados e/ou alcoólatras". Realmente, 57% dos pais das crianças não estão em casa por abandono da família, 29% por morte, 14% por doença grave, entre elas o alcoolismo.

Naquela localidade, a mãe é provedora de 90% das famílias. Elas assumem que são provedoras, mas não se consideram chefes de família. Acham que só há chefe quando este é do gênero masculino. Somente 10% das famílias têm o pai morando em casa. "Aqui não temos chefes de família, é isto que digo as meninas, a gente é que tem que trabalhar para botar as coisas em casa".

A entrevistada relatou ter recebido a casa em que mora do programa "Famílias Unidas": o piso de barro batido, a pintura apenas na fachada, sem portas internas, inclusive no sanitário que contém apenas o vaso. Não existe chuveiro. O banho é tomado no quintal. A casa possui instalação elétrica, o contador da luz é bem aparente; porém, esta não é a realidade de todas as famílias pesquisadas, 55% têm relógio próprio, 39% não possuem relógio e 6% usam lampião. 90% das casas são de alvenaria, 5% de madeira e 5% de taipa. Não possuem escoamento sanitário: 37% possuem fossa rudimentar, 32% possuem fossa séptica, 26% jogam o esgoto a céu aberto. Quanto ao abastecimento de água, 78% possuem instalações ligadas à rede pública e 22% utilizam poço ou nascente. Com relação ao tratamento da água, 37% tratam com cloração, 37% não possuem tratamento, 16% filtram a água e 5% fervem. Tal quadro reflete uma maioria das moradias localizadas em periferias de grandes cidades (Taschner, 1997; Rabinovich & Taschner, 2004).

A casa de Antônia possui uma sala, dois quartos, uma cozinha, um pequeno corredor sem porta com um vaso sanitário, e um quintal com roça de subsistência que, de certa forma, invade os fragmentos da Mata Atlântica, descaracterizando-a.

Na sala da casa, existe um rack com um aparelho de som bem antigo, um televisor de 14", alguns CDs, e dois sofás forrados com panos velhos. Nos quartos, duas camas de solteiro sem colchão, forradas com esteiras e num dos quartos, uma cômoda com 4 gavetas. Na cozinha, um velho fogão a gás muito enferrujado, cadeiras também igualmente velhas e uma mesa de madeira com panelas em cima. A comida é cozida num fogareiro improvisado, à lenha, preferida ante à ausência de dinheiro para comprar o gás.

Com relação à presença de móveis e eletrodomésticos, as respostas ao questionário são as seguintes: 60% das famílias possuem televisor, 70% possuem sofá, 60% possuem aparelho de som, 40% têm guardar-roupa e 40% têm rádio, somente 10% possuem fogão, 20% têm geladeira e 20% possuem cama e 30% possuem cadeiras. Esse quadro revela a importância fornecida aos meios de comunicação, televisão, música e rádio, assim como um dispositivo, o sofá, para assisti-los. A ausência de camas indica que várias pessoas dividem as camas existentes.

60% receberam a casa do programa "Famílias Unidas" com documentação em seus nomes, 5% das residências são alugadas e 35% são cedidas pelos parentes. Anteriormente a esta doação, 30% viviam em via pública, 10% viviam em cabanas sem telhado, 5% em casas de lona e 5% em casas de madeira, 30% em casas inacabadas, 5% em casas de parentes e 15% das casas não possuíam reboco.

Antônia recebe ajuda esporádica do programa "Famílias unidas". Leva às vezes as crianças ao posto de saúde para tomarem vacina ou serem medicadas em caso de doenças. Os brinquedos são fabricados pelas próprias crianças: fazem bola com panos velhos, carros de rolimã, com madeira de caixotes e, ao mesmo tempo em que brincam, umas tomam conta das outras. Catam piaçaba, também catam e carregam mariscos para entregá-los no mercado.

As crianças têm pequenas feridas nos braços, mostrando a presença de micoses, os cabelos são penteados com tranças e algumas estão muito barrigudas, indicando a possível presença de verminoses. Vestem-se com trajes sumários, as meninas com calcinha e os meninos com calções. Indagada se ela agredia fisicamente as crianças, Antônia respondeu que às vezes bate sim, "porque pé de galinha não mata pinto". Observamos muita afetividade entre Antônia e seus filhos: sentam-se em seu colo, ela penteia seus cabelos e é carinhosa com eles. Os filhos a obedecem sem questionamentos.

