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Psicologia da Educação
Print version ISSN 1414-6975On-line version ISSN 2175-3520
Psicologia da educação no.20 São Paulo June 2005
COMPARTILHANDO
Entrevista com Yves Clot*
Interview with Yves Clot
Entrevista con Yves Clot
Anna Rachel Machado
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Do dia 15/09/2004 ao dia 30/09/2004, o Programa de Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem (Lael) e o de Educação: Psicologia da Educação (PED), da PUC-SP, receberam a visita do Professor Yves Clot, do Conservatoire National des Arts et Métiers (CNAM), de Paris, atendendo a convite feito por mim e pela Profª. Drª. Clarilza Prado de Sousa. Nessa ocasião, Clot desenvolveu uma série de atividades, que envolveram uma quantidade extremamente significativa de alunos e professores dos dois programas, assim como de outras universidades brasileiras (Unicamp, USP, UEL, UFMG, Unesp, dentre outras). Dentre essas atividades, foram de especial interesse:
- Vários encontros para discussões de pesquisas dos grupos orientados pelas professoras do Lael, Elizabeth Brait, Fernanda Liberali, Maria Cecília Pérez Souza e Silva, Maria Cecília Camargo Magalhães e por mim mesma, e pelas professoras do PED, Clarilza Prado de Sousa, Claudia Leme Ferreira Davis, Wanda Maria Junqueira Aguiar, Marli Eliza Dalmazo Afonso de André e Vera Maria Nigro de Souza Placco.
- A palestra intitulou-se "Vygotski au-delà de la psychologie cognitive", no quadro da programação das "Segundas do Lael", que teve o grande mérito de nos fazer tomar ciência de uma leitura da obra vigotskiana completamente nova, divergente da que lhe é usualmente dada no discurso científico dominante na área, particularmente no Brasil.
- O curso "Uma psicologia histórico-cultural para a compreensão do trabalho em geral e das práticas educativas como trabalho", que contou com a participação de aproximadamente cem pessoas e foi desenvolvido em torno de três eixos centrais: a conceitualização da atividade no trabalho; a conceitualização da subjetividade na atividade do trabalho, visando identificar o papel dos coletivos de trabalho, dos gêneros profissionais e dos estilos de ação; a apresentação dos pressupostos teóricos das metodologias de autoconfrontação simples e cruzada destinadas, ao mesmo tempo, à coleta de dados de pesquisa e à transformação das atividades de trabalho e, finalmente, a discussão da formalização da experiência profissional e de sua transmissão em torno da problemática da validação dos aportes que os próprios trabalhadores trazem para essa discussão.
Com essas atividades, pudemos iniciar e reforçar relações interinstitucionais com diferentes universidades brasileiras, dado que estivemos em contato constante com pesquisadores de diferentes áreas, de várias universidades, presentes no curso e na palestra do Prof. Yves Clot. Do ponto de vista das relações interinstitucionais internacionais, abrimos espaço para o estabelecimento de um Acordo Pluri-institucional, que envolverá pesquisadores da PUC-SP, do CNAM de Paris, da Universidade de Genebra e do Institut de Formation de Maîtres de Marseille/Université d'Aix-Marseille, dado que já temos acordos e um trabalho contínuo e duradouro com pesquisadores dessas duas últimas instituições (do Grupo LAF, da Unige e do Grupo Ergape, do IUFM), assim como o Prof. Yves Clot.
Ainda como aportes da visita desse pesquisador para a comunidade científica brasileira mais ampla, estão previstas cinco publicações para a divulgação de seus trabalhos: a entrevista que se segue; uma entrevista mais extensa, a ser publicada na revista DELTA; um artigo sobre aprendizado e desenvolvimento, publicado na revista da Psicologia da Educação (n. 19, 2º semestre de 2004); um artigo sobre "Vygotski au delà de la psychologie cognitive", a ser publicado em revista de nossa área e a publicação de um livro derivado do curso aqui ministrado.
Finalmente, essa visita ainda nos propiciou o início de um intercâmbio produtivo entre pesquisadores do Programa em LAEL e o Programa em PED, voltado para as pesquisas sobre educação e sobre o trabalho do professor desenvolvidas nos dois programas, o que já se concretiza na realização de encontros de discussões entre esses pesquisadores, visando à concretização de um projeto conjunto para o estabelecimento de um acordo interinstitucional com o CNAM de Paris.
O breve relato dessa visita parece-nos justificar a importância da entrevista que segue abaixo, que tive o prazer de realizar.
1. Gostaríamos de conhecer alguns dados sobre sua formação intelectual, sobre o desenvolvimento de sua vida profissional e, sobretudo, sobre as motivações que o conduziram, como psicólogo, a se interessar pelas questões referentes ao trabalho. Você pode nos contar sobre esse trajeto?
