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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
On-line version ISSN 1413-6295
Cad. psicanal. vol.35 no.29 Rio de Jeneiro Dec. 2013
Artigos
A atualidade da psicanálise: do HIV à escuta pulsional*
Psychoanalysis' relevance: HIV listening through drive
Angela Bezerra Villela**
Resumo
O objetivo maior deste artigo é trazer à tona uma das mais recorrentes críticas feitas à psicanálise e tentar contestá-la. Um ponto específico, visto como referência negativa da teoria freudiana, diz respeito ao fato de que a escuta pela via do inconsciente, um de seus principais alicerces, não atenderia a determinadas demandas que são emergenciais. Por ser a velocidade uma das características contemporâneas mais contundentes, a temporalidade mais lenta exigida pela teoria, impediria a eficácia da mesma diante da urgência que certas situações clínicas demandam hoje em dia. Esse tipo de alegação cai por terra face ao conceito de pulsão, que subverte, totalmente, esse olhar equivocado sobre o legado de Freud.
Palavras-chaves: AIDS, morte, segregação, urgência, técnica.
Abstract
The main objective of this paper is to identify one of the most recurring criticisms about psychoanalysis and to try to contest it. One specific point, which is referred as a weakness in Freudian theory, sticks to the fact that the listening through the unconscious – one of the main pillars of the theory – would not meet certain urgent demands, typical of the contemporary world, where the acceleration of time is patent. Since speed is one of the prominent benchmarks of those times, the slowness required by the psychoanalytical practice would thus hinder its effectiveness. This kind of claim falls flat against the concept of drive, which subverts completely that equivocal perspective on Freud's legacy.
Key-words: Aids, death, segregation, urgency, technique.
Introdução
Esse trabalho vem de múltiplos lugares, como vêm as mulheres que foram ouvidas ao longo de vários anos, em suas dores e sofrimentos. Da Pavuna, de Xerém, da Vila, de Raiz da Serra. De trem, de ônibus, a pé, elas chegam ao hospital buscando o resultado de um simples exame de rotina ou de um teste de gravidez. Vêm saber se carregam dentro de si uma vida. Nesse exato ponto, são surpreendidas. Junto à resposta positiva de gravidez, deparam- se com outra ordem de positividade:
Amostra reagente:
HIV positivo
O chão escapa, o ar falta e os ruídos de uma morte anunciada se tornam pouco a pouco ensurdecedores. A cena tinge-se de vermelho. Uma estética que transita entre o horror e a mais absoluta negação se instala. Traição, contaminação, disseminação passam a ser as palavras de ordem, pois a maioria foi contaminada por parceiros na relação sexual. Ódio e revolta fazem contraponto com um estado de perplexidade onde o corpo escapa ao controle e mostra sua própria vida.
Foi esse o quadro que um grupo de psicanalistas encontrou no início dos anos 1990, em um trabalho voluntário de pesquisa, quando a AIDS começou a sair de um campo específico ligado aos homossexuais e se disseminou, principalmente, entre mulheres. Na época, não havia a sofisticação dos recursos medicamentosos que existem hoje. Vidas eram ceifadas velozmente e o pânico da contaminação grassava. Os corredores do Hospital Universitário Gaffrée Guinle eram lotados de figuras esquálidas, assombradas pela morte iminente. A precariedade de conhecimento e de instrumentos mais profundos para lidar com a doença só aumentava o pavor. Médicos e cientistas tateavam na escuridão do que o senso comum associava, com frequência, a um tipo de "peste", vista como castigo, punição, face à permissividade sexual vigente.
Foi nesse terreno minado que o trabalho com mulheres que tinham acabado de receber o diagnóstico de soro positividade se desenvolveu. Em 1993 não havia um setting convencional e as pacientes eram ouvidas nos próprios corredores, posteriormente, numa salinha da 10ª enfermaria. O trabalho foi ganhando corpo e a demanda aumentando. Vale dizer que depois de algum tempo, uma pesquisa feita por psiquiatras do hospital detectou que as mulheres que faziam parte do grupo de atendimento psicoterápico tiveram uma significativa melhora quanto a sua imunidade. O fato de poderem compartilhar as inúmeras aflições porque passavam teve um efeito surpreendente nos exames de carga viral e CD4 (índices que mostram a reação progressiva e a resposta positiva do organismo diante do tratamento).
