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Temas em Psicologia
Print version ISSN 1413-389X
Temas psicol. vol.19 no.1 Ribeirão Preto June 2011
SEGUNDA PARTE: O GRUPO DE TRABALHO "REPRESENTAÇÕES SOCIAIS" DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA - ANPEPP
A representação social do risco em atividades potencialmente perigosas
Social representation of risk in potentially dangerous activities
Edna Maria Querido de Oliveira ChamonI; Pedro Milton de MoraesII
IUniversidade de Taubaté - SP, Brasil
IIUniversidade Estadual de Campinas - SP, Brasil
RESUMO
O risco, situação de perigo que pode causar dano ou perda a instalações ou pessoas, tem sido debatido sempre à luz das possibilidades técnicas. Propõe-se aqui investigar o risco a partir de uma perspectiva psicossocial, alicerçada nas representações sociais que um grupo desenvolve sobre ele. Apresentam-se dois estudos realizados em empresas que atuam em setores potencialmente perigosos: uma refinaria de petróleo e uma empresa química de produção de explosivos. Os dados foram obtidos a partir de entrevistas semiestruturadas. Para o estudo da refinaria de petróleo, foram entrevistados 16 sujeitos; para a empresa de explosivos, foram entrevistados 15 sujeitos. As entrevistas foram submetidas a uma análise de conteúdo automatizada, por meio do software ALCESTE®. Os resultados obtidos mostram que a concepção de risco é relacionada à tendência ao controle e à confiança em sistemas abstratos, ao mesmo tempo em que concentra a confiabilidade do sistema no ser humano. Há uma clara clivagem entre os conteúdos relacionados a uma perspectiva mecanicista de gestão do risco, ancorado em categorias gerais de senso comum, e conteúdos relacionados à representação específica do risco pelo grupo, própria da atividade potencialmente perigosa.
Palavras-chave: Representação social, Risco, Representação do risco, Sociedade do risco.
ABSTRACT
Normally, risk, a hazardous situation with potential to cause damage and loss to people and facilities, is considered under a pure technical point of view. We intend to investigate the risk under a psychosocial perspective, anchored on the social representation of a group dealing with the risk. We present two studies: an oil company and a chemical company, producer of explosives. Data were collected through a set of semi-structured interviews: 16 individuals were interviewed for the oil company, and 15 individuals for the chemical company. An automatic content analysis was performed using the software ALCESTE©. Results show that risk concept is related to control and reliance on abstract systems and at the same time is focused on human reliability. There is a marked cleavage between representational contents related to a mechanical perspective of risk management and contents related to potentially dangerous activities, specific to the studied groups.
Keywords: Social representation, Risk, Risk representation, Risk society.
Questões preliminares
O processo de industrialização acelerado do pós-guerra trouxe consigo os problemas relacionados à consecução de processos industriais em grande escala. Nesses processos, os trabalhadores assumem o comando de máquinas de grande porte e o controle de sistemas com pressões e temperaturas elevadas, bem como de sistemas em que ocorre a circulação de gases venenosos, explosivos e asfixiantes. Essas características são inerentes a indústrias de processamento de produtos químicos e petroquímicos e à indústria nuclear.
O tratamento das questões de segurança e de risco não era considerado importante até o advento de acidentes em que populações no entorno dessas indústrias foram atingidas, além dos próprios empregados. São emblemáticos dessa situação os casos da cidade de Bophal, na Índia, da favela Vila Socó, em Cubatão, SP, e da usina nuclear de Chernobyl, na Ucrânia (na época, parte da União Soviética), ocorridos na década de 1980. Entretanto, a questão do risco foi tratada como apenas "mais um problema de engenharia": se conhecemos os riscos, delimitamos os problemas, e, assim, os riscos são eliminados ou colocados dentro de padrões de tolerância aceitáveis. Tratar os riscos apenas em termos técnicos e tecnológicos limita consideravelmente nossa capacidade de compreendê-los. Uma visão ampliada do risco se impõe, e para além de sua caracterização técnico-científica. Isso se dá a partir de duas constatações:
a) Ao contrário do que imaginaram os pensadores iluministas, o conhecimento crescente do mundo físico e social não levou a "uma maior certeza sobre as condições sob quais conduzimos nossas vidas" (Giddens, 1997, p. 219). A questão se mostra cada vez mais complexa à medida que avançamos em sua exploração.
