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Temas em Psicologia
versão impressa ISSN 1413-389X
Temas psicol. vol.18 no.1 Ribeirão Preto 2010
Exploração sexual comercial de crianças e adolescentes: um ensaio conceitual
Commercial sexual exploitation of children and adolescents: a conceptual essay
Leonardo Cavalcante de Araújo MelloI; Rosângela FrancischiniII
IUniversidade Potiguar
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Norte
RESUMO
O presente trabalho consiste em uma revisão crítica de literatura acerca do conceito de Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes. Com a finalidade de se chegar a uma conceituação crítica e contextual, faz-se uma revisão da discussão do conceito trabalhado por autores da área, buscando fazer um paralelo com as diretrizes propostas por documentos internacionais, como a Declaração de Estocolmo. Além da revisão da literatura proposta acima o artigo se coloca na perspectiva de ser um referencial de fundamentação teórica para o trabalho de profissionais e pesquisadores que lidam com a temática, a fim de possibilitar um olhar contextual acerca do fenômeno da Exploração Sexual Comercial infanto-juvenil, e, consequentemente, modos críticos de enfrentamento deste.
Palavras-chave: Exploração Sexual, Infância e Adolescência, Análise Conceitual.
ABSTRACT
The present paper is the result of a literature review on the concept of Commercial Sexual Exploitation of Children and Adolescents. The purpose is to achieve a critical and contextual concept, through a review of the discussion involving the concept adopted by authors in this area, making a parallel with the lines of direction proposed by international documents, such as the Declaration of Stockholm. This paper also aims at guiding professionals who deal with the subject, as an attempt to contribute with a critical view about the phenomenon of Commercial Sexual Exploitation of Children and Adolescents, and, consequently, critical ways of curbing it.
Keywords: Sexual Exploitation, Childhood and Adolescence, Conceptual Analysis.
O fenômeno da Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes é, atualmente, prioridade das agendas de políticas públicas de muitos governos democráticos dos países ocidentais e setores da sociedade civil, além de se constituir em objeto de estudos em diferentes áreas de conhecimento, sendo o discurso da Psicologia bastante presente.
No Brasil, o fenômeno começou a ter uma maior visibilidade a partir da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) realizada no início da década de 1990, que se deteve na investigação de denúncias de casos de prostituição infanto-juvenil (Libório, 2004; Sousa 2004).
Anteriormente a esse período, a criança e o adolescente no país não ocupavam lugar de preocupação tão acentuada por parte do Estado e setores da sociedade civil. A partir de uma série de ações e movimentos - como a instituição do Ano internacional da Criança, em 1979, o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR), em 1985, dentre outros - e a promulgação da Carta Constitucional de 1988 e, posteriormente, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 1990, é que essa parte da população foi trazida para o centro das discussões nacionais, sendo, também, considerada como "sujeitos de direitos", em substituição da categoria "menor", outrora empregada (Sousa, 2004).
O fenômeno Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes - ESCCA - desde então vem sofrendo várias transformações conceituais, pois sua definição é fruto de percursos históricos que envolvem, dentre outras questões, o paradigma da proteção integral, inaugurado no país pelo ECA. A ESCCA, em sua definição, demanda a apresentação de concepções que abarquem suas especificidades em relação a outras formas de violência sexual (Faleiros, 2000; Libório, 2004; Dos Santos, 2007). Há uma grande discussão acerca da conceituação do fenômeno, não existindo apenas uma forma de defini-lo. A falta de precisão conceitual denota não só uma mera divergência semântica, mas remete a uma discussão de cunho epistemológico para a conceituação (Faleiros, 2000). Para esta autora, "o uso sexual de menores de idade com fins lucrativos é nomeado ora como prostituição infanto-juvenil, ora como abuso sexual, e em outros momentos como exploração sexual comercial" (p. 09).
Assim, este artigo se propõe a fazer uma revisão crítica conceitual do fenômeno Exploração Sexual Comercial, buscando uma reflexão a partir de autores que, notadamente, discutem o tema da violência sexual praticada contra essa população, além de trazer o diálogo com documentos oficiais, nacionais e internacionais que, além de lidarem e darem diretrizes para o enfrentamento da ESCCA, trazem em seu conteúdo definições desse tipo de violência.
A Categoria "Violência"
Diversos estudos acerca dos vários tipos de violações sexuais sempre estão enquadrados enquanto categoria "violência". Contudo, muitos desses estudos não se preocupam em fazer definições consistentes, buscando as raízes históricas e epistemológicas que levam determinadas práticas a se enquadrarem como violentas. Para tanto, faz-se necessário contextualizar momentos históricos e características culturais dessas práticas. Destarte, faremos uma breve análise de o porquê da exploração sexual ser concebida de tal modo.
Assim, na discussão pela construção de uma definição de exploração sexual comercial, demanda-se que, anteriormente a qualquer tentativa de definição/conceituação da ESCCA, deve-se conceber a categoria "violência" como elemento constitutivo e fundante de qualquer ação que se queira conceituar enquanto Exploração Sexual (Faleiros, 2000). Violência pode ser descrita, definida (operacionalmente) como o uso da força (ou poder) objetivando algum tipo de exclusão, abuso e aniquilamento do outro. Esse outro pode vir a ser um indivíduo, grupo, segmento social ou até mesmo uma nação (país) (Minayo, 2002). A violência está intimamente ligada a relações que envolvem o uso do poder. Esse passa a ser violento quando numa relação de força (física, política, psicológica, etc.), alguém que a possui faz seu uso, visando alcançar vantagens previamente definidas (Faleiros, 2005).
