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Temas em Psicologia
Print version ISSN 1413-389X
Temas psicol. vol.18 no.1 Ribeirão Preto 2010
Abuso sexual intrafamiliar: da notificação ao depoimento no contexto processual-penal
Intrafamily sexual abuse: from reporting to witnessing in the criminal trial
Veleda Maria DobkeI; Samara Silva dos SantosII; Débora Dalbosco Dell'AglioIII
IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul
IIIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul
RESUMO
Este trabalho teve como objetivo investigar o abuso sexual intrafamiliar no contexto da justiça, da notificação ao depoimento no processo penal. Para isso, foi realizado um estudo de caso, observando como uma adolescente vítima de abuso sexual intrafamiliar e sua mãe perceberam o caminho percorrido no contexto processual-penal. Através da análise das entrevistas foi possível verificar que o tempo transcorrido da notificação até o depoimento judicial e a falta de proteção às vítimas, pode gerar sofrimento e frustração às mesmas. Também foi observado que os procedimentos de proteção integral à criança, conforme previsto pelo ECA, não são seguidos durante o processo-penal, tornando-se um desafio para os profissionais que trabalham nesta área. Destaca-se a necessidade de um maior conhecimento da dinâmica do abuso sexual intrafamiliar para uma atuação ministerial e judicial adequada e a tomada de providências ligadas ao sistema de justiça para proteger as vítimas e suas mães.
Palavras-chave: Abuso Sexual Intrafamiliar, Notificação, Contexto Processual-Penal, Depoimento Judicial.
ABSTRACT
This study aims at evaluating intrafamily sexual abuse within the Justice context, from reporting to the experience of witnessing in the criminal trial. A case study was conducted describing how a female adolescent who was a victim of intrafamily sexual abuse, as well as her mother, perceived the path from reporting the abuse to the experience of giving testimony in the criminal trial. Analysis of interviews showed that the length of time from reporting to witnessing, and lack of protection to the witness may cause suffering and frustration to victims. It was also observed that the procedures for full protection of the child, as ruled by the Law, were not followed during the criminal trial, becoming a challenge for professionals working in this area. There is a need for more knowledge of the dynamics of intrafamily sexual abuse for proper ministerial and judicial work, as well as the need for decision making and actions related to the criminal trial context, in the sense of protecting victims and their non-offending mothers.
Keywords: Intrafamily Sexual Abuse, Reporting Sexual Abuse, Criminal Trial, Child Witness.
Apesar do elevado índice de violência nas ruas, que amedronta e aprisiona as pessoas em suas casas, é justamente, neste local, que ocorrem eventos potencialmente traumáticos envolvendo inúmeras crianças e adolescentes - no ambiente que deveria ser o mais protetor (Pelisoli & Dell'Aglio, 2007). Quando a violência consiste em abuso sexual intrafamiliar, a vítima vivencia a manipulação dos laços afetivos, pode ficar exposta a um discurso culpabilizante, assim como a obrigação do silêncio e do segredo (Barudy, 1998). Na tentativa de romper com a violência, há a revelação do segredo do abuso, que é um processo que deve ser bem compreendido, assim como o seu significado para a vítima e para a mãe não abusadora (Santos, 2007). Na maioria das situações, o abuso é revelado à mãe (Berliner & Conte, 1995; Jonson & Lindbland, 2004), que tem sido apontada como uma pessoa importante no processo de revelação e na realização da notificação (Habigzang, Koller, Azevedo & Machado, 2005).
A situação enfrentada pelas mulheres com filhos abusados sexualmente pelo companheiro ou outro parente é estressante e complexa. As mães, muitas vezes, se deparam com perdas próprias, perdas para os seus filhos e para toda a família, com confusões, conflitos e ameaças. Deparam-se também com decisões que têm implicações ao longo da sua vida (Hoopper, 1992/1994), porque, por exemplo, as mães protetoras podem se sentir divididas entre a lealdade ao abusador e à criança (Furniss, 1993/2002). Dessa forma, as dificuldades para falar sobre ASI e sobre o processo de descoberta do fato pelas mães não devem ser subestimadas (Williams, 2009). A revelação do segredo do abuso pode acarretar alterações no sistema familiar e, além disso, pode implicar o ingresso no sistema de justiça.