b) As origens da incerteza e da imprevisibilidade das circustâncias da vida são, hoje, fruto do próprio desenvolvimento do conhecimento humano. As incertezas que enfrentamos são incertezas fabricadas (Beck, 2006).
Ao mesmo tempo, o desenvolvimento científico-industrial e a ampliação dos meios de comunicação trouxeram a questão do risco para o cotidiano das pessoas. Poluição atmosférica e da água, alimentos geneticamente modificados, novas doenças de rápida propagação, aquecimento global, mudanças climáticas ou violência nas grandes cidades são temas frequentes nos noticiários e nas discussões e trazem a marca do risco difuso, despersonificado, que não distingue as pessoas e que pode atingir qualquer um.
O Universo não pode ser interpretado somente a partir da visão das grandes teorias, pois há um conhecimento prático elaborado para também compreendê-lo. As explicações em termos de causa e efeito não são per si suficientes para uma compreensão mais abrangente desse Universo. Há, naturalmente, dicotomias entre o pensamento científico e o conhecimento socialmente construído, que é apropriado por meio de representações. Não são suficientes as explicações do nosso ambiente somente em termos newtonianos/ mecânicos, pois há todo um construto social que não pode ser negado e que lhe é complementar. O estudo desses processos de elaboração de um conhecimento de senso comum, que é próprio da teoria das representações sociais, permite explorar o risco para além de uma perspectiva puramente mecanicista.
Dessa forma, após investigarmos as contribuições da perspectiva psicossocial para a discussão do risco, apresentamos dois estudos sobre representações sociais do risco por grupos que trabalham em atividades potencialmente perigosas. Serão discutidos o caso de uma refinaria de petróleo e o de uma empresa do setor químico, que trabalha na produção de explosivos.
A perspectiva psicossocial do risco
Não existe definição universalmente aceita para "risco". Uma definição técnica de risco, que deveria ser objeto de consenso na comunidade científica, parece não ter sido encontrada.
De fato, a noção de risco admite diferentes interpretações, e a abordagem para seu estudo varia em função dos objetivos do pesquisador e do quadro de referência que ele utiliza. Assim, um pesquisador com viés para a economia fundamentará sua análise de risco no comportamento baseado em racionalidade e maximização da utilidade. Ele será criticado por um psicólogo, cujos estudos mostraram que o comportamento humano é muito menos previsível do que a teoria da escolha racional pretende que ele seja. Já o sociólogo investirá contra uma abordagem excessivamente centrada no indivíduo, a qual deixa de lado aspectos sociais e relacionais. A isso um antropólogo acrescentará uma ênfase cultural, alegando que a construção social de significados é marcada culturalmente (Schlich, 2004). Percebe-se, assim, um continuum de abordagens que vai do extremo mecanicista, representado pelo cálculo atuarial próprio da área de seguros, até as abordagens sociais e culturais, marcadas pelo relativismo e subjetividade.
As limitações de uma visão mecanicista do risco levam à discussão de outras perspectivas que permitam a inclusão das relações sociais e de poder na construção do conceito de risco. Não se trata, entretanto, de uma ampliação teórica, visto que vários aspectos da perspectiva mecanicista são descartados ou ignorados. Em certo sentido, essas novas perspectivas representam alternativas ao modelo mecanicista, buscando substituí-lo, e não aperfeiçoá-lo.
A perspectiva psicossocial contrapõe-se, em muitos aspectos, à abordagem mecanicista. Na contramão de uma visão única e determinística do risco, ela busca explorar a construção social do conceito a partir das experiências vividas e discutidas dentro de um grupo.