Minayo (2002) expõe, ainda, que "(...) a violência contra crianças e adolescentes pode se constituir como todo ato ou omissão de pais, parentes, outras pessoas e instituições capaz de causar danos físicos, sexuais e/ou psicológicos à vítima" (p. 97).
E. Faleiros (2000, 2004), V. Faleiros (2005) e Minayo (2002) atentam para o fato de que a violência sexual contra crianças e adolescentes se constitui em uma violação da conquista dos Direitos Humanos universais, além de se configurar como transgressão dos direitos de pessoa humana conquistados historicamente por essa população que, inclusive, encontra-se em fase peculiar e acentuada de desenvolvimento. Faleiros (2004) indica, ainda, que a violação perpetrada pela violência sexual contra crianças e adolescentes, especialmente as inseridas no mercado do sexo, fere "seus direitos à convivência familiar e comunitária protetoras e ao trabalho não explorado, digno, seguro, adequado à idade, não-degradante, direitos esses garantidos no ECA" (p. 76). Mais à frente faremos uma discussão sobre o mercado do sexo.
A violência sexual esteve sempre presente na história da humanidade e sua ação não se exerce apenas em classes sociais menos abastadas; ela se manifesta em todas as classes socioeconômicas, articulando-se com o nível de desenvolvimento civilizatório da sociedade em que ocorre (Faleiros, 2000). Para Azevedo (1993, citada por Faleiros, 2000), esse tipo de violência
reflete, de um lado, a evolução das concepções que as sociedades construíram acerca da sexualidade humana; e de outro, a posição da criança e do adolescente nessas mesmas sociedades e, finalmente, o papel da família na estrutura das sociedades ao longo do tempo e do espaço (p. 08).
Faleiros (2004) acrescenta a essa reflexão a compreensão de que a violência sexual, quando exercida por adultos contra crianças e adolescentes, torna-se particularmente grave. Isto se dá tendo em vista o caráter íntimo e relacional que atravessa esse fenômeno, além da relação adulto/criança ou adolescente ser considerada por estudiosos do desenvolvimento humano como "estruturante", "organizadora" de estruturas psíquicas e sociais. Desta forma, vemos a importância de se considerar minimamente o estudo da categoria "violência" enquanto elemento constitutivo/conceitual das situações em que crianças e adolescentes são vitimizados sexualmente, neste estudo, em especial, considerando a ESCCA.
A evolução do Conceito Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes
A falta de precisão na conceituação apontada por alguns autores, como Faleiros (2000) e Dos Santos (2007), reflete a dificuldade de compreensão das várias categorias de violência que, embora aparentem formar uma unidade, são, em verdade, um conjunto de fenômenos com características e manifestações bastante peculiares e específicas (como exemplo a negligência, abusos sexuais, prostituição, exploração sexual, etc.). Para os autores, essa confusão conceitual também dificulta a construção de estratégias de intervenção adequadas a cada tipo de violência, atentando para suas especificidades e contextos.
Além disso, há uma discussão no bojo da conceituação de Exploração Sexual Comercial. Vários autores (Dos Santos, Ippolito & Neumann. 2004; Araújo, 1996; Leal, 1999; Faleiros, 2000) e documentos oficiais - nacionais e internacionais - (Convenção 182 da OIT; Protocolo Facultativo da Convenção sobre os direitos da criança e do adolescente, 2000; Declaração de Estocolmo, 1996; Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra crianças e adolescentes, 2000, citados por Dos Santos, 2007) apontam para conceituações diferenciadas de Exploração Sexual Comercial de crianças e adolescentes e Prostituição infanto-juvenil. Dos Santos (2007) esclarece que parece haver uma espécie de consenso entre ativistas, profissionais e autoridades do governo brasileiro envolvidos com a temática em associar todas as formas de prostituição à exploração sexual comercial. Para o autor (2007),
a criança e o adolescente, em razão de seu "status" desempoderado (poder assimétrico) na sociedade, de sua condição de idade ou de pobreza, seriam levados à prostituição como estratégia de sobrevivência. Essas condições negativas relativizariam qualquer possibilidade de escolha ou consentimento por parte de adolescentes envolvidos na prostituição, que não seriam 'prostitutas' mas sim 'prostituídas' ou 'sexualmente exploradas', numa posição de vítimas (p. 24).
Contudo, esse posicionamento não é unânime e encontra conceituações que vão desde a separação total entre exploração sexual comercial e prostituição, a posicionamentos que as igualam de forma indistinta.
Assim, teóricos de todo o mundo e do Brasil expõem a necessidade de se buscar um corpo conceitual consensual para o fenômeno da exploração sexual. Nesta direção, a década de 1990 representa um importante marco no enfrentamento do uso de crianças e adolescentes para fins sexuais. Faleiros (2000, 2004) aponta que, no Brasil, as primeiras mobilizações em torno dessa problemática aconteceram, principalmente por causa da investida "organizada, sistemática e agressiva de introdução e desenvolvimento do turismo sexual no país. Mobilização esta que possibilitou importantes avanços no conhecimento e na compreensão desse fenômeno" (2004, p. 76).
O incremento do turismo sexual, aliado ao surgimento e grande expansão do sexo via internet, foram fatores que ajudaram pesquisadores da área a compreender que pornografia e tráfico de pessoas para fins sexuais também se enquadravam como formas de exploração infanto-juvenil, por meio de um mercado, o do sexo, extremamente organizado, e ligado aos ditames do capitalismo, ou seja, regulado pela exploração para obtenção de lucro (E. Faleiros, 2004), (V. Faleiros, 2005).
