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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
On-line version ISSN 1413-6295
Cad. psicanal. vol.40 no.39 Rio de Jeneiro July/Dec. 2018
ARTIGOS
Sobre sujeito do direito e sujeito da psicanálise
About subject of law and subject of psychoanalysis
Maíra Marchi GomesI*; Fernando AguiarI**
IUniversidade Federal de Santa Catarina - UFSC - Brasil
RESUMO
Considera-se que o conceito psicanalítico de inconsciente contribui para que o Direito possa ser mais plenamente uma prática de justiça. Em outros termos, para que o Direito exerça eminentemente a garantia de direitos, e não a imposição de deveres. Coloca-se aqui em diálogo o Direito e a Psicanálise a partir de suas noções de sujeito, demarcando-se onde se aproximam ou se distanciam epistemologicamente esses campos do saber. Nessa direção, as lições da Psicanálise sobre a subjetividade daquele que comete crimes são exemplares, alertando que não é a repressão que possibilita a inscrição da alteridade, e que responsabilização não se obtém pela via da culpabilização. Encontra-se, na Justiça Restaurativa, uma maior perspectiva de diálogo entre Direito e Psicanálise.
Palavras-chave: Sujeito, Psicanálise, Direito, Responsabilidade, Culpa.
ABSTRACT
It's considered that the psychoanalytic concept of unconscious assists Law in reaching its historical challenge of being a practice of justice. In other words, so that Law addresses eminently to the assurance of rights, and not to the imposition of duties. Law and Psychoanalysis dialogue from their concepts of subject, initially distinguishing where these fields of knowledge epistemologically are drawn near or pulled away. In this direction, the lessons from psychoanalysis about the subjectivity of one who commits a crime, for instance, alert us that repression is not what allows the inscription of alterity, and that responsibilization is not obtained through blame. Restorative Justice offers greater dialogue perspective between Law and Psychoanalysis.
Keywords: Subject, Psychoanalysis, Law, Responsibility, Blame.
Introdução
A desconsideração pelo Direito da hipótese do inconsciente, tal como proposta por Freud e sua Psicanálise, é uma das vias pelas quais se alcança eficácia no projeto político-econômico moderno de disciplinar as práticas de justiça por meio da ciência do Direito. Este artigo parte, assim, da suposição de que, mais especificamente no âmbito do Direito Penal, a Psicanálise pode colaborar com uma advertência sobre o risco da perda de sua função simbólica e de sua dimensão ética, caso suas práticas se reduzam a um aparato coercitivo, orientando-se predominantemente pela subjetividade do operador do Direito e, apenas em segundo plano, pela reparação do que foi perdido. A lei, quando orientada para a exclusão do outro, e não para a mediação do contrato , ameaça a civilização e a própria subjetividade, considerando que esta última é justamente possibilitada pela alteridade.
Portanto, aqui se contrapõe o discurso do senso comum de que "faltam limites" quando se explicam, por exemplo, atos criminosos. Em alguns casos, não se trata de uma precariedade de inscrição da Lei, apesar do aparato coercitivo (leia-se: leis repressivas), mas de uma Lei que não encontra lugar numa subjetividade justamente por se encontrar avassalada por leis.
Isso parece ser um desafio porque, como bem lembrado por Hans Kelsen (1998, apud RODRIGUES, 2016), histórica e estruturalmente, o Direito tem por função primeira normatizar, prescrever e punir condutas. Tratando eminentemente dos deveres, os direitos são uma construção que transcende o Direito. Além disso, a tecnologia dos direitos teria surgido ao lado da proteção da propriedade privada, no sistema econômico de mercado próprio à modernidade. Assim, não apenas os direitos nunca estiveram e nunca estão em primeiro plano para o Direito, como eles só emergem subordinados a uma preocupação econômico-privada.
O Direito tem como seu fundamento uma ficção jurídica. Em outros termos, uma norma implícita, que é um dever: o da obediência (BARROS, 2005). Essa obrigação pressupõe uma autoridade imaginária, com o poder de autorizar a produção de normas genéricas e específicas. Barros (2005) retoma a ideia de Kelsen, segundo a qual, o fundamento do Direito ancora-se justamente na premissa da "obediência às leis". Percebemos que, estruturalmente, o Direito convoca a subjetividade, primeiro, à repressão e só depois à garantia.
Pode-se até dizer que este trabalho alerta para o risco de o Direito jamais alcançar (ou pelo menos não suficientemente) uma dimensão ética e simbólica, caso tenha como objetivo principal a repressão, e não a garantia de direitos. Tal risco seria a manutenção de um original e estrutural distanciamento entre justiça e Direito. Paradoxalmente, parece que, se se concebe maior que a justiça, o Direito nunca chegará ao máximo possível de proximidade com ela, que é justamente funcionar como um humilde instrumento de aplicação da justiça. Em uma palavra, pensamos que justiça não é alcançada quando se busca a repressão ao custo de privação de direitos. Em alguns casos, a coerção é uma via para se chegar à justiça, mas, mesmo aqui, o propósito não deveria ser em si a repressão, e sim a garantia de direitos, e a repressão seria uma via necessária no caso particular.
De qualquer modo, é importante ressalvar que este trabalho não pretende equiparar os discursos do Direito Penal moderno e o da Psicanálise, pois se compreende que possuem marcos epistemológicos distintos, e que o diálogo entre tais discursos possui seus limites. Não se pretende, obviamente, modificar o Direito Penal moderno de origem romana a partir de uma análise psicanalítica. Porém, pode ser que alertar os operadores do Direito sobre a existência de conceitos fundamentais da Psicanálise altere sua maneira de se apropriar do discurso jurídico, gerando, assim, efeitos em sua prática.
Bem a propósito, um ponto fundamental de diálogo entre Direito e Psicanálise é justamente o conceito de sujeito. Sendo várias as possibilidades de investigar seu estatuto em ambas as disciplinas, ele é aqui retomado a partir das concepções de livre-arbítrio e de responsabilidade, por sua vez fundamentadas em outras noções dicotômicas, igualmente basais para o diálogo entre Direito e Psicanálise: consciência/inconsciência, bom/mau, bem/mal e bondade/maldade.