Trauma e despossessão corporal
A notícia do HIV é uma experiência convulsionária. O lugar do impacto – que é ao mesmo tempo lugar de nada e de excesso – opera mudanças estruturais de grande porte. O chamamento da morte produz uma espécie de despossessão corporal e instala uma anatomia fantasmagórica. Esse corpo, agora atravessado por um vírus e por agentes químicos de alto teor, vira um corpo- -velocidade onde metamorfoses aceleradas estabelecem outra cartografia. Um excesso de concretude demarca um novo modo de existência. O colapso temporal que altera o curso da história e que provém do que Nietzsche (1992) chamou de "intempestivo, inatual", transforma o tempo cronológico, sucessivo, em tempo crônico. A revelação que atinge o portador cristaliza a sua existência numa nova categoria: a de aidético.
O material, portanto, que se apresenta para a clínica é profundamente rico em questões. A que sujeito pertence esse corpo estranho? As transformações súbitas que nele ocorrem, produzem deslocamentos repentinos e uma nova estética se instala a partir dos desdobramentos da ação dos medicamentos. Várias pacientes são surpreendidas por um fenômeno chamado "lipodistrofia", que consiste no enxugamento da gordura dos membros inferiores e superiores, enquanto que, paralelamente, aumenta o volume do abdômen e dos ombros. Seus corpos são assaltados por uma espécie de androginia que descaracteriza as formas anteriormente femininas. Tal fenômeno não diz respeito a uma simbolização do tipo histérica, a um corpo função do inconsciente, mas sim de um corpo moldado quimicamente.
Que organizações psíquicas se originam a partir de então? Pelo caráter agudo de suas questões, a AIDS parece ter colocado em cheque não só os dispositivos psicanalíticos, mas, também, a sociedade que teve que se defrontar com seus próprios fantasmas. A relação entre AIDS e sexualidade, por demais complexa, denunciou a precariedade das teorias psicológicas, desmistificou a idéia de suficiência do saber médico e deixou a sociedade cara a cara com as seus preconceitos, perversões e inquietações mais profundos, como em relação à morte e à diferença. Num tempo em que as instituições médicas não raro se apresentam como verdadeiros instrumentos de controle social ou gigantescos aparelhos de fazer desaparecer a dor e a morte, pode-se avaliar o caráter disruptivo da AIDS, que quebrou o curso normal das coisas, questionou as bases morais da sociedade e ameaçou a integridade dos seus membros. Seu espaço cada vez mais tecnificado não elimina o que ela traz com tanto vigor, que é a difícil relação do homem com a sua finitude. A morte do outro é o anúncio e a prefiguração da morte de si, ameaça da morte do nós. A reação, portanto, é a de tentativa de imunização e distanciamento máximo dessa força desagregadora.
Segregação e morte
Desde a Idade Média, muito propensa à criação de hierarquias e à classificação de coisas, os estereótipos fazem parte do contexto social. Eles constituem o que diz respeito à diferença que ameaça a ordem e o controle. O Outro é definido como a antítese do eu e é sob esse ponto de vista que as minorias são suscetíveis à estereotipagem. Esse é um modo de dar sentido a um universo caótico, desordenado. Ao se dar uma localização específica à doença, à raça e à sexualidade, automaticamente se produz uma preservação da organização humana face à fragilidade que lhe é característica. Qualquer sistema de classificação que se defronta com elementos que não correspondem às definições por ele pré-estabelecidas, fica ameaçado. Tudo o que representa o insólito, o estranho, o anormal, o desestruturado e fora de controle é germe de inquietação e terror e se converte em fonte de perigo que deve ser afastada.
