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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

On-line version ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.43 no.45 Rio de Jeneiro July/Dec. 2021

 

ARTIGOS

 

Considerações psicanalíticas sobre Os elixires do diabo, de E. T. A. Hoffmann

 

Psychoanalytic considerations on The elixirs of devil, by E. T. A. Hoffmann

 

 

Fabiano Chagas RabêloI, II*; Karla Patrícia Holanda MartinsII**

IUniversidade Federal do Delta do Parnaíba - UFDPar - Brasil
IIUniversidade Federal do Ceará - UFC - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Partimos da constatação de que, apesar de sua importância para o estabelecimento das concepções de infamiliar e duplo, Freud e Rank, por razões diferentes, optam por não se aprofundar nas suas considerações sobre o romance Os elixires do diabo. Situamos então esse livro no contexto da obra de E. T. A. Hoffmann para interrogar a sua relevância para a psicanálise. Destacamos que ele evidencia a dinâmica do Unheimliche e do duplo não apenas como temática do enredo, mas principalmente, como estratégia narrativa. Fazemos referência ao conceito de complexo de Édipo e às categorias lacanianas de Real, Simbólico, Imaginário, estabelecendo daí uma conexão com as sobredeterminações, repetições e ambiguidades que a história retrata.

Palavras-chave: E. T. A. Hoffmann, Infamiliar, Duplo, Narcisismo, Literatura fantástica.


ABSTRACT

This paper is based on the observation that, notwithstanding its importance for the establishment of the concepts of the uncanny and the double, Freud and Rank, for different reasons, did not elaborate on their considerations on the romance The devil's elixirs. Thus, the novel is contextualized in Hoffmann's work to question its relevance for psychoanalysis. It is noteworthy that the book highlights the dynamics of the Unheimliche and the double not only as a theme of the plot, but mainly as a narrative strategy. Reference is made to the concept of the Oedipus complex and the Lacanian categories of Real, Symbolic, Imaginary, establishing a connection with the overdeterminations, repetitions and ambiguities that the story portrays.

Keywords: E. T. A. Hoffmann, Uncanny, Double, Narcissism, Fantastic literature.


 

 

Introdução

Comentamos neste artigo o primeiro romance do escritor alemão E. T. A. Hoffmann (1776-1822), Die elixiere des teufels (1815-16/2016), publicado em duas partes, em 1815 e 1816. Sem desmerecer a diversidade da obra de Hoffmann e a multiplicidade de leituras que suscita, é possível afirmar que, sobretudo no Brasil (BARBOSA, 2013; SILVA; COSTA, 2019), uma parcela significativa da atenção dada a Hoffmann pela crítica especializada é influenciada pela referência feita por Freud ao Homem de areia - Der Sandmann (HOFFMANN, 1817/2015) - no artigo Das Unheimliche (FREUD, 1919/1997), traduzido para o português por estranho, inquietante, ominoso (HANS, 1996), infamiliar (IANNINI; TAVARES, 2019) e, mais recentemente, incômodo (SOUZA JR., 2021). Retomando esse ensaio, contudo, há nele a menção a outro texto de Hoffmann: Os elixires do diabo. Freud, no entanto, prefere não se aprofundar na discussão desse livro por considerar a sua trama demasiadamente rica em detalhes e intricada, ou seja: "zureichh altigund verschlungene" (FREUD, 1919/1997, p. 257).

Apesar do modo pontual como se dá essa referência, Freud declara que a leitura desse romance foi de significativa importância para o desenvolvimento da concepção do infamiliar (FREUD, 1919/1997). No mesmo ano, volta a falar sobre esse livro (FREUD, 1919/2019), desta vez trazendo uma citação direta, que relaciona à discussão sobre o estatuto da consciência na psicanálise.

É possível situar algumas razões que explicam a preferência dada ao Homem de areia em detrimento de Os elixires no ensaio de Freud de 1919. Ao tratar do fenômeno do infamiliar, Freud parte de uma crítica ao artigo de Jentsch (1906), no qual o comentário do conto de Hoffmann é posto em destaque. Além disso, Freud opta por, no contexto de um trabalho mais conciso, aprofundar-se na análise de um texto com o enredo tão complexo, sobretudo quando a discussão que promove inclui referências a várias outras obras literárias de autores diferentes (PORTUGAL, 2006). Concluímos daí que a ênfase no conto em detrimento do romance se deve em grande parte à busca por concisão e pela necessidade de contemplar uma tese preexistente sobre o infamiliar que já explorava a história do Sandmann.

Levando em consideração que Freud (1919/1997) não explicita o uso que faz de Os elixires no contexto da discussão sobre o infamiliar, cabe então perguntar de que forma e a partir de quais elementos a leitura desse livro contribuiu para construção desse conceito. Partimos da premissa de que a predominância de uma tradição na abordagem desse tema centrada no comentário do Sandmann favoreceu que essa questão permanecesse em segundo plano. No Brasil, tal tendência é agravada pela ausência de uma tradução para Os elixires1. Com exceção de Andrade (2000), Portugal (2006) e Cesarotto (1996), é raro encontrar na psicanálise um autor que tenha se detido mais demoradamente na análise desse livro. Do exposto, defendemos que esse romance, na condição de um texto seminal para o desenvolvimento da concepção do infamiliar, ainda pode ser mais explorado.

Vale lembrar que, cinco anos antes de Freud, Rank (1914)2 já havia realizado interessante discussão da obra de Hoffmann que contemplou, além dos textos citados, outros trabalhos do escritor alemão. Assim, enquanto o Sandmann em Freud torna-se uma espécie de paradigma literário da experiência do infamiliar, Rank se vale de várias referências de diferentes livros para tratar do fenômeno do duplo. Considera-se o seu artigo Der Doppelgänger um texto precursor da discussão do Unheimliche e um nexo fundamental entre a abordagem psicanalítica do narcisismo e da literatura romântica e fantástica do século XIX. No entanto, nesse caso, mesmo havendo uma abordagem mais diversificada da obra de Hoffmann, a abordagem de Os elixires também é pontual.