Com relação ao item sobre agressão, 60% relataram agressão verbal e 40% agressão física, praticado por algum companheiro ou outra pessoa. 100% responderam negativamente quanto à questão de abuso sexual.

Finalmente, nossa entrevistada respondeu gostar de morar em Mapele, estava satisfeita ali e que violência é normal em qualquer espaço. Diverte-se com as companheiras na praia, no bar ou fazendo mariscadas, convidando a comer com a sua família. Como diversão, também vê televisão e ouve rádio.

A esta altura, os mariscos já tinham sido entregues no mercado levados pelo filho mais velho de Antônia.

Esta entrevistada - uma líder com força para se opor inclusive à agência que a sustenta parcialmente - aponta para resultados de inúmeros estudos realizados (Bastos, 2001; Bastos, Alcântara & Ferreira-Santos, 2002; Rabinovich, 2002), de pessoas que transformam dificuldades em resultados, ou seja, de processos em que o resultado observado é a resiliência (Gomes, Bastos & Rabinovich, 2005). No entanto, o relato acima descreve igualmente uma negação quanto às injunções para uma possível inserção em um mundo globalizado.

O Mito e a Realidade: Édipo - Um relato sobre a violência doméstica

Na Escola Municipal de Mapele, um coro de crianças cantou uma música em saudação aos visitantes. As questões familiares se refletem necessariamente na escola, mas a escola pode encontrar dispositivos e disponibilidades para traçar caminhos insuspeitos.

Este é o caso de Édipo (nome fictício), garoto franzino para os seus quatorze anos, cabelos com larga franja, estrategicamente caindo ao lado direito, cobrindo o olho perdido num acidente com arma de fogo, provocado por ele mesmo.

A partir daí, Édipo, que já apresentava problemas de desvio de comportamento na escola e baixa aprendizagem, piorou consideravelmente porque se tornou anti-social, com baixa auto-estima, muito agressivo, sendo apelidado de "zoinho" pelos próprios colegas que não gostavam dele. Esta caracterização do desvio de comportamento de Édipo foi feita pela professora e pela diretora da Escola. Esta, devido à ausência de Édipo, fora até a sua casa buscá-lo, pois por vontade própria ele havia decidido abandonar a escola, sem escutar os conselhos da família. A mãe persuadiu o filho com carinho, mostrando-lhe a importância da escola na vida das pessoas. Devido a isso, Édipo matriculou-se fora do prazo.

A Escola Municipal de Mapele possui trezentos e cinqüenta alunos e funciona com as primeiras séries do ensino fundamental em dois turnos. Possui quatro salas e área de recreação. A diretora nasceu e criou-se em Mapele. Aparentando cerca de 40 anos, fez o curso normal realizado em Simões Filho e fundou a escola, juntamente com o marido, a qual foi posteriormente municipalizada pelo Prefeito. Conhece todos os alunos e o índice de evasão da escola que dirige é de apenas 5%, mesmo quando não há a merenda escolar de responsabilidade da Prefeitura.

Sua atuação ilustra possibilidades de relacionamentos família / escola a serem efetivamente incentivados. E, de fato, 100% dos pesquisados confirmaram esse bom relacionamento nas respostas ao questionário.

Aconselhada pela diretora, aproximei-me de Édipo dizendo estar realizando uma pesquisa e que seria importante sua colaboração. Essa aproximação durou três visitas semanais à Escola, sendo que após elas, ele mesmo conduziu a pesquisadora à sua casa. Sua mãe lá estava, o sofrimento estampado no rosto, na fala, na gesticulação nervosa. A irmã de Édipo, Electra (nome fictício), muito calada, tinha igualmente um olhar triste e melancólico, Lazinho (nome fictício), o filho caçula, de três anos, era irrequieto e desconcentrado. O pai não estava, foi dito ser muito ausente. Aposentara-se como ferroviário e possuía um comportamento arredio e agressivo, principalmente com a esposa e com Édipo. Na relação pai, mãe e filho já houvera violência física, o que correspondia a 45% de um total de 25% (N: 15) das famílias que haviam declarado ter sofrido algum tipo de agressão familiar. As demais (55%) receberam agressão verbal.