O abuso sexual no contexto processual-penal
As pessoas podem temer que a justiça complique a situação familiar, ao intervir em casos de abuso sexual, ao invés de ajudar. A utilidade da intervenção legal reside na possibilidade de quebrar a situação de segredo em que ocorrem os abusos sexuais das crianças, fazendo com que a família, a sociedade e o Poder Judiciário tomem medidas para garantir a segurança dos cidadãos mais vulneráveis (Intebi, 2008). Ainda, conforme a autora, a intervenção judicial, quando eficaz, dá uma maior tranquilidade aos outros profissionais que devem implementar técnicas de intervenção nas situações de abandono de tratamento ou de transgressão de medida de proteção. Por último, para a criança vitimizada, a intervenção legal, quando se realiza adequadamente, oferece uma possibilidade de reparação pelo que sofreu e é um elemento a mais para que as vítimas possam iniciar o processo de elaboração de suas perdas (Intebi, 2008).
Uma conduta sexual praticada por um adulto contra criança ou adolescente pode se ajustar a poucos tipos penais: arts. 213 estupro e 214 - atentado violento ao pudor, do Código Penal, principalmente (CP, 1940). No Brasil, segundo Bitencourt (2009), não existe legislação penal específica contempladora de tipos penais que descrevam práticas abusivas intrafamiliares contra crianças e adolescentes, fora aquelas contempladas no Código Penal. Segundo Munõz Conde (citado por Bitencourt, 2009), no caso de vítimas crianças o bem jurídico protegido é o normal desenvolvimento da sua personalidade para que, quando adultas, possam decidir livremente sobre o seu comportamento sexual. Logo, conclui-se que muitas condutas abusivas praticadas contra crianças não têm perfeita adequação típica, o que recomenda urgente atenção dos legisladores para contemplar, na legislação penal, tipos penais que descrevam condutas específicas de abuso sexual intrafamiliar.
O primeiro passo para que o abuso sexual infantil ingresse no sistema de justiça é a realização da notificação. Há que se distinguir, desde logo, revelação, notificação e denúncia. As duas últimas, no contexto legal, têm significados distintos. A notificação é o comunicado formal da suspeita ou da prática do abuso sexual ao Conselho Tutelar, conforme determina o art. 13 do Estatuto da Criança e do Adolescente, de julho de 1990 (ECA, 1990) ou para outra autoridade como, por exemplo, Juiz de Direito, Promotor de Justiça, Delegado de Polícia, que não devem se escusar em recebê-la, encaminhando a vítima para instituição ou autoridade mais apropriada, porque isso pode servir de desincentivo para a notificação (Rozansky, 2005). A denúncia é a peça processual que inicia o processo penal; é oferecida pelo Promotor de Justiça ao Juiz de Direito, objetivando a responsabilização do abusador ou, se provada a inocência do réu, a sua absolvição (art. 41 do Código de Processo Penal-CPP). Comumente, utiliza-se "denúncia" como sinônimo de notificação, mas, no contexto judicial, os três termos têm sentidos diferentes.
Após a notificação, inicia-se a fase de investigação (art. 4 e seguintes, do CPP). Se a investigação trouxer indícios suficientes da autoria e do cometimento do crime, no caso do abuso sexual intrafamiliar, em que o agressor é o pai, por exemplo, o Ministério Público propõe a ação penal, oferecendo a denúncia com base nos elementos de investigação (art. 41 do CPP). Inicia-se, então, com o recebimento da denúncia, o processo penal, que é o caminho necessário para se chegar à uma sanção penal e à sua existência, que requer que sejam observadas as normas processuais e os direitos constitucionalmente assegurados ao acusado. Durante a instrução do processo, que é a produção das provas da acusação, da defesa, ou ainda, daquelas determinadas, de ofício, pelo Juiz, ocorre o depoimento da vítima e das demais testemunhas. Depois da ouvida das testemunhas, segue o interrogatório do acusado, com os debates do processo e, ao final, é prolatada a sentença.
Dessa forma, a partir dos aspectos teóricos apresentados, este estudo teve como objetivo, investigar, através de um estudo de caso, o abuso sexual intrafamiliar no sistema de justiça, desde a notificação até o depoimento no processo penal, a partir das percepções de uma adolescente vítima e sua mãe.