Contrariamente, também, à construção global, com risco de abrangência e potencial de danos ilimitados, afetando a todos os indivíduos, busca-se, na perspectiva psicossocial, uma construção restrita, própria a um grupo, fundamentada no senso comum desse grupo e orientadora de sua prática social.
Essa construção baseia-se na teoria das representações sociais, desenvolvida, na França, por Serge Moscovici (Moscovici, 1976). De acordo com essa teoria, um grupo apropria-se de um objeto social e recria coletivamente seu significado, gerando, a priori, uma orientação para sua prática e, a posteriori, uma justificativa para suas ações.
Essa abordagem para a questão do risco tem sido bastante explorada na literatura internacional - ver, por exemplo, os trabalhos de Joffe (2003) e Gruev-Vintila e Rouquette (2007), e as referências neles indicadas. Há relativamente poucos estudos nacionais, entre os quais se pode mencionar os trabalhos de Bernardo (2001), Moraes (2007), e Chamon e Chamon (2007), que ilustram os aportes da abordagem psicossocial ao estudo do risco.
O risco como objeto de representação social
O risco se apresenta como objeto polimorfo, mostrando diferentes aspectos e diversos ângulos, para os diferentes segmentos sociais. Por vezes, está ligado à probabilidade e à previsão de fatos financeiros e econômicos, como possibilidade de ganho ou perda, enquanto para os processos industriais aparece ligado ao aspecto de perda material ou pessoal e danos em geral. Além disso, em atividades industriais potencialmente perigososas, o risco ocupa uma posição de destaque, caracterizando um compromisso identitário dentro do grupo de trabalhadores. Esse compromisso se revela na busca pelo trabalho seguro no desempenho das atividades, materializado no tratamento rigoroso das questões de risco. Essa identidade é percebida pela sociedade no entorno, que vê os trabalhadores como sendo de uma indústria "perigosa". Em todas as relações sociais, dentro e fora da organização, o senso comum identifica esse tipo de trabalhador em associação ao risco da atividade desempenhada. Mencione-se, nesse caso, a atividade em uma indústria nuclear ou de explosivos, como exemplos marcantes. O risco, então, é marca distintiva do grupo em suas relações com outros grupos sociais.
As funções da representação social do risco
A representação social desempenha um papel de sistema de interpretação da realidade e de organizadora de comportamentos e práticas. Além disso, responde por quatro funções essenciais dentro dos processos de relação social (Abric, 1994):
1- Função de Saber
As representações sociais permitem compreender e explicar a realidade, isto é, como os indivíduos adquirem conhecimentos e os integram num quadro assimilável por eles (o senso comum). É a situação típica para os trabalhadores de indústrias com atividades potencialemente perigosas. O risco é parte importante da atividade nessas indústrias, afetando a forma como o trabalho é desenvolvido. Existe um conhecimento estabelecido, definido pelas normas e procedimentos, e existe um conhecimento prático, do dia a dia, fruto da assimilação e retrabalho cognitivo do primeiro. As representações sociais do risco tornam-se o quadro de referência para a compreensão da realidade vivida no trabalho.
2- Função Identitária
As representações também têm por função situar os indivíduos e os grupos no campo social. A partir delas, eles são capazes "de elaborar uma identidade social compatível com os sistemas de normas e valores socialmente e historicamente determinados" (Mugny & Carugaty, 1985, p. 183). O grupo de trabalhadores e a própria sociedade veem a atividade realizada em indústrias químicas/petroquímicas, nucleares ou de explosivos como "perigosa" e de "alto risco". Particularmente, quando da ocorrência de incidentes ou acidentes nesse tipo de indústrias, em qualquer região do mundo, há imediata associação entre os trabalhadores e a atividade de risco.