O império da consciência: sobre o sujeito do Direito
É pertinente começar com uma menção aos princípios que são fonte do Direito Positivo: a dogmática jurídica. Assim, muito mais que nos ater às jurisprudências ou à lei em si, parece-nos fundamental analisar a racionalidade envolta na própria fundação da ciência jurídica moderna. Ou, em outros termos, abordar o enunciado que sustenta as enunciações manifestas em leis e em suas fundamentações. Gusso escreve a respeito:
O sujeito de direito, tal como requerido pelas construções da dogmática jurídica no século XIX e boa parte do século XX, está encerrado nos aportes da filosofia transcendental, ou seja, está situado em um espaço-tempo determinado por uma consciência racional. A razão é a unidade delineadora de todas as possibilidades subjetivas construídas no limiar da modernidade, que acaba por formatar a noção de sujeito de direito penal como o "homem do livre-arbítrio" (2011, p. 44).
Oliveira (2010), por sua vez, afirma explicitamente que, na vertente jus naturalista ou na vertente jus positivista, o que sobressai na dogmática e na ciência jurídica é este atributo consciente do sujeito, que, proprietário de suas ações, pode responder por elas. É somente como racionalidade que o sujeito pode adentrar no jogo jurídico. Contudo, uma vez dentro, parece também que o sujeito não consegue sair, pois sua subjetividade é reduzida às previsões inerentes às tipificações legais e correlatas possibilidades de interpretação das ações humanas. E, ainda mais: reduzida àquilo que pode ser visto (o comportamento, a imagem), a subjetividade é enclausurada em sua dimensão fenomenológica, bem como em certa apropriação normativa dessa dimensão.
Nada adentra o Direito que não seja por esta transmutação objetivadora que procura integrar, no final das contas, um fato a uma norma, pela lógica da subsunção, e um sujeito a ambos, para fazer crer que, no plano da racionalidade jurídica, nada que é do comportamento humano escapa ao controle do seu regramento, seja para prescrever ou punir condutas (OLIVEIRA, 2010, p. 288).
O discurso jus naturalista estabelece direitos naturais de caráter universal e preconiza o método racional de dedução das ideias verdadeiras. Tal discurso compôs o projeto político burguês de legitimar a tomada de poder do Estado. O positivismo jurídico, por sua vez, por mais que não recorra a elementos metafísicos ("natureza humana", por exemplo), propõe a cidadania como pacto estabelecido entre sujeitos livres, iguais e também racionais. A intenção propagada, em certo território estatal, é a legitimação de direitos, o pleno exercício das ações políticas e a regulação jurídico-estatal do comportamento humano.
Oliveira (2010) lembra que foi a partir da construção de uma entidade abstrata como "sujeito do Direito", constituída por noções de igualdade e consciência (presente nos discursos tanto da vertente jus naturalista como nos da vertente jus positivista), que a subjetividade foi inserida no discurso jurídico:
Construção discursiva que serve a quem institui práticas políticas que necessitam de certa homogeneidade dos indivíduos, a fim de dissolvê-los numa ficção totalitária de igualdade formal que nega as diferenças e alteridades [...], escamoteando as prescrições normativas de caráter coercitivo e moral no discurso da igualdade e universalidade dos dispositivos jurídicos assimilados pela ótica da cidadania e soberania política (OLIVEIRA, 2010, p. 288).
De maneira mais "aplicada", podem ser assim resumidas as enunciações nas quais o enunciado do Direito concebe o sujeito como universal e consciente:
O sujeito de que o direito nos fala é o sujeito de direitos e de deveres. Ele tem sua descrição dada pela via da instância do eu, imaginária, consciente, moldado segundo o ordenamento jurídico vigente. É a pessoa que via de regra é capaz, tem pleno gozo de suas faculdades mentais, é consciente, entende o caráter criminoso ou não de seus atos e é capaz de determinar-se de acordo com este entendimento (SILVA, 2002, p. 14).
Esse sujeito é proposto como "normatizável" (e, antes disso, regulável), e também como passível de proteção. Tal proteção se daria pela oferta, em nome do cumprimento de modelos de ações genéricas e idealizadas, de nominações que o representariam, dando conta do seu gozo. Uma clara demonstração de como o Direito apresenta-se como detentor do gozo do sujeito seria a ideia de "o que não está nos autos, não está no mundo", que impõe ao sujeito, como condição de sua existência, a adequação à listagem de significantes-mestres, sendo as leis, as doutrinas e as jurisprudências os significantes de saber por excelência.
Outra demonstração de como o Direito pretende substituir o sujeito (anular a subjetividade, em nome de um saber generalizável) seria a imensidão de legislações e de alterações legislativas, tentando tudo prever, reprimir o contingente, regular o factível, mantendo no Outro do Direito (ou seja, a lei) um saber inesgotável. O Direito tenta "migrar o gozo para os significantes do saber, não do saber do gozo, mas do saber que, paradoxalmente, dele não quer saber, pretendendo regulá-lo com leis escritas, ignorando o impossível do gozo. Quando isso não ocorre, dá-se a foraclusão da questão" (SILVA, 2002, p. 15).
É pertinente, aqui, discorrer sobre a concepção de verdade associada a essa redução do sujeito a sua consciência. Para o autor, o ordenamento jurídico reduz a vida à ordem ficcional dos autos, e desconsidera que, apesar de ter estrutura de ficção, a realidade humana, sempre singular, não pode ser completamente descrita.
Por fim, cabe apresentar o questionamento de Silva (2002) com respeito ao próprio estatuto de uma ciência como o Direito, que aborda o sujeito como objeto previsível e controlável, e que forclui tanto a divisão do sujeito (que é efeito de sua alienação e de separação do Outro) como o gozo que não encontra sentido algum (inclusive na letra da lei). Assim, distancia-se o Direito da dimensão ética, aproximando-o de uma moral ou ideologia "onde se supõe um saber sem furo, do que seria bom para todos. Está aí a própria ética dos bens, em que o seu bem é o que assim é pensado para você, tendo como paradigma o bem do Mestre, o do detentor do poder" (SILVA, 2002, p. 16).
O inconsciente retirando o sujeito de si: sobre o sujeito da Psicanálise
Segundo Birman (1994), o anúncio do sujeito do inconsciente como realizado pela Psicanálise abalou precisamente os pilares cartesianos e kantianos das filosofias da consciência tão inerentes à modernidade ocidental. Isso se deu por duas vias: 1) a proposta de que o psiquismo não se reduz à consciência (aqui entendida como razão); e, antes disso, de que o psiquismo não é uma unicidade; 2) a concepção de que o sujeito humano não pode ser dissociado entre corpo e espírito. O corpo, aqui entendido como a presença que, uma vez no sujeito, legitima-o como sujeito. O ser só é humano porque é habitado [pelo corpo].