Alicerçado nessas considerações, tomamos como objetivo contextualizar o romance citado na obra de Hoffmann e na discussão psicanalítica, destacando as contribuições de críticos literários, biógrafos e psicanalistas que se ocuparam desse texto. Argumentamos que o duplo e o infamiliar não constituem apenas uma temática explorada nesse livro, mas também uma estratégia narrativa. Exploramos os encontros aparentemente ao acaso entre Medardus e seus familiares, salientando a etimologia dos seus nomes e o lugar de cada um na árvore genealógica. Ao final, realizamos uma analogia entre o périplo do personagem principal e o de Édipo na tragédia de Sófocles (1998) para pôr em destaque a íntima relação entre o infamiliar, o sexual e o Real no processo de constituição psíquica.

 

O livro na obra de Hoffmann

E. T. A. Hoffmann contava 38 anos quando publicou a primeira parte de Os elixires do diabo. Sua estreia na literatura havia ocorrido poucos anos antes, em 1812, com o conto Ritter Gluck (BARBOSA, 2013). Levando em consideração a data de sua morte, 1822, percebe-se que a sua carreira como escritor de contos e romances durou pouco - apenas uma década -, apesar de intensa e profícua.

Deve-se assinalar, contudo, que a sua obra é muito mais vasta. Abrange áreas diferentes, ultrapassando os limites da literatura. Abarca áreas aparentemente distantes entre si tais como a música, a pintura, a ilustração, a dramaturgia, o Direito, além de resenhas de obras literárias, teatrais e musicais. De acordo com Safranski (2018), Hoffmann pagou alto preço pelo seu ecletismo: o desenraizamento. Por transitar com proficiência por diferentes áreas, ele não teve em vida o merecido reconhecimento em nenhuma delas.

A sua vida foi marcada por separações, doenças, processos judiciais, dívidas, perseguições políticas, pela errância e pelo alcoolismo. Hay (2016) lembra que seu último romance, Meister Floh - Pulga Mestre -, foi confiscado e censurado, sendo que a sua publicação só ocorreu após a sua morte, mesmo assim sob a condição de exclusão de um capítulo, que supostamente faria alusão a um desafeto político.

A constelação familiar do escritor alemão também tinha certas particularidades que se refletiram na sua produção artística. Freud (1919/1997), baseando-se no prefácio biográfico de sua edição das obras de Hoffmann, conjectura que a separação ainda na primeira infância do escritor de seu pai e de seu irmão foi uma experiência decisiva na sua vida.

É possível traçar um paralelo entre esse episódio e o enredo de Os elixires: tanto lá como cá, há dois irmãos, que crescem e são educados separadamente. No caso do romance, trata-se de dois meios-irmãos que só se conheceram adultos e que têm forte semelhança entre si (HOFFMANN, 1815-16/2016).

Apesar dessa proximidade entre realidade e ficção, é importante demarcar algumas diferenças. Consta que Hoffmann nunca voltou a reencontrar o seu irmão após a separação dos pais (SAFRANSKI, 2018). Dessa forma, enquanto a relação do escritor com seu duplo se desdobra no plano da fantasia e da produção literária, o protagonista do romance - Franz/Medardus -, sem inicialmente se dar conta disso, é progressivamente capturado em uma teia de delírios, rivalidades e paixões erotomaníacas com seus familiares.

Desse modo, percebemos na estrutura do romance o cerne da dialética do infamiliar. Tal como sublinhado por Freud, o Unheimliche não é consequência de um despreparo ou desconhecimento frente a algo novo e inédito, como sugere a leitura que Freud (1919/1997) faz de Jentsch (1906) à luz do comentário do Sandmann3. Tal sentimento decorre da emergência de algo íntimo - de alguma forma já conhecido -, que se encontrava até então em estado latente.

Defendemos que tal fórmula adequa-se muito bem ao comentário do livro de Hoffmann. Nele, o enigma da origem familiar, que o protagonista ao mesmo tempo sabe e desconhece, é a mola propulsora da trama. Assim como na tragédia de Sófocles (1998), o romance se desenvolve em torno da realização de uma maldição familiar engendrada por um ancestral, transmitida de geração a geração. Vale lembrar que no texto de Sófocles, Édipo, ao tentar fugir da profecia do oráculo, que previa que ele assassinaria o próprio pai e deitaria com a sua mãe, acaba por realizá-la. Da mesma forma, o percurso de Franz/Medardus concretiza uma espécie de expiação da maldição familiar por meio de uma série de assassinatos e crimes, que ele, a todo custo busca evitar, sem sucesso.

Como já ressaltado, entre os seus contemporâneos os livros de Hoffmann obtiveram discreto reconhecimento. A crítica especializada dividia-se na avaliação de seu trabalho: abjeto para uns - como atestam as recensões negativas de J. W. Goethe (BARBOSA, 2013; SAFRANSKI, 2018) - sublime para outros. Dentre os detratores, W. Scott (1771-1832) - escritor e crítico escocês - talvez tenha sido o mais feroz. Ele dizia que o espírito sombrio e doentio das histórias de Hoffmann poderia causar malefícios irreversíveis para a saúde dos seus leitores (HAY, 2016).

Wittkop-Ménardeau (1968), por sua vez, em sua coletânea de cartas e anotações de Hoffmann, reproduz algumas resenhas favoráveis redigidas por literatos de renome como L. Börne (1786-1837) e C. J. H. Heine (1797-1856). Já nesse momento, ressaltava-se o nexo entre a sua obra literária e o romance gótico inglês. Essas resenhas chamam atenção, sobretudo, para o paralelo entre Os elixires e o livro O monge, de M. G. Lewis (1775-1818) (LEWIS, 1796/1999). Apesar das semelhanças, a originalidade do trabalho de Hoffmann é destacada. Um exemplo disso é a avaliação de C. F. Hebbels (1813-1863), que sublinha a dificuldade de situar os textos de Hoffmann nos gêneros literários então em voga (HAY, 2016).

Em razão dessa divisão da crítica especializada e do estranhamento que os seus textos produziam mesmo entre os admiradores, a obra de Hoffmann só ganhou destaque após a sua morte, principalmente depois de sua tradução para o francês, o que contribuiu para que ela influenciasse toda uma geração de escritores desse país, tais como T. Gautier (1811-1872), G. de Maupassant (1850-1893) e C. Baudelaire (1821-1867). Tal fato o tornou um dos precursores da literatura fantástica no século XIX (BATALHA, 2003).