3- Função de Orientação
As representações sociais guiam os comportamentos e as práticas por meio de três fatores:
a) A definição da finalidade da situação. Elas determinam a priori os tipos de relações pertinentes para um sujeito e, também, nas situações onde existe uma tarefa a ser cumprida, o tipo de estratégia cognitiva que vai ser adotada.
b) Um sistema de antecipação e de espera. Uma representação não segue o desenrolar de uma interação e não depende dela. Ela precede a interação e a orienta.
c) Uma prescrição de comportamento. A representação social reflete a natureza das regras e das ligações sociais e, dessa forma, é prescritiva de comportamentos ou de práticas obrigatórias.
O risco em indústrias químicas/ petroquímicas, nucleares ou de explosivos é conhecido pelos trabalhadores e é apreendido na prática social. As representações que se constroem sobre o risco orientam comportamentos na atividade cotidiana, a tal ponto que certas práticas - reconhecidas nas indústrias como apropriadas - são incorporadas posteriormente em procedimentos e normas.
4- Função de Justificação
As representações sociais permitem justificar a posteriori as tomadas de posição e os comportamentos. É um funcionamento que sucede a ação, permitindo aos atores sociais explicar e justificar suas condutas numa situação ou em relação a seus parceiros. Os comportamentos em relação ao risco são explicados pelos trabalhadores em função das normas e procedimentos. Entretanto, quando um comportamento se desvia do caminho preconizado nos manuais, a justificativa é dada pela prática social do grupo, apresentada como mais adequada à situação.
Dois estudos sobre a representação social do risco
Os estudos aqui apresentados focalizam duas situações de trabalho para as quais, tipicamente, o risco é percebido como inerente à atividade desenvolvida. Na primeira, discute-se a representação social do risco em uma refinaria de petróleo. Refinarias são consideradas potencialmente perigosas, produzindo derivados de petróleo em larga escala, produtos inflamáveis e tóxicos cujo manuseio exige técnica e experiência.
O segundo estudo faz a análise das representações sociais do risco em uma empresa química, especificamente de produção de explosivos. A indústria química produz e/ou utiliza como matéria-prima produtos que são, na maior parte das vezes, tóxicos, inflamáveis, contaminantes ou explosivos.
Nesses dois casos, a possibilidade de acidentes com variados níveis de gravidade é parte do cotidiano das empresas, além de representar um risco real para a população do entorno e ser percebido como tal por ela.
O método de estudo
Em ambos os estudos, utilizou-se a entrevista semiestruturada como forma de acesso às representações sociais do grupo. No primeiro caso, a análise em uma refinaria de petróleo, foram entrevistados 16 sujeitos; para o segundo estudo, uma empresa de explosivos, foram entrevistados 15 sujeitos. As transcrições das entrevistas foram submetidas a uma análise de conteúdo automatizada, por meio do software ALCESTE® (Analyse des Lexèmes Coocurrents dans les Énoncés Simples d'un Texte), que realiza uma classificação do texto estudado em função das ocorrências simultâneas do seu vocabulário (Chamon, 2007). O software divide o conteúdo das entrevistas em unidades de contexto elementares (UCE), que são trechos do texto que representam o contexto no qual as palavras são consideradas. A classificação realizada tem por base esses contextos e as palavras a eles associadas.
O software idenficou, em cada caso, um conjunto de classes de discurso, discutidas a seguir. Essas classes permitem apreender a estrutura da representação social do risco nos dois grupos estudados.
Estudo 1: Risco e representação em uma refinaria de petróleo (Moraes, 2007)
As entrevistas foram realizadas com 16 sujeitos, distribuídos entre seis gerentes de diversos níveis e dez empregados executantes, com regimes de trabalho administrativo e por turnos. A análise dessas entrevistas resultou em um conjunto de quatro classes de discurso estáveis, que agruparam 67,4% do total de UCEs. A Análise Fatorial de Correspondência (AFC), apresentada na Figura 1, indica as relações entre as classes analisadas e a caracterização dos sujeitos entrevistados.