Sousa (2000, 2002) realizou um estudo da arte da produção bibliográfica sobre Prostituição Infanto-Juvenil no Brasil, considerando o período das décadas de 1980 e 1990, no qual se pôde constatar dois momentos bastante distintos da produção acerca da temática: inicialmente, as produções consideravam a prostituição infanto-juvenil no contexto dos meninos e meninas de rua, nos anos 80; já o segundo momento dessa produção é marcada por considerar o fenômeno de uma forma distinta e com uma identidade própria, mas ainda conceitualmente longe de uma unidade. A autora também pode observar uma relativa escassez na literatura produzida pelas instâncias acadêmicas, de forma que a maior parte das publicações encontradas na pesquisa sobre o tema é de responsabilidade/autoria de entidades/instituições não acadêmicas, circulado de modo bastante restrito.
Ainda historicamente, na década de 1990, pôde-se observar significativo avanço a respeito da compreensão das dimensões política e ética da exploração sexual. O fenômeno passa a ser tratado como uma questão de cidadania e de Direitos Humanos e sua violação passa a ser considerada um crime contra a humanidade e a história das conquistas universais asseguradas na Declaração Universal dos Direitos Humanos (Faleiros, 2004). Tal avanço é observado na década seguinte, nos anos 2000, em que se percebe uma ampliação quantitativa e qualitativa dos trabalhos acadêmico-científicos que se detém nessa temática (Mello, 2010).
Assim, levando-se em conta essa evolução histórica do conceito, neste trabalho será considerada a visão elucidada por Leal (1999) e corroborada por Libório (2004), que apontam que, após a CPI da Prostituição Infanto-Juvenil, o fenômeno gerou avanços conceituais significativos, para além dos já conquistados, passando a ser concebido como "exploração sexual infanto-juvenil", sendo tratado com base nas diretrizes do Estatuto da Criança e do Adolescente, especialmente respaldado por seu artigo 5º, que diz que "nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punindo na forma da lei, qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais" (Brasil, 1990, p.23, grifo nosso). Nessa mesma época, diante da realidade de indefinição teórica do fenômeno, em 1996, aconteceu na cidade de Estocolmo, na Suécia, o Primeiro Congresso Mundial contra a Exploração Comercial, organizado por governos de alguns países, além de entidades não governamentais, como por exemplo, a ECPAT (End Child Prostitution, Child Pornography and Trafficking of Children for Sexual Purpose), que tem tido uma grande atuação junto ao enfrentamento (combate e prevenção) da violência contra essa parte da população. Neste congresso foi definida a adoção do termo "Exploração Sexual Comercial contra Crianças e Adolescentes" em substituição ao termo Prostituição Infanto-Juvenil, e os demais termos que denotavam uma descaracterização do fenômeno e sua imprecisão conceitual. A visão supracitada, embasada em Leal (1999) e corroborada por Libório (2004), tem respaldo nas definições ratificadas pelo Congresso de Estocolmo, em 1996.
Para Libório (2004), essa perspectiva foi ampliando o uso dos termos "exploração" e "violência sexual" contra crianças e adolescentes e, paulatinamente, foi-se abandonando o termo "prostituição infanto-juvenil". Esse último, segundo a autora, refere-se a modos de vida de certos segmentos sociais adultos, além de que implica na possibilidade de a pessoa optar voluntariamente por tal modo de vida, ocultando a natureza do comportamento sexualmente abusado. O uso do termo "prostituição" associado às crianças e aos adolescentes também desvia o enfoque que deveria ser dado a parcela dessa população envolvida nessa situação (ou seja, de sujeitos com direitos violados), na medida em que co-responsabiliza essas pessoas pela situação de transgressão de direitos em que se encontram. A autora também ressalta que a utilização do termo "prostituição infanto-juvenil" pode levar essa população à categoria de infratores, responsáveis pela própria situação, e não de vitimizados, como realmente o são.
Desta forma, algumas entidades e teóricos (Agência de Notícias dos Direitos da Criança - ANDI, 2003; Dos Santos, 2007) afirmam que a ESCCA é mantida socialmente por estar ligada à mesma lógica social que aceita a prostituição: essa é tolerada socialmente, e apesar de sofrer certa dose de discriminação, ainda é exercida publicamente. Do mesmo modo, passa-se a também tolerar o uso de crianças e adolescentes no mercado do sexo como se estivessem em igualdade de condições das pessoas adultas que exercem essa atividade. Assim, a estigmatização que é direcionada à pessoa que se prostitui (adultos) também ocorre com crianças e adolescentes em situação de exploração sexual, tendo em vista que são consideradas pessoas que estão nestas condições por escolhas próprias.
Após esse percurso histórico e discussão teórica, o presente trabalho irá considerar a ESCCA a partir da definição proposta por Leal e Leal (2002), corroborada por Faleiros (2005), qual seja:
Uma relação mercantilizada (exploração/dominação) e abuso (poder) do corpo de crianças e adolescentes (oferta) por exploradores sexuais (mercadores), organizados em redes de comercialização local e global (mercado), ou por pais ou responsáveis, e por consumidores de serviços sexuais pagos (demanda). (p. 81).