Método
Este estudo utilizou o delineamento de Estudo de Caso Único (Yin, 2003/2005) para investigar como uma vítima adolescente de abuso sexual intrafamiliar e sua mãe perceberam o caminho percorrido desde a notificação até o depoimento no contexto processual-penal. O eixo principal de análise deste estudo foi o abuso sexual intrafamiliar no sistema de justiça - da notificação ao depoimento judicial no contexto processual-penal. As unidades principais de análise são a notificação e o contexto processual-penal.
Participantes
Participaram deste estudo uma adolescente vítima de abuso sexual intrafamiliar e sua mãe, que já haviam sido ouvidas em juízo. A participante mãe tinha 42 anos, cursou o ensino fundamental completo e, estava trabalhando como secretária. A participante filha tinha 17 anos, estava completando o ensino médio e realizava alguns trabalhos voluntários com crianças. Os critérios de seleção do caso foram: envolver abuso sexual intrafamiliar, o processo estar em andamento e a adolescente vítima e sua mãe já terem prestado depoimento.
Instrumentos e procedimentos
Foram realizadas entrevistas individuais, semi-estruturadas, com o objetivo de investigar, além de dados sociodemográficos, a percepção das participantes sobre os trâmites da notificação do abuso sexual intrafamiliar até o depoimento judicial prestado no contexto processual-penal. As entrevistas ocorreram em uma sessão com duração média de uma hora, sendo que as participantes foram entrevistadas separadamente. Todos estes procedimentos foram realizados após contato com o Juiz (ou Juíza) Titular da Vara onde tramita o processo-criminal que trata do abuso sexual sofrido pela participante adolescente. Os cuidados éticos referentes à conduta ética na pesquisa com seres humanos foram considerados, atendendo à Resolução 196 do Conselho Nacional de Saúde. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Psicologia, sob protocolo número 08/02. Foi solicitada a cada participante a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Resultados
Os dados coletados através da entrevista permitem apresentar o caso e as percepções das participantes sobre a situação vivenciada. A participante mãe relatou que teve um relacionamento extraconjugal com o pai da participante adolescente, por muitos anos, e que engravidou, embora nunca tenham convivido sob o mesmo teto. Depois do nascimento da filha, continuou o relacionamento com o pai da menina, que era casado, até que conheceu o seu atual companheiro, momento em que rompeu o relacionamento, estabelecendo uma união estável com o novo parceiro. A convivência do pai biológico com a menina começou apenas quando ela tinha oito anos. A participante relatou que sua filha tinha um desejo muito grande de se aproximar do pai e que quando este a procurou para ter um convívio mais próximo da filha, não hesitou em concordar. Desde esta época em diante, a menina passou a frequentar a casa do pai, que havia se separado e estava em outro relacionamento. Aos 12 anos a menina foi morar com o pai, que a incentivava a morar com ele, salientando sua situação sócio-econômica era mais privilegiada e que ele tinha desentendimentos com a mãe da adolescente.
Quando sua filha mudou-se para a casa do pai, a mãe preferiu não interferir na decisão da filha, mas deixou claro a ele que iria ficar atenta aos cuidados dispensados à educação. Durante o período em que estava residindo com o pai, a mãe começou a observar mudanças no comportamento da filha, que era uma menina meiga, doce e passou a ser agressiva, deprimida e descuidada com a aparência. Não suportando mais o sofrimento e a humilhação, a adolescente contou para a mãe sobre os abusos que vinha sofrendo desde os oito anos de idade. Revelou que começaram com toques e beijos na boca, com justificativas do pai dizendo que queria ver como a filha iria fazer com seus namorados, avançando gradativamente e culminando, aos 13 anos, com relação sexual anal continuada.
Num primeiro momento, a mãe não acreditou na filha adolescente porque conhecia o abusador há 26 anos, sendo o mesmo atualmente aposentado, mas muito respeitado por ter exercido uma profissão de poder. A mãe foi ao Conselho Tutelar, recebeu orientação e foram encaminhadas para um serviço de referência em situações de violência. Neste serviço a menina foi ouvida por uma psicóloga, mantendo a versão do abuso, e submetida a exame médico-legal, que acusou lesão na região anal. Somente com a conclusão do exame pericial que a mãe da adolescente acreditou na versão da filha. O pai negou o fato, alegando que a adolescente estava enfrentando problemas com sua nova companheira e talvez ela estivesse se sentindo rejeitada e por isso teria inventado o fato. Foi efetuado inquérito policial para apuração do crime; em outro processo (cível) foi revogada a guarda do pai abusador, retornando a filha para a casa da mãe. O pai foi denunciado pelo Ministério Público por atentado violento ao pudor, pela prática de ato libidinoso diverso da conjunção carnal - conjunção anal agravada e continuada (por ser pai e em razão de o fato ter se repetido), mediante violência presumida pela idade da vítima. A participante foi ouvida em juízo, no contexto processual-penal, em junho de 2008, dois anos depois da notificação.