a) Classe 1 - Liderança
Essa classe de discurso possui um conteúdo direcionado aos processos de controle do risco, próprio da liderança formal. Está relacionada aos sujeitos masculinos com formação em ciências exatas e aos empregados em regime administrativo de trabalho. Palavras siginificativas referentes a essa classe são: "segurança", "comunicação", "empresa", "manual", "informativo", "padrão", "reunião". Observamos aqui o discurso formal da organização, definido pelos processos de controle próprios das atribuições das lideranças formais.
b) Classe 2 - Riscos e Classe 3 - Perigos
Ambas as classes de discurso surgem no mesmo quadrante da AFC e são influenciadas pelos mesmos sujeitos, ou seja, sujeitos em regime de turno, executantes e com formação de segundo grau, em sua maioria. As classes estão próximas, devido a sua complementaridade. Palavras significativas referentes a essas classes são:
Classe 2 - "perigo", "risco", "potencial", "industria", "dano", "saúde".
Classe 3 - "temperatura", "umidade", "solvente", "gás", "pressão".
A denominação "Risco" para a Classe 2 é devida ao conteúdo explicativo em torno da conceituação do risco para os sujeitos pesquisados. A Classe 3 foi denominada "Perigos" devido ao conteúdo relacionado aos itens de perigo próprios aos trabalhos executados.
c) Classe 4 - Confiabilidade Humana
Essa classe trata das relações do ser humano com seu ambiente, e é característica do discurso feminino, com função executiva, nível superior e da área de ciências humanas. Palavras significativas referentes a essa classe são: "humano", "erro", "falha", "difícil", "consciência". Observamos aqui a caracterização de um discurso voltado ao papel do homem em situações potencialmente perigosas.
A Figura 2 sintetiza essa divisão em classes, indicando a proximidade entre elas e algumas das palavras significantes de classe. Notamos, por exemplo, que uma divisão simplificada em apenas duas classes reagruparia as Classes 1 e 4 ("Liderança" e "Confiabilidade Humana") e as Classes 2 e 3 ("Riscos" e "Perigos"). O primeiro conjunto representaria a "Perspectiva Mecanicista" e o segundo conjunto representaria a "Definição de Risco".
Esse primeiro grande arranjo discursivo mostra uma clivagem entre uma temática centrada nos sistemas complexos e uma outra centrada no elemento humano. Apesar dessa oposição, que estrutura parte da representação social do risco, percebemos que a perspectiva subjacente ao discurso dos sujeitos é mecanicista, na qual o humano participa enquanto elemento passível de erro/falha. Inferimos aqui uma ancoragem do tipo psicológico, que corresponde a crenças ou valores gerais que organizam as relações simbólicas com o outro (Doise, 1992). De fato, uma tal perspectiva do risco encontra-se disseminada na sociedade em geral e aparece aqui compartilhada pelo grupo estudado.
Além dessa clivagem, aparece uma terceira dimensão associada à caracterização de risco e perigo, representada pelas Classes 2 e 3. Aqui, a apropriação do objeto de representação (risco) pelo grupo reveste-se de aspectos específicos do trabalho desenvolvido dentro da indústria. Tem-se um processo de objetivação que é modulado por essa experiência vivida em uma atividade potencialmente perigosa.
Uma análise mais específica concentra-se na avaliação da Classe 2 - Riscos, que nos interessa mais de perto. Dois temas ou subclasses podem ser identificados aqui: "Riscos Pessoais" e "Controle".
Os "Riscos Pessoais" são aqueles que podem provocar danos às pessoas, caracterizando-se por algo que prejudica a integridade física e emocional. Ainda, o estresse aparece como decorrente dos riscos pessoais, em função da sobrecarga da atividade. Nessa subclasse, o risco é conceituado como a possibilidade de perda/ganho em decorrência do que se faz.