Permeando esta definição, que é pautada pelas resoluções universalmente adotadas pelo Congresso de Estocolmo em, 1996, alguns autores (Faleiros, 2000, 2004; Libório, 2004; End Child Prostituition in Asian Tourism - ECPAT, 2005 citado por Sousa, 2008) consideraram a divisão da ESCCA em quatro modalidades. São elas:
Prostituição: atividade na qual atos sexuais são negociados em troca de pagamento (monetário, alimentício, abrigamento, vestuário, consumistas de forma geral). O termo prostituição de crianças e adolescentes vem sendo questionado por estudiosos e instituições que se ocupam do tema, por considerarem que essa população não escolhe estar nesta atividade, mas são levados a praticá-la devido às suas condições e trajetórias de vidas, sendo induzidas por adultos, além dos "apelos" da sociedade de consumo capitalista, que os faz precisar de dinheiro.
Tráfico e venda de pessoas para fins sexuais: segundo Faleiros (2004), a Assembléia das Nações Unidas (1994) definiu essa atividade como "o movimento clandestino e ilícito de pessoas por meio de fronteiras nacionais, principalmente dos países em desenvolvimento e de alguns países com economias em transição, com o objetivo de forçar mulheres e adolescentes a entrar em situações sexualmente ou economicamente opressoras e exploradoras, para lucro dos aliciadores, traficantes e crime organizado ou para outras atividades (por exemplo, trabalho doméstico forçado, emprego ilegal e falsa adoção)". Este fenômeno envolve agressões, engano, coerção e fraudes, além de expor as crianças e adolescentes, e também os adultos, a situações similares à escravidão.
Pornografia: trata-se da representação por qualquer meio (fotos, vídeos, revistas, espetáculos, literatura, cinema, publicidade, internet, etc.) de crianças ou adolescentes dedicadas a situações sexuais explícitas, simuladas ou reais, ou a representação das partes genitais destes com a finalidade de oferecer gratificações sexuais ao usuário/consumidor destes materiais. Enquadram-se nessa categoria a produção, divulgação e consumo de materiais dessa natureza.
Turismo sexual: consiste na exploração sexual comercial de crianças e adolescentes por pessoas que saem de suas cidades, regiões ou países, em busca de atos/satisfações sexuais. Essa prática articula-se facilmente com as descritas anteriormente.
Faleiros (2004) aponta que uma das dificuldades para se definir modalidades de exploração sexual comercial é justamente a articulação que possuem uma com as outras, de forma que, por vezes, confundem-se suas particularidades. Sousa (2008), em concordância com Libório (2004), corrobora essa visão, também afirmando que essas quatro modalidades estão diretamente interrelacionadas, influenciando-se mutuamente, podendo inclusive gerar um ciclo vicioso. Um exemplo posto pela autora é que o tráfico e venda de pessoas para fins sexuais pode ter como conseqüência a prostituição, que também pode estar relacionada à produção de material pornográfico e, esse por sua vez, poderá ser utilizado na divulgação ilegal de serviços sexuais em outro país ou região.
A Exploração Sexual Comercial e seus elementos constitutivos
A ESCCA é um fenômeno de grande complexidade, que se reflete na dificuldade de sua identificação, além de seu imbricamento com inúmeros outros fenômenos e fatores que se co-relacionam e se co-influenciam. Nesta seção, buscaremos lançar luz sobre algumas características próprias da ESCCA, assim como fatores correlatos a esta, que permeiam toda uma gama complexa de fenômenos que caracterizam essa forma de violação dos direitos das crianças e adolescentes. Assim, elencaremos aqui algumas especificidades que consideramos de extrema importância para a conceituação de ESCCA de acordo com as direções indicadas na Declaração de Estocolmo (1996), buscando caracterizá-las de uma forma geral. Entendemos que a tentativa de fazer essa caracterização é delicada, pois os fenômenos em questão, além de serem de difícil caracterização, ainda são contextuais, ou seja, carregam características históricas e temporais dos locais nos quais acontecem, obedecendo a toda uma dinâmica própria, de cada contexto específico. Ainda assim, é de extrema necessidade situar minimamente essas características específicas do fenômeno da exploração sexual comercial infanto-juvenil, de maneira que uma indicação mínima de sua existência já possibilita um olhar mais cuidadoso e apurado daqueles que se dedicam a estudar e intervir no fenômeno.
O "Mercado do Sexo" será discutido aqui como um aspecto específico para uma conceituação de exploração sexual comercial. O termo "mercado" reflete a natureza primordialmente econômica que perpassa a exploração sexual, e, dessa forma, estudá-la por um viés que focalize o fenômeno por uma perspectiva econômica, situada na sociedade capitalista de consumo, é um caminho que pode ajudar na compreensão do cerne do funcionamento da ESCCA. Ora, a própria nomenclatura do fenômeno - exploração sexual comercial - elenca dois termos próprios dos estudos que se detém em estudar as dinâmicas da sociedade capitalista contemporânea, por meio de um viés marxista: "exploração" e "comercial".