Participante Mãe
1. Unidade de análise: notificação
Nesta unidade de análise, os principais aspectos observados foram: a orientação para notificar, a dificuldade em notificar e a falta de informação sobre os trâmites após a notificação. A participante mãe dirigiu-se ao Conselho Tutelar apenas com o objetivo de registrar o fato de que sua filha não queria mais morar com o pai: "[...]quando eu cheguei no conselho tutelar eu não ia falar a respeito do abuso, eu achei que podia não ser verdade sabe. Então, eu só ia manifestar que ela não queria mais voltar pro convívio com o pai [...]". Diante do questionamento do Conselheiro Tutelar sobre o motivo da recusa da filha em voltar para a casa do pai, a participante mãe acabou por revelar o que a menina havia contado, tendo o conselheiro orientado para a notificação, encaminhadoas para o serviço de referência no atendimento a estas situações. A participante relatou a dificuldade para notificar: "[...] Foi muito constrangedor. As pessoas olham pra ti e... ouvir ela relatar o ocorrido, ela só mencionou e eu não acreditei nela, aí eu fui vendo, cada coisa que ela falava eu fui entendendo outras situações, que tinham acontecido no decorrer do tempo né? Mudanças no comportamento dela: ela era uma criança meiga, doce e passou a ser uma menina agressiva né, deprimida." Relatou também a dificuldade para obter informações a respeito dos trâmites após a notificação: "Eu fiquei sabendo foi perguntando pra um, pra outro... pras pessoas que faziam parte: Tá, e agora o que vai acontecer? Ah, agora vai ser chamado as testemunhas, assim."
2. Unidade de Análise: Contexto processual-penal
Nesta unidade de análise, os principais aspectos observados foram: falta de informação sobre a tramitação da ação penal, dificuldade de acesso ao processo, morosidade nos trâmites entre a notificação e o depoimento judicial, sentimentos e expectativas com relação ao processo. A falta de orientação e informação, na fase judicial, sobre a tramitação do processo, desencadeou na mãe sentimentos de desamparo e frustração. A dificuldade de acesso ao processo gerou insegurança: "[...] E outra coisa assim, o Ministério Público pega o caso, tu não precisa constituir advogado porque é o Ministério que cuida, aí o que acontece? Tu não tem acesso ao processo, porque tu não tem advogado. Tu vai lá, eles não te dão informação nenhuma, tu não sabe o que tá acontecendo, tu não sabe o próximo passo, o que vai ser feito, tu não tem esclarecimento nenhum.. Aliás o promotor que tava na audiência, eu nunca falei com ele, nem na audiência. Então, é uma coisa assim que não dá pra tu entender. Tu vai lá fazer uma denúncia e tu não vai ter o conhecimento do que foi feito, tu não vai ter acesso." A demora nos trâmites entre a notificação e o depoimento no processo pode ser percebida através da seguinte manifestação: "Se existe uma lei que fala dos direitos de preferência dos processos... então eu fiquei pensando como seria importante incluir nessa lei as questões de abuso na família, porque isso é muito importante e doloroso prá família e eu vejo que isso teria que ser solucionado o mais rápido possível... Se passaram já dois anos, a gente nem queria mais falar no assunto...Uma: tu esquece detalhes... Dois anos é muito tempo! Muito tempo [...]".
Quando questionada a respeito dos sentimentos e das expectativas em relação ao processo a participante verbalizou: "De impunidade porque, de imediato, tu acha que o cara vai ser preso e pá pá pá, que a justiça é maravilhosa e não é assim. Ainda mais por ser criança, né? Tu acha que vai andar rápido. Frustra muito a gente né. Tu fica achando que, no fim, não vai dar em nada, talvez nem dê...Eu acho que as famílias deveriam ser melhor assistidas, porque uma das coisas que acontece é a dificuldade que a gente tem de entender a violência, do porqueque a criança permitiu. É muito difícil. "Faz dois anos já que foi feita a denúncia. A expectativa é que fosse uma coisa de imediato entendeu, que fosse apurado tudo e já se passaram dois anos. Pra depois de dois anos, tu és chamada pra uma audiência, fomos chamadas pra primeira audiência, pra remoer tudo aquilo de novo, todas as dores, coisas que a gente já, entendeu, não quer mais falar... Eu queria que acabasse logo, porque que, como eu lhe disse, o tempo... tu já não quer mais falar, não quer lidar mais com aquilo, tu já tá dando encaminhamento prá tua vida diferente, já conseguiu contornar mais ou menos, aprendeu a conviver com aquilo, lidar melhor... Que fosse reconhecido o que ele fez, que ele abusou".