É digno de nota o interesse de Hoffmann pela psicopatologia médica de seu tempo. Percebe-se que vários elementos das teorias médicas sobre as doenças mentais e nervosas são incorporados como argumentos em seus romances. Todavia, é necessário reconhecer que as observações clínicas contidas nos textos de Hoffmann têm contundência e originalidade que transcendem a medicina que lhe inspirou. A influência da tradição romântica e a sua criatividade artística possibilitaram uma abordagem singular do sofrimento psíquico e da loucura, o que constitui uma das marcas da sua produção literária (CANTAGREL, 2004; LACHENMAIER, 2007; PETERS, 1991; TÖLLE, 2012).

No caso específico de Os elixires, o livro explora o entrecruzamento de diferentes matrizes explicativas do fenômeno da loucura, lançando a seguinte questão: seriam os infortúnios e atribulações de Medardus consequência de uma doença mental hereditária ou de uma maldição familiar, fruto de um pacto diabólico? Vejamos como esse dilema é tratado no livro.

 

O duplo como tema e estratégia narrativa

Os elixires do diabo (HOFFMANN, 1815-16/2016) conta a história de Franz, que, ainda criança, ao ingressar no mosteiro da cidade de B., assume o nome Medardus. Ele é confiado pela mãe aos cuidados dos Monges para se tornar padre. Sua esperança era que, por essa via, o filho expiasse os pecados do pai e, dessa forma, escapasse do destino que se abatera sobre ele.

De acordo com Stiegler (1995), há forte simbolismo presente no nome que o protagonista assume. Os santos Medardus e Gildardus, segundo o autor, foram irmãos gêmeos, que se ordenaram bispos e morreram no mesmo dia. Logo, a escolha assinala o destino compartilhado que se evidencia entre o protagonista e o seu meio-irmão e sósia, o conde Viktorin.

Essa íntima e ao mesmo tempo ameaçadora conexão entre o personagem e o seu duplo, sobretudo no que diz respeito a sua relação com a morte, é tema bastante explorado nas histórias fantásticas, como sublinha Rank (1914). Talvez o exemplo mais conhecido dessa tradição seja o conto de E. A. Poe (18091849), William Wilson (POE, 1839/2016).

Para Rank (1914), o Eu (Ich) não é uma instância natural, endógena e congênita. Trata-se de uma aquisição psíquica que é consolidada pouco a pouco no curso do desenvolvimento. Partindo da referência ao animismo e aos modos de expressão dos povos ditos primitivos, Rank sustenta que o Eu se organiza inicialmente como uma referência externa, na relação com o outro, para só depois, em fase mais tardia, ser interiorizado. Daí a crença presente em muitos povos no pensamento mágico e na influência telepática. O duplo é, portanto, um precursor do Eu, cujas manifestações são perceptíveis durante toda a vida, não se restringindo ao pensamento infantil ou a fenômenos psicopatológicos.

A temática do duplo está no cerne da trama de Os elixires. O livro adota uma narrativa em primeira pessoa. Tal como acontece em diversas histórias fantásticas, a narrativa busca simular um tom documental (TODOROV, 2012). O prefácio é apresentado como tendo sido redigido por um suposto editor, que declara ter encontrado as anotações de Medardus em um convento. Esse editor confessa a dificuldade em decifrar a caligrafia gótica do monge e pondera a possibilidade de sua leitura ter ocasionado distorções e equívocos. Ele também se diz surpreendido com o caráter bizarro e desconcertante de alguns acontecimentos descritos no manuscrito. Já perto do final do livro, ele volta a se manifestar, dessa vez para comentar as cartas anexadas ao manuscrito que Medardus encontrara na Itália e que relatam os verdadeiros nexos genealógicos de seus antepassados. No desfecho da trama, o editor também aparece para assinalar o câmbio da narrativa. Dessa vez, é o monge que habita o quarto vizinho a Medardus que toma a palavra para descrever os momentos finais do protagonista.

É interessante esse recurso literário, pois reforça a dúvida do leitor. Percebemos que a própria estrutura da narrativa está organizada em torno da intenção de abalar as convicções cotidianas e favorecer uma situação de maior receptividade em relação a um fato que é apresentado inicialmente como absurdo ou insólito (ROAS, 2014). Porém, uma sombra de desconfiança sempre paira sobre o relato, criando uma conjuntura na qual nenhuma interpretação pode ser reduzida aos dados objetivos apresentados. Tal estrutura narrativa fomenta, por sua vez, a assunção de uma asserção subjetiva, que deve ser atualizada e revista a cada nova leitura.

Os erros de decodificação e as hesitações que permeiam o trabalho do editor redobram, portanto, as contradições do protagonista, convocando o leitor a se confrontar com o dilema deste a partir dos seus próprios conteúdos psíquicos.

É possível fazer uma conexão entre as falhas de codificação que inquietam o editor/narrador da história com a própria natureza da fantasia, uma vez que a estrutura desta última está alicerçada nas distorções e falhas do processo de tradução da percepção em memória. O modelo de aparelho psíquico psicanalítico parte da premissa de que o acesso à realidade é uma construção inevitavelmente parcial e inconclusa, posto que mediada pela linguagem. Daí que toda recordação é também uma invenção, uma transformação de um registro preexistente. Segundo essa perspectiva, não há uma correspondência imediata entre o real e os registros mnêmicos, conforme se lê na carta que Freud endereçou a Fliess em 06 de dezembro de 1896 (MASSON, 1986). Dessa forma, o funcionamento do psiquismo orbita em torno de um núcleo Real que resiste à simbolização. Trata-se do ponto mais íntimo e fundamental da realidade psíquica e, ao mesmo tempo, o mais opaco e estranho (LACAN, 1964/1998).

Assim como acontece na fantasia, a descontinuidade entre a objetividade dos eventos da realidade e as narrativas construídas em torno deles é a tônica do texto de Hoffmann. Sua narrativa distancia-se de uma perspectiva linear, explorando amplamente as fraturas da enunciação dos personagens. Em diversos trechos, o enredo reflete as interrupções do fluxo da consciência de Medardus, seus delírios e alucinações. Não raro, a fronteira que permite distinguir em que ponto cessam os pensamentos do personagem e onde começam as falas de seus interlocutores torna-se turva, sobretudo quando se trata dos diálogos entre o protagonista e o seu meio-irmão, o conde Viktorin, com o qual ele diversas vezes troca de identidade.