O risco das atividades é expresso em seus exemplos mais visíveis, relacionados com a condição humana de trabalhar com sistemas potencialmente perigosos. Identificamos o risco à saúde em suas extensões técnicas e a exposição de pessoas a situações que possam trazer danos à saúde, conforme se vê nas falas dos sujeitos:
risco para mim é toda e qualquer situação que possa trazer o comprometimento da vida de alguém, de um equipamento.
uma situação de perigo é uma situação de risco que você está exposto. Alguma situação, alguma coisa que pode prejudicar sua saúde, a saúde de alguém, e estar expondo pessoas.
risco eu acho que é uma coisa que em grande parte das atividades que você tem na sua vida é um risco, você corre certos riscos, mas pode ser um risco físico, o risco de você perder alguma coisa, ou você corre o risco de ganhar alguma coisa.
É recorrente nos discursos o risco como aspecto inerente à atividade humana, traduzido em perdas e ganhos provenientes do risco assumido.
Já na subclasse "Controle", aparece o perigo como sendo proporcional aos controles exercidos. Quanto mais adequados forem os controles, menores serão os riscos. Há uma necessidade própria do ser humano de ter o controle sobre suas atividades. Isso dá ao indivíduo, em trabalhos potencialmente perigosos, a sensação de segurança necessária para o exercício de suas atividades. Há uma necessidade de neutralizar o medo que aparece em qualquer momento do trabalho, caso contrário, seria impossível o exercício de suas atividades (Dejours, 1988). As falas dos sujeitos expõem essa necessidade de controle:
temos que aprender a gerenciar, aprender a minimizar os riscos, temos que aprender a tratar tudo com equilíbrio. Situação de perigo é quando você se expõe a um risco desnecessário, ou quando você se vê envolvido por fatores diversos numa situação que pode prejudicar sua saúde, prejudicar sua integridade física, prejudicar sua integridade emocional, mental.
isso seria uma situação de perigo, ou seja, no caso de risco mais alto, uma probabilidade mais alta de se ter um acidente e em que os controles não são adequados, então o risco é alto, então perigo é alto também.
Há uma tensão implícita quanto à perda dos controles e o desencadeamento de um evento acidental, porém é emergente a crença de que, sem os controles adequados, seria impossível o exercício das atividades diárias. Caso ocorra um evento qualquer (incidente ou acidente), ele é imputado à falta de percepção do risco e à utilização de controles inadequados.
Essa classe de discursos, que representa a porção diretamente relacionada a Risco, apresenta um elevado grau de convergência com a ideia de perigo. Há uma formação representacional, com clara dispersão da informação, e o conceito de risco não é apresentado em sua forma científica. Há momentos de aproximação maior com o conceito cientificamente elaborado, porém o que emerge é a elaboração do conceito a partir das experiências próprias do grupo pesquisado. Aparece o controle como resposta às situações de perigo, e este, ligado à capacidade de percepção do risco de forma individual.
Notamos aqui uma concepção de risco simplificada, despojada de seu conteúdo técnico-científico, e centrada nas ideias de "risco para mim" e de "controles e normas". Essa representação é construída, por um lado, a partir de ideias, opiniões, crenças e valores do grupo, que destacam os aspectos salientes dos itens de perigo (gás, pressão, temperatura) e de suas consequências (danos, saúde) e os associam ao risco; e de outro lado, a partir da assimilação do vivido a um quadro de conhecimentos previamente estabelecido, no caso a concepção mecanicista de risco, que congrega conceitos gerenciais (normas, procedimentos) e concepções sobre o humano enquanto um elemento de falha do sistema.
Estudo 2: Risco e representação na indústria química (Carvalho, 2007)
As entrevistas foram realizadas com 15 sujeitos, distribuídos entre gerentes e engenheiros de diferentes níveis (sete sujeitos) e empregados executantes e administrativos (oito sujeitos). A análise dessas entrevistas resultou em um conjunto de cinco classes de discurso estáveis, que agruparam 76% do total de UCEs.
A Figura 3, um dendograma indicando a organização hierárquica das classes, mostra a proporção de UCEs (de um total de 271) em cada uma das classes obtidas na análise automática, assim como algumas das palavras significativas de cada classe.