Participante Adolescente
1. Unidade de análise: notificação
Nesta unidade de análise, os principais aspectos observados foram: orientação para notificar, dificuldades no momento do depoimento na delegacia e do exame médico-legal e falta de informação sobre os trâmites após a notificação. A participante adolescente relatou que o Conselheiro Tutelar foi quem disse a sua mãe, que deveria fazer a notificação, encaminhandoas para um serviço de referência, local onde foi realizado o exame médico-legal. " A gente decidiu fazer a denúncia, porque minha mãe foi no Conselho Tutelar, ela tava em dúvida entre fazer ou não e eles disseram que tem que fazer a denúncia, né e que depois fosse avaliar se realmente tinha acontecido o abuso, ou não. A adolescente referiu constrangimento quando prestou declarações, não apenas por ser para um funcionário do sexo masculino, mas também porque tinha que dar detalhes, repetir e escutar o que havia sido digitado. "É porque o homem tava digitando. Então eu falando, aí ele pedia não espera um pouco, aí ele escrevia, aí ele lia de novo e isso é muito mais constrangedor com um homem. Isso que dificultou pra mim... no hospital, eu não sabia como é que eu ia falar, não sabia por onde começar, e era trinta perguntas ao mesmo tempo, e a minha mãe chorando, tava turbilhando a cabeça da gente, mas depois, já na audiência, eu tava mais tranqüila...".
Também mencionou ter sentido muito constrangimento no momento do exame efetuado por um médico e por ter sido fotografada a lesão causada pelo abuso. "Não, assim, o médico veio conversar comigo, médico homem, pior ainda pra mim, né, porque até então só tinha consultado com ginecologista mulher, e era pior, porque não é uma simples consulta, aí ele falou prá eu me sentir à vontade, mas eu não tava nem um pouco... ele falou que seria importante, porque não pode passar muitos dias, que o quanto antes melhor pra mim, que ia ser rápido".
Sobre a falta de informação sobre os trâmites após a notificação, a participante referiu: "E depois, todos os outros processos, de onde ir, o que vai ser, até hoje foi a gente que correu atrás".
2. Unidade de Análise: Contexto processual-penal
Nesta unidade de análise, os principais aspectos observados foram: falta de informação sobre a tramitação da ação penal, morosidade nos trâmites entre a notificação e o depoimento no processo e sentimentos e expectativas com relação ao processo. Nesta unidade de análise, a percepção da adolescente sobre os diversos aspectos que compõem o contexto processual-penal refletem a falta de assistência para a vítima no processo. "Quando era a primeira promotora...eu e a minha mãe, a gente marcou uma audiência com ela, antes mesmo da que tinha que marcar, pra ver como ia ser o processo, o quê que ia acontecer; ela esclareceu um pouco, mas deixou avisado que naquele fim de ano ela ia ta saindo, né... Partiu de mim [a iniciativa de marcar audiência com a Promotora] até porque eu tinha muita dúvida de como é que ia ser o depoimento, se ia ter advogado, se meu pai ia tá junto, como é que ia ser...É que a gente não tem noção nenhuma assim de como é que funcionaria, né". A adolescente relatou que, se pudesse mudar algo no caminho percorrido, gostaria que o processo fosse mais rápido, que não mudasse de um profissional para outro, dizendo: "O processo. Que fosse mais rápido, não mudasse de um profissional pra outro... Mudou...Agora mudou pela terceira vez, né! A gente fala uma coisa, aí vem outro, e sabe de uma coisa diferente. E aí atrasa o processo, né? Que não demorasse tanto o processo".