Algo semelhante ocorre na relação entre Medardus e Peter Schönfeld, também chamado de Pietro Belcampo - tradução literal de seu nome para o italiano -, que invariavelmente aparece na trama quando o protagonista se encontra em apuros, em um momento de desorganização mental. Sua mediação proporciona um trabalho de estabilização das crises e de reintegração do Eu. Salientamos por exemplo, que Schönfeld/Belcampo apresenta-se como um artista/cabeleireiro, que, ao proporcionar transformações na sua aparência, possibilita que Medardus assuma a identidade de um alter ego e, dessa forma, consiga escapar das inúmeras perseguições e acusações das quais se torna alvo.

Salientamos que, para Freud (1923/1997), a matriz do Eu é a imagem corporal. Com Lacan (1949/1998), trata-se do reflexo do corpo no espelho. Tal imagem exterior, quando vivenciada como unidade sincrônica, permite a antecipação do controle motor e a assunção de uma representação da identidade de si, que é vivida com júbilo pela criança a partir da segunda metade do primeiro ano de vida.

Freud (1914/1997) ressalta que o Eu tem importante função na regulação da dinâmica libidinal, desempenhando o papel de reservatório para onde a libido flui quando o objeto real exterior visado pelo investimento psíquico está ausente ou temporariamente indisponível. Nesse caso, a libido reflui para o Eu e busca o prosseguimento da satisfação por intermédio da fantasia.

Essa referência ao narcisismo é importante, pois no texto de Hoffmann, percebe-se uma série de trocas de identidades. O protagonista inicia a história como Franz, torna-se Medardus para, em seguida, assumir o lugar de seu meio-irmão, Viktorin. Posteriormente, adota a identidade fictícia de Leonard, o estudante polonês viajante. Por fim, já na Itália, onde tem acesso ao diário de seu antepassado, volta a ser o monge Medardus.

Percebe-se, portanto, que a questão do duplo comparece não apenas como uma temática do enredo. A própria estratégia narrativa do livro assume a perspectiva da duplicação e fragmentação dos processos psíquicos dos personagens principais.

De acordo com Portugal (2006), o fenômeno do duplo pode se apresentar de três formas estruturalmente distintas, mas correlacionadas, que a autora, a partir da referência a Freud, agrupa segundo as categorias lacanianas de Imaginário, Real e Simbólico. A dimensão do Imaginário refere-se à duplicação de si - do próprio Eu - em outra pessoa ou em uma imagem exterior, fenômeno que Freud (1919/1997) nomeia em referência a Rank de Ich-Verdopplung.

Trata-se, segundo Rank (1914), de uma estratégia bastante arcaica no curso do desenvolvimento psíquico. Ela constitui uma proteção contra o desamparo e a finitude, haja vista que o alter ego acena com a possibilidade da perpetuação de si após a morte. Outrossim, como Freud (1923/1997), Rank (1919) e Lacan (1949/1998) pontuam, essa relação pode igualmente ser extremamente ameaçadora, angustiante e mobilizadora de agressividade, uma vez que, se o outro pode assegurar a consistência de minha identidade e a continuidade da minha existência, ele também pode determinar o meu aniquilamento e a minha dissolução.

Defendemos que essa ambivalência em relação a uma alteridade, que é repetidamente incorporada e expulsa, reconhecida e denegada, é a tônica da experiência do duplo. A partir dessa ambivalência, percebemos o seu nexo com o sentimento do infamiliar (Unheimliche).

A vertente simbólica do duplo diz respeito à divisão do aparelho psíquico (PORTUGAL, 2006), Ich-Verteilung, nas palavras de Freud (1919/1997), literalmente fragmentação ou repartição do Eu. Essa modalidade de divisão, conforme estabelecido nas duas tópicas freudianas, redobra no âmbito interno a dialética que se apresenta externamente como uma tensão entre o Eu e o outro (FREUD, 1923/1997). O Simbólico, fundamentalmente, se refere aos efeitos do significante no psiquismo. Trata-se de um ordenamento diacrônico de uma sequência de unidades significantes que, a partir de um corte, produz um efeito pontual e evanescente de significação, que evidencia a estrutura sincrônica e coesa das cadeias significantes (LACAN, 1964/1998).

Dessa forma, seguindo o raciocínio de Portugal (2006), é possível afirmar: assim como o Eu é o outro (LACAN, 1949/1998) no contexto de uma abordagem imaginária do duplo, da perspectiva do Simbólico, cabe dizer que o Eu não é senhor em sua própria casa (FREUD, 1917/2001).

A dimensão Real do duplo (PORTUGAL, 2006) corresponde a Ich-Verstauchung freudiana (FREUD, 1919/1997) e concerne às experiências de fusão ou confusão com outra pessoa - literalmente, confusão ou troca do próprio Eu -, tal como se verifica em algumas vivências descritas na psicopatologia: a telepatia, a imposição de pensamentos e o delírio a dois. A rigor, o Real refere-se às repetições e insistências da pulsão, que não se deixam reduzir a uma apreensão simbólica e/ou imaginária da realidade. Lacan (1964/1998) nomeia essas repetições do Real como Tyche, palavra grega traduzida como fortuna ou destino, em contraposição ao automaton, que sinaliza uma modalidade de repetição ordenada pela cadeia significante.

No livro, é possível identificar esses três avatares do fenômeno do duplo: 1) o imaginário, na relação entre Medardus e Viktorin, que oscila entre a cooperação e a repulsa, a solidariedade e a agressão; 2) a simbólica, sobretudo nos momentos em que o protagonista busca se reconstituir após as crises dissociativas, quando o fluxo narrativo assume a própria percepção do dilaceramento interno do personagem; 3) o Real, na sincronia de pensamentos e intenções entre Medardus e Viktorin, especialmente no desfecho da história, em que este de repente surge para concluir o ato que o primeiro hesitou em executar.

