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Temas em Psicologia
Print version ISSN 1413-389X
Temas psicol. vol.17 no.2 Ribeirão Preto 2009
Apresentação do dossiê: psicologia, violência e o debate entre saberes
Entre os dias 16 e 17 de abril de 2009, ocorreu, no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), o 1º Seminário Psicologia e Violência: Ensino e Pesquisa. Foi o primeiro seminário do gênero no IPUSP reunindo importantes pesquisadores, dentre os quais alguns que são hoje referências nacionais no debate sobre os aspectos complexos e dinâmicos que engendram os processos e sistemas violentos do ponto de vista psíquico, social, literário, político, jurídico e educacional. Esse evento foi concebido no âmbito do Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade e guardou algumas peculiaridades em relação a outros eventos sobre a mesma temática.
Nessa ocasião, foi apresentada uma gama de aproximações teóricas desenvolvidas por docentes do IPUSP/PSA, isto é, uma exposição dos trabalhos e pesquisas que têm a violência em seu centro, mas que se elaboram no campo do diálogo com outras disciplinas, notadamente no terreno das humanidades.
As presenças de convidados externos ao IPUSP, cujas pesquisas se inscrevem no campo do Direito, da Literatura, da Educação e da Sociologia, foram decisivas para o aprofundamento dos debates, possibilitando cumprir um dos principais propósitos do seminário: promover o diálogo entre diferentes perspectivas teóricas e distintas áreas do saber, igualmente interessadas na análise e na crítica da violência. Não se tratou apenas de uma oportunidade para reunir diversos pesquisadores dispersos, concentrados em suas respectivas áreas, mas uma oportunidade de possibilitar um encontro amplo entre parceiros conhecidos de pesquisa e debate e, ao mesmo tempo, oferecer condições acadêmicas adequadas para uma aproximação efetiva entre áreas de pesquisa distantes. O diálogo entre elas, tendo como perspectiva o ensino e a pesquisa sobre violências, destacou-se como um dos caminhos a ser trilhado na análise e crítica deste fenômeno que atinge diferentes aspectos da vida humana divididos pela ciência conforme suas especificidades, mas objetivamente interligados em dinâmicas que são irredutíveis a determinadas delimitações necessárias para seu estudo.
Diferentemente de outros seminários do gênero, não se pretendeu afirmar a autonomia ou a autoridade da Psicologia em relação ao tema, mas fomentar um formato de debate e pesquisa num campo que não se submete às restrições unidisciplinares que são, por sua própria natureza, parciais.
Foram realizadas quatro mesas redondas, bem como a apresentação de pôsteres de discentes da graduação e pós-graduação dos diferentes departamentos que desenvolvem pesquisa sobre violência.
Violência e Educação
A reflexão sobre o tema da violência e educação envolve enfrentar de saída um paradoxo: o envolvimento das instituições sociais porta-vozes do processo civilizatório e o rompimento contínuo, pelas mesmas instituições, desse processo que as legitima. Isso representado pelas violências praticadas dentro e fora dos muros das instituições educacionais. Tal contradição aponta para a complexidade envolvida no tema e, portanto, para a necessidade de um trabalho contínuo que coloque em diálogo as áreas de conhecimento ocupadas com o universo educacional. Desse modo, evitam-se explicações simplistas e deterministas como, por exemplo, a penalização de "culpados" ao mesmo tempo em que se propõe deslocar as questões educacionais para a urgência de um posicionamento político e ético frente a essa problemática. Um passo importante nessa direção é o enfrentamento da discussão sobre o que se entende por violência nas relações educativas, em vista da diversidade de práticas consideradas violentas. Nesta perspectiva, algumas diferenciações se mostram úteis para especificar quais práticas podem ser assim consideradas: violência contra a escola e violência da escola, que são simultâneas e inerentes às suas práticas. Por outro lado, não se deve negligenciar, na reflexão sobre este tema, as concepções litigiosas presentes em cada instituição, escola e família, acerca de suas atribuições e prerrogativas no processo educativo de modo geral.
Estreitamente ligadas a este aspecto, e também importantes nessa discussão, são as exigências dos educandos. Como são concebidas e reconhecidas pelos educadores no desempenho de seu papel. É preciso lembrar, entretanto, que essas concepções, tanto do papel educativo das diferentes instituições, como das necessidades dos jovens em processo de educação sofrem determinações da contemporaneidade o que, novamente, demanda a contribuição de diversas áreas de conhecimento para a sua compreensão.
Pode-se dizer, portanto, que o foco da análise está na compreensão do problema sem perder de vista sua complexidade, a fim de promover debates e pesquisas que sejam provocadoras de mudanças tão radicais, quanto urgentes e necessárias.