O fenômeno segregativo em relação à AIDS ocorre com mais intensidade, trazendo de forma violenta a questão que caracteriza a sociedade atual, ou seja, a tentativa permanente de velar a morte e de apagar as diferenças. Dessa forma, é compreensível o horror trazido por ela. Em interessante artigo "A segregação, uma questão para o analista", a psicanalista Caterina Koltai (1998, p.106) aponta o atual recrudescimento da segregação e do racismo como sintoma social e relaciona o inconsciente freudiano com as transformações históricas e sociais contemporâneas, pensando a complexa relação do homem com seu semelhante. Na sua difícil convivência com outras formas, é no estrangeiro que o homem deposita o seu desconforto face à diferença. Não há sociedade sem bodes expiatórios, lugar de restos e de dejetos.
Quanto à morte, Freud (1976) destaca no seu famoso texto O estranho (Das Unheimliche) a impossibilidade de evolução do homem quando a questão diz respeito à sua compreensão e proximidade. No início de abril de 1915, ele leu numa reunião do clube judaico de Viena a que pertencia, o ensaio "Nossa atitude para com a morte", que fazia parte do artigo Reflexões para os tempos de guerra e morte (FREUD, 1974). Freud encontrava-se profundamente atingido pelo clima de horror que pairava na Europa no começo do século – semelhante em vários aspectos ao que vivemos hoje –, e demarca que o método psicanalítico de investigação é o único que atinge as profundezas, colocando como questão, qual é a atitude do nosso inconsciente para com o problema da morte. Freud vai trabalhar essa e outras questões ao longo de vários artigos, dizendo que na maioria das vezes, ele reage exatamente como o homem primevo, que não acreditava em sua própria morte e comportava-se como se fosse imortal. Essa negação retiraria do homem a possibilidade de lidar com a sua finitude e de dar à morte um sentido próprio e singular. Dessa forma, tal experiência jamais poderia aparecer como um devir, como afirmação da própria vida. Ela surge sempre como a vivência de um horror progressivo e antecipatório.
Uma prova disso é o relato revestido de uma ingenuidade quase cômica de M., que após ser comunicada pelos médicos a respeito da AIDS, o que significava, à época, ter pouco tempo de vida, foi para sua casinha num bairro pobre da periferia do Rio, entregou suas filhas para familiares e amigos e se deitou para "aguardar o pior". Passava dia e entrava a noite, a única coisa que fazia sentido era tomar um comprimido atrás do outro para não mais acordar e ser levada pela morte. Após vários dias de espera, perguntou-se "que morte era essa que nunca chegava?". Cansada de esperar, resolveu parar de dormir, levantar e viver.
Outra questão é relativa à negação e diz respeito à segregação subjetiva. Por ser sexualmente transmissível, a AIDS torna público o que antes era da ordem do íntimo, daquilo que não pode fazer parte do campo das grandes revelações, pois isso implicaria em se deparar com a vergonha e o preconceito. Dessa forma, é como se desvelasse de forma abrupta o que era sigiloso. Isso acarreta, na maioria das vezes, um esforço sobre-humano de produção de disfarces e construções ágeis de despistamento. É como se houvesse um crime e o cadáver não pudesse ser descoberto. Esse trabalho é feito de forma tão intensa e violenta que "contamina" o próprio portador, tanto que um dos mecanismos defensivos mais sólidos com que se depara o analista é a recusa (Verleugnung). A doença é segregada no espaço subjetivo para que o sujeito não se encontre com aquilo que o despedaça. Por conta disso, inclusive, o sentimento de solidão é sentido de forma desesperadora.
Tempo e desafios teóricos
Duas indagações fundamentais atravessam este trabalho:
• Existiria um campo teórico construído capaz de possibilitar uma discussão em torno dessas questões?
• Trabalhar com o tema implicaria em alguma especificidade?