Vale destacar como exemplo das manifestações da vertente simbólica do duplo no livro o trecho escolhido por Freud. Trata-se de um fragmento da fala de Schönfeld/Belcampo dirigida a Medardus, citado em uma nota contemporânea ao ensaio do infamiliar:

O que você acha disso? Quero dizer, dessa especial função mental chamada consciência, que nada mais é que a execrável atividade de um maldito fiscal - oficial aduaneiro - assistente superior de controle, que subiu para o seu desgraçado escritório num quartinho superior e de lá diz, quando a todo produto que dali quer saír: "ei, ei... é proibida a exportação... vai ter que ficar no país" (FREUD, 1919/2019, p. 127).4

É possível conjecturar que, na história, Schönfeld/Belcampo representa uma produção delirante do próprio Medardus, que organiza e dá suporte às suas alucinações e automatismos mentais, possibilitando um trabalho de estabilização. Dessa forma, por refletir um instante de convalescença e um trabalho de reorganização psíquica, a fala de Belcampo é capaz de explicitar a verdadeira natureza da consciência: o seu caráter lacunar, descontinuado e a carência de uma essência que lhe defina. Daí ser possível afirmar que Hoffmann aponta para a ausência de um ser - Sein - da consciência. No alemão, consciência é uma palavra composta - Bewusstsein -, que substancializa uma qualidade efêmera e fugaz, a de estar Consciente de algo (bewusstsein).

É ainda possível interpretar o próprio arco do desenvolvimento do enredo do livro a partir das formas de tratamento do Real pelo Simbólico e o Imaginário. De acordo com Stiegler (1995), Os elixires demarca uma diferença crucial entre Medardus e seus antepassados. As gerações anteriores, que possuíam em comum o nome - Franziskus - ou, pelo menos, a sua abreviação -Franz -, eram pintores que buscavam fazer frente ao risco de realização da maldição familiar por meio da produção pictórica. Já Medardus, um orador, destaca-se pelo uso da palavra e pela capacidade de arrebatar a audiência com seus discursos. No entanto, ao explorar e exercitar a sua capacidade de magnetizar a atenção da plateia, o protagonista, assim como ocorreu com seus antepassados, se vê refém de suas próprias habilidades, sendo tomado por uma sensação de autossuficiência e arrogância.

Dessa forma, tanto o dom da pintura dos ancestrais de Medardus como a sua habilidade de improvisar discursos são ameaçados por uma inibição, que serve de gatilho para um processo dissociativo mais amplo. Essa situação leva os personagens a recorrerem a uma bebida demoníaca, tida como capaz de restituir, ainda que momentaneamente, a inspiração artística.

Para a psicanálise (FREUD, 1926/1997), a inibição é definida como uma limitação de uma função do Eu, cujo livre exercício pode desencadear o desenvolvimento de uma tendência pulsional percebida como ameaçadora. Trata-se de um mecanismo de defesa que complementa ou substitui a operação do recalque, mas que se distingue deste.

Deduz-se, portanto, que a inibição que recai sobre o orador Medardus e sobre os seus ancestrais pintores vem indicar que há um conteúdo fortemente sexual implicado no exercício dessas atividades artísticas. Percebe-se que a prática de sua habilidade de orador acaba por favorecer a expressão de determinados conteúdos, que engajam Medardus no rastro de seus antepassados em direção às suas origens. Dessa forma, o percurso de Medardus, que inicialmente visava a recuperação da fé e o desenvolvimento de seus dons artísticos e virtudes, revela no seu desfecho a presença perene de um mal radical e incontornável, que se confunde com a própria perpetuação de sua linhagem familiar.

O caráter do protagonista, assim como o seu percurso na história, pode ser considerado a amálgama de tendências e qualidades opostas e contraditórias: a busca pelo sagrado e a presença seminal do demoníaco; a virtude e a inclinação ao crime; a aspiração à ascese e a irrupção brusca das moções sexuais; a razão e a loucura; o nobre e o plebeu e, por fim, o religioso e o libertino. O livro joga com a indeterminação, deixando ao leitor a tarefa de decidir a verdadeira natureza da maldição em questão.

 

O infamiliar na árvore genealógica de Medardus

O ponto de partida da saga de Medardus é a sensação de paz que ele vivencia no mosteiro. No decorrer da trama, tal harmonia é radicalmente abalada. Criado desde pequeno pelos monges, o protagonista inicia sua narrativa com suas lembranças mais antigas, sobretudo as referidas à mãe. Segundo ela, o pai de Franz/Medardus estabelecera um pacto com o demônio. Ele, porém, se arrependeu no leito de morte, no momento do nascimento do filho, obtendo por essa via a salvação de sua alma.

Em decorrência de sua origem, de acordo com sua mãe, Franz/Medardus deveria dedicar-se à vida espiritual e eclesiástica e, dessa forma, escapar à maldição que assolou o pai por toda a vida. Por isso, ele foi confiado à abadessa para que crescesse e se educasse em um ambiente religioso.

O relato de Medardus destaca a admiração que nutria pela mãe, de acordo com suas palavras, uma mulher simples, de origem camponesa. Suas virtudes, por sua vez, contrastavam com as veleidades que marcaram a vida de seu pai, um nobre de família abastada, que se deixou levar pelo orgulho e pela arrogância. Outro personagem que é igualmente respeitado pelo protagonista é o prior Leonardus, que, além de um substituto paterno, desempenha na história a função de testemunha e depositário dos segredos da família. Uma terceira figura de autoridade é a abadessa. Descobre-se durante a leitura que ela é, na verdade, uma tia paterna de Medardus.

O fato de a admiração à Abadessa se misturar a uma forte moção erótica traz à tona um traço central na construção do enredo do livro. A saber, que o mistério da origem familiar do protagonista é atravessado por um forte elemento sexual incestuoso. Assim, a trama é construída em torno da atração exercida pelo estranho, íntimo, que se revela, pouco a pouco, com o desenrolar dos acontecimentos na trama, algo inesperadamente familiar.

O livro, por meio da jornada de Medardus, descreve os efeitos de uma força misteriosa que une os descendentes de um pintor ancestral, um aprendiz desgarrado de Leonardo da Vinci, que realizou um pacto com o diabo para desenvolver as suas habilidades artísticas. Assim, o encontro com os parentes potencializa e torna manifesto em Medardus o que já se encontrava presente, em estado latente, na origem familiar.