Violência e Contemporaneidade
As formas complexas em que se manifestam as violências são hoje multifacetadas e dispersas nas fronteiras de categorias caducas, incapazes de nomeá-las e perturbá-las. Tornou-se difícil definir e debater as violências e suas consequências fora do campo de dicotomias gastas como inclusão/exclusão, violência/linguagem, violência/resistência, agressor/vítima a fim de produzir efeitos de ruptura nas condições que as engendram. Violências antigas se alastram no contemporâneo e se mantêm à custa de pressupostos inconfessos.
Difícil saber o alcance, hoje, das teorias e conceitos que tantas vezes fracassaram diante de eventos catastróficos que mal puderam nomear, mas a herança desse fracasso é certamente o silêncio, a repetição ou o discurso insistente que não cessa de se desfazer ante a força e o impacto do traumático. Ainda que os rumos do próprio conhecimento sejam sempre colocados em xeque diante dos efeitos mais imediatos que as violências produzem e reproduzem, é daí que advêm, ainda que a posteriori, os princípios de uma segunda perturbação, aquela que instiga as violências em sua cova segura, onde poucos a alcançam.
A repetição extraordinária no contemporâneo de violências bastante conhecidas e denunciadas indica que, do ponto de vista das análises nesse campo, é preciso socorrer as pesquisas com a alta teoria advinda de debates transdisciplinares regulares e avançados. Campo específico onde as fronteiras epistêmicas se diluem, ou se enfraquecem, diante de um diálogo entre saberes abertos ao impacto do desastre.
Os artigos apresentados nesta sessão revelam a importância de intercalar discursos, reunir saberes e aprofundar conceitos lá onde eles pareciam se esvaziar: no próprio rumor que suspira a última palavra já morta, após a violência.
A psicanálise, a teoria política, a arte e a ética serão as fronteiras expostas ao atravessamento e à imigração entre saberes sob a tensão que as violências produzem.
Violência, natureza e cultura
O próprio reconhecimento da psicologia como ciência independente não foi possível senão em decorrência de inúmeros debates acerca de sua vinculação com áreas do saber distintamente posicionadas em relação às ciências da natureza ou sociais. O conjunto de teorias diversas que comporta em seu âmago, referendadas, inclusive, por modelos epistemológicos antagônicos, atesta a atualidade do antigo e, hoje, o aparentemente negligenciado debate entre as perspectivas naturalista e culturalista. O debate prossegue, mas com argumentos velados e estratégias pouco favoráveis ao avanço do entendimento. Quando não se consomem por um processo de negação mútua, nitidamente belicoso e estéril - tanto para o desenvolvimento da ciência, quanto para a crítica das condições de existência que efetivamente participam da produção das formas de violência que igualmente atingem aos homens e às suas concepções teóricas -, as diferentes perspectivas e distintas áreas do saber podem se voltar para a promoção conjunta de proposições criativas e inovadoras de enfrentamento a este campo de problemas que, apesar de sua multiplicidade de formas, pode resultar na aniquilação da vida humana. Hipostasiadas como dimensões irreconciliáveis, natureza e cultura parecem atestar a alienação do homem em relação à sua condição material de existência.
A cisão cartesiana entre o corpo e o espírito, assumida pela sociedade burguesa como condição para o pensamento correto, é reproduzida pelas perspectivas científicas que se fecham alucinadamente em sua própria perspectiva, negligenciando a amplitude do objeto investigado. A não confrontação entre essas duas dimensões da vida humana acaba por reduzir a possibilidade de compreensão e crítica de um fenômeno que insiste, mesmo quando caracterizado pela multiplicidade de suas manifestações culturais, em se afirmar como natural. A mediação da natureza, em geral mal interpretada, é ora rejeitada, ora transformada em motivo para redução da violência a um fator exclusivamente biológico.
As contribuições advindas dos diferentes trabalhos que se debruçaram sobre este complexo entrelaçamento entre natureza e cultura estão em perfeita consonância com os objetivos que levaram os idealizadores do seminário a proporem uma mesa-redonda sobre este tema.
A crítica sobre a psicologia como ciência natural, estudiosa dos fenômenos da natureza e, por outro lado, seu papel histórico, social e político revelam pontos de tensão que exigem a retomada do estatuto do saber/fazer psicológico como prática politicamente endereçada e, não raro, violenta. Desvelar o trabalho da história por trás da aparência absolutamente natural de determinados aspectos da vida social e da violência que nela se manifesta de maneira tão incidente propõe um desafio intelectual urgente e ponto de ancoragem daquilo que se propõe no seio da crise que discute hoje o papel dos intelectuais.
Violência e sociedade
A proposição do tema violência e sociedade, ao mesmo tempo em que se mostra suficiente para delimitação de uma série de importantes manifestações da violência processadas em espaços sociais e, muitas vezes, pela própria sociedade, quando não pela contraposição às condições necessárias para manutenção da vida social, parece se sobrepor a um dos elementos sem os quais ela certamente não se reproduziria tão eficientemente como temos observado ao longo da história. Trata-se da categoria indivíduo.