Uma das mais contundentes críticas feitas à psicanálise diz respeito a sua inadequação face às novas demandas, por ela trabalhar com uma temporalidade que supostamente não tem como dar conta da urgência de algumas situações que se apresentam, atualmente, na clínica. Isto porque tais demandas, como as encontradas em pacientes com AIDS e adicção, situam-se num campo muitas vezes limítrofe, exigindo, desse modo, uma intervenção mais imediata e menos ortodoxa por parte do profissional. Pelo fato de lidar com a atemporalidade do inconsciente, que diz respeito a um tempo não-cronológico, a psicanálise não seria um instrumento eficaz para atender esses casos que exigem uma velocidade de atuação.
Em efeito, a objetividade na prática psicanalítica pertence a uma ordem totalmente diferente daquela que provém de certos saberes. Ela não se preocupa com a finalidade, mas sim com o modo particular de como o fato se inscreve na história do sujeito. Não privilegia a exclusão ou a eliminação dos sintomas, pelo contrário, é através da sua inclusão que ela segue o fio que os liga entre si. Mas e o tempo, perguntam alguns? E a urgência, questionam outros? Estaria a psicanálise fadada a ser discriminada como uma teoria fora de seu tempo?
Estranho oráculo contemporâneo este, que deixaria Freud, com certeza, indignado, já que uma das suas maiores preocupações foi a de criar uma teoria conectada com os acontecimentos de seu tempo. Uma das provas mais vivas disso é que foi a partir de um fenômeno típico de sua época – a histeria – que ele montou os alicerces da psicanálise e foi, também, a partir da observação dos fenômenos coletivos que caracterizavam o mundo naquele período que ele escreveu os grandes textos culturais de sua obra. Assim sendo, qual seria a escuta da psicanálise para a crítica de que não é um instrumento eficaz para lidar com a AIDS e outros sintomas emergenciais? Estaria ela, também, num ponto limite?
Talvez possamos começar perguntando: de que psicanálise falam as pessoas? Mais acima, foi utilizada a palavra "categoria" para designar os portadores de HIV. Talvez possamos retomá-la aqui de outra forma, não pejorativa, para diferenciar determinadas linhas conceituais que têm possibilidades distintas de abordagem e de escuta. Para ficar num exemplo, podemos dizer que uma coisa é a escuta que segue o viés da estrutura – que se destaca pelo remetimento a um determinado lugar –, a outra é a via pulsional, atraída pela multiplicidade, pelos fluxos e pelo indeterminado. Nesta última perspectiva, nada está dado a priori e a estética se faz pelos entrelaçamentos pulsionais.
Em O ego e o id (1976) e em Além do princípio do prazer (1976), Freud demonstrou que temos forças antagônicas que atuam simultaneamente e que dizem respeito à vida e à morte. A essas forças ele deu o nome de pulsões, que se diferenciam da noção tradicional de instinto por demarcarem a distinção entre o anímico e o biológico, entre o homem e a natureza. Elas são fusionadas e estão presentes o tempo todo, ora se movimentando conjuntivamente, no sentido da auto conservação, ora disruptivamente, no sentido da destruição. São forças que interagem, como numa mescla e que assumem formas expressivas.
Qual a validade dessa descoberta freudiana na prática clínica e na escuta dos pacientes soropositivos, que é o que aqui nos interessa? Em artigo chamado Ferenczi: A 1ª teoria pulsional, Chaim Katz destaca o mecanismo de introjeção, que em Ferenczi é diferente do registro representacional freudiano, como uma possibilidade de acompanhar esses trilhamentos.
A teoria das pulsões passa por um registro próprio, que se pode delimitar muito bem na obra de Ferenczi. E diversamente de Freud, não depende diretamente do corpo fisiológico nem da diferença anatômica ou psíquica entre os sexos. Não se deve submeter a uma ordem discursiva prévia; pois ao contrário, esta Alteridade só se dirá produzida pela singularidade pulsional que postula uma massa de afetos, através dos quais se fará a experiência da introjeção, que os organizará enquanto diferenças de força e intensidade. Tal experiência pulsional só pode ser parcial e fragmentária na medida em que os objetos que ali se produzem se fazem através de um processo que não é estruturador. Por isso os "objetos pulsionais" têm uma grande labilidade, deslocando-se permanentemente (KATZ, 1995, p. 115-116).