A pesquisadora levara um trem com trilhos para ser armado como um "objeto intermediário" (Winnicott,1975) favorecedor de interlocução e comunicação. Esse objeto fora escolhido devido ao seu valor simbólico para a população de Mapele, intensificado em uma família cujo pai fora ferroviário. Édipo, esboçando um de seus raros sorrisos, ajudou a armar o trem no meio da sala. Lazinho, ao brincar com o trem, mostrou o jogo de papéis existente naquela família em que o pai aparecia, de fato, como ausente. Permaneceu brincando, Édipo assistindo, enquanto a mãe relatou o acidente com o olho do garoto em que ele disparara contra o próprio olho. Suas palavras "prefiro vê-lo morto a vê-lo caçado e morto pela polícia como cão raivoso, sem dono. Já bati muito nele e disse mesmo a ele: Eu lhe mato e vou para trás das grades, mas você não vira marginal. Só não cheguei até o fim porque os vizinhos interferiram...".

O mito, assim apareceu revivido na realidade do cotidiano de famílias em que a tragédia assume o mesmo tom trágico das tragédias gregas que deram origem ao mito. O Édipo de Mapele quase cegou-se, enquanto o grego cegou-se totalmente. O menino desenhara um menino, vestido de soldado, empunhando uma arma que é, ao mesmo tempo, um grande pênis. Mostra, assim, a associação entre agressividade, sexualidade e destrutividade. Seu poder, ou impotência, volta-se contra si próprio e, semelhantemente ao Édipo grego, ele condena-se ao desterro. Mas, se ambos sofreram um desterro de um isolamento social, o caso presente aponta para uma total marginalidade. Sua mãe, em sua relação ambivalente com o filho, deseja destruí-lo para salvá-lo de um destino que antevê pior do que a destruição por ela própria, baseada no amor. Faz, deste modo, parte de um coro ouvido da boca de inúmeras outras mulheres, em vários outros cantos Brasil afora, todas com a mesma letra: "prefiro matá-lo (real ou figurativamente) a vê-lo morto pela polícia!" (Bastos, Gomes, M. M., Gomes, M. C., & Rego, 2007 ).

Estórias de Pescador: relato de vida de Sr. Balbino

Sr. Balbino é o pescador mais antigo de Mapele, conhecido por todos da localidade como Negão. Ele é carismático, simpático, um "boa praça" como ele mesmo se intitula, gosta muito de conversar. Os cabelos, sob o chapéu, e a barba são grisalhos, aparenta ser forte para os seus setenta e três anos de idade. Dentes lhe faltam, como muitos da população brasileira na sua faixa etária e econômica.

A entrevista, agendada para o dia seguinte às dezesseis horas em sua casa, teria como assunto: "Mapele das antigas / Mapele de hoje". O horário foi marcado conforme sua vontade, uma vez que mais cedo ele está descansando da pescaria e, no fim da tarde, pode "molhar a palavra" com a "loura" ou mesmo com a pinga.

A casa onde Sr. Balbino mora está erigida entre, e a partir de, as ruínas da mansão dos antigos proprietários de grande área onde atualmente está Mapele. A alvenaria, feita de pedras misturadas a conchas e terra retirada do mangue, é encimada por arcos feitos em tijolos. O piso é de cimento, as paredes há muito tempo perderam a pintura, as portas e janelas diferem umas das outras, confirmando a informação de que a casa foi feita com muita luta, aos poucos. No restante do terreno, é possível ver partes do muro da antiga casa e da pavimentação original.

Uma conversa trivial, sobre o sol, tempo e beleza do lugar, preparou o caminho para o assunto da entrevista. As histórias de pescador não faltaram, surgiram logo com auto-afirmação do nosso personagem. Destas conversas, fazia parte histórias sobre a luta com um peixe chamado melro que pesava noventa quilos e foi pescado por ele e carregado até o barco depois de uma luta corporal que durou mais de uma hora. Perguntamos-lhe quando foi isto, e ele respondeu: "Ah! moça, tem muito tempo, hoje os peixes grandes já não vêm mais pra esses lados. É muito esgoto e sujeira que são jogados na baía".

Na comunidade, não há colônia de pescadores, cada um pesca por si, diferente de outras localidades próximas; a praia está poluída pelo estaleiro de um famoso navegador, que fica ao lado da antiga estação de trem de Mapele.

A pesca com bomba (pesca predatória) tem afastado os peixes. "Quer dizer que hoje o senhor não pesca mais?" - perguntamos. Respondeu que pesca pouca coisa, só para o sustento e que muita gente complementa a alimentação com animais como tatu, capivara e paca que vivem na mata, mas esses já não existem em muita quantidade.