Não menos significativo é o questionamento, também protagonizado pela Psicanálise, da abordagem a-histórica (porque essencialista) do sujeito, típica do modelo de cientificidade não apenas hegemônico, mas também definidor da modernidade ocidental. Fala-se, aqui, da rígida separação entre exterior e interior; ou, em outras palavras, entre o mundo das coisas e o mundo do sujeito, separação feita pelo mundo da causalidade mecânica. A distinção entre exterior e interior é associada ao princípio da causalidade, posto dividir, e também polarizar.
Essa discussão é de grande importância, não apenas para se pensar as relações entre Psicanálise e Direito, mas, igualmente, para d emarcar equívocos de certas interpretações sobre a primeira. Refiro-me aqui, em particular, à ideia segundo a qual o sujeito psicanalítico seria analisado desconsiderando suas relações. Para a Psicanálise, a vida poderia ser definida como a tentativa de inscrição sempre conflituosa dos universos pulsional e simbólico no corpo. E tal inscrição dar-se-ia pelo olhar, pelo toque e pela voz do Outro. Melhor dizendo: pelas diversas formas com que nos marca o discurso que nos antecede (BIRMAN, 1994).
Assim, a individualidade não estaria na interioridade/introspecção ou na reflexão, mas no campo intersubjetivo onde se dá o discurso, até porque a consciência não existe antes do encontro com o Outro, constituindo-se a partir das demandas alheias; o inconsciente, por seu lado, seria os registros da intersubjetividade e da alteridade. Não é possível "pensar a partir do exterior as categorias de sujeito e de cultura, uma vez que a constituição do sujeito implica uma relação estrutural com o Outro (representado pela cultura), sendo o sujeito radicalmente definido pela alteridade do campo social" (GUSSO, 2011, p. 48).
Merece menção o fato de aqui se tratar da relação vertical, assimétrica, estabelecida pelo sujeito com aquilo que, além de exterior, o precede. De qualquer forma, mesmo a relação de ordem mais horizontal também estabelecida pelo sujeito com o exterior (com o outro, seu semelhante) também demonstra como o sujeito não apenas significa o exterior (constitui o outro, portanto), mas é constituído a partir do contato com o outro. Ao lado da compreensão da tragicidade da problemática edípica e do desamparo como uma marca irreparável (problematizado a partir do conceito de angústia e do signo da pulsão de morte), os textos freudianos ativeram-se à inevitabilidade e à imprescindibilidade do outro na relação com o eu. Se o Outro se faz presente na constituição do sujeito desde o primeiro momento, o desamparo humano aponta a importância do outro, representante do Outro (SOUZA; MOREIRA, 2014).
O sujeito para a Psicanálise surge no intervalo da cadeia de significantes, no espaço que um remete a outro. Para tanto, há uma operação lógica na qual, inicialmente, ele se alienaria ao Outro até poder se separar. Sua condição (para não se utilizar as modernas expressões "natureza", "essência") seria a de divisão, a de (des)ser. Portanto, o sujeito não é dado de início, e não é "entificável". "Sua categoria é de suposto, é de desaparecimento, divisão entre vir e ir, instantaneamente, deixada sua notícia pelas formações inconscientes, pelos lapsos, pelos atos falhos, pelos sintomas, pelos sonhos" (SILVA, 2002, p. 13-14).
Talvez seja precisamente nessa formulação que faz a partir do contato com o Outro que o humano não possa ser generalizável. O sujeito sempre é singular, diferente do que nos propõe o Direito Penal moderno de origem romana, porque para ser chamado de "sujeito" ele precisa se desalienar do discurso anterior a ele: o discurso do Outro.
Reprovar o mal não implica o dever ser bom
Nenhuma das estruturantes modalidades de relação com o outro, como representante do Outro, é simétrica. Ainda assim, sabemos que a materialização do mútuo reconhecimento é uma conquista posterior, posto que as relações de reciprocidade dão-se a partir da apresentação do sujeito à lei e resolução do complexo edípico (BIRMAN, 2003).
Daí que, para a Psicanálise, a expectativa do Direito de que o humano viva harmoniosamente com o outro - ainda que condizente com sua proposta de que a civilização se sustente a partir da limitação dessa dificuldade em conviver com a diferença -, não pode recair numa espécie de "elogio ao altruísmo". Ou seja, uma concepção normativa e não analítica da relação que o humano estabelece com o outro, pautando-se no dever viver com o outro, e não em como ele pode viver com o outro.
A propósito, Gusso (2011) refere-se ao "homem médio" do Direito Penal, presente nas definições jurídico-legais próprias das filosofias da consciência, como um homem que, além de livre e racional, seria igual. E, sendo igual, a relação intersubjetiva, por essência, seria harmoniosa. "Esse homem 'idealizado' pelo Direito é definido pela 'lei' social como 'super-responsável' e obediente a um princípio de 'culpação'[sic], servindo bem à tentativa de encobrimento da violência predatória contra outros sujeitos".
A Psicanálise convoca, desse modo, os operadores do Direito a suportar a dificuldade do sujeito diante da relação intersubjetiva, reconhecendo como esperada a dificuldade humana de conviver. Isso não implica não responder às manifestações humanas que ameaçam a civilização. A questão está na diferença entre uma resposta jurídica em que a exclusão do conflito, por meio da reprovação de condutas, se fundamenta numa concepção ideal/cristã/moderna do humano, e a função do Direito de constituição/manutenção da civilização.
Para além de conceber a possibilidade de que na relação com o outro, o humano seja mal e habitado pelo mal, a Psicanálise concebe que a responsabilidade pelo que o sujeito é e faz transcende o próprio sujeito. Sim, porque como se disse, é o Outro (um discurso anterior e geral) que lhe fornece a matriz a partir da qual, aí sim, ele poderá construir algo único (uma subjetividade). A responsabilidade do sujeito existe sempre, mas os méritos e fracassos civilizatórios são compartilhados.