Uma cena de sua infância é contada com nitidez: ainda bebê, na floresta, junto à mãe, Franz/Medardus posa para um quadro, que é pintado por um artista misterioso. Essa esparsa lembrança constitui o ponto de partida da jornada que o protagonista trilhará quando adulto. É importante destacar que, no mosteiro, sem se dar conta disso, Franz/Medardus mantinha contato constante com a produção pictórica de seus antepassados, que lhe atraia de maneira surpreendente.

Destacamos a relação peculiar do protagonista com o quadro de Santa Clara. Vale a pena resgatar um pouco dos detalhes acerca dessa obra na história. Santa Clara viveu na mesma cidade de São Francisco, Assis, sendo ela própria sua seguidora e fundadora da ordem das freiras franciscanas. Diz-se que durante a vida, malgrado a sua beleza e riqueza, ela sustentou os votos de pobreza e castidade.

São os inquietantes momentos de contemplação do quadro de Santa Clara que abalam a fé do monge. Algo nele o atraía e o desconcerta. A situação se agrava quando Medardus se depara com Aurelie, uma jovem de origem nobre, que se revela sósia da imagem da pintura. Numa ocasião, em confissão, sem saber que se dirigia a Medardus, Aurelie manifesta a sua atração pelo monge, o que acirra ainda mais os suplícios de Medardus.

Outro momento perturbador é quando o protagonista durante um sermão é surpreendido pelo olhar de uma figura misteriosa na plateia, que ele posteriormente identifica como sendo o pintor misterioso, o seu ancestral paterno. Tomado subitamente por uma inibição, o seu dom da oratória desaparece. Medardus resolve então recorrer à relíquia sagrada guardada em uma das salas do mosteiro. Trata-se de um líquido diabólico supostamente capaz de restituir a sua potência criativa. Medardus, contudo, hesita e não conclui o ato.

Nesse instante, irrompe na sala o conde Viktorin - seu sósia e, como depois Medardus fica sabendo, seu meio-irmão - acompanhado de um criado. O conde o desafia a beber o líquido, qualificando as admoestações dos monges acerca da bebida como mera superstição. O protagonista cede às investidas e sorve um longo gole.

Doravante, seu estado mental só piora. O prior Leonardus, conhecedor do histórico de doenças mentais da família, decide enviar Medardus para uma missão em Roma, com a esperança de que, longe do convento, em contato com o ar puro, o pupilo restabelecesse a saúde.

Esse é o pontapé inicial da saga, que começa e termina no mosteiro. Na sua jornada, o protagonista toma conhecimento de sua ascendência e realiza o seu destino, ao mesmo tempo em que busca fugir dele.

É curioso notar que o processo que leva à desestabilização do protagonista é composto por várias camadas, que enodam referências a diferentes familiares de Medardus: a abadessa, o pintor misterioso, Aurelie e Viktorin. O elixir constitui um dos elos entre Medardus e a maldição de seus ancestrais. Outro componente crucial para a trama é o quadro da Santa. Em Roma, após passar por severos sofrimentos e expiações, chegam às mãos de Medardus as cartas que revelam o segredo de sua origem.

No manuscrito, Medardus toma conhecimento de que seu antepassado pintor, após romper com o seu tutor - Leonardo da Vinci -, aceita uma encomenda da congregação dos franciscanos para retratar a santa padroeira da ordem. Antes de concluir o quadro, quando restava apenas o rosto por fazer, ele se vê tomado por forte inibição criativa. Assim como Medardus, o pintor recorre à bebida diabólica para concluir o que viria a se tornar a sua obra-prima. Influenciado pela bebida, o antepassado do protagonista realiza uma blasfêmia: substitui o rosto da santa pelo da Vênus, a deusa grega do amor. Nessa mesma noite, ele é visitado por uma misteriosa mulher, uma camponesa que tinha as mesmas feições do quadro. Os dois passam a noite juntos e, como fruto dessa união, surge a descendência dos antepassados de Medardus.

Fig. 1: A árvore genealógica de Franz-Medardus5

Fonte: Hay, 2016, p. 382

Retroagindo sobre esse momento que inaugura a maldição, o livro joga com uma sequência de encontros erráticos e inusitados entre o protagonista e seus familiares, que produz nos personagens uma estranha sensação de déjà vu ou déjà connu6, ou seja: a falsa percepção de já conhecer ou ter visto alguém. Defendemos que essas coincidências que unem Medardus e seus familiares podem ser consideradas distiquias, encontros faltosos com o Real (Lacan, 1964/1998b).

Logo no início da viagem a Roma, Medardus volta a se encontrar com Viktorin. Dessa vez, o conde traz o hábito de um monge, o que ressalta ainda mais a semelhança entre os dois personagens. Os dois travam uma briga, cujo desfecho é a queda do conde em um precipício. O criado deste, que assistiu à disputa sem interferir, acolhe Medardus, tomando-o por seu mestre. Esse mal-entendido gera consequências nefastas.

A primeira parada da viagem acontece em um vilarejo nas proximidades do precipício. Nele, o monge permanece alguns dias a convite do Barão, cujo filho Hermogen necessitava de aconselhamento espiritual. No entanto, as coisas fogem do controle. Medardus é envolvido em um complô para assassinar o seu anfitrião, arquitetado por Euphemie - a esposa do barão - e o conde Viktorin. O plano incluía a morte do Monge, que seria substituído pelo conde, que havia sido banido do vilarejo por sua má conduta. Dessa forma, o disfarce de monge facilitaria a presença de Viktorin no castelo junto à amante.

É importante acrescentar que todos na família do barão, exceto ele próprio, possuem algum parentesco com Medardus. A primeira mulher do barão, já falecida, cujo nome é o mesmo da filha, é uma prima distante do protagonista. Euphemie, a atual esposa do barão é filha dessa Aurelie, a esposa falecida do barão, com o pai de Medardus. O conde Viktorin, por sua vez, é fruto de uma relação extraconjugal deste. Daí que Medardus, Viktorin e Euphemie são meios-irmãos por parte de pai.