A Classe 1 foi denominada "Ação Humana", pois nela foram identificados temas e palavras nos discursos relacionados ao erro humano e sua influência em acidentes. São palavras significativas dessa classe: "humano", "falha", "fator humano", "erro". Essa classe associa o humano a um elemento do sistema mecanicista de abordagem do risco, indicando uma ancoragem psicológica (Doise, 1992) em categorias gerais de senso comum distribuidas na sociedade.
A Classe 2 foi denominada "Processos" e está relacionada à forma como as atividades são organizadas e realizadas. São palavras significativas dessa classe: "máquina", "hora", "prensa", "espoleta". Esta classe relaciona-se aos processos organizacionais existentes na empresa e assimilados pelos sujeitos.
A Classe 3 relaciona-se ao fluxo de informações de segurança dentro da empresa e, assim, foi chamada "Comunicação". São palavras significativas dessa classe: "informação", "reunião", "comunicação", "segurança". Esta classe indicada usos específicos da comunicação organizacional em empresas relacionadas a atividades potencialmente perigosas. Estas três primeiras classes resumem os conteúdos representacionais do grupo relativos ao paradigma mecanicista de gestão do risco.
A Classe 4 recebeu o nome de "Risco Químico", por conter discursos relacionados ao risco intrínseco à atividade de fabricação no setor químico/explosivos. São palavras significativas dessa classe: "manuseio", "produto", "química", "material". Já a última classe, Classe 5, foi denominada "Perigo e Risco", por conter os discursos característicos de conceituação de perigo e de risco. São palavras significativas dessa classe: "consequência", "risco", "perigo", "incêndio". Estas duas últimas classes apresentam os conteúdos representacionais elaborados pelo grupo dentro de sua prática social.
Em suma, pode-se perceber, a partir do dendograma da Figura 3, que as classes se agregam de modo a formar três subgrupos: um primeiro que agrupa as classes 1 e 2 (Ação Humana e Processos), um segundo grupo que consiste apenas da Classe 3 (Comunicação) e um último grupo unindo as classes 4 e 5 (Risco Químico e Perigo e Risco). Os dois primeiros agrupamentos contêm elementos de uma visão mais organizacional e mecanicista do risco, relacionando-se a erro humano, processos e comunicação, embora guardem alguns elementos da prática cotidiana dos indivíduos. O último agrupamento, relativo às classes 4 e 5, aproxima-se do conhecimento prático que os indivíduos possuem sobre o risco e da visão que eles desenvolvem sobre os riscos em um ambiente tido como "naturalmente perigoso". Nesse último agrupamento, são falas típicas dos sujeitos:
a partir do momento que a gente entra no prédio, o risco está em qualquer lugar, então, entrou na área de fabricação já gera um risco, mesmo você não manuseando o explosivo.
Trabalho em indústria química sempre tem seu risco, sem é um trabalho de risco por causa dos materiais perigosos. Sempre é perigoso trabalhar em indústria química, por qualquer produto que você manufature.
Uma situação de perigo é tudo o que pode causar algum dano às pessoas, aos funcionários, alguma coisa que pode machucar, que possa ferir ou até causar morte.
Quando eu estou na produção, fico exposto aos riscos da produção, como detonação, vazamento de ácido, incêndio.
Notam-se, no discurso, características de dispersão da informação (certa confusão entre risco e perigo, e associação do risco às suas consequências) e de focalização nos danos que advêm da atividade de produção química.
Nota-se, também, a confiança nos sistemas abstratos, caracterizados nos procedimentos, nos treinamentos e na comunicação, que permite que o medo seja superado e a atividade possa ser desenvolvida. Ao mesmo tempo, o risco (traduzido normalmente como perigo pelos sujeitos) está sempre muito presente.
Considerações finais
A temática central deste trabalho desenvolveu-se em torno da tensão entre uma visão técnica, própria de padrões organizacionais, e uma visão psicossocial do risco. Defendeu-se a ideia de uma construção social específica do risco, própria de grupos que trabalham em atividades classificadas como perigosas, estudada a partir de uma abordagem de representações sociais.