Responsabilidade como efeito da culpabilização ou responsabilização
Chegamos à questão da culpa, em sua associação com o livre-arbítrio e a responsabilidade. Para além do sujeito consciente, de vontade autônoma, expõe Fagundez (2006, p. 250), o sujeito do Direito é o mesmo da ciência: um sujeito ético. E, assim, chama para si a responsabilidade não apenas por seus atos, mas por tudo o que lhe acomete. "É o sujeito positivista, implicado num sistema de ordem, dentro de um modelo normativo lógico, que determina os seus passos e que pune as condutas consideradas negativas". Mas o autor faz a seguinte ressalva:
Muito embora se faça referência ao sujeito kantiano, dotado de autonomia da vontade, o que se vislumbra é alguém dependente, subjugado ao "imperativo categórico", protegido pelo Estado e amparado por Deus. Enfim, um sujeito irresponsavelmente posto na vida. É o sujeito da modernidade, fisicamente decadente e mentalmente doente. É uma peça de uma engrenagem e que imagina ser Deus. É um homem que busca em todo lugar e que não busca dentro de si mesmo. Oscilando entre o bem e o mal, o sujeito imagina obter a salvação, muito embora seja ignorado pelo Deus da modernidade (FAGUNDEZ, 2006, p. 249).
Talvez o Direito Penal moderno de origem romana espere que obedeçamos às normas dele provenientes para que atendamos ao que o Estado prevê para nós. Pode-se indagar que não é ao acaso que "inocente" e "culpado" são as duas identidades oferecidas no discurso desse Direito Penal. Se não formos inocentes perante o uso político-econômico que o Estado moderno faz de nós, somos tidos por culpados.
O estatuto da responsabilidade para a Psicanálise, por sua vez, é de outra ordem que não a da culpabilização. "Sujeito e responsabilidade se equivalem, para a Psicanálise - um termo não pode ser concebido sem o outro. Considera-se, assim, a responsabilidade no sentido de uma resposta, que é sempre de um sujeito" (SALUM, 2012, p. 169). Responsabilizar alguém é convocar o sujeito a comparecer como responsável (REYMUNDO, 2002). E ele é responsável pelos outros, pela comunidade, pelo seu desejo e gozo.
Cabe ainda dizer que somente sendo responsável o sujeito assume uma posição ética - e esta, como lembra ainda Reymundo (2002, p. 110-111), apoiado no ensino de Lacan, seria o freio ao gozo. O limite que o sujeito impõe-se para se libertar do desprazer e mal-estar. "É a resposta a ser dada para não sucumbir ao imperativo de gozo do supereu, ou se quiserem, para não afundar no silêncio irreversível, sob o peso mortificante do ideal nos seus efeitos irrealizantes". A responsabilidade é aqui entendida como resposta a ser dada com fins de preservação e defesa do estatuto de ser falante do sujeito.
Portanto, a responsabilidade para a Psicanálise não é aquela do cumprimento das ordens e dos deveres impostos a partir do Outro, ou da racionalidade moderna ocidental de um eu cognoscente e senhor de si (OLIVEIRA, 2010). "Responsabilidade" aqui se refere à apropriação que faz dos significantes fornecidos pelo Outro. É a autoria do sujeito na separação que faz em relação ao desejo do Outro.
Essa concepção de responsabilidade, mais próxima de uma responsabilização que de uma culpabilização, relaciona-se por sua vez a um questionamento das noções de livre-arbítrio e causalidade linear. Compreende-se que o sujeito deve ser escutado em sua singularidade, mas, com isso, não se deve compreender ser ele interiorizado, e/ou que ele poderia ter agido de maneira diversa daquela como agiu.
O Direito pauta-se tanto nessa noção de que responsabilização assemelha-se à punição (ou pelo menos é um efeito dela), que muitas vezes compreende que a finalidade da pena é pedagógica, qual seja: ensinar/lembrar ao sujeito, pela via do sofrimento, que ele não deve cometer determinados atos. A Psicanálise poderia contribuir com os espaços do jurídico, da regulação social, porque através da escuta seria sinalizada a responsabilização subjetiva. "É a partir da infração que o sujeito pode, no encontro com o profissional que irá acompanhá-lo, enfrentar seu abandono em um ato, não de infração, mas de subjetivação, que implica a construção de novas saídas" (SOUZA; MOREIRA, 2014, p. 197). Ainda que essa passagem se refira a sujeitos adolescentes, compreende-se que a proposta de interação entre Psicanálise e Direito, nos termos expressos, pode ser dirigida também a sujeitos adultos. E mesmo que as autoras, na escuta dos sujeitos, refiram-se à atuação de um profissional que não seja operador do Direito, cabe questionar se a própria resposta jurídica não pode ter um estatuto de subjetivação, e não apenas punitivo. Pode-se também pensar a seguinte passagem:
Muito embora essas medidas tenham um caráter socioeducativo e ao mesmo tempo sancionatório, sua operacionalização pode se dar a partir de ações embasadas na concepção de que o adolescente é um sujeito único e singular. É por meio da escuta de sua história de vida que as intervenções de âmbito universal, podem ter um alcance frente à particularidade de cada caso (SOUZA; MOREIRA, 2014, p. 197).
Para Birman (2003), aliás, a função da lei é alcançada através de sua inscrição simbólica na subjetividade (supereu), e seria não apenas limitar a satisfação pulsional, mas fazer transitar o destino pulsional entre o polo alteritário (ideal de eu) e narcísico (eu ideal). Não desconsideramos que, numa concepção lacaniana, por sua vez, o supereu é "a inscrição arcaica de uma imagem materna onipotente", a marcar "o fracasso ou o limite do processo de simbolização. Nessas condições, o supereu encarna a falha da função paterna e esta, por conseguinte, é situada do lado do ideal do eu" (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 746). A partir do delineamento das regras de permissão, o sujeito reconheceria a imprescindibilidade do outro, inclusive para a realização do próprio desejo. Daí que a concepção de altruísmo parte de um pilar narcísico. Seria assim, na busca de possibilidades de satisfação, sempre parcial, que se forma o sujeito, sempre do desejo.
A importância para o Direito da consideração da subjetividade
O ponto de vista psicanalítico sobre a importância de se responsabilizar os sujeitos em vez de culpabilizá-los, quando não atendem ao que as normas jurídicas preveem, pode auxiliar os autores de crimes a construírem outras possibilidades de subjetivação além daquela resultante da alienação ao significante "criminoso" que o Estado moderno oferece a determinados sujeitos.