Através da entrevista desta participante, pode-se observar o quanto a inexistência de informações, a demora no caminho percorrido entre a notificação e o depoimento judicial geram sentimentos de ansiedade e interferem nas expectativas quanto ao resultado do processo."Na verdade, eu só espero que acabe logo, assim. De vez em quando eu até me arrependo de ter feito, não pelo fato de deixar ele impune, nada disso, só que é super cansativo, pra mim, pra minha mãe, pra minha família toda, porque todo mundo diz ah como andam as coisas aí e não se preocupam...porque é um desgaste emocional muito grande... fiz porque é o certo a fazer, a gente faz a denúncia e segue o processo. Só que para a minha mãe é muito mais, não que ela se importe que ele vá preso, ela só se importa que pelo menos ele assuma que foi ele que fez...por mais que ele possa pagar com qualquer pena, em mim não vai mudar nada e nele acredito que não, até porque se ele foi capaz de fazer uma coisa dessa, não acho que vai ser uma pena ou qualquer coisinha que vá mexer com ele, porque se não mexeu até agora e não causou nele nenhuma emoção que ele possa realmente falar que foi ele, porque ele não tá nem se defendendo, ele tá me acusando... então não faz diferença isso pra ele".
Discussão
O caso apresentado possibilitou a identificação de muitas percepções, sentimentos e expectativas das participantes em relação a todos os trâmites que se sucederam após a revelação do abuso. A participante mãe referiu que não pretendia comunicar o abuso revelado por sua filha junto ao Conselho Tutelar, pois ainda tinha esperança de que tal fato não tivesse ocorrido. Esse comportamento da mãe demonstrou que o abuso sexual é impactante emocional, física e psicologicamente (Pelisoli & Dell 'Agllio, 2007; Santos & Dell'Aglio, 2008) tanto para a adolescente/vítima, como para sua família, principalmente para a mãe a quem foi revelado.
Para as mães cujas filhas foram abusadas por seus companheiros, a revelação do abuso gera perdas (Furniss, 1993/2002; Hoopper, 1992/1994) e exige uma decisão: em quem acreditar. A decisão de acreditar na filha pode resultar em mudanças na família. Além de perderem seus companheiros, podem perder o status social, a autoestima em função de terem se envolvido com uma pessoa capaz de cometer tamanha violência e a segurança material, pois em muitas situações o companheiro abusador é o principal provedor do sustento da família (Furniss, 1993/2002).
No caso apresentado, no momento da revelação, a mãe parece ambivalente, com dúvidas em relação ao relato da filha, as quais foram esclarecidas, principalmente, após o resultado do exame pericial. Araújo (2002) refere que as mães podem sentir raiva, ciúmes e, ao mesmo tempo, culpa por não terem protegido suas filhas. Os encaminhamentos após a revelação feita à mãe dependem do fato de admitirem que o abuso sexual de suas crianças aconteceu (Furniss, 1993/2002). As mães precisam passar por um processo de questionamento interno, o qual permitirá juntar o relato da criança, com as suas observações e também as de outras pessoas, como familiares e profissionais (Plummer, 2006). As evidências físicas podem auxiliá-las nesse processo, mas não, necessariamente, influenciam suas ações protetoras. A crise gerada em função da revelação do abuso sexual intrafamiliar pode exigir ações rápidas e definidas, mas segundo Furniss (1993/2002), é importante destacar que as mães podem precisar de um tempo e de um espaço para pensar sobre as questões conjugais e familiares.
Para a adolescente/entrevistada a revelação do abuso sofrido possibilitou o retorno para a casa da mãe e, consequentemente, o término da violência sexual. Ambas, mãe e filha, foram encaminhadas a um serviço de referência no atendimento a essas situações. O atendimento recebido junto a esse serviço demonstrou que, embora os profissionais estivessem acostumados a lidar com estas situações rotineiramente, para a adolescente vítima e sua mãe, essa era uma situação nova. Há que se ter um cuidado para que não se intervenha de maneira mecânica, repetindo práticas que possam banalizar o sofrimento das pessoas. Esse cuidado poderá impedir situações semelhantes às descritas pela adolescente sobre o constrangimento, no momento das declarações prestadas na fase investigativa e do exame médico-legal. Relatos como estes mostram também a inexistência de equipamentos e estrutura adequados para investigar situações que caracterizam a ocorrência de ASI. Diversos estudos chamam a atenção para a necessidade de uma capacitação permanente dos profissionais envolvidos no atendimento, ou intervenção de qualquer natureza, relativo ao ASI (Pelisoli & Dell'Aglio, 2007; Santos & Dell'Aglio, 2008).