Continuando com seus "casos", Sr. Negão contou que lá também existem muitas cobras com as quais ele convive normalmente, "cascavel com chocalho e tudo".

A música preferida de Sr. Balbino é o Arrocha, estilo musical que nasceu na região a partir das músicas de seresta e virou moda em todo o Estado. Disso ele falou com muito orgulho, sentindo-se parte do sucesso.

Neste momento, chega a esposa de Negão, Sra. Jandira, de uma simpatia contagiante, e começamos a conversar lembrando o tempo em que Mapele não possuía violência. "Hoje não podemos sentar na porta como antigamente, nem deixar a casa aberta porque estamos sujeitos a receber a visita dos amigos do alheio", disse ela. Segundo o casal, o índice de violência urbana aumentou extraordinariamente em Mapele.

Jandira contou que possui oito filhos, vinte netos e quatro bisnetos e que os primeiros tempos em Mapele foram muito duros, pois moravam numa barraca de lona; depois, aos poucos foram construindo a casa onde moram atualmente.

Na rua onde mora Negão, existe asfalto, mas a falta de manutenção faz com que o "mato tome conta" do espaço. A estrada para Mapele é bem sinalizada e o asfalto da via principal está bem conservado. No entanto, as ruas de acesso local não são pavimentadas, mas de barro batido, o que acarreta o aparecimento de buracos, principalmente na época de chuva. Só as casas do alto (rua principal) possuem ligação de esgoto. Há coleta de lixo apenas na via principal; nas outras ele é acumulado próximo às esquinas e/ou postes de iluminação, acarretando a proliferação de animais peçonhentos. As pessoas, porque têm que se deslocar para levar o lixo ao ponto de coleta, são capazes de até jogarem o lixo no quintal. O policiamento da localidade deixa muito a desejar e é feito através de rondas de viaturas de Simões Filho.

No lado de fora da moradia, duas meninas e dois meninos, netos e filhos do casal, brincavam de escolinha usando as paredes como quadro-negro e os depósitos de cálcio como giz.

Como entender a teoria de ciclo de vida familiar quando coincidem no tempo e no espaço três gerações? Como considerar apenas privadas de oportunidades crianças que, mesmo sem papel e lápis, podem se apropriar de espaços para "brincar de escolinha"? Como entender a história construída por um homem que se torna líder e "rei", como fora anteriormente o homem que habitara as atuais ruínas da casa sobre, ou a partir da qual, construíra a sua moradia e, aparentemente, o seu modo de ser-no-mundo? Como entender essas sinergias, sincronidades, temporalidades, consubstanciadas tanto em uma moradia como em um modo de viver pleno de significações construídas em redes que extrapolam os dados meramente censitários? Como ignorar, contudo, que concomitantemente "existem processos de regressão democrática que tendem a posicionar os indivíduos à margem das grandes decisões políticas (...), a atrofiar competências, a ameaçar a diversidade e a degradar o civismo" (Morin, 2002, p. 110)?

As crianças: histórias de brincadeiras

Já no final do verão, quase outono, o calor era sufocante na casa de Dona Araci, que tem como telhado folhas de "Eternit", material altamente térmico. O quintal, contudo, situado num local denominado "Boca da Mata", estava arejado, varrido sob uma sombra fornecida por uma mangueira, Dona Araci comentou: "Mulher, quando eu cheguei aqui há três anos atrás já encontrei todas as duas. É tudo manga espada, gosta?"

Quatro crianças, uma de D. Araci e três filhas de Antônia, cuja trajetória de vida já foi narrada, na faixa etária de três a cinco anos, entraram no quintal. As crianças cataram animadamente as conchas e búzios - cascas dos mariscos foram características dos quintais das casas visitadas - e disseram à mãe que iam até a roça pegar folhas para brincar de "casinha". Araci consentiu e, sem esperar a resposta, foram correndo pegar o material.

Na brincadeira, havia dois meninos e duas meninas e rapidamente uma delas, Carol, transformou-se em mãe de três filhos. As folhas viraram caruru, batidas com uma pedra até se transformarem em pequenos pedaços. As conchas e búzios viraram mariscos e, por conseguinte, íamos ter uma mariscada. "Mãe Carol" disse aos filhos: "Tiago, vá comprar tempero verde na venda, tome dinheiro". Pegou alguns pedaços de papel: "tome aqui cinco reais e cuidado com o troco e você, Mariana, vá arrumar a casa e lavar os pratos".