Para Faleiros (2000), o sistema capitalista é estruturado na produção oriunda das propriedades privadas, que geram lucro e acumulação de capital. Aqueles que possuem meios privados que garantem a produção se valem dos que não têm acesso a esse meio, comprando sua força física, explorando essa força por meio da categoria conceitual trabalho. Essa categoria conceitual exige um estudo aprofundado, no cerne da teoria marxista. Aqui discorreremos brevemente sobre o assunto, inserindo-o na discussão da ESCCA. Trabalho, para a teoria marxista, é a categoria fundante do sujeito, o que o distingue dos outros animais. É a capacidade de transformar a natureza, com ou sem mediação de instrumento, visando suprir suas necessidades. Por meio da produção é possível o acúmulo de capital, gerando lucros. Dessa máxima se estrutura o comércio na sociedade capitalista contemporânea. O comércio/mercado se estrutura na troca de capital por bens ou serviços, expressando-se pela maneira como se organizam as trocas realizadas em determinados universos, por indivíduos, organizações, empresas, governos (Faleiros 2000, 2004). Entendemos que as trocas no processo de exploração sexual nem sempre obedecem ao binômio "mercadoria-dinheiro", de forma que elas podem envolver objetos, serviços ou qualquer coisa que venha a suprir uma necessidade da pessoa em condição de exploração ou de seu aliciador.
Seguindo essa linha de raciocínio, na busca pela compreensão de como se constroem algumas relações sociais nesse sistema, para Pateman (1988) as relações sociais, de caráter livre, nas quais todos são iguais em direitos, obedecem a contratos sociais. Contudo, há contratos em que as partes não são consideradas livres e/ou iguais: casamentos, trabalho, exploração sexual, dentre outras. A autora também reflete que a troca é algo inerente a esses contratos, assim como há contratos em que há uma dissonância de poderes entres as partes; então, uma das partes não tem escolha a não ser aceitar termos desfavoráveis propostos pela parte que está em condição de superioridade. O interessante dessa proposição é que ela revela que uma das partes do contrato, a que está em situação de superioridade, tem, implicitamente, o direito de determinar como a outra cumprirá a sua parte na troca e, assim, são estabelecidas formas de relação dominadoras e subordinantes (Pateman, 1988).
Assim, Faleiros (2000, 2004), em concordância com Pateman (1988), ressalta que, dessa forma de relação surge uma espécie de "proteção" da parte dominadora em relação à parte subordinada. A proteção é entendida como condições de sobrevivência, que se expressam em forma de salário, alimentação, habitação, entre outros, como acontecem em contratos trabalhistas.
Portanto, na ESCCA, ocorre um "contrato sexual" que, segundo Pateman (1988), constituí-se numa forma de acesso e utilização do corpo por uma pessoa que contrata, por outro, que dispõe seu corpo neste "acordo".
Aliando-se a essa concepção, Faleiros (2000, 2004) traz a reflexão de que, no mercado do sexo, esse contrato sexual é atravessado por fenômenos do mundo capitalista globalizado, quais sejam: a pobreza e a exclusão. Para a autora, a busca da compreensão da ESCCA é também a tentativa de compreender as determinações históricas da sociedade na qual ela está inserida. Segundo ela, "a formação econômica, social e cultural da América Latina, assentada na colonização e na escravidão, produziu uma sociedade escravagista, elites oligárquicas dominantes e dominadoras de categorias sociais inferiorizadas pela raça, cor, gênero e idade" (Faleiros, 2000, p. 19). Essa formação sócio-econômica do povo latino-americano "gerou" categorias sociais dominadas (índios, negros, escravos, mulheres e crianças, pobres, etc.) que permanecem até os dias atuais fortemente excluídas de espaços que, muitas vezes, lhes são garantidos por direitos (escolas, mercado de trabalho, serviços de saúde, meios de habitação, de cultura, da sociedade de consumo, etc.).
Dessa maneira, percebe-se que a instituição mercado é atravessada por essas características, determinantes de algumas formas de relação. O contexto histórico deve ser levado em consideração para que se compreendam as dinâmicas relacionais de algumas conjunturas específicas e suas influências nos mercados desses momentos sócio-históricos. Nesse caso, o mercado do sexo.
O mercado do sexo é um sistema comercial, segundo os ditames capitalistas, em que existe a produção e a comercialização de mercadorias (serviços e produtos sexuais). Nesse mercado há relações de dominação, segundo descrito por Pateman (1988), em que crianças e adolescentes são, forçadamente, colocadas na condição de mercadorias a serem negociadas, obedecendo a um rígido contrato sexual (Faleiros, 2000, 2004). O mercado do sexo se expressa como um mercado negro. Para Sandroni (1989, citado por Faleiros, 2004) "mercado negro" significa compra e venda de bens e serviços feitos clandestinamente, para se desviar de leis ou normas estabelecidas em determinado contexto. Assim, muitos protagonistas do mercado do sexo (comerciantes, agenciadores, abusadores de forma geral, etc.) funcionam com cobertura legal, sob nomes fantasia que não correspondem à realidade da atividade comercial declarada.
Por se caracterizar como um sistema comercial, o mercado do sexo pode se inserir em redes. Entendemos "redes" de acordo com o autor Faleiros (1998) que as descreve como articulações de autores/organizações objetivando ações em conjunto, multidimensionais, com responsabilidades compartilhadas. Assim, diversos estudos (V. Faleiros, 1998; E. Faleiros, 2000, 2004; Sousa, 2000, 2002, 2004; Sousa, 2008; Leal, 1999; dentre outros) vêm demonstrando que a exploração sexual é um fenômeno que cada vez mais articula-se em diversas redes: redes de tráfico de mulheres, tráfico de drogas, falsificação de documentos, indústria pornográfica, etc..
De acordo com Leal e Leal (2002), em pesquisa realizada sobre o tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual comercial no Brasil - Pestraf - as chamadas "redes de favorecimento" organizam-se numa estrutura onde diversos atores desempenham diferentes funções, objetivando a exploração que tem como finalidade ganhos (materiais ou não). São citados como atores dessas redes: aliciadores, proprietários de estabelecimentos comerciais, empregados, prestadores de serviços - por exemplo, taxistas -, dentre outros tipos de intermediários.