Em Freud (1906/1996), encontramos algo que pode colaborar com essa discussão. Trata-se de uma palestra a juristas, aos quais ele diz ter dúvidas sobre a eficácia das técnicas por eles utilizadas. E o motivo seria justamente a impossibilidade de essas técnicas diferenciarem sujeitos autoacusadores e os efetivamente culpados. Discute a possibilidade de indução a erro por parte de neuróticos que, ainda que inocentes, reagem como culpados devido a sentimento de culpa oculto, pré-existente ao fato julgado. Para ele, esses sujeitos se apoderariam da acusação.
Posteriormente, Freud (1916/1996) volta ao assunto. Nesta obra discute que, apesar de a Psicanálise dirigir-se ao significado dos sintomas, às pulsões que os subsidiam e que neles encontram satisfação, para compreensão da resistência, precisa-se abordar o que denomina de "caráter". Um dos tipos de caráter é chamado "criminosos em consequência de um sentimento de culpa". O pai da Psicanálise chegou a esse tipo após reconhecer que não só na infância e juventude alguns sujeitos cometem "ações proibidas" (é exatamente esse o termo), como furtos, fraudes, incêndio voluntário e, no caso de crianças, "travessuras". Em seus termos, a explicação:
Tais ações eram praticadas principalmente por serem proibidas e por sua execução acarretar, para seu autor, um alívio mental. Este sofria de um opressivo sentimento de culpa, cuja origem não conhecia, e, após praticar uma ação má, essa opressão se atenuava. Seu sentimento de culpa estava pelo menos ligado a algo (FREUD, 1916/1996, p. 347).
De qualquer modo, cabe ressalvar que essa discussão se faz tomando por base os neuróticos, mesmo concebendo haver aqueles que praticam crimes sem qualquer sentimento de culpa, não tendo desenvolvido inibições morais. Haveria, ainda, os que consideram sua ação justificada devido a seus conflitos com a sociedade - e quanto a estes últimos, podemos lembrar-nos da seletividade para a qual a Criminologia Crítica nos alerta.
Talvez, inclusive, o sistema judicial dirija-se justamente àqueles a quem não deveria se dirigir. Isso porque o próprio Freud afirma serem as medidas punitivas criadas para os neuróticos, situações nas quais a motivação para o crime poderia ser considerada. Assim procedendo, a oferta da punição dar-se-ia com outro fundamento psicológico.
Pode-se indagar se a resposta punitiva aos outros casos (os daqueles que se encontram em conflito com a sociedade, e talvez, justamente por isso, foram criminalizados) não surta efeitos, e até cogitar que ela provoque efeitos contrários.
Donald Winnicott, psicanalista inglês, é um autor que traz uma leitura particular de como se dá a relação entre crime e culpa. Para se compreender sua abordagem, precisamos recorrer ao seu conceito de tendência antissocial. Um conceito que diz respeito a vários comportamentos, já que o que está em questão não é sua apresentação fenomenológica, mas a função psíquica que lhes subjaz: contrapor-se à organização do meio. De início, cabe dizer que por mais que ele distinga dois tipos de tendência antissocial, há algumas noções comuns, e para o que se propõe neste momento é suficiente indagar o efeito da resposta punitiva sobre esses sujeitos.
Para Winnicott (1987, p. 131), "quando existe uma tendência anti-social, houve um verdadeiro desapossamento (não uma simples carência); quer dizer, houve perda de algo bom que foi por um período maior do que aquele em que a criança pode manter viva a lembrança da experiência". É como se houvesse uma fixação onde se foi despossuído, e como se tal fixação impedisse a representação simbólica da falta. Em outras palavras, uma impossibilidade de simbolização da falta de algo bom levaria à tendência antissocial. Em outra obra, ele também tece algumas explicações sobre esta tendência antissocial:
Uma criança que tenha sido submetida a tal privação sofreu inicialmente uma ansiedade impensável, e então reorganizou-se gradualmente, até atingir um estado razoavelmente neutro: fica concordando com tudo, pelo fato de que uma criança não pode fazer nada mais além de concordar [...]. Então, por uma razão ou outra, começa a surgir a esperança: isso significa que a criança, sem ter a menor consciência do que está ocorrendo, começa a sentir um impulso de voltar para antes do momento da privação, e assim desfazer o medo da ansiedade impensável ou da confusão que existiam antes que se organizasse o estado neutro [...]. Toda vez que as condições fornecem um certo grau de novas esperanças, então a tendência anti-social transforma-se numa característica clínica (WINNICOTT, 1989, p. 73).
Como se constata, a intencionalidade do ato antissocial não é da ordem de uma destrutividade. Esta pode ser seu resultado, mas o que está em questão é um sujeito que, para sobreviver psiquicamente, defende-se da lembrança de uma condição na qual foi privado de uma experiência positiva na relação com o meio. Winnicott (1987) explica que essa privação do meio, por mais paradoxal que seja, pode ser resumida como sua impossibilidade de conter a agressividade que provém do sujeito. Ou, melhor dizendo, um meio que não reconhece que, para além da agressividade, esse sujeito dirige outras coisas ao exterior:
Quando saudável, o bebê pode sustentar a culpa e, desta forma, com a ajuda de uma mãe pessoal e viva (que personifica um fator temporal), é capaz de descobrir seu próprio ímpeto pessoal de dar, construir e reparar. Desse modo, grande parte da agressão se transforma em funções sociais [...]. Em tempos de desespero (quando não se acha ninguém que aceite um presente, ou que reconheça o esforço feito para reparar), esta transformação se desfaz e a agressão reaparece (WINNICOTT, 1987, p. 358).
Talvez os sujeitos dos quais fale Winnicott sejam aqueles que encontram na violência uma via de expressão, já que sua agressividade não foi reconhecida como estando ao lado do amor. A agressividade passou a estar a serviço do ódio, e eles atuam conforme sempre foi reconhecido pelo exterior: alguém que só se dirigia ao objeto para destruí-lo. Aliás, uma intervenção concreta da lei é demandada por esses sujeitos para que o ódio, que não pôde ser dirigido ao exterior, não transcorra em depressão. É, portanto, um pedido de ajuda.
