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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

On-line version ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.37 no.33 Rio de Jeneiro Dec. 2015

 

ARTIGOS

 

A metapsicologia da autopunição: revisitando os 'criminosos por sentimento de culpa'

 

The metapsychology of self-punishment: revisiting the 'criminals from a sense of guilt'

 

 

Carlos Alberto Ribeiro Costa*

Universidade Federal Fluminense - UFF - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo visa apreender, desde a metodologia teórico-clínica, alguns fatores metapsicológicos - parâmetros referentes à economia, dinâmica e topologia do aparelho psíquico - envolvidos nos fenômenos de 'autopunição'. De modo a levar a cabo tal empresa, propõe-se, aqui, o retorno ao tópico freudiano dos 'criminosos por sentimento de culpa', ponto de interface entre psicanálise e criminologia. Se, classicamente, a autopunição nesses 'crimes' é pensada a partir do Édipo, esse texto prioriza sua releitura desde a segunda tópica freudiana, dos conceitos de supereu e pulsão de morte, bem como de construções lacanianas. Por fim, explicitam-se duas vias alternativas ao paradigma dos "criminosos por sentimento de culpa".

Palavras-chave: Autopunição. Sentimento de culpa. Crime.


ABSTRACT

This article aims to comprise, from theoretical-clinical methodology, some metapsychological factors - parameters concerning to economy, dynamics and topology of the psychic apparatus - involved in 'self-punishment's' phenomena. In order to meet that goal, it is proposed, here, to return to the matter of Freudian's 'criminals from a sense of guilt', interface point between psychoanalysis and criminology. If, classically, self-punishment in these 'crimes' is considered through Oedipus, this text prioritizes its reinterpretation according to Freud's second topic, the concepts of superego and the death drive, as well as Lacanian notions. Finally, it will be explicit, two alternative routes to the paradigm of "criminals from a sense of guilt."

Keywords: Self-punishment. Sense of guilt. Crime.


 

 

Introdução

EmPsicopatologia da vida cotidiana (2006/1901), Freud demonstrara, através de vários exemplos, como a determinação inconsciente dos fenômenos humanos afetava não apenas a esfera do pensamento, mas que se desdobrava, também, na esfera motora, mormente sob a forma de lapsos e atos "equivocados". A hipótese freudiana é a de que esses fenômenos, supostos desacertos, "seguem vias previsíveis, obedecem a leis" (ibidem , p. 19); por "deslocamentos", "condensações" e "distorções", o pensamento inconsciente se impõe ao sujeito, reverberando através de suas ações. Havia, logo, uma analogia entre tais acontecimentos e o sonho, desde a qual "a aparência de uma função incorreta explica-se pela peculiar interferência mútua entre duas ou mais funções corretas" (ibidem , p. 271). Ainda naquele livro, ao tratar desses "lapsos", Freud retoma em nota de rodapé, o tema discutido um ano antes em seu A psicanálise a determinação dos fatos nos processos jurídicos (2006/1906): a iniciativa de Jung, Wertheimer e Klein - estes dois últimos discípulos do jurista Hans Gross - de utilizar a determinação inconsciente para forçar, nos tribunais, a auto-traição do criminoso e a formação da prova.

Freud, a esse respeito, era reticente; não acreditava que "alguém cometesse um lapso da fala numa audiência com sua majestade, numa declaração de amor feita com sinceridade ou ao defender sua honra diante de um júri" (ibidem, p. 101). Se a descrença freudiana em torno da auto-traição nos tribunais malograva as expectativas dos juristas, outro tópico sobre atos inconscientes viria florescer nos vindouros debates entre a psicanálise e criminologia: os Criminosos em consequência do sentimento de culpa, discussão fartamente explorada pelos psicanalistas da época.

Se, como diz Tendlarz, muito da chegada da psicanálise na França se dera desde discussões médico-legais (TENDLARZ, 1999, p. 111), não será por acaso que Lacan faz de um caso de psicose de autopunição, seu "caso Aimeé", sua via de acesso à psicanálise (LACAN, 1998/1966, p. 69). De certo modo, o tópico dos criminosos por sentimento de culpa consolidou um modo de inserção no debate entre psicanálise e criminologia, rendendo inúmeros livros, artigos e comunicações - num paradigma cujas reverberações ressonam até hoje. Destarte, dada a relevância da discussão sobre os "criminosos por sentimento de culpa", este texto revisita esse tema freudiano, a fim de apreender suas contribuições teórico-clínicas ao entendimento da autopunição, sobretudo na neurose, assim como entender algumas das aberturas e limites que esse paradigma traz para as demandas atuais apresentadas aos psicanalistas que trabalham na interface com o campo criminológico.

 

Autopunição e determinação inconsciente dos atos

Ao contrário da atenção dada por Freud ao experimento psico-jurídico de "auto-traição" capitaneado pelos discípulos de Hans Gross, a discussão sobre outras ações do sujeito para consigo, inconscientemente determinadas, passou a ganhar ênfase nas edições posteriores da Psicopatologia: em 1907, 1912, 1917, 1919 e 1920, esta parte de seu livro recebera numerosos adendos, exemplos e citações. Tal prolixidade faz-se inteligível por uma articulação com outro tipo de tropeços, as ações em que o sujeito, através da incidência inconsciente, coloca-se em circunstâncias que lhe causam prejuízos mais severos, como é o caso das autopunições e dos "acidentes" e ferimentos inconscientemente auto-infligidos. Debruçando-se sobre as formas mais extremas deste se fazer punir, Freud evoca "casos mais graves de psiconeuroses" nos quais "os ferimentos auto-inflingidos ocasionalmente aparecem como sintomas patológicos", sintomas que podem pressagiar "o suicídio como possível desfecho para o conflito psíquico" (ibidem, p. 181). Neste ponto, destacamos uma alteração no texto freudiano ao longo de sucessivas edições.