As redes funcionam articuladas diretamente com ramos comerciais prestadores de serviços, sob fachadas de empresas (legais ou ilegais). Dentre os mercados que facilitam o funcionamento de fenômenos como a ESCCA e tráfico de pessoas para fins de exploração estão empresas do ramo do turismo, entretenimento, transporte, moda, indústria pornográfica, agências de serviços (por exemplo, massagens, acompanhantes, etc.) (Leal e Leal, 2002). As redes de tráfico organizam-se utilizando aparatos tecnológicos e estruturas organizacionais que permitem grande agilidade em sua mobilização. Tais redes contam com sistemas de informações que controlam as ações desde o aliciamento de pessoas, o transporte das mesmas, alojamentos e vigilância, permitindo, praticamente, total controle das ações das vítimas. Além disso, há intensa ligação com o mercado do crime organizado em nível internacional (Leal e Leal, 2002).
De acordo com o exposto, percebe-se que o mercado do sexo consiste em um fenômeno complexo, atravessado por vários determinantes, e que engloba inúmeras pessoas, com diversas finalidades. Não apenas as crianças e adolescentes estão sujeitas às dinâmicas do mercado do sexo, como também, por exemplo, mulheres envolvidas com atividades ligadas à indústria sexual, ao tráfico de pessoas. Assim, evidencia-se a diferenciação existente da participação de crianças e adolescentes nesse mercado, caracterizando-se uma forma particular de exploração sexual.
Encerramos essa seção buscando reafirmar a importância da necessidade de contextualização de cada episódio de violência sexual, situando-os em seus contextos históricos, buscando uma compreensão das forças políticas e ideológicas que o cercam, para que se chegue a "diagnósticos" de que esses episódios se caracterizam como exploração sexual comercial. A importância disso refere-se ao "que fazer" quando do conhecimento da existência desse fenômeno. Suas especificidades exigem, para o seu enfrentamento, ações, cuidados e olhares específicos, que orientem posturas profissionais igualmente específicas.
Buscaremos elencar, na próxima seção, os principais direcionamentos oriundos dos três congressos mundiais contra a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes ocorridos até o presente momento (Estocolmo, 1996; Yokohama, 2001; Rio de Janeiro, 2008). Tais direcionamentos são de fundamental importância, pois norteiam formulações de políticas públicas para o enfrentamento da ESCCA nos países signatários.
Marcos para formulação de políticas públicas: a importância dos congressos mundiais
Nesta seção elencaremos alguns dos marcos fundamentais ratificados pelos países signatários do Congresso de Estocolmo, a fim de demonstrar sua importância na construção de políticas públicas de enfrentamento a essa violência. Além disso, situaremos o segundo e o terceiro congressos mundiais, fóruns de discussão e reafirmação das necessidades e propostas construídas a partir do primeiro congresso.
Como já anteriormente explicitado, os governos de diversos países (122 ao todo) apoiados pela Organização das Nações Unidas e por diversas entidades não-governamentais, reuniram-se em 1996 na cidade de Estocolmo, na Suécia, promovendo o primeiro Congresso Mundial contra a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Esse congresso, bem como os subsequentes (Yokohama, em 2001, e Rio de Janeiro, em 2008), teve como principal organizadora e articuladora a organização não-governamental ECPAT, que ao longo das duas últimas décadas tem protagonizado fortemente o enfrentamento, especialmente no que diz respeito ao combate e prevenção, das violências sexuais contra crianças e adolescentes. A ECPAT tem se destacado reconhecidamente no cenário mundial por sua atuação comprometida com os direitos sexuais dessa população, tornando-se referência global na construção de culturas de enfrentamento a esse tipo de violência.
O Congresso de Estocolmo, que foi guiado pela Convenção dos Direitos das Crianças, das Nações Unidas, estabeleceu diretrizes e planos de ação para os países que se comprometeram e assinaram a Declaração de Estocolmo, documento final do Congresso, que dispõe de uma série de medidas que deveriam ser adotadas pelos países signatários em caráter de urgência. O Brasil foi um desses países.
Além do caráter político do congresso, em firmar compromissos e agenda de ações para combater efetivamente a exploração sexual, esse pode ser considerado um marco, na medida em que estabelece critérios para definição e diferenciação dos tipos de violências sexuais praticados contra crianças e adolescentes. No item "5" da Declaração de Estocolmo tem-se:
La explotación sexual comercial de los niños es una violación fundamental de los derechos del niño. Esta comprende el abuso sexual por adultos y la remuneración en metálicoo en especie al niño o niña y a una tercera persona o varias. El niño es tratado como un objeto sexual y uma mercancía. La explotación sexual comercial de los niños constituye una forma de coerción y violencia contra los niños, que puede implicar el trabajo forzoso y formas contemporáneas de esclavitud (Estocolmo, 1996, p. 01).
De acordo com este item, há um avanço conceitual no sentido de que, até então, não havia, em documentos oficiais, referências a termos como "remuneração", "terceiros", "mercadoria" e "trabalho forçado". Anteriormente a essa declaração, não se encontram documentos que vão além da compreensão de abuso sexual, englobando, nesse conceito, as expressões acima relatadas, o que dá um caráter muito diferenciado do abuso sexual em si. Dessa forma, passa-se a usar o termo "exploração sexual" e inicia-se um esforço epistemológico no sentido de diferenciar essas duas formas de violência sexual, que são, ainda hoje, tão confundidas e tão distintas, com peculiaridades que as tornam bastante diferenciadas. Inclusive essa diferenciação é essencial para o que foi proposto pela Declaração: uma agenda de ações de enfrentamento e erradicação da exploração sexual comercial de crianças e adolescentes.