A mãe e a adolescente não receberam informações sobre os trâmites da investigação, que se seguem após a notificação. Por iniciativa própria, agendaram audiência com um Promotor de Justiça com a finalidade de obterem orientação e informação, pois desconheciam como funcionaria a audiência para o depoimento judicial. Esses relatos demonstram total falta de apoio quando as entrevistadas entraram no sistema de justiça. Segundo a experiência descrita por Cunninghan (2009), um serviço de apoio que reúna e ofereça, num mesmo espaço físico, orientação, acolhimento, avaliação e tratamento clínico às vítimas de ASI e suas famílias pode auxiliar nestas questões.
Mãe e filha queixaram-se sobre a demora nos trâmites da notificação até o depoimento judicial. Jonker e Swanzen (2007) enfatizam que o tempo transcorrido entre a notificação e o depoimento em juízo é um fator que merece atenção, e isso pode comprometer o processo judicial. O sentimento da entrevistada mãe com relação ao processo foi de impunidade pela demora na justiça. Demonstrou também um sentimento de desamparo por entender que as famílias deveriam ser melhor assistidas em razão de terem dificuldade de compreender a violência sexual familiar. A mãe também demonstrou decepção e frustração com a justiça, dizendo que esperava que o abusador fosse preso, que o caso fosse rapidamente resolvido por envolver criança.
A mãe e a filha tinham expectativas de que o processo tramitasse de forma rápida. A expectativa atual da mãe entrevistada é de que seja reconhecido que foi o pai quem praticou o abuso. A entrevistada adolescente, por sua vez, também tem a expectativa que o pai assuma o que fez.
Considerações Finais
Quando o abuso sexual intrafamiliar ingressa no sistema de justiça, a família passa por uma nova experiência, marcante, permeada por dúvidas e incertezas. No caminho percorrido da notificação até o depoimento judicial, podem ser encontradas dificuldades que obstacularizam uma real proteção das vítimas e suas mães. No estudo realizado, a inexistência de orientação e de informação sobre os trâmites da notificação até o depoimento judicial contribuíram para uma falta de proteção à adolescente e sua mãe, gerando uma sensação de desamparo. Cabe lembrar que a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, a Constituição Federal e o ECA impõem esta proteção.
No momento da notificação, é importante que as vítimas e suas mães sejam orientadas e informadas sobre os trâmites seguintes para que não se sintam inseguras e desorientadas. A dificuldade da mãe em notificar mostrou o impacto que a revelação lhe causou. O resultado do laudo pericial, que foi positivo para a lesão compatível com o abuso sexual revelado, fez com que a mãe passasse a dar credibilidade maior à versão da filha. As evidências físicas auxiliaram na convicção da ocorrência do abuso sexual, demonstrando o quanto pode ser difícil de se admitir a existência do abuso quando este não deixa vestígios. A falta de credibilidade no relato da adolescente pela mãe pode ser consequência do impacto da revelação do abuso sexual. Segundo Hoopper (1992/1994), as reações e respostas maternas podem estar vinculadas ao processo de dor, às sequelas da violação ou ao próprio abuso sexual infantil, quando este ocorreu.
Na fase investigativa, os procedimentos foram constrangedores, tanto na tomada de depoimento, como na realização do exame médico-legal. Além da capacitação técnica, os profissionais devem estar preparados emocionalmente para atuar nos casos de ASI sob pena de atuar inadequadamente e causar vitímização secundária (Dobke, 2001).
A falta de informação não ocorreu apenas na fase investigativa, mas também na fase processual. A vítima e sua mãe somente tiveram informações através de diligências que tomaram por conta própria, mostrando que o contexto processual-penal também falha no sentido da orientação a quem ingressa no sistema de justiça. A mãe, ainda, teve muita dificuldade de acesso ao processo, em razão de não ter constituído advogado. Se a parte somente pode ter acesso ao processo através de advogado, quando o Ministério Público for titular da ação penal, deve providenciar para que seja possibilitada à vítima conhecimento do que existe no processo. Pode-se pensar também na possibilidade de nomeação de um defensor à vítima criança ou adolescente em processos judiciais.