Mariana concordou e perguntou: "Não vai mandar este manezinho fazer alguma coisa não, é?", referindo-se ao irmão pequeno chamado Daniel. A "mãe" respondeu: "Venha, Dani, ficar com a mamãe brincando com as panelas".

A brincadeira prosseguiu animada. As crianças da casa de Dona Araci em nenhum momento falaram no pai, bem como brincavam levando em consideração uma mãe que executa trabalhos domésticos e filhos que executam tarefas no sentido de ajudarem a mãe nas tarefas de casa, representando, assim, papéis vividos na família.

Neste estudo, o brincar emergiu em três ocasiões: uma trazendo o recorte do brinquedo associado ao trabalho para ajudar na organização da casa: o carro de rolimã do filho de Antônia que leva mariscos para o mercado; na segunda vez, o brinquedo de Lazinho, irmão de Édipo, ali usado para aliviar um clima doméstico tenso e dramático; a brincadeira de escolinha; e, na casa de Dona Araci, o papel do brinquedo no desenvolvimento humano. A fantasia das crianças encontrava nos objetos simples tirados da natureza um pleno exercício da criatividade. "O espaço estimulante é o mais simples (...) o brincar com coisas simples, não o brinquedo comprado" (Buitoni, 2006, pp.128-129). Desse modo, o brincar leva ao conhecimento e ao desenvolvimento harmonioso.

 

Considerações finais

Apresentamos um estudo de caso mostrando como contextos possibilitam trajetórias de desenvolvimento que tanto podem ser vistos como geradores de bem-estar, segundo a ótica dos participantes, quanto como violadores dos direitos básicos humanos segundo outras óticas; vimos como pessoas, como uma diretora de escola, um pescador, uma marisqueira, conseguem se apresentar como tutores, favorecendo o desenvolvimento de crianças e adolescentes a elas ligados; vimos como a pobreza pode proporcionar oportunidades de enriquecimento, como no caso das brincadeiras, da casa construída a partir das ruínas de uma mansão, nos cuidados e carinho dados aos filhos. Vimos também a tragédia de um mito grego se presentificando, assim como o desrespeito ao ambiente, sem consideração às gerações atuais, quanto mais às futuras.

A construção deste texto pretendeu, assim, por meio da descrição de cenários e de personagens, apresentar um argumento em que o que é considerado geralmente como um indicador de pobreza pode, ao mesmo tempo, ilustrar um tipo de riqueza, ancorada em práticas sócio-educativas transmitidas inter-geracionalmente, ou seja, em práticas culturais próprias ao grupo pesquisado.

Para não continuarmos alimentando ideais que nos alijaram da possibilidade de sermos centros geradores de conhecimento e de práticas válidas, apenas mudanças estruturais e culturais nos três eco-sistemas - microssistema, mesossistema e macrossistema - podem oferecer uma rede de significações que inclua a todos - os possuídos e os des-possuídos - de modo que todos possam vir a escolher que caminhos desejam percorrer.

Baseado na concepção de um laço social forjado na solidariedade humana, esse trabalho tem um encontro marcado com a educação. No dizer de Paulo Freire (1997, p. 146), apenas a educação pode assegurar criticidade, compromisso com o risco, com a humildade, com o bom senso, com a tolerância, com a alegria, com a curiosidade, com a competência, com a generosidade e com a esperança.

 

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Endereço para correspondência:
Elaine Pedreira Rabinovich
Rua Maranhão, 101, apto. 101
CEP 01240- 001. São Paulo - SP
E-mail: elainepr@brasmail.com.br

Enviado em Setembro de 2008
Revisado em Outubro de 2009
Aceite final Janeiro de 2010
Publicado em Maio de 2010

 

 

Nota das autoras:

Adelaide de Souza Brandão - Pedagoga, Mestrado em Família /UCSAL, professora da Universidade Católica do Salvador. Elaine Pedreira Rabinovich - Psicóloga, Doutora em Psicologia Social/ IPUSP, professora do Programa em Família na Sociedade Contemporânea da Universidade Católica do Salvador.

 

 

Dissertação defendida no Mestrado em Família na Sociedade Contemporânea da Universidade Católica do Salvador, Salvador, em 2005, de autoria da primeira autora orientada pela segunda autora intitulada: Crianças com/sem família de Mapele, Salvador.

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