Assim, a Declaração de Estocolmo tornou-se um marco para estruturação de políticas contra a exploração sexual nos diversos países que a ratificaram. Voltando ao cenário nacional, em consonância com o contexto mundial, no ano de 2000, na cidade de Natal/RN, é aprovado em assembléia ordinária do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) o Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes. Esse se constitui em um instrumento de garantia e defesa de direitos de crianças e adolescentes, que pretende criar, fortalecer e implementar um conjunto articulado de ações e metas fundamentais para assegurar a proteção integral à criança e ao adolescente em situação ou risco de violência sexual (Brasil, 2000). O CONANDA desenvolve ações de caráter instrumental - visando estruturação normativa, disciplinando e identificando processos técnicos de ordenamento jurídico - e formulador de políticas para a infância e adolescência brasileira (Dos Santos, 2007). Assim, tem-se atualmente, no Brasil, o Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes (PNEVSCA), principal instrumento político norteador e propositor de ações em âmbito nacional para o enfrentamento da exploração sexual comercial, além de outros tipos de violências sexuais. O PNEVSCA foi elaborado com participação de representantes do Poder Legislativo, Judiciário, Ministério Público, órgãos executivos, organizações não-governamentais (brasileiras e internacionais), membros da sociedade civil e representantes de adolescentes, representantes juvenis e integrantes dos Conselhos de Direito e dos Conselhos Tutelares (Dos Santos, 2007). A elaboração do PNEVSCA constituiu-se, além de toda sua importância político-social para a sociedade brasileira, na concretude de compromisso firmado por representantes do governo brasileiro na Declaração e Agenda de ações do Congresso de Estocolmo, em 1996.
O PNEVSCA tem como referência fundamental o Estatuto da Criança e do Adolescente e, desta forma, como alega o próprio texto do Plano, "reafirma os princípios da proteção integral, da condição de sujeitos de direitos, da prioridade absoluta, da condição peculiar de pessoas em desenvolvimento, da participação/solidariedade, da mobilização/articulação, da gestão paritária, da descentralização, da regionalização, da sustentabilidade e da responsabilização" (Brasil, 2000, p.14). Tem como objetivos estabelecer um conjunto de ações articuladas que possibilitem ações técnico-político-financeiras para o enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes. Essas ações se consubstanciam por meio de investigações científicas - que visem compreender, analisar, subsidiar e monitorar o planejamento e a execução das ações, na busca pela garantia do atendimento especializado às crianças e adolescentes em situação de violência sexual consumada, na promoção de ações de prevenção, articulação e mobilização da rede de enfrentamento a essa violência, no fortalecimento do sistema de defesa e responsabilização, além de buscar sempre fortalecer o protagonismo infanto-juvenil (Brasil, 2000).
O PNEVSCA elenca, dentre seus objetivos, a investigação científica constante acerca do fenômeno para que possa existir a compreensão de seu modo de funcionamento, engendramento, que dia após dia se sofistica ainda mais. E essa busca por qualificação técnico-científica, invariavelmente, recairá na busca pela garantia do atendimento especializado, algo de extrema importância, dadas as condições peculiares em que cada tipo de violência sexual está assentada, exigindo dos profissionais que se colocam no papel de "enfrentadores" cada vez mais qualidade no seu "que fazer" profissional. A Psicologia tem papel de extrema importância enquanto ator desse cenário. Está inserida no campo de enfrentamento à ESCCA e outras formas de violência sexual como uma das vertentes de seu compromisso social.
O PNEVSCA é estruturado em seis eixos estratégicos, em que se definem objetivos específicos a serem alcançados, ações a serem efetuadas, prazos e parcerias. As ações em cada eixo são integradas, ou seja, podem e devem existir atuações articuladas entre os diferentes eixos (Brasil, 2000). Os eixos são: análise de situação, Mobilização e articulação, Defesa e responsabilização, Atendimento, Prevenção, e Protagonismo Infanto-Juvenil. Cada eixo apresenta possibilidades de ações de enfrentamento à ESCCA, assim como direciona a elaboração e planejamento dessas para determinados atores e segmentos sociais.
Corroboramos a visão de Dos Santos (2007) ao apontar que um mérito em potencial do documento consiste no fato de que no seu processo de elaboração articulou vários segmentos sociais, a partir de um tipo de "agenda de ação". O autor também elenca como positivo o potencial de incrementação do processo de multiplicação de Planos Municipais, assim como a geração de políticas integradas e controle e monitoramento das políticas sociais.
Ainda em concordância com o autor, é necessário ressaltar o potencial direcionador de políticas sociais como um dos pontos mais fortes do documento. Do ponto de vista técnico está "muito longe de constituir um plano político-estratégico. (...) [O Plano é], em realidade, quase que um cronograma de trabalho ou, como denominou o Congresso de Estocolmo, uma 'Agenda para Ação '" (Dos Santos, 2007, p. 104). Segundo o autor, um plano estratégico deveria partir de uma "análise de situação", que embora elencada como eixo de ação no Plano, não está sistematizada, tampouco escrita.