Vale a pena se ater um pouco mais à etimologia dos nomes, que agrega informações importantes à história. Hermogen é formado pelo prefixo Hermes, o deus grego mensageiro do Olimpo, e o sufixo gen, que significa descendência, geração, prole. Trata-se de um jovem melancólico, com tendências suicidas. Medardus é convidado pelo barão para aconselhar o filho e, dessa forma, reabilitar a sua fé e juventude, que havia recentemente assumido tendências obscuras. Não obstante, o que acontece é justamente o contrário. Hermogen revela que todos os esforços e boas intenções de Medardus eram em vão, que, no seu íntimo, ele não acreditava nas suas próprias palavras. A sua pregação constituía, portanto, uma hipocrisia, uma impostura.

Segundo Cantagrel (2006), Hermogen assume a função de mensageiro da verdade, que desvela a real natureza do Monge. O seu temperamento melancólico torna possível que ele não se iluda com falsas esperanças e autoindulgências e daí consiga ver com clareza as coisas como elas realmente são, mesmo que isso seja insuportável.

Já Euphemie, também de origem grega, significa literalmente bem-dizer. Trata-se aqui de um dizer verdadeiro e genuíno. O nome também designa uma figura retórica, cuja característica principal é suavização de ideias chocantes e perturbadoras, tornando-as aceitáveis.

Euphemie seduz e se deita com Medardus, tomando-o por Viktorin. Ao descobrir que ele não era o conde, tenta convencê-lo a participar do homicídio. Diante da relutância do monge, ela resolve envenená-lo. Para se defender, Medardus troca o copo com veneno que Euphemie havia lhe oferecido por outra taça de vinho.

Enquanto Euphemie agonizava, Hermogen adentra no recinto e ataca Medardus, acusando-o de assassinato. O protagonista o apunhala em meio a um confronto corporal. Na fuga, acidentalmente, Medardus põe fogo no castelo, mas consegue sair do vilarejo ileso e livre com a ajuda providencial de Schönfeld/Belcampo.

A partir daí, o monge assume a identidade de Leonard, um fictício estudante polonês em viagem pela Alemanha. Vale ressaltar a semelhança desse heterônimo com o nome do prior do mosteiro de B. que Medardus tanto admirava.

Já como Leonard, o protagonista é acolhido na casa de uma família de camponeses. Convidado para uma caçada, o viajante e os seus anfitriões se deparam com Viktorin, que se encontrava extremamente machucado, sujo e perturbado. Os camponeses, todavia, o identificam como Medardus, cuja fama de homicida e incendiário havia se espalhado por toda a região. Ele é então aprisionado como um louco perigoso e, no cativeiro, desenvolve forte conexão com o protagonista. Não escapa à família de camponeses a estranha semelhança entre Leonard e o prisioneiro, ainda que este se encontrasse barbado e maltrapilho. Também é notado que a presença do protagonista parecia acalmar o suposto monge louco, que normalmente era agitado e agressivo.

A jornada prossegue e o protagonista deixa para trás o seu meio-irmão e a família de camponeses. A próxima parada acontece em uma cidade próxima, cujo governante, um príncipe culto e generoso, aceita hospedá-lo. Na mesma cidade também se encontrava Aurelie, que havia sido acolhida pelo príncipe após a tragédia que se abatera sobre a sua família. O barão, desgostoso com a morte da segunda esposa e do filho, solicitou ao príncipe que hospedasse a sua filha para que ela pudesse encontrar um noivo e então se casar.

O reencontro com Aurelie é marcado por estranha atmosfera de repulsa e atração. Enquanto via no seu disfarce a oportunidade de concretizar a paixão cultivada desde o primeiro encontro no convento, o protagonista temia ser reconhecido, desmascarado e denunciado. Já a moça, mostrava-se confusa e esquiva diante das investidas do viajante.

Um dia, porém, Leonard/Medardus é preso. Revela-se então que Aurelie havia comunicado a sua suspeita ao príncipe. Este, um homem de boa índole, temendo cometer uma injustiça, havia ordenado a abertura de investigação. Apesar de preso, interrogado e torturado, o protagonista sustenta a falsa identidade. Valendo-se de sua oratória, ele consegue inculcar a dúvida mesmo naqueles mais convictos de sua culpa. Até um colega de mosteiro chamado às pressas, com quem mantivera contato frequente e íntimo, não consegue fazer um reconhecimento inequívoco.

Sua liberdade, no entanto, só acontece após a apresentação de Viktorin, que havia fugido da casa dos camponeses e fora capturado. Ele é então falsamente reconhecido pelos inquisidores como o verdadeiro assassino. Leonard/ Medardus, já em liberdade, recebe o consentimento do príncipe para se casar com Aurelie. No entanto, no dia da cerimônia, ele é acometido por um acesso de confusão mental e foge.

Cabe indagar a razão dessa fuga. Talvez uma pista importante esteja em uma carta interceptada pelo protagonista, na qual Aurelie descreve uma cena de sua infância, que ela não descarta a possibilidade de ser simplesmente uma fantasia. A carta relata os momentos em que a mãe de Aurelie, a primeira esposa do barão, se isolava em um gabinete do castelo onde morava para contemplar o autorretrato de um pintor misterioso. Na cena, o referido pintor sai do quadro e mantém relações amorosas com a mãe da personagem. Tratar-se-ia do pai de Medardus, Euphemie e Viktorin, que possuía forte semelhança com o pintor misterioso, o ancestral retratado no quadro?

Outra pista para entender a relação de atração e repulsa entre Medardus e Aurelie está na investigação etimológica do nome desta. Aurelie, do latim aureus, quer dizer: aquilo que possui valor, que brilha e seduz. No livro, a imagem de Aurelie associa-se ao quadro de Santa Clara, cujo nome também se refere ao brilho e à luz. É lícito ainda estabelecer uma conexão entre esse brilho sedutor de Aurelie e o elemento diabólico da trama. Salienta-se que a palavra Lúcifer, de origem latina, designa "filho da Luz", "o que brilha", ou "estrela da manhã". Segundo o dicionário Priberam (2020), Lúcifer também está associado ao planeta Vênus, batizado em homenagem à deusa da beleza. Esses elementos voltam a remeter ao quadro da Santa, cujo rosto fora pintado conforme o modelo da divindade grega.