Além das distorções que desprezam a participação dos indivíduos na composição e desenvolvimento das instituições sociais, a articulação entre violência e sociedade permite entrever a força inequívoca da totalidade social. Apontado o risco do excesso positivista, a articulação proposta possibilita pensar a contribuição da psicologia para o entendimento da violência de um modo promissor, pois permite considerar que a sociedade deixa suas marcas cravadas nas condições particulares dos indivíduos, cujas formas de participação diante da violência podem ser melhor compreendidas se tal análise não desconsiderar a determinação social e o não reconhecimento entre indivíduo e sociedade.
Os trabalhos que compuseram esta seção do seminário explicitaram a intensa vinculação entre as manifestações da violência protagonizadas pelos indivíduos nas diversas situações cotidianas, inclusive naquelas destinadas ao combate à violência, possibilitando delimitar aspectos psicológicos importantes para sua compreensão. Quer seja por meio da constituição de uma mentalidade estereotipada a respeito do aparato da segurança pública, quer seja por meio de formas sutis de segregação e preconceito, quer ainda por meio da violência implícita na estrutura institucional, a violência que assim é pensada não desconsidera a dimensão psicológica, antes a revela como parte do fenômeno que deve ser combatido.
Psicologia e transdisciplinaridade
Desde sempre, o tema das violências é urgente no Brasil, sobretudo a partir da década de 1990, quando proliferaram os centros, institutos, diretórios e projetos de pesquisa voltados para a pesquisa sobre violências. A Psicologia seguiu os mesmo padrões, porém se definiu, a princípio, a partir dos recortes prévios que a subdividiam: Psicologia Social, Psicologia Clínica, Psicologia Educacional, Psicologia Organizacional etc. Sociedade, clínica, escola, organização definiam a região e o lugar a partir dos quais a Psicologia se desenvolvia e se desenvolve; onde se reconhece e é reconhecida. Em todos os casos, é possível enumerar trabalhos e pesquisas sobre as violências a partir de seus métodos, referências e lugares próprios, bem como o lócus institucional onde cada uma das psicologias é exercida.
Concomitantemente, de modo diverso, consolidaram-se pesquisas sediadas no campo da psicologia, porém com forte vocação transdisciplinar, assumindo a insatisfação com o próprio reducionismo psicologista e, ao mesmo tempo, ambicionando a presença num debate intelectual mais abrangente capaz de ultrapassar a mera aplicação de conceitos e categorias psicológicas aos fenômenos em causa. Aí se realizam os diálogos entre uma certa psicologia, a arte, a política e a educação.
Portanto, o que melhor caracteriza e diferencia o debate entre disciplinas e saberes é a busca pelo debate teórico-metodológico entre áreas e a renúncia a qualquer tentativa da Psicologia, e de outras áreas, em se distinguirem como conhecimento hegemônico quando se trata de pesquisar temáticas sociais complexas e a permanente mutação de suas manifestações insuspeitas.
Propõe-se então uma outra tarefa: a de revelar, pela via da interlocução mútua entre saberes, os pontos cegos resultantes da endogenia disciplinar, inibidores da complexidade, que só o olhar estrangeiro pode evidenciar. Significa assumir a dimensão transgressiva que a atmosfera transdisciplinar se propõe a explorar e, ao mesmo tempo, buscar algum ganho significativo nesse debate.
Concomitantemente, e do mesmo modo, as violências passaram a exigir confrontações entre campos teóricos e metodologias consagradas postas à prova diante de evidentes transformações nos sistemas violentos. Isso tem exigido maior complexidade epistêmica e rigor do pesquisador e, não raro, competência em mais de uma área do conhecimento, já que os debates envolvendo pesquisadores, profissionais e militantes de áreas distintas sobre a temática da violência são cada vez mais comuns e fundamentais. Sabemos, entretanto, que tal grau de exigência só pode ser atingido com o debate consequente e regular entre saberes, sem o que, como alertou Jacques Rancière, tratar-se-ia de reunir, numa grande república de sábios, pequenas repúblicas soberanas que se legitimam mutuamente em seus próprios domínios.
Num momento em que a afirmação do especialista é incensada dentro e fora das universidades, e a produção hiperespecializada ganha fôlego, incentivar o debate transdisciplinar revela-se como tarefa urgente e necessária.
Os objetivos do seminário e dessa publicação, portanto, são dois: apresentar pesquisas em andamento que se debruçam sobre o tema a partir da Psicologia - mas não apenas com ela, e fomentar o debate entre pesquisadores em busca de pontos de tensão e tangenciamento, explicitadores de novos problemas, abrindo perspectivas de aprofundamento para as pesquisas e debates vindouros.
Paulo Endo
Maria Isabel da Silva Leme
Pedro Fernando da Silva
Universidade de São Paulo - Brasil