A proximidade com o risco mostra a singularidade dos sujeitos desta pesquisa em relação a outros estudos sobre o risco que se debruçam sobre as percepções da população em geral. Indivíduos que atuam em indústrias potencialmente perigosas vivenciam um risco mais presente e menos difuso do que outros grupos da população.
As representações do risco para esses sujeitos são extratos obtidos a partir de um exercício mental sobre algo que eles vivem cotidianamente e que, em alguns casos, efetivamente se materializa na forma de acidentes. Trata-se o "risco" como experiência cotidiana contrapondo-o às normas, procedimentos e padrões.
Em uma perspectiva inicial de confrontação entre sistemas peritos e os fatores psicossociais, observa-se no sentido do domínio da máquina e, por consequência, do controle. Entretanto, existem tensões entre a visão organizacional, definida a partir dos padrões e normas, e a visão construída nos arranjos sociais inerentes à atividade desenvolvida.
O risco é caracterizado a partir de uma construção pela familiaridade dos objetos. Essa construção permite uma identidade ao grupo - trabalham sob um certo tipo de risco - que opera como justificação para o exercício das atividades de risco.
Em uma análise conjunta dos casos apresentados, foram identificadas as seguintes caracterizações em relação aos riscos.
1- Tendência ao controle: observa-se uma necessidade de se ter "certeza" sobre toda atividade realizada. Certeza de que os que os riscos estejam subordinados à atuação conjunta de sistemas e pessoas.
2- Confiabilidade centrada no ser humano: o ser humano está no centro de todas as preocupações, e somente pessoas capacitadas podem realizar um trabalho sem riscos. Incidentes e acidentes são decorrentes de erros e falhas humanas.
3- Confiança em sistemas abstratos: a confiança de que os diversos sistemas, normas e procedimentos são imperativos para o controle do risco e sua domesticação.
Essas grandes crenças parecem constituir a estrutura básica da representação social do risco, para os grupos estudados.
O risco aparece como um conceito em mutação, cuja principal matiz é a busca do controle. Os sujeitos, em indústria potencialmente perigosa, reconhecem o risco a partir da experiência do dia a dia, e o conformam segundo sua visão de mundo. Os padrões e normas não são suficientes para lhes dar todas as respostas necessárias ao tratamento das diversas situações de perigo, e a busca de respostas consensuais é premente e presente na maioria das atividades do cotidiano.
Por fim, há a consciência de que os padrões e normas não são suficientes para a geração de um ambiente seguro. A relação social é a melhor resposta para a busca de uma ambiente de confiança, que se traduz em segurança a partir de relações mais estáveis.
A necessidade de conformar o mundo a uma cadeia de eventos familiares está presente em toda atividade humana, principalmente naquelas em que os potenciais de perigo são elevados. Esse processo conformacional proporciona à sociedade um convívio pacífico com um mundo cada vez mais perigoso e incerto.
Há uma pressão para se tratar os problemas derivados dos processos de industrialização como consequências inevitáveis e inerentes à necessidade de desenvolvimento da civilização. Essa pressão é acompanhada por um processo de "cientificação" dos problemas, procurando-se conformá-los a limites racionais. Por outro lado, a sociedade do risco, no sentido que lhe dá Beck (1992) é uma sociedade autocrítica, que produz e confronta suas referências sobre os perigos e riscos. Não é mais possível uma visão científica aceita de modo estático pela sociedade, pois o sujeito social procura ocupar seu espaço, e não mais aceita os preceitos cientificamente elaborados como dogmas a serem seguidos cegamente.
Referências
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Endereço para correspondência:
Edna Maria Querido de Oliveira Chamon
End.: Av. Cidade Jardim, 2700 - apto 14 B
CEP: 12233-002. São José dos Campos, SP
Email: edna.chamon@gmail.com
Enviado em Dezembro de 2010
Aceite em Março de 2011
Publicado em Julho de 2011
Este trabalho contou com o apoio do CNPq - Projeto Universal 470338/2008-3.