A demora na tramitação do processo prolongou o sofrimento da vítima e de sua mãe, pois a participante somente foi ouvida em juízo dois anos depois. A postergação deve ser rigorosamente evitada, pois uma tramitação rápida dos processos que tratam do abuso sexual intrafamiliar pode minimizar o sofrimento das vítimas e de suas famílias. Pode-se pensar, então, que estes processos deveriam ter tramitação preferencial, como, por exemplo, o das pessoas idosas ou como o processo dos acusados que se encontram presos durante a tramitação do processo.
Os sentimentos de impunidade, desamparo, decepção e frustração das vítimas com relação ao processo foram gerados pela demora no percurso da notificação ao depoimento e pela falta de informação e orientação. Além disso, influenciaram nas expectativas das participantes, gerando uma desconfiança com relação ao desfecho do processo. Mãe e filha têm a expectativa de que o processo tramite de forma rápida e que a autoria do abuso seja reconhecida pela justiça. Contudo, permanece para a mãe a dúvida de que essa última expectativa se concretize.
O caminho percorrido pelas participantes, da notificação até o depoimento judicial, demonstra como diz Cezar (2007), que, dentro do sistema processual vigente no Brasil, a vítima criança não é atendida de forma adequada nos procedimentos judiciais, principalmente, no processo penal, o que não atende princípios constitucionais da dignidade humana e da prioridade absoluta. O conhecimento de que o processo-penal não atende ao princípio da proteção integral, adotado pelo ECA (1990), deve ser aceito por todos os profissionais envolvidos na atividade jurisdicional, direta ou indiretamente, para um repensar e refletir em diferentes formas procedimentais, que respeitem os direitos constitucionais da criança.
É necessária a adequação do procedimento judicial às necessidades das crianças e adolescentes, contando com a sensibilidade e implicação dos operadores do direito. Argumentar que as normas processuais devem ser seguidas e que não se estabeleça diferença de tratamento entre adultos e crianças no procedimento processual-penal, é desconsiderar a Constituição de 88 e o ECA, que preconiza o princípio da proteção integral. Além disso, é necessário lembrar que existe o Protocolo Facultativo à Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, o qual foi ratificado pelo Brasil e que determina que os Estados Partes deverão adotar medidas adequadas para proteger as crianças em todas as fases do processo-penal, adaptando os procedimentos às suas necessidades especiais e atentos ao seu interesse superior.
Muitos afirmam que tribunal não é lugar de criança ou adolescente. Tribunal não deveria ser lugar de criança. Mas, tendo ela seus direitos desrespeitados, sendo ela vítima de prática delitiva, o seu lugar é, incontestavelmente no tribunal, para que possa, com sua própria voz, reclamar seus direitos, relatar as agressões sofridas e dizer quem foi o seu agressor, Mas, sem dúvida, a justiça criminal precisa, para bem recebê-la e garantir seus direitos fundamentais, adaptar-se às suas necessidades, às suas peculiaridades de sujeito de direito em desenvolvimento, atendendo a doutrina da proteção integral adotada pela ECA.
Williams (2009) refere ser necessário maximizar esforços para defender os direitos das crianças de forma que cresçam seguras e livres da violência. Não podemos minimizar as consequências do problema, tampouco o sofrimento que o abuso sexual causa na vítima, na sua mãe e para a família. A minimização da importância social do problema torna mais difícil a tomada de consciência de sua realidade e amplitude e, portanto, dificulta também a busca de soluções efetivas para proteger ou ajudar as crianças vítimas de abuso sexual (Barudy, 1998).
Desta forma, destaca-se a importância de novos estudos sobre os casos de abuso sexual infantil, que enfoquem diferentes aspectos do fenômeno, desde as questões jurídicas, psicológicas e sociais, para que o mesmo possa ser enfrentado de forma mais adequada. Um maior conhecimento sobre a dinâmica do abuso sexual infantil, especialmente intrafamiliar, pode contribuir para capacitação dos profissionais que trabalham com estas temáticas, assim como para a proposição de novas formas de atendimento e encaminhamento dos casos.
Referências
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Endereço para correspondência:
Profa. Débora Dalbosco Dell'Aglio
Programa de Pós-Graduação em Psicologia - Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Rua Ramiro Barcelos, 2600
Porto Alegre, RS
Fone UFRGS (55) (51) 33085253
E-mail: dalbosco@cpovo.net
website: http://www.ufrgs.br/pgpsicologia/
Enviado em Junho de 2009
Aceite final em Novembro de 2009
Publicado em Dezembro de 2010