Deve odiar uma parte de si mesmo, a menos que possa encontrar alguém fora de si mesmo para frustrá-lo e que suporte ser odiado [...]. [...] quando as forças cruéis ou destrutivas ameaçam dominar as forças de amor, o indivíduo tem de fazer alguma coisa para salvar-se, e uma das coisas que ele faz é pôr para fora o seu íntimo, dramatizar exteriormente o mundo interior, representar ele próprio o papel destrutivo e provocar seu controle por uma autoridade externa. O controle pode ser estabelecido desse modo, na fantasia dramatizada, sem sufocação séria dos instintos, ao passo que o controle interno necessitaria ser geralmente aplicado e resultaria num estado de coisas conhecido clinicamente como depressão (WINNICOTT, 1987, p. 93-94).
Winnicott (1989, p. 74) explica justamente a delinquência como sendo uma forma de contato com essa condição agressiva, que, nesses casos em que o exterior foi incapaz de sustentar seus atos agressivos, só pode se dar por meio de atos violentos.
Quando ocorre uma privação [...] suas idéias e seus impulsos agressivos tornam-se inseguros [...] a criança assume o controle que acabou de ser perdido e identifica-se com o novo quadro de referência familiar. Resultado: a criança perde sua impulsividade e espontaneidade. O nível de ansiedade é tão alto que o ato de experimentar, que poderia fazê-la chegar a um acordo com a própria agressividade, torna-se impossível. Segue-se um período que pode ser outra vez (como no primeiro tipo de privação) razoavelmente satisfatório do ponto de vista daqueles que cuidam da criança, no qual o menino está mais identificado com os tutores do que com seu próprio self imaturo. Nesse tipo de caso, a tendência anti-social faz com que o menino se redescubra sempre que sinta esperança de retorno da segurança, o que significa uma redescoberta da própria agressividade [...]. Nesse caminho (por causa da segurança ambiental, da mãe sendo apoiada pelo pai, etc.), a criança torna-se capaz de [...] integrar seus impulsos destrutivos com os amorosos, e os resultados, quando tudo corre bem, é que a criança reconhece a realidade das idéias destrutivas que são inerentes, na vida, ao viver e ao amor, e encontra modos e maneiras de proteger de si mesmo pessoas e objetos valorizados. Na verdade, a criança organiza sua vida de modo construtivo, a fim de não se sentir muito mal em relação à destrutividade real que passa por sua mente.
Portanto, é quando o sujeito encontra no exterior um ambiente que contém sua agressividade, devolvendo-a de maneira metabolizada, que ele pode integrá-la com os impulsos amorosos. Essa integração se dá pelo sentimento de culpa, somente possível porque, antes de mais nada, o sujeito encontrou um objeto que lhe mostrasse que a agressividade é tolerável. Que ela é parte de si e, então, não precisa ser expelida, mas elaborada. Assim, este sentimento de culpa demanda uma responsabilização pela agressividade. Porém, antes de tudo isso, a agressividade não pode ser rechaçada pelo meio. O sujeito não pode se sentir culpado por sentir ódio, mas precisa admiti-lo como afeto humano.
Daí, pode-se hipotetizar os danosos efeitos de um ambiente, do qual o Sistema Judicial é mais um na série, que confunde punição com responsabilização, e que reduz a subjetividade daqueles que cometem atos reprováveis juridicamente à insígnia de autores.
Responsabilizar em vez de culpabilizar quando não se pode atender ao previsto pelas normas jurídicas também pode colaborar para um melhor atendimento da vítima, e para que não se questione se alguém pode ser vítima de um crime mesmo que seu comportamento aparentemente sinalize que não. Isso porque se costuma questionar a interpretação de um ato a partir de sua manifestação fenomenológica, como se um ato violento dissesse necessariamente de uma intenção de destruição. E, portanto, podemos questionar se a participação jurídica de alguém como vítima de um ato diz imediata e universalmente de seu psiquismo.
A noção de inconsciente permite pensar que alguém não precisa estar com prejuízo do funcionamento de sua consciência racional para estar vulnerável. A vulnerabilidade, para a Psicanálise, pode incluir uma deficiência ou alteração dessa função da racionalidade, mas alcança questões relativas à lógica inconsciente. Porém, o Direito Penal moderno de origem romana parece não suportar qualquer discurso que suspenda a polaridade vítima X algoz - talvez porque questionaria sua pretensa universalidade, bem como sua necessidade para todas as vítimas.
Pode ser que uma vítima de crime não queira criminalizar o que sofreu, e isto não a torna menos vítima, não devendo, portanto, deslegitimar sua condição de vítima. Ela apenas não espera que o Direito Penal a faça se sentir melhor; ou já inscreveu sua dor em seu universo psíquico a ponto de haver elaborado suficientemente e de não mais querer falar a respeito. Há, inclusive, os casos em que a vítima nem chega a se identificar com o significante "vítima", e sequer representa como violência o evento sofrido.
Para Oliveira (2010), a psicanálise em seu segmento lacaniano denuncia justamente as receitas de felicidade e serviços de bens que se propõem a garantir ao sujeito o encontro com o seu bem. Há também um alerta para os significantes que ocupam o lugar de mandatário do Outro que barra, por meio da promessa de satisfação, o acesso ao campo do desejo radical; ou o acesso ao campo do inominável e por isso conflituoso e doído do desejo. O autor lembra que, para Lacan, o Bem Supremo é uma invenção filosófica e teológica do Ocidente, nominado de diversas maneiras desde Aristóteles (Deus, a razão, as leis, a cidade, a natureza humana, o logos etc.). Tal invenção erigiu (ou erige) um ideal humano ao qual o sujeito deve atingir ou respeitar.
Aqui surge outra construção filosófica inevitavelmente associada: a da vontade própria e consciente. Só por meio dela o sujeito elevaria imaginariamente algum objeto de prazer de modo a supostamente subsidiar o alcance de sua felicidade/completude libidinal.
Gomes (2015) menciona algumas práticas jurídicas que não se orientam pelo paradigma da justiça retributiva, mas são atravessados pelo paradigma da justiça restaurativa. É pertinente discorrer sobre este paradigma, e sobre as práticas por ele subsidiadas, porque ele parece possibilitar um melhor diálogo entre Direito e Psicanálise. Inicialmente cabe destacar que este paradigma pode fundamentar a prática de qualquer profissional que intervenha em casos de conflitos interpessoais, porquanto coloca em questão o que seja "justiça". Para facilitar a compreensão da justiça restaurativa, a autora apresenta os princípios tradicionais de justiça (retributivo-punição e distributivo-reeducação) conforme resumidos por Endo (2008) e Sousa e Züge (2011).