Ao enfatizar a labilidade e a possibilidade de outro tipo de organização psíquica que se faz pela introjeção da massa de afetos atuante postulada por Ferenczi, Katz está apontando duas coisas que dizem respeito à relação espaço/ tempo e que indicam o quanto a teoria das pulsões, em Ferenczi, pode ter uma poderosa eficácia clínica. Ou seja:
1º. Para outro tipo de abordagem que não diz respeito a um lugar único, fixo, mas sim a um permanente jogo de forças que se faz no enquanto. A partir dessa perspectiva, não se trata mais de se ater às questões edípicas, por exemplo, que marcam o sujeito e que demandam anos de análise, mas sim de criar condições para que, na transferência, essa dinâmica permanentemente inorganizada de vida e morte se estabeleça.
2º. Cai por terra a idéia de que a psicanálise, com o conceito de atemporalidade do inconsciente, estaria fora do tempo da urgência, pois não se trata de levar o sujeito às origens de sua história e sim de ouvi-lo no "durante", na instantaneidade das imbricações simultâneas da sua dualidade pulsional. No tempo do "enquanto" – que inclui todas as temporalidades possíveis, inclusive as regressivas e progressivas – esses trilhamentos vão pouco a pouco produzindo um corpo que não diz respeito ao fisiológico, mas ao erógeno.
Transferência e contaminação
Todo esse embate trágico ocorre no que se designa como espaço transferencial, que é um instrumento peculiar da psicanálise. Cabe aqui destacar que nele se incluem as pulsões não só do paciente, mas também as do analista que se vê, dessa forma, num lugar que, embora assimétrico, está longe de uma neutralidade asséptica. No caso específico da AIDS, essa modalidade de trabalho produz muitas vezes estranhos efeitos. É interessante assinalar o espanto de alguns analistas ao saberem que um colega trabalha com esta temática. Seja pelas fantasias de contágio, seja pela castração, transferências se estabelecem e a estranheza pela disponibilidade se faz presente. O inconsciente, a sexualidade e a própria transferência – três conceitos básicos da psicanálise – surgem interligados, pois as resistências que atravessam o campo transferencial também dizem respeito à economia psíquica do analista. A questão da contaminação perpassa o território fantasmático como um todo.
Esse discurso da contaminação captado pela escuta na clínica é permeado quase que o tempo todo pela experiência das situações de risco, que parecem estranhos atratores acenando e convocando para lugares de perigo e de excitação, e que evidenciam o que Freud (1976) denunciou como uma tendência que estaria para-além do princípio de prazer e que seria constitutivo do humano. Ao enunciar o conceito de pulsão de morte e dar ao homem a sua dimensão trágica, Freud, como grande pensador que era, mostra que estamos permanentemente à mercê das intensidades que nos habitam e que não há como ter um controle racional sobre o destino delas. A estranha aliança entre prazer e morte pela multiplicidade da pulsão, traduz a realidade caótica das forças dispersas que nos regem.
Pulsão de morte e técnica analítica
Poucos autores foram tão precisos quanto a essa presença da pulsão de morte como Bataille (1988), que em seu livro O erotismo, ilustra o que estamos tentando demarcar.
A atividade erótica não tem sempre, abertamente, esse aspecto nefasto, não é sempre essa fissura. Mas, profunda, secretamente, essa fissura, específica da sensualidade humana é a mola do prazer. Aquilo que na apreensão da morte nos tira o fôlego é o mesmo que, de qualquer modo, no momento supremo, nos corta a respiração (BATAILLE, 1988, p. 91).
O que esse autor aponta, com extrema precisão, é que no rastro do homem tem a morte e que no rastro da morte tem o homem. Uma intervenção nesse circuito é muito difícil de ser feita, inclusive por nós analistas, já que dependendo da intensidade em vigor, o pior pode vir a ser a melhor escolha. Muitas vezes, o máximo que um analista pode, nessas situações, é acompanhar e testemunhar os trilhamentos e tentar inventar junto com o paciente outros destinos, sem querer excluir o risco e a morte. Pelo contrário, o trágico é o solo deste trilhamento. É no percurso dele que a Alteridade se faz.