Minha juventude já está um pouco longe, mas eis aqui o que hoje posso dizer dela: pertenço a uma geração cuja formação intelectual foi marcada pelos eventos de maio de 1968 na França. Naquela época, a iniciativa do mundo do trabalho era o centro de gravidade da vida social e cultural em nosso velho país. Os anos seguintes foram dedicados por nós todos à seguinte interrogação: como prolongar esse impulso tão favorável à criação intelectual? Foi o trabalho de Ivar Oddone, na Fiat de Turim, que pessoalmente me ajudou a dar-lhe uma resposta. Esse trabalho forneceu-me instrumentos essenciais para transformar a psicologia do trabalho em psicologia dos trabalhadores. No meu contato com Oddone, descobri as célebres "instruções ao sósia". Aprendi, nesse momento, os elementos principais de meus atuais conhecimentos. Em 1980, promovi a publicação na França de Redécouvrir l'expérience ouvrière [Redescobrir a experiência operária - Por uma nova psicologia do trabalho]1, o livro que conta a experiência de Odonne na Fiat. Na passagem dos anos 80 para os anos 90, elaborei, sob a orientação de Yves Schwartz, uma tese2 destinada a extrair as conseqüências teóricas daquilo que tinha aprendido em todos esses anos.
A partir de 1985, senti que a obra de Vygotski podia dar-me condições para compreender o alcance da reviravolta da psicologia do trabalho efetuada com Odonne. Pensée et langage [Pensamento e linguagem]3 foi publicado em 1985 na França. Tentei então tratar o trabalho como um campo essencial do desenvolvimento humano. Minha primeira pesquisa importante, nessa perspectiva - ao menos para mim -, foi realizada na indústria automobilística, na Peugeot. Seus resultados foram publicados em 1990, em uma obra em colaboração com Yves Schwartz e Jean Yves Rocheux, intitulada Les caprices du flux. Les mutations technologiques du point de vue de ceux qui les vivent [Os caprichos do fluxo. As mudanças tecnológicas do ponto de vista daqueles que as vivem.].4
Em 1993, tornei-me membro do Laboratoire de Psychologie du Travail do CNAM, dirigido por Christophe Dejours. Quando ascendi ao posto de professor, criei, dentro desse mesmo laboratório, uma equipe de "Clínica da Atividade".
4. Com a divulgação do convite que lhe fizemos para sua estada na PUC de São Paulo, percebemos que muitos pesquisadores de outras universidades, de várias cidades brasileiras, já conheciam seus trabalhos há muito tempo e muito bem. Como se desenvolveu seu relacionamento com esses pesquisadores?
Muitos pesquisadores brasileiros fizeram sua formação no CNAM (Rua Gay-Lussac), na área de ergonomia ou na de psicologia do trabalho. No campo da análise do trabalho, o CNAM é, freqüentemente, uma referência importante para esses pesquisadores no plano internacional. Contudo, eles transformam aquilo que praticamos na França, uma vez que têm o objetivo de enfrentar uma situação distinta. A partir disso, ao trabalhar com eles, pude aprender muito e cheguei mesmo a compreender melhor minhas próprias pesquisas.
5. Há vários anos o Programa de Pós-Graduação do Lael mantém uma relação muito estreita com as equipes de Jean-Paul Bronckart e de Daniel Faïta. Sabemos que é esse igualmente o seu caso. Quais os vínculos teóricos entre as pesquisas desenvolvidas por esses grupos de pesquisadores e as pesquisas que realiza?
Jean-Paul Bronckart e Daniel Faïta são dois excelentes representantes da tradição vygotskiana e bakhtiniana na Europa. Sou membro da mesma família. Beneficio-me hoje, em meu relacionamento com o Lael, do trabalho de cooperação, que vem de longa data, que eles conseguiram estabelecer aqui.
6. Suas pesquisas situam-se no âmbito de uma disciplina denominada Psicologia do Trabalho. Poderia definir claramente essa disciplina para um público não-especializado? Quais as principais questões que estão na base de suas pesquisas?
A psicologia do trabalho é, a meu ver, uma disciplina que intervém nos ambientes de trabalho com o objetivo de promover a saúde e as capacidades dos trabalhadores. Ela privilegia, no domínio da clínica da atividade, a função psicológica do coletivo de trabalho. Os métodos da psicologia do trabalho servem para restaurar essa função na atividade individual de trabalho. Por exemplo, em relação à formação de professores, poder-se-ia pensar que a formação de jovens professores deve basear-se na transmissão desse ofício pelos mais antigos na profissão. Mas essa transmissão não é tão direta quanto freqüentemente se acredita. Ela supõe