Para estes autores, a justiça retributiva e distributiva fazem um uso dogmático do Direito penal positivo. Neste sentido, o conceito de crime é aquele estritamente jurídico; qual seja, o de violação da lei. Outra de suas características é que a concepção de culpabilidade é restrita ao indivíduo e voltada ao passado. Devido a isto, aliás, compreendem que a pena deve se dirigir unicamente ao autor do ato, e tem como objetivo que ele pague pelo que fez. Relacionada a esta característica, tem-se que nestes modelos tradicionais de justiça prima-se pelo interesse público. Assim sendo, o Estado não se mostra preocupado com as necessidades dos diretamente envolvidos no ato (infrator e vítima). A propósito, também não se propõe a atender as necessidades da comunidade, porque na justiça retributiva o monopólio é da Justiça criminal. Desta maneira, parte-se da ideia de quem melhor soluciona os conflitos não são os nele envolvidos direta e indiretamente, mas o Estado.
Em se tratando dos princípios da justiça restaurativa, por sua vez, também considerando Endo (2008) e Sousa e Züge (2011), delega-se às partes envolvidas no processo legal a administração do conflito. É importante destacar que por meio de uma Justiça criminal participativa questiona-se não apenas o monopólio estatal da justiça criminal, mas o próprio uso dogmático do Direito penal positivo já que as próprias noções do que são condutas reprováveis e da melhor resposta a elas parte dos direta e indiretamente envolvidos no conflito. O conceito de crime é complexificado, compreendendo-o como um ato que afeta tanto a vítima quanto seu ator e a comunidade. Na justiça restaurativa, o direito é flexível culturalmente, sendo usado de maneira crítica e alternativa.
Outra característica da justiça restaurativa é que ela se sustenta na persuasão, e não na dissuasão. Relacionado a isto, e retomando o foco da justiça restaurativa (a restauração), tem-se que neste modelo de justiça a restauração é compartilhada coletivamente. Assim sendo, todos os participantes do processo restaurativo são corresponsáveis pela determinação da pena. Para se compreender este aspecto, é importante lembrar que aqui a pena volta-se ao futuro, objetivando reparar o que foi perdido, e não fazer sofrer quem cometeu o dano. Espera-se que, participando da solução do conflito, a vítima assuma o protagonismo que lhe fora arrancado pelo agressor, assumindo outro lugar que não aquele ao qual foi colocada ao sofrer violação de seus direitos.
A respeito dos resultados esperados da justiça restaurativa, Endo (2008) e Sousa e Züge (2011) referem-se à conciliação entre as partes, por meio do diálogo mediado. Porém, lembram que também outros membros da sociedade afetados pelo crime são beneficiados porque têm a possibilidade de participar da busca por soluções reparativas. Há uma consideração da verdade do sujeito no processo jurídico, por meio da restituição à fala a propriedade sequestrada pela ambição da última versão (a verdadeira) dos fatos. A justiça restaurativa concebe a pluralidade de verdades.
Além disto, os autores explicam que a restauração é buscada pela própria irreversibilidade dos danos. Focando-se no futuro, então, busca-se reparar o que foi perdido material, moral e/ou emocionalmente. O acordo restaurativo (que é diferente de consenso) sustentar-se-ia na responsabilização espontânea por parte do infrator e na proporcionalidade e razoabilidade das obrigações assumidas por todos os envolvidos.
Estes resultados que a justiça restaurativa busca alcançar exigem o abandono dos ideais culturais de vingança, retaliação e violência, e o reconhecimento de que a violência é algo que circula entre nós e em nós. Desta maneira, entra-se em contato com a violência cometida ou sofrida partindo-se do princípio de que ela é inevitável. Acredita-se que admitir a violência que se sofre e comete, o que é diferente de aceitar, é o que possibilita o seu manejo. Caso a violência seja rechaçada, recai-se na perplexidade, no imobilismo e na crença de que o direito penal sempre é capaz de cuidar disso em nosso lugar.
Endo (2008) particularmente alerta que outro dos preceitos da justiça restaurativa é de que a dor individual é também coletiva. Para se compreender tal ideia, é necessário lembrar inicialmente que, na perspectiva psicanalítica, uma situação de violência pode não ser traumática. Em seguida, lembrar que, quando o é, uma das intervenções mais fundamentais é o reconhecimento dessa marca, desse dolo e desse excesso. Aliás, um reconhecimento que pode ser o próprio reconhecimento de que o traumático pode não ser completamente reparado. Em outros termos, considerar que há uma dimensão da dor que não pode ser reparada, transferida, delegada, ou atribuída a outrem é, em si, terapêutico e é, em alguns casos, o máximo que se pode fazer. Momentos de ruptura e crise exigem acima de tudo protagonismo e não apenas delegação (ao advogado, ao juiz, à prisão).
Endo (2008) refere-se a uma das práticas de justiça restaurativa (o círculo restaurativo) para dizer da importância de a dor encontrar um espaço coletivo. Para ele, a manifestação da dor singular permite ao mesmo tempo o reconhecimento do caráter narcísico do delito, e a repercussão coletiva da agressão. De qualquer forma, a tarefa é alçar essa vivência pessoal para um redimensionamento da posição do sujeito no espaço público e sua responsabilidade para com ele. Melhor dizendo, uma restauração a posteriori do convívio público. Como o próprio autor alerta, se as desculpas são fundamentais a qualquer reconciliação porque figuram, no microcosmo das relações cotidianas, como um reconhecimento compartilhado de uma ofensa, dor ou mágoa, a dor é mais leve se estamos livres do imperativo da vingança. Desta maneira, é tanto o outro quanto nós que precisamos participar da restauração daquilo que ele nos fez perder.
Nessa direção é que Endo (2008) traz, já ao final de seu escrito, o alerta de Freud em Totem e tabu de que legisla-se sempre e também para que possamos evitar a nós mesmos de repetir o assassinato primevo. Reprova-se e pune-se o outro para, indiretamente, nos contermos. Tanto mais desconsideramos o quão violentos somos em atos e desejos, de fato ou potencialmente, mais ansiamos rechaçar a violência do outro. Quanto mais admitimos a possibilidade de sermos violentos, melhor administramos as situações em que fomos violentados. Conforme, a propósito, Gomes (2015) explica, acreditar que a violência apenas está no outro é o que permite a fantasia de que lei é sempre para os outros.