Na primeira edição do livro, ao tecer considerações sobre a auto-punição inconsciente, Freud escreve: "uma dia provarei que muitos ferimentos aparentemente acidentais sofridos por esses doentes são, na realidade, lesões auto-inflingidas" (ibidem, p. 182). Ele prossegue relatando que nesses casos, há uma tendência à autopunição, fruto do conflito inconsciente, que está "constantemente à espreita e comumente se expressa na auto-censura ou contribui para a formação do sintoma, tira hábil partido de uma situação externa oferecida pelo acaso, ou contribui para sua criação até que se dê o efeito lesivo desejado" (ibidem, p. 182). Numa edição tardia do mesmo livro, vinte e três anos mais tarde, Freud alterará drasticamente o sentido desta oração: onde se lia "Um dia provarei...", na versão de 1901, ele passará a afirmar "Sei agora, e posso provar com exemplos convincentes, que muitos ferimentos aparentemente acidentais sofridos por estes doentes são, na realidade, lesões auto-inflingidas". Mas, cabe aqui a questão: que razões teria Freud para, neste ínterim, passar da expectativa de prova para a pujante afirmativa destas autopunições? Segundo cogitamos, a pista para se entender este movimento encontra-se antevista pelos próprios prosseguimentos a este trecho originais de 1901:

Quem acreditar na ocorrência de ferimentos semi-intencionais auto-inflingidos (...) também estará disposto a supor que, além do suicídio intencional consciente, existe uma autodestruição semi-intencional (com uma intenção inconsciente) capaz de explorar habilmente uma ameaça à vida e mascará-la como um acidente casual. Não há por que supor que esta autodestruição seja rara. É que a tendência à autodestruição está presente em certa medida num número maior de pessoas do que aquelas em que chega a ser posta em prática; os ferimentos auto-inflingidos são, em geral, um compromisso entre essa pulsão e as forças que se opõem a ela (ibidem, p. 183).

Nossa hipótese é a de que a "autodestruição" - um dos nomes freudianos para a pulsão de morte - e sua relação com uma instância que vigia o eu e o pune - o supereu - é aquilo que, de 1901 a 1924, promoverá a mudança na posição freudiana no que diz respeito às provas por ele reunidas acerca dos atos inconscientes de autopunição.

 

Do conflito inconsciente ao tratamento da pulsão de morte

Entre a emergência da auto-punição neste momento inicial da obra de Freud e a virada que caracteriza o surgimento da segunda tópica freudiana, emerge um texto crucial para que se possam apreender manifestações desses atos inconscientes de autopunição: em Os vários tipos de caráter descobertos no trabalho analítico (FREUD 2006/1916), Freud expôs, pela primeira vez, o tema dos Criminosos em consequência do sentimento de culpa . Ao erigir esse texto, Freud expõe uma situação clínica intrigante: muitos de seus pacientes, alguns inclusive tomados como membros distintos da sociedade, não apenas passam a confessar-lhe transgressões realizadas em sua infância e puberdade - furtos, fraudes, etc. - mas, sim, a reiterá-los através de ações durante o tratamento psicanalítico. Tais ações são impetradas pelos sujeitos justamente por serem "proibidas e por sua execução acarretar, para seu autor, um alívio mental" (ibidem, p. 347).

Ocorre, nestes casos, que o sentimento de culpa, antes de ser efeito da ação moralmente censurável era, ao contrário, sua causa. Vítimas de uma poderosa culpa, do qual não conheciam a origem, estes pacientes intentavam, através da ação "proibida", ligar este sentimento a algo tangível. Confrontado a esta desconcertante conjuntura, Freud formula duas questões: "Qual a origem deste obscuro sentimento de culpa antes da ação? É provável que esta espécie de causação desempenhe papel considerável no crime humano?" (ibidem, p. 347). Neste texto de 1916, a posição de Freud é a de tomar este sentimento de culpa como tensão advinda do complexo de Édipo: o sujeito punia-se por seus desejos: incestuosos junto à mãe e assassinos em relação ao pai.

A interpretação das autopunições como relativas à tensão entre recalcado e censura, não obstante, ganha modalizações no decorrer da obra de Freud, ou, talvez, mesmo uma espécie de reversão. De um lado, impunha-se às considerações freudianas a descoberta de um agente crítico que observava, julgava e punia o eu - o supereu, instância cuja crueldade levava os imperativos morais ao paradoxo de aniquilarem o sujeito -; de outro, fenômenos tais como a compulsão à repetição de um mau destino, a reação terapêutica negativa e os sonhos traumáticos desvelavam a pulsão de morte como modalidade além do princípio do prazer. Desde esta reversão, as auto-punições podem ser concebidas não apenas como compromisso entre desejo e censura, mas desde o que Freud chama de "pura cultura da pulsão de morte" (FREUD, 2006/1923, p. 66).

Na neurose obsessiva e na melancolia, onde as auto-recriminações são mais flagrantes, o processo de perda de um objeto e de luto revela que certos traços deste objeto são adotados pelo eu, o que possibilita que a instância crítica possa também investi-lo. Observa-se, pois, uma dinâmica da formação do eu desde aquilo que se deposita das relações entre a libido e o mundo externo, dialética retomada anos mais tarde em Luto e melancolia: "O ego deseja incorporar a si esse objeto, e, em conformidade com a fase oral ou canibalista do desenvolvimento libidinal em que se acha, deseja fazer isso devorando-o (FREUD, 2006/1917, p. 255). Em 1917, Freud sintetiza este processo através do célebre dizer de que, no luto, "a sombra do objeto cai sobre o eu" (ibidem, p. 254). Tal operação autoriza que o ego venha a ser objeto torturado e martirizado pela instância crítica: "A auto-tortura na melancolia, sem dúvida agradável, significa, do mesmo modo que o fenômeno correspondente na neurose obsessiva, uma satisfação das tendências do sadismo e do ódio relacionadas ao objeto, que retornaram ao próprio eu" (ibidem, p. 257).

Em 1923, no texto O ego e o id, Freud traduzirá esta dialética constitutiva do eu desde sua nova tópica do aparelho psíquico: o eu se formaria desde os precipitados das relações entre o isso - o "caldeirão das pulsões" - e o mundo externo. No que tange ao surgimento do agente crítico, o supereu Freud pontua, porém, uma particularidade:

O superego, contudo, não é simplesmente um resíduo das primitivas escolhas objetais do id; ele também representa uma formação reativa enérgica contra essas escolhas. A sua relação com o ego não se exaure com o preceito: 'Você deveria ser assim (como o seu pai)'. Ela também compreende a proibição: 'Você não pode ser assim (como o seu pai), isto é, você não pode fazer tudo o que ele faz; certas coisas são prerrogativas dele' (FREUD, 2006/1923, p. 46).

Desenha-se, assim, para o sujeito, um paradoxo, um verdadeiro fio da navalha ético: "ser como o pai" e destroná-lo incorre em culpa e martírio por parte do supereu; "não ser" como o pai, distanciar-se de sua matriz, incorre em estar aquém deste e, portanto, passível de humilhação pela crítica. Topicamente, então, o superego, revela-se, por um lado, proveniente da intervenção da autoridade externa, e, por outro, ligado à caldeira pulsional que é o isso, em seu caráter eruptivo, inconsciente e reativo a autoridade. Isto assim se daria posto que, segundo Freud, a criança que, por intermédio da autoridade é forçada a abrir mão de certas satisfações pulsionais, erige, contra esta autoridade, uma grande soma de agressividade. O medo da perda do amor - e também da violência externa - leva o infante a renunciar também a satisfação de seus impulsos agressivos. Posteriormente, quando incorpora a autoridade através de uma identificação, o supereu, a instância crítica, apodera-se desta agressividade que exigirá escoamento.

Ora, uma vez que, para Freud, a civilização implica na renúncia progressiva à realização desta violência (e como a pulsão urge em buscar satisfação) resta à agressividade voltar-se ao eu do sujeito - objeto, agora, não apenas do isso, mas também do supereu, face "degradada" do pai:

Através da identificação, [o sujeito] incorpora a si a autoridade inatacável. Esta transforma-se então em seu superego, entrando na posse de toda a agressividade que a criança gostaria de exercer contra ele. O ego da criança tem de contentar-se com o papel infeliz da autoridade - o pai - que foi assim degradada. (...) a severidade original do superego não representa (...) a severidade que dele [do objeto] se experimentou ou que se lhe atribui. Representa, antes, nossa própria agressividade para com ele (FREUD, 2006/1923, p. 133).

Lacan, para quem esta peculiaridade clínica implicava a distinção conceitual entre ideal do eu e supereu, ao longo de seu ensino, sublinhara este caráter caprichoso da instância crítica: "o supereu tem relação com a lei, e ao mesmo tempo é uma lei insensata, que chega até ser desconhecimento da lei... o supereu é a um só tempo a lei e sua destruição" (LACAN 1996/1953-4, p. 123). Como vimos, todavia, mesmo em Freud - para quem certa concomitância entre ideal do eu e supereu levara-o a pensá-lo como "herdeiro do complexo de Édipo" - a clínica desvela uma faceta "degradada" do pai. Aquela identificação que permite erigir o supereu como instância psíquica é partícipe, pois, de um processo que implica também a desfusão pulsional:

O superego surge da identificação com o pai tomado como modelo. Toda identificação desse tipo tem a natureza de uma dessexualização ou mesmo de uma sublimação. Parece então que, quando uma transformação desse tipo se efetua, ocorre ao mesmo tempo uma desfusão instintual. Após a sublimação, o componente erótico não mais tem o poder de unir a totalidade da agressividade que com ele se achava combinada, e esta é liberada sob a forma de uma inclinação à agressão e à destruição. Essa desfusão seria a fonte do caráter geral de severidade e crueldade apresentado pelo ideal - o seu ditatorial 'farás' ((FREUD, 2006/1923, p. 67).

A pulsão de morte, desvinculada de Eros, a pulsão erótica, encontra, assim, caminho para, em seu retorno sobre o sujeito, tornar presentes martírios cuja crueldade poderia, em muito, superar os caprichos do isso. A tensão entre o eu e supereu, formatada pela pulsão de morte, seria um ponto crucial na apreciação freudiana dos motivos inconscientes para um crime: a pulsão de morte, desvinculada de representações, mesmo inconscientes, e ligada a um acúmulo de tensão que poderia levar o aparelho psíquico ao colapso, encontrava no "sentimento de culpa" e na "necessidade de punição" uma oportunidade para se ligar à satisfação erótica masoquista:

Constituiu uma surpresa descobrir que um aumento nesse sentimento de culpa inconsciente pode transformar pessoas em criminosos. Mas isso indubitavelmente é um fato. Em muitos criminosos, especialmente nos principiantes, é possível detectar um sentimento de culpa muito poderoso, que existia antes do crime, e, portanto, não é o seu resultado, mas sim o seu motivo. É como se fosse um alívio poder ligar esse sentimento inconsciente de culpa a algo real e imediato (ibidem , p. 65).

Esta causação do crime pelo sentimento de culpa - que desenharia a abordagem hegemônica da psicanálise no debate crime-loucura até os dias de hoje - ganharia célebres exemplos clínicos desde uma obra que Jacques Lacan reconheceria, em De nossos antecedentes (LACAN, 1996/1966b, p. 70) como um dos vetores que o conduziriam às portas da psicanálise: trata-se do livro O criminoso e seus juízes (1934/1928), de Franz Alexander e Hugo Staub.

 

Criminosos por sentimento de culpa: casos clínicos de Alexander e Staub

I. O caso "B"

B., 34 anos, fora condenado por roubo e estelionato. Por anos este ex-estudante de medicina exercera esta atividade profissional mediante o uso de diploma falsificado. Estimado pelos diretores da clínica em que se empregara, B. apresentou com sucesso trabalhos teóricos, tendo reconhecido seu valor e rigor científicos. Este homem, todavia, seria preso devido a um peculiar costume: roubava livros de medicina e, imediatamente, oferecia-os para venda em lojas que se encontravam nas proximidades de onde ele os furtou; fazia isto, inclusive, sem retirar, dos livros roubados, a etiqueta do vendedor original. B. logo fora descoberto e detido; não tardaria, também, para que descobrissem seu uso de um diploma falso. Nas lojas em que roubava, era tido como bom freguês - e dinheiro para comprar seus livros era, de fato, algo que não lhe faltava.

Solto, enquanto o processo corria, B. mudara-se para Berlim. Lá chegando, num quarteirão de clínicas médicas, refaz o mesmo procedimento: torna a roubar livros e vendê-los, ainda com sua etiqueta, em outra livraria. Embora o crime fosse considerado "insignificante" pelo comissário de polícia, B., não obstante, parecia se esforçar para ser preso: de pronto confessa ter roubado também um microscópio numa loja de produtos óticos. Quando seria, mais uma vez, indulgenciado, confessa ainda que, vindo para Berlim, roubara figuras de porcelana numa exposição.

Curiosamente, sua detenção parecia trazer-lhe uma espécie de alívio: a única preocupação que tinha era a leitura de seus livros de medicina. Comportando-se bem e fazendo amizade com o médico que ali trabalhava, ele passa a auxiliá-lo. Porque este homem de reconhecida capacidade intelectual exibia, em seus roubos, tamanha falta de cautela, não apenas não tentando impedir, mas, como que procurando ser detido? Segundo Alexander e Staub, que se ocuparam do caso, "o seu comportamento perante as autoridades da polícia de Berlim, onde confessou atos puníveis e não descobertos, até ver impossibilitada sua liberdade, revela nitidamente a influência fatal de sua necessidade de punição" (ibidem, p. 102). Se, com a idade de 34 anos, a necessidade de punição se manifesta de modo franco, algo semelhante, anos antes, custara-lhe, na juventude, o ingresso na carreira militar.

Aos 17 anos, em formação como cadete do exército, durante sua instrução para se tornar oficial, B. rouba, na loja do quartel e em frente a funcionários, alguns doces. Em seu depoimento ele mesmo qualifica seu ato como uma grave infração, reconhecendo sua expulsão como justa. Naquele dia, acabara de receber visita de sua mãe, grávida. Lembra-se, então, da impressão de que "todos os homens o apontavam como sendo o autor daquela gravidez" (ibidem, p. 193). Alexander e Staub vêem, neste caso, as características freudianas de um criminoso por sentimento de culpa: "O ato é feito porque é proibido e para o fim de ligar um sentimento de culpa pré-existente, proveniente do complexo de Édipo e de compensar esta culpa por punição" (ibidem, p. 194). À expulsão da escola de cadetes, seguira-se uma tentativa frustrada de suicídio e o posterior perdão dos pais. É então que B. voltará aos estudos, desta vez numa escola superior com vistas a tornar-se um médico. Não obstante, afastado por doenças que o acompanhavam desde a infância e que rendiam a ele um "precário estado de saúde", ele é forçado a afastar-se dos estudos. Esta não seria, porém, a primeira relação que B. tivera com a medicina.

Em sua infância, o médico de sua mãe, mulher constantemente doente, era o único homem, senão seu pai, que tinha acesso livre ao quarto daquela. Alexander e Staub, em sua escuta de B., apreendem que a profissão de médico simbolizava "carta branca para o acesso ao corpo da mãe" (ibidem, p. 196). As transgressões que B. empreendia - que tiveram começo na presença de sua mãe grávida na loja de doces - ligavam-se, posteriormente, à medicina: não havia ele furtado, antes de ser afastado de seus estudos, uma máquina fotográfica de uma colega de classe - não se dando o trabalho de retirar-se da sala nem, tampouco, de esconder o objeto, acarretando sua descoberta? Uniam-se, neste ponto - ponderam os autores - duas cadeias libidinais do sujeito: de um lado, na vertente edípica, a aula de anatomia presentificava a tensão entre a medicina e o corpo materno; de outro, a pulsão escópica: seja plasmando o objeto a ser furtado - microscópio, máquina fotográfica, -, seja se fazer visto, sendo apanhado. Satisfazia-se, deste modo, a libido tanto com o escópico e a transgressão quanto com a realização do agente crítico com a autopunição.

A conclusão de Alexander e Staub era que conservou-se, para B., o complexo de Édipo, fator que sobre-determinou os crimes e a necessidade de respostas punitivas provocadas pelo próprio paciente. A mera punição, deste modo, não atingiria nada além de uma reiteração do circuito traçado desde o sentimento de culpa e a autopunição. Interessante seria, portanto, não a prisão, mas o tratamento psicanalítico, junto a uma ligeira internação, posto que "uma pena seria algo insensato e prejudicial, contraproducente, levaria a outros crimes (...) a sociedade facilitaria sua cura quando desistisse de castigá-lo e puni-lo" (ibidem, p. 201).

 

II. O caso "Carlos"

No inverno de 1927, um empregado do comércio e sua namorada encontram-se num quarto de hotel para selarem o pacto de duplo suicídio. Cartas de despedida escritas, Carlos dispara contra a fronte da amante; quando chegara a vez de disparar contra si, falta-lhe coragem, ele desmaia. Restabelecendo-se, ele chama a ajuda médica - a namorada sobrevivera à custa de um olho - chamado que implicou sua prisão. É, então, que chegará a ser ouvido por um analista.

Ex-combatente, filho de um engenheiro e ex-oficial não muito presente em casa, Carlos cedo perdera sua mãe. Sua namorada, filha de pequenos comerciantes, era criada de uma família de Berlim; embora noiva - sendo o noivo escolhido pelos pais da moça sob pressão - ela empreende romance com Carlos, que sabe do noivado. Ela - que arcava com os custos, inclusive financeiros, do romance - dizia que se ele renegasse à bebida, às outras mulheres e ganhasse dinheiro, deixaria o noivo. Como tal hipótese não se consolidava, ela sugere que, mesmo ela se casando, eles não se afastassem: ele podia tornar-se "amigo da casa".

A expressão "amigo da casa" causara extremo pesar a Carlos que mergulhava num estado depressivo, passando ele a ter idéias de suicídio: se não podia sustentar uma família, "não merecia viver". A moça, infeliz com sua situação, pede a ele que partilhem o mesmo destino. Pacto falhado, Carlos, interpelado pela polícia, tentara explicar sua motivação:

Conheço a vida matrimonial de meu irmão mais velho (...) Meu irmão trabalha o dia inteiro, tem posição de destaque e ganha bastante dinheiro. Sua mulher, porém, dorme o dia inteiro, gasta todo o dinheiro, enfeitando-se para trair o marido, de tal modo que o meu irmão vive uma vida matrimonial infeliz e horrível. Eu queria defender minha namorada das misérias de um casamento infeliz (ALEXANDER; STAUB, 1934/1928, p. 213).

A justificativa exposta por Carlos como motivação para seu crime, a "defesa de sua namorada", não explicava o que ocorrera: a conversão de duplo suicídio em tentativa de homicídio. Entre premissas, conclusão e ação restavam lacunas que acenavam para a incidência de pensamentos inconscientes. Uma das pistas era o surgimento do quadro depressivo, seguido da nomeação "amigo da casa". Como posteriormente - durante a escuta clínica por Alexander - se tornaria mais claro, a expressão "amigo de casa" trazia, para Carlos, ressonâncias edípicas.

Com a morte de sua mãe, após um bom tempo, seu pai, de 60 anos, casou-se com uma mulher que tinha a idade do filho. As relações entre pai e filho, marcadas pela distância, inclusive financeira, melhoraram neste ínterim. Entretanto, não tardará para que a grande intimidade entre Carlos e a madrasta se transfigure em atração por ela: uma vez que seu pai trabalhava fora de casa o dia todo, aquela mulher, muito doente, recebia cuidados diários de Carlos que passava o dia com a madrasta e a tarde se retirava, antes que o pai retornasse.

Certo dia, porém, seu pai lhe pede que passe a vir apenas quando este estivesse presente, assim se evitaria que as pessoas "falassem" e "pensassem mal" desse "amigo da casa". A colocação do pai parecera, a ele, injuriosa; energicamente ele decide não mais voltar à casa paterna. Segundo os autores, o desejo incestuoso, tornado consciente pela admoestação do pai, emergira deturpado, dirigindo-se, não a Carlos como culpado, mas, sim, ao pai como "injusto".

Carlos livrou-se, por este modo, isto é, pela projeção da culpa, da tensão da consciência [moral] (...) No entanto, com isso não se calaram os desejos inconscientes de incesto. Ao contrário, devemos supor que eles se tornam ainda mais fortes, porque o poder inibidor do "supereu" fora enfraquecido pela diminuição do sentimento de culpa (ibidem, p. 210).

A ruptura da relação dura até a morte da madrasta, meses depois. O desejo inconsciente por ela - que o levara a reagir à admoestação paterna com extrema indignação - parecia, agora, ceder. Se a inibição do desejo incestuoso, o "não podes ser como seu pai" (FREUD 2006/1923, p. 47), falha, outra vertente do imperativo, o "deves ser como seu pai" (idem, p. 47) prossegue: pouco tempo depois, Carlos conhece sua namorada; esta mulher, que "tinha a mesma idade e tipo físico da madrasta" (sic), também pertencia a outro homem; ele, outra vez, se encontrava em dependência financeira. De certa forma, "o que seu inconsciente desejava em relação à madrasta foi realizado com a namorada" (ibidem, p. 209). Se a relação com a namorada era uma tentativa de resolver a tensão pulsional, a expressão "amigo da casa" reevocou a tensão da relação entre Carlos, a madrasta e o pai. Imperativo era, assim, resolver a tensão edípica: "A resolução do assassínio da namorada e do suicídio representa a experiência de resolver por um ato de <<curto-circuito>> essa situação de tensão (ibidem, p. 210).

Todavia, se por um lado no duplo suicídio se tentava abater e calar o sentimento de culpa pela autopunição, por outro, havia a necessidade de uma nova "solução de compromisso" entre o desejo incestuoso e amor ao pai: ele se faria, então, não apenas um traidor, mas, subtraindo-se da auto-aniquilação, um "vingador" do pai. "Se ele 'matou' a namorada é porque se identificou com o noivo prejudicado, e, de fato, com o pai, que vinga, pela morte, o comportamento infiel da esposa" (ibidem, p. 213-4). "É assim" - pela construção de um sintoma que, posto em cena, pede interpretação - "que os instintos de vida vêm predominar" (ibidem, p. 217).

* * *

Tais exemplos desvelavam, pois, a determinação inconsciente de ações qualificadas como criminosas; manifestam-se, no crime, tentativas - por certo problemáticas, ou desesperadas - de lidar com o pulsional. Mas, de que forma esta "tentativa de ligação" que é a autopunição poderia, economicamente, aparelhar o sujeito em sua relação com a pulsão de morte?

 

Vicissitudes econômicas da autopunição

Em O problema econômico do masoquismo (FREUD, 2006/1924), texto em que Freud explora esta satisfação oriunda da autopunição, ele distingue três diferentes tipos de masoquismo. No primeiro tipo, o masoquismo primário, ele examina duas hipóteses.

Na primeira delas, Freud avalia o argumento, já exposto em 1905 em seu Três ensaios para uma teria da sexualidade. Ali, ele pergunta-se se não poderia "acontecer que nada de considerável importância ocorra no organismo sem contribuir com algum componente para a excitação do instinto sexual" (FREUD, 2006/1924, p. 180). Ele descarta esta perspectiva que reduz, mesmo o sofrimento, ao prazer; impunha-se a ele, a segunda tópica do aparelho psíquico e a descoberta da pulsão de morte. Desde um segundo campo de hipóteses - que emerge daquelas descobertas - o masoquismo primário surge como uma tentativa do aparelho psíquico de vincular a pulsão de morte através de sua fusão com Eros. Se, como vimos há pouco, esta faceta "degradada do pai" articula-se a uma dessexualização - apontando os limites do sexual e deixando livre a pulsão de morte - o masoquismo primordial caracteriza-se por ser, já, um tratamento dado a pulsão. Dito de outro modo, o gozo masoquista seria, de certa forma, uma tentativa de cura, "prova e remanescente da fase de desenvolvimento em que a coalescência (...) entre o instinto de morte e Eros se efetivou" (ibidem, p. 182). Os outros tipos de masoquismo, o feminino e o moral, seriam derivações deste masoquismo primordial.

Num segundo tipo de "masoquismo", encontram-se fantasias que os homens desenvolvem de serem amordaçados, maltratados, forçados à obediência, sujados, aviltados e etc. -, as coisas se passando, nestas fantasias, como se o sujeito fosse tratado como "criança travessa" (ibidem, p. 180). Freud aponta que há, nesta forma de masoquismo, a polarização das fantasias em torno de idéias como as de ser "castrado, copulado, dar à luz um bebê". Como travesso, "o indivíduo presume que cometeu um crime (cuja natureza é deixada indefinida) a ser explorado por todos aqueles procedimentos penosos e atormentadores" (ibidem, p. 180).

No terceiro tipo e último tipo de masoquismo, o masoquismo moral, ocorre aquilo que Freud chama de um "afrouxamento da relação com a sexualidade" (ibidem , p. 183). Nesta modalidade pulsional, o sujeito pode dispensar o parceiro, alcançando a punição através de "poderes impessoais ou pelas circunstâncias", como o destino. A reação terapêutica negativa, o apego a doença - e, acrescentamos, os crimes de autopunição, as auto-delações e os ferimentos inconscientemente auto-inflingidos - são modalidades desta "necessidade de punição".

A fim de provocar a punição desse último representante dos pais [o Destino], o masoquista deve fazer o que é desaconselhável, agir contra seus próprios interesses, arruinar as perspectivas que se abrem para ele no mundo real e, talvez, destruir sua própria existência (ibidem, p. 187).

Embora traga a marca de um "afrouxamento da relação com a sexualidade" - o que implica que ela subsiste - o masoquismo moral, assim como suas formas derivadas, surge como tentativa de vincular a pulsão de morte através da satisfação erótica com a auto-punição. Desvelam-se, pois, as bases metapsicológicas dos crimes de autopunição que, paradoxalmente, são não uma doença ou crimes utilitário, mas uma tentativa radical - por certo socialmente problemática -, de cura.

Esta tentativa de vinculação - como explicita Freud no excerto acima - encontra, todavia, um limite: a autodestruição do sujeito. Isto ocorre, por exemplo, nas auto-recriminações obsessivas e melancólicas - mormente nestas últimas. Se já em 1901, Freud destaca as afecções que tomavam "o suicídio como possível desfecho para o conflito psíquico" (FREUD, 2006/1901, p. 181), em 1923, ele atenta para a prevalência esmagadora da pulsão de morte, desvinculada de Eros, nos casos de melancolia: a "pura cultura da pulsão de morte", pode aniquilar o sujeito, "se aquele não afasta o seu tirano a tempo, através da mudança para a mania (FREUD, 2006/1923, p. 66). Mas, como a relação do superego com o pai pode ser "herdeira do complexo de Édipo" - uma das máquinas que inscrevem o sujeito no laço social - se esta presente caprichos que, por sua crueldade, podem implicar a destruição do sujeito? Em mal estar na civilização, Freud lança luz sobre esta questão tecendo uma ponte entre o pai, assim como este se apresenta no complexo de Édipo, e o pai da horda primitiva, pura crueldade e privação para com seus filhos.

 

O pai que legifera e o pai que vocifera: para além do Édipo

Em 1930, Freud retoma o mito fundador, por ele erigido em 1913 e que ele, ironicamente, chamou, em Psicologia das massas e análise do eu, a partir de algumas críticas, de "uma história mais ou menos" (FREUD, 2006/1921, p. 133). Lançando mão de referências antropológicas e darwinianas, Freud construiu, em 1913, um cenário em que se organizava a horda primitiva, daqueles que, um dia, viriam a ser denominados homens, num passo mítico da natureza à cultura. O líder da horda, forte e agressivo, insuperável em sua violência, detinha a possibilidade de gozar de todas as fêmeas do bando. Os demais machos, sempre à espreita, viam-se totalmente privados daquelas. Certo dia, porém, aqueles que individualmente não eram páreo para o macho dominante uniram-se e, juntos, mataram e devoraram-no.

Freud entende que, desde este momento, não cabia mais que a antiga ordem se mantivesse. Se assim fosse, uma sucessão ininterrupta de quedas e surgimentos de novos machos poderosos destruiria a espécie. Como única solução, aqueles que mataram o chefe da horda reservaram ao morto um lugar vazio, de exceção. A partir deste passo, surgiam regras que organizaram as possibilidades de cópula entre os membros da agora comunidade.

Em Mal-estar na civilização, ao estudar as origens do sentimento de culpa - que, como vimos, domina certos criminosos - Freud entende que tal sentimento nascera do remorso por aquele ato. Tratava-se, para ele, não de um círculo vicioso de supor a consciência moral como origem de si mesma, mas, sim, de entender o papel desempenhado pela ambivalência, a simultaneidade entre amor e ódio, como ponto fundamental para apreender o surgimento, a mutação e a transmissão do remorso em sentimento de culpa. Com ódio do privador, os filhos se organizaram para assassiná-lo, por amor ao ser quase onipotente, se lhes impunha o remorso. Aquele evento mítico, fundador, marcava como imanente à constituição do sujeito tanto o amor quanto o ódio pelo pai feroz. Deste modo, de tempos em tempos, a ambivalência entre amor e ódio, e a passagem da interdição à transgressão se presentificam em festins totêmicos, onde se re-destrói o símbolo deste pai que, a esta altura, deveio totem nomeador e protetor da comunidade. Nestas celebrações, o parricídio é re-celebrado: o totem, representante do que se tornara o pai, é novamente assassinado e devorado, os tabus, quebrados. Mas, nas entranhas de cada um, ele ainda vive e exige a satisfação que, agora espatifada, outrora era marca de uma onipotência mítica, de um gozo sem limites.

À Lacan não escapou a função dos mitos freudianos do "Édipo" e da "horda primitiva": tais ficções buscam simbolizar algo da impossibilidade da satisfação perfeita da pulsão por seu objeto, num caso pela interdição, noutro pela localização, num proto-homem do gozo absoluto.

Escapara a Freud este questionamento, se ele mesmo afere que a "pulsão é sem objeto", e, talvez "incapaz de satisfazer-se" (FREUD, 2006/1930b, p. 111)? O mito, invenção simbólica da linguagem, permite inscrever - na passagem,não menos mítica da natureza à cultura - o lugar do gozo totalizante como perdido, impossível de ocupar. Mas, se a condição de emergência do sujeito é a lei da linguagem, Lacan, definirá uma de suas principais dimensões, o real, como algo que transborda a dimensão simbólica, algo que "não cessa de não se escrever" (LACAN, 1996/1972-3, p. 17), e que, para todos nós, no caso-a-caso, solicita tratamento. Assim, seja para Lacan, seja para Freud - que se permite rir de si, sugerindo ser o mito da horda "uma história mais ou menos" (FREUD, 2006/1921, p. 133) -, o assassinato do pai ganha valor não como algo concreto, acontecimento empiricamente asseverado, mas como um real relativo ao psiquismo:

Matar o próprio pai ou abster-se de matá-lo não é, realmente, a coisa decisiva. Em ambos os casos, todos estão fadados a sentir culpa, porque o sentimento de culpa é expressão tanto do conflito devido à ambivalência, quanto da eterna luta entre Eros e o instinto de destruição ou morte. Esse conflito é posto em ação tão logo os homens se defrontem com a tarefa de viverem juntos. Enquanto a comunidade não assume outra forma que não seja a da família, o conflito está fadado a se expressar no complexo edipiano, a estabelecer a consciência e a criar o primeiro sentimento de culpa (FREUD, 2006/1930b, p. 135).

O sentimento de culpa, assim, embora possa manifestar-se sob o jugo da máquina edipiana, mostra-se, Freud no-lo diz, resultante de algo mais basal, a "eterna luta entre Eros e o instinto de destruição ou morte". Num horizonte, desenham-se formas não edipianas do sentimento de culpa, que permitem ampliar a chave de entendimento da autopunição para além do simbolismo clássico - possibilitando, inclusive, aporte a outras modalidades clinicamente observáveis da autopunição, como as psicoses e, quiçá, o autismo.

De todo modo, mesmo na neurose, onde o recurso à mesma máquina simbólica do Édipo permite aglutinar casos bastante díspares - o real da linguagem distribui efeitos como a "lei fora da lei" que é o supereu. Desde a ênfase lacaniana dada à instância psíquica freudiana, é possível apreender o supereu - representante, a um só tempo do "isso" e da alteridade - como ligado a um resto não simbolizado da lei da linguagem - e, portanto, mais fundamental que sua construção como ideal do eu, "herdeiro do complexo de Édipo". Esta anterioridade lógica, que ata à linguagem a produção do impossível, leva Lacan, durante seu ensino, a evocar um momento primordial, anterior a estruturação edípica, que marcaria o surgimento superegóico.

Destacamos, aqui, dois fragmentos - anteriores a seu último ensino e, não obstante, com ele ressonante -, nos quais se traz a baila esta questão.

No primeiro deles, seu texto sobre a criminologia, Lacan pontua que: "Nossa experiência dos efeitos do supereu, assim como a observação direta da criança à luz dessa experiência, revela-nos seu surgimento num estádio tão precoce que ele parece ser contemporâneo ou mesmo anterior ao surgimento do eu" (LACAN, 1996/1950, p. 138). O agente crítico, pensado assim, poderia anteceder as relações do sujeito com o mundo externo mediadas pela construção da imagem de si; tomado desta forma, sua incidência encontra-se ligada a estados de dispersão libidinal tão radicais quanto o autismo. Esta hipótese seria corroborada, ainda, por um segundo fragmento, igualmente precoce do ensino de Lacan: em 1957 ele se pergunta se: "Não haverá atrás de um supereu paterno, um supereu materno mais exigente, ainda mais opressor, ainda mais devastador, mais insistente, na neurose, que o supereu paterno?" (idem, 1999/1957-58, p. 84).

"Lei insensata", "a um só tempo a lei e sua destruição" (LACAN, 1953-4, p. 123), Lacan vê nesta faceta do supereu desvelada em Freud e por casos tão emblemáticos como os de Alexander e Staub, e mesmo seu caso Aimeé - uma torção que faz gemer a verdade do superego como algo que se confunde com o ideal do eu, "herdeiro do complexo de Édipo", e representante da lei simbólica.

 

Conclusão

Ao iniciarmos esse artigo, fizemos notar o quanto a invenção freudiana permitia lançar luz não apenas sobre o pensamento em seu sentido estrito, mas, também, sobre as ações dos sujeitos: em Psicopatologia da vida cotidiana, Freud ofereceu uma chave de inteligibilidade de fenômenos cotidianos como atos falhos, lapsos e ações não imediatamente compreensíveis. Freud diferia-as do erro ou do acaso, tomando-as como manifestação simbólica, através do corpo, de cadeias de pensamento inconsciente. Por possibilitar essa ampliação do campo de investigação das ações para além da consciência individual, a psicanálise passara a ser convocada, pela justiça, de modo a lançar luz principalmente para os crimes que desafiavam os motivos utilitários, de ganhos egoicos, tais como os casos de "autotraição" e dos ditos "criminosos por sentimento de culpa".

Como vimos, nesse último tipo de casos surgia uma situação enigmática: o sentimento de culpa precedia o ato moralmente condenável. Freud observa a analogia entre estes acontecimentos e as situações clínicas em que os pacientes, ao rememorarem transgressões anteriores, sentem-se culpados e, em seguida, cometem novas transgressões, sentindo "alívio" nessas ações. A primeira hipótese freudiana, que se tornou "clássica", é que a culpa era fruto de fantasias incestuosas ou transgressivas; as ações infracionais serviam à censura por justificarem a sensação de culpa a partir de ações atuais, e manter inalcançáveis as raízes desse sentimento. As lacunas apresentadas pelo discurso dos pacientes revelavam os limites em lidar com a culpa, inconscientemente motivada, através desse logro. Explicitaram casos desse tipo, "B." e "Carlos", atendidos por Franz Alexander e Hugo Staub, casos análogo às situações às narradas por Freud e que tornaram "O criminoso e seus juízes" uma referência nesta discussão.

Contudo, os avanços da obra freudiana - a consolidação da segunda tópica e do conceito de pulsão de morte -, exigiam a releitura da economia psíquica das situações de auto-punição. Era preciso explicar, desde a dialética entre Eros e pulsão de morte, tanto as autopunições dos "criminosos por sentimento de culpa" (esboço de "formação de compromisso", convertido, ao mais das vezes, em ruína, suicídio ou morte), quanto os auto-martírios - na neurose obsessiva e na melancolia -, o que Freud nomeara "pura cultura da pulsão de morte"?

A noção freudiana de masoquismo primário revela, então, outro gabarito de inteligibilidade para as vicissitudes econômicas da autopunição e dos crimes por sentimento de culpa: trata-se de um esforço mais basal que o complexo de Édipo, para tratar e fundir "Eros" e "pulsão de morte". A radicalidade - como "raiz" e "agudez" - do embate Eros-morte amplia as possibilidades de se pensar a relação entre culpa, crime e auto-punição para além da matriz edipiana.

O supereu - ligado à censura e a autopunição - revela-se, como explicitara Freud, ligado, a um só tempo, ao caldeirão pulsional do "isso" e à relação com a autoridade; com seus imperativos e caprichos, vigia e pune o sujeito, engendrando-o num paradoxo: brada, "tens que ser como teu pai" e "não podes ser como seu pai", castiga o sujeito por se aproximar demais do ideal (usurpação, etc.) ou por estar aquém do mesmo (insuficiência). Essa dupla face do supereu - distinto do "herdeiro do complexo", o "ideal do eu" - conecta o pai que legifera ao pai que vocifera. Essa "lei insensata", "a um só tempo a lei e sua destruição" (LACAN, 1996/1953-4, p. 123), presentifica, sobre o ser falante, um fora-da-lei distinto da transgressão que a lei positiva, quer o sujeito cometa ou não um crime.

Desse modo, os crimes por sentimento de culpa manifestam o dilema de sujeitos perante a pulsão de morte e instância enlouquecida e "fora-da-lei" que é o supereu. Faz-se, oportuno, logo, a ressalva: os crimes de autopunição são apenas um dos modos - inclusive socialmente problemático - de tratar a pulsão. Desde esta mirada, a incidência do supereu em atos criminosos (ou auto-punitivos de outra ordem), de modo algum deve ontologizar o infrator: há uma infinidade de outros caminhos para lidar com os imperativos superegoicos, com o que escapa ao simbólico e com a "necessidade de punição". Por outro lado, a expectativa social em "punir" "criminosos em conseqüência do sentimento de culpa", como já observaram Alexander e Staub, resulta "ineficaz e mesmo inconveniente": a relação crime-punição faz-se algo "a ponto de se dissolvido" em pró de um "tratamento" (ALEXANDER; STAUB, 1934/1928, p. 217).

Por fim, há ainda - para além das conclusões metapsicológicas ligadas ao retorno aos casos de "criminosos por sentimento de culpa" - tecer duas vias de pesquisa teórico-clínicas que transbordam esse paradigma que se tornou "clássico" entre psicanálise e criminologia.

A primeira via, evocada por Cottet (2008), em Criminologia lacaniana, envolve as investigações clínicas diversas dos "crimes de autopunição" (2008, p. 13). Aqui, toda uma gama de discussões, com raízes nos debates entre psicanálise e psiquiatria, ganha relevo: o kakon e os "assassinatos imotivados" - por Guiraud, os "crimes passionais" - opostos aos delírios interpretativos, lidos por Sérieux e Capgras e por Clérambault -, os "crimes paranóicos", como na "folie à deux", das irmãs Papin - estudado pelo então psiquiatra Lacan, etc.

A segunda consideração, que transborda a clínica estrita, liga-se à "crítica psicanalítica da sociedade punitiva": é Freud, opondo a ética psicanalítica ao furor puniendi dos juristas em "A psicanálise e a determinação dos fatos nos processos jurídicos", são Alexander e Staub, em sua análise dos mecanismos sociais de "vingança", "expiação" e "identificação com o criminoso"; é Lacan, criticando o "sanitarismo penalógico", medicalização que objetiva a responsabilidade, "realiza o crime e desumaniza o criminoso" (LACAN. 1996/1050, p. 123).

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 23/02/2015
Aprovado para publicação em: 01/05/2015

Endereço para correspondência
Carlos Alberto Ribeiro Costa
E-mail: carloscosta.psi@gmail.com

 

 

*Psicanalista, prof. Universidade Federal Fluminense-UFF (Niterói-RJ-Brasil), doutor em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ (Rio de Janeiro-RJ-Brasil).

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