Tal abertura, por essa inclusão do trágico e essa diferenciação de outras modalidades terapêuticas, torna inquestionável a atualidade da psicanálise. Assim podemos dizer, que ela se coloca como uma teoria que pode dar um sentido aos apelos e aos conflitos que surgem no cerne da sociedade contemporânea, dita depressiva e que hoje busca saídas e respostas no modelo culturalista ou, então, "na hipervalorizarão da eficácia dos psicofármacos", como diz Elizabeth Roudinesco (2000).
Não se trata, aqui, de um libelo a favor do legado de Freud, mas sim de tentar pensar se a psicanálise está realmente tão descontextualizada. Se, como teoria, ela não tem a sutileza pedida pelos tempos atuais, plenos de dispositivos que determinam um modelo muito mais de exclusão do que de inclusão da morte. Tempo de indústrias milagrosas, onde o sujeito não tem espaço para viver a sua própria morte, seja em que nível for. Talvez seja através do aproveitamento das diferentes temporalidades, dos ritmos singularizantes que um processo analítico produz, que um sujeito pode organizar sua vida de outro modo e se libertar de um sistema homogeneizador e por consequência, opressor e, dessa forma, encontrar as vias de sua expressividade, seja para afirmar sua vida, seja para dizer sua morte para um outro que o acolhe. Pois, mesmo com a evolução da ciência, que através de medicamentos menos agressivos e mais eficazes tornou a AIDS uma doença praticamente crônica, os fantasmas que a rondam permanecem.
Tanto no trabalho feito em grupo com mulheres grávidas no Gaffrée Guinle, como nas inúmeras situações limítrofes que se apresentam na clínica, é visível o que torna alguém capaz de enfrentar a morte e permanecer vivo.
Nesse embate fusional das pulsões, o eu é incessantemente reinventado, composto e recomposto, multiplicado e reduplicado, revelando a potencialidade funcional e disfuncional das partes que nos habitam. A psicanálise ajuda a esclarecer os limites entre essas partes, num trabalho permanente de desconstrução e reconstrução. É fundamental levar em consideração o caráter disruptivo das forças mobilizadas face à possibilidade de transbordamento daquilo que é silencioso, que revela o fracasso da simbolização, aquilo que é indizível e que fica distante da sublimação. É no meio do que há de mais sombrio e sinistro que o analista deve criar um espaço potencial, um lugar, segundo Winnicott (1975), minimamente favorável para que a vida se apresente como opção mais forte que o aniquilamento.
Nesse universo de pluralizações de modo de vida, um conjunto de práticas tem que ser repensado. Os sintomas que penetram a vida contemporânea oferecem múltiplas alternativas teóricas ao invés de receitas fixas de ação. A elasticidade da técnica, bem como o manejo transferencial, são conceitos caros a Ferenczi e extremamente úteis na escuta das patologias que provêm da cultura de risco em que vivemos. Subversões como estas são bem vindas e podem trazer novos ares à teoria psicanalítica. Julia Kristeva (2002) menciona o "descongelamento das pulsões". Que tal encerrarmos com uma proposição, a de um "descongelamento conceitual" em prol de novas perspectivas em nossas clínicas?
Referências
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Endereço para correspondência:
Angela Bezerra Villela
e-mail: angelabv17@gmail.com
Tramitação: Recebido em 21/08/2013
Aprovado em 10/10/2013
* Este trabalho é fruto de uma longa jornada, que se desdobrou em pesquisa feita com pacientes soropositivos no Hospital Universitário Gaffrée Guinle durante quinze anos
** Psicanalista, associada ao fórum/Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro, ex-membro titular/Formação Freudiana (até 2010), onde exerceu as funções de coordenadora clínica e de formação, participou como supervisora da extinta ONG Gestar, atual Rede Positiva, que oferece suporte psicológico e assistencial a mulheres soropositivas, autora do blog prosafreudiana.blogspot.com.br.