Uma das falhas mais graves apontadas por Dos Santos (2007), refere-se à imprecisão na definição dos tipos de violência sexuais praticadas contra crianças e adolescentes. A violência sexual é termo bastante amplo e que se subdivide em vários conceitos, os quais, como já assinalado anteriormente, demandam olhares específicos, cuidadosos, que considerem as inúmeras diferenças conceituais. O não olhar para essa gama específica de diferenciações pode levar os operadores do Plano à construção de políticas de enfrentamento reducionistas e de pouco alcance efetivo. O PNEVSCA coloca certa ênfase na exploração sexual, contudo, sem o aprofundamento devido de estratégias e intervenções específicas. Ainda em concordância com Dos Santos (2007), as propostas de ações e metas do Plano são muito genéricas. Tal generalidade impede que se precise o valor dos investimentos necessários, como também não apresenta as condições institucionais para a implementação das atribuições do documento.
Finalizando essa seção, retornamos aos Congressos Mundiais, a fim de evidenciar a importância dos eventos que seguirão o de Estocolmo. O segundo Congresso Mundial, em Yokohama (2001), teve importância no sentido de reiterar as propostas da Declaração de Estocolmo (1996), "fiscalizar" se os Estados signatários estavam colocando em prática seus compromissos firmados, avaliar ações implementadas, no sentido de melhorar e promover o intercâmbio do conhecimento adquirido.
O terceiro Congresso Mundial, ocorrido de 25 a 28 de novembro de 2008, na cidade do Rio de Janeiro, também teve grande importância no sentido de reiterar as propostas contidas na Declaração de Estocolmo, e assim como o Congresso de Yokohama, também foi um fiscalizador e avaliador de ações para o enfrentamento da ESCCA. Teve grande importância por dar destaque ao protagonismo infanto-juvenil nesse enfrentamento e, também, por propor ações que voltassem o olhar sobre os perpetradores da ESCCA. Esse congresso também incluiu na sua agenda de cuidados, o olhar sobre outras formas de violência sexual, como o abuso sexual.
Temos, assim, uma pequena visibilidade, relativamente ao tamanho da importância das declarações consubstanciadas em cada um desses congressos e suas implicações práticas na criação de políticas de enfrentamento à ESCCA. É de extrema importância que se tenha conhecimento do conteúdo desses documentos, principalmente daqueles que se ocupam da área de enfrentamento dessa forma de violência.
Considerações finais
A busca por uma conceituação coerente e epistemologicamente rigorosa constitui desafio para estudiosos das diversas áreas do conhecimento, incluindo as ciências humanas. A psicologia encontra-se fortemente presente no bojo da discussão de temas relevantes para a sociedade e para o melhoramento da qualidade de vida, de uma forma geral. Temas como o da violência sexual contra crianças e adolescentes vem recorrentemente buscando, na psicologia e outras ciências humanas, explicações e formas de enfrentamento. A exploração sexual comercial faz parte desse rol de violências e possui peculiaridades que exigem de seus investigadores cuidados, rigor epistêmico e um olhar contextual crítico.
A psicologia entra como forte colaboradora no combate, enfrentamento e busca por erradicação da exploração sexual comercial de crianças e adolescentes. Seus discursos, técnicas e produção de conhecimentos têm colaborado bastante na prevenção, promoção de saúde e empoderamento de direitos e cidadania daqueles que estão, de alguma forma, envolvidos com a exploração sexual comercial.
Nesse sentido, esse ensaio conceitual intencionou, a partir de um rigoroso cuidado epistemológico, refletir acerca da construção do conceito de Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes e dos elementos que perpassam esse conceito, partindo do entendimento de que esse exercício se firma como uma colaboração ao efetivo enfrentamento desse tipo de violação de direitos humanos.
Este trabalho tem a pretensão de ser um norteador para a tarefa de ajudar profissionais a conceber e identificar indicadores peculiares à exploração sexual comercial, observando contextualmente suas demandas, suas características, para assim, balizar formas de atuação eficazes que promovam e efetivem direitos humanos de crianças e adolescentes.
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Enviado em Junho de 2009
Revisado em Dezembro de 2009
Aceite final em Março de 2010
Publicado em Dezembro de 2010
Nota dos autores:
O presente artigo foi elaborado a partir dos dados da dissertação de mestrado do primeiro autor, orientado pela segunda autora, com apoio da CAPES, entidade a qual os autores agradecem.
Leonardo Cavalcante de Araújo Mello - Graduado em Psicologia, mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Atualmente é docente do curso de Psicologia da Universidade Potiguar, em Natal, RN. Desenvolve estudos nas áreas da Psicologia Social Comunitária e Psicologia e Direitos Humanos.
Rosângela Francischini - Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, mestre em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano, pela Universidade de São Paulo, doutora em Lingüística pela Universidade Estadual de Campinas, com doutorado "sanduíche" na Universidade de Genebra. Atualmente é professora do Depto. de Psicologia - graduação e pós-graduação - na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da mesma Universidade, coordenadora, desde 2002, do Núcleo de Estudos Sócio-Culturais da Infância e Adolescência, coordenadora do GT Desenvolvimento Humano em situação de risco social e pessoal da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia. Presidente da Associação Brasileira de Psicologia do Desenvolvimento, tem experiência em ensino, pesquisa e extensão em Psicologia do Desenvolvimento Humano, com ênfase em desenvolvimento de crianças em contextos de risco e vulnerabilidade social e pessoal e em metodologia de pesquisa com crianças.