Após a fuga, depois de passar por longo período de sofrimento e martírio, o protagonista acorda na Itália, em um sanatório administrado por monges franciscanos. Ele percebe que as pessoas à sua volta se dirigiam a ele por Medardus. Segundo um de seus cuidadores, ele havia sido trazido para a instituição fora de si e debilitado. Seu acompanhante havia se apresentado como Belcampo, um criado da família.

No sanatório, Medardus tem acesso ao manuscrito de seu ancestral pintor, que revela a sua ascendência e a origem da maldição familiar. De volta à sua cidade natal e ao monastério onde passara boa parte de sua vida, o protagonista presencia a cerimônia de consagração de Aurelie como freira. Nesse momento, no ápice de um estado de confusão mental, ele é tomado pelo ímpeto de assassiná-la, mas se contém. Eis que no meio da multidão surge o seu sósia, que se lança sobre a moça para concluir o ato homicida. O assassino consegue fugir. Pouco tempo depois, Medardus é assassinado pelo seu duplo nos seus aposentos no mosteiro à noite. Um monge que morava no quarto contíguo descreve no seu diário que, nessa data, durante a madrugada, uma misteriosa voz repetia nos corredores incessantemente que havia chegado a hora de Medardus se juntar à noiva de Cristo.

 

Considerações finais

O romance pode ser considerado uma variação da tragédia de Sófocles: se Édipo, sem ter consciência do seu ato, mata seu pai, deita com sua mãe e, dessa forma, cumpre a profecia do oráculo; Franz/Medardus, também sem saber e sem querer, assassina todos os seus parentes - com exceção de seu meio-irmão e sósia - e se deita com sua meia-irmã, Euphemie. No entanto, a principal proibição recai sobre Aurelie, que assume simultaneamente o lugar de encarnação do mal, da beleza e da virtude.

A coalescência entre o sagrado e o profano (STIGLER, 1995) é também uma das marcas do romance, que explora, por essa via, uma sensação de inquietação atrelada à contemplação do belo. Esses dois fatores estão presentes, sobretudo, na relação de Medardus com o quadro da Santa Clara. Mostramos que a obsessão erotomaníaca do protagonista por essa imagem é posteriormente transferida para Aurelie.

Assinalamos daí uma dimensão sexual que se desdobra no limite do sentimento do infamiliar. Dessa forma, o sexual, na qualidade de elemento constituinte fundamental do psiquismo, evidencia um núcleo de Real presente na raiz do próprio Eu, fato que participa da própria dinâmica do recalque e da angústia na condição da sombra de uma ameaça ao narcisismo.

Destacamos que os encontros de Medardus com os membros da sua família dão a tônica do livro e constroem os pontos de virada da trama. Entre o início da viagem e o retorno ao mosteiro, Franz/Medardus adota identidades diferentes para, no final da história, assumir a sua própria. Dessa feita, ele reconhece os crimes que cometera e consente em assumir o peso da maldição de seus antepassados.

A essa dimensão do infamiliar, acrescenta-se o tema da psicose, que é insinuado como uma possível explicação para os tormentos de Medardus, e a questão do feminino, que desponta como o ponto talvez mais complexo de inflexão da sexualidade humana.

Concordando com Freud, o livro de Hoffmann aqui discutido é bastante rico em detalhes e questões e não pode ser esgotado neste artigo. Esperamos, todavia, que esse ensaio tenha contribuído para contextualizar o referido texto

no âmbito do debate do Unheimliche e, dessa forma, possa servir de apoio ao trabalho de outros pesquisadores que se dedicam à investigação psicanalítica ou ao estudo da obra de Hoffmann.

 

 

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Artigo recebido em: 15/12/2020
Aprovado para publicação em: 10/10/2021

Endereço para correspondência
Fabiano Chagas Rabêlo
E-mail: fabrabelo@gmail.com
Karla Patrícia Holanda Martins
E-mail: kphm@uol.com.br

 

 

*Psicanalista. Professor da Universidade Federal do Delta do Parnaíba (UFDPar). Doutorando em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Fortaleza, CE, Brasil.
**Psicanalista. Professora nos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Doutora em teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Bolsista PQ do CNPQ. Fortaleza, CE, Brasil.
1Há a publicação feita pela editora Bira Camara de 2017 chamada "O elixir do diabo e Mademoiselle de Scudéry - E.T.A. Hoffmann". Porém, essa edição é a tradução de uma versão traduzida para o francês no século XIX, chamada "L'Élixir du diable" e referenciada ao Hoffmann, mas que não é o mesmo conto do original alemão. A editora Sebo Clepsidra publicou em 2021 a tradução de "A garrafa de Santo Antão; ou, O vinho do diabo!" [Saint Anthony's Flask; or, The Devil's Wine!], que é uma condensação do romance do Hoffmann, uma espécie de resumo, de autoria anônima.
2Esse mesmo texto foi reeditado em 1925 em formato de livro. Nessa nova edição, as considerações de Rank (1925) sobre Os elixires do diabo não sofreram acréscimos ou alterações significativos. Do exposto, os comentários tecidos neste artigo, ainda que tomem como base a primeira versão de 1914, aplicam-se sem prejuízo à última edição.
3"Eine intellektuelle unsicherheit leistet uns also nichts für das Verständnis dieser unheimlichen Wirkung" (FREUD, 1919/1997, p. 254).
4No original: "Was haben Sie dennn und avon! Ich meine von der besonderen Geistes funktion, die man Bewusstseinn ennt und die nichts andersistals die verfluchte Tätigkeitein esverdammtenToreinnehmers – Akziseoffizianten – Oberkontrollassistenten, der seinheilloses Kontorim Oberstübchen aufgeschlagen hat und zualler Ware, die hinauswill, sagt: ‚Hei … hei … die Aus fuhrist verboten … im Lande, im Lande bleibt’s" (HOFFMANN,1815-16/2016, p. 280)..
5Os círculos representam as relações conjugais: os separados, fora do casamento; os unidos, em matrimônio. O grifo foi feito pelos autores para realçar o caminho que vai de Franzesko (2), o pintor discípulo de Leonardo da Vinci, até Franz-Medardus (28).
6Na tradução literal, já sabido.

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