Considerações finais
Partiu-se do princípio de que a noção de inconsciente contribuiria para uma maior aproximação do Direito à justiça. Melhor dizendo, para que o Direito seja realmente um instrumento da justiça. O fundamento dessa proposta é de que nem sempre a repressão é o que media o contato com o outro, que deveria ser a principal função do Direito. A repressão aniquila aquele a que diretamente se dirige, e muitas vezes também aquele que ao Direito recorre.
Ressaltou-se que colocar em primeiro plano os direitos dos sujeitos que chegam ao Direito (como vítimas e como autores) é um desafio histórico, já que a preocupação com os deveres é que esteve em primeiro plano nas origens desse campo de saber, sendo que a preocupação com os direitos surge apenas a serviço do capital. Assim, é desafiante pensar como, em casos de violência sexual, o Direito pode colocar em primeiro plano os direitos (dos autores e também das vítimas). E é ainda mais desafiador pensar que a repressão ao autor nem sempre é o que melhor o Direito pode fazer pela vítima.
Colocar em diálogo o conceito de "sujeito" foi a via escolhida para se questionar, a partir da Psicanálise, algumas noções jurídicas. O sujeito, para o Direito, é aquele previsível, universal e apreendido por meio da imagem (atos). Além disso, supostamente seria regulável por meio de códigos jurídicos, podendo inclusive restar, dessa regulação, um sujeito plenamente harmonioso na relação com o outro, o que não pode ser conseguido senão pela redução do sujeito à pura racionalidade. Ora, esse sujeito seguramente não existe em lugar e em tempo algum.
A compreensão de sujeito, para a Psicanálise, por sua vez, é aquele que não pode ser apreendido a partir de manifestações como comportamentos. Haveria uma singularidade, só compreendida no discurso, e que expressaria o inconsciente. Esse sujeito não seria universal porque a concepção de causalidade linear mostra-se insuficiente para a compreensão da subjetividade humana. A Psicanálise define o humano a partir do conceito de sujeito, e este, por sua vez, só é definível a partir da noção de inconsciente. Dessa maneira, um fenômeno externo não teria um correspondente interno. Em outros termos, não é possível generalizar os efeitos subjetivos de determinada vivência objetiva, já que cada sujeito responde à realidade objetiva de maneiras singulares. A realidade subjetiva é singular, e é apenas a partir dela que se pode acessar o sujeito.
De qualquer modo, a principal distinção entre sujeitos do Direito e da Psicanálise parece ser a que diz respeito à responsabilidade. Para o Direito, ela só se daria pela via da culpabilização e, para a Psicanálise, pela via da responsabilização. Abordou-se como a Psicanálise poderia auxiliar os operadores do Direito a conceber que alguns sujeitos cometem crimes não por serem imorais ou doentes, mas precisamente porque demandam uma resposta da lei.
A Psicanálise pode auxiliar os operadores do Direito a conceber que alguns sujeitos podem ser vítimas mesmo que não se constate uma vulnerabilidade consciente de sua parte. Em ambos os casos, a escuta do inconsciente auxiliaria a esclarecer alguns impasses trazidos caso se reduza os sujeitos à participação nos fatos analisados pelos operadores do Direito.
Sabe-se que o Direito moderno de origem romana apresenta significativa dificuldade em alcançar a concepção de "inconsciente" própria à Psicanálise. Referimo-nos ao fato de não prever a possibilidade de um sujeito ser movido também por forças inconscientes, que têm suas leis próprias de funcionamento, sempre de algum modo em choque com a consciência, com a qual estabelece relações de compromisso, jamais de conciliação. Quando muito se faz referência a uma suposta ação não movida pelo consciente, traduzindo-se pelo "desconhecimento" (o que seria, aliás, patológico) - portanto, a centralização da consciência permanece.
Ao colocarmos em diálogo Direito e Psicanálise, deparamo-nos em diversos momentos com essa diferença estrutural entre o código linguístico desses dois campos de saber: o primeiro não considera a existência do inconsciente (ou sua consideração não apresenta efeitos práticos), e o segundo sustenta-se especialmente na noção de inconsciente.
Cabe destacar que, fazendo dialogar esses campos do saber, não se pretende reduzir um ao outro, ou até pressupor que os operadores do Direito que levassem em conta o inconsciente poderiam modificar legalmente sua atuação a partir disso. Os limites legais são explícitos e universais, até porque são regidos pela ideia de consciência racional. Porém, os limites legais também possuem seus limites; mais especificamente, para o que é de nosso interesse aqui, eles não conseguem nortear inteiramente a interpretação e a aplicação que os operadores do Direito fazem da lei. Qualquer normativa, sendo um texto, não substitui o leitor.
A subjetividade dos operadores do Direito sempre está igualmente presente em suas leituras jurídicas dos atos. Ainda mais: em alguns momentos, aliás, ela parece ser o que mais orienta a prática desses profissionais. Dessa forma, talvez as considerações psicanalíticas sobre os temas tratados pelo Direito, alcançando a subjetividade de seus operadores, possam, sim, ter algum reflexo em sua atuação profissional.
Entende-se que, no campo jurídico, a Psicanálise já se encontra acompanhada pelo discurso da Justiça Restaurativa, cujas práticas por ela atravessadas apontam para a autonomia das partes em conflito. Em outros termos, falamos da pressuposição de que a solução do conflito não está num terceiro. Além disso, o paradigma da Justiça Restaurativa também coloca em primeiro plano a garantia de direitos e restauração do que foi perdido, não concebendo que a repressão seja necessariamente a via para se chegar ao melhor para todos os envolvidos.
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Artigo recebido em: 28/01/2018
Aprovado para publicação em: 27/06/2018
Endereço para correspondência
Maíra Marchi Gomes
E-mail: mairamarchi@gmail.com
Fernando Aguiar
E-mail: fernando.aguiar@ufsc.br
*Doutoranda em Psicologia/Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), mestrado em Antropologia Social/Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
**Doutor em Filosofia/Université Catholique de Louvain, professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia e do Departamento de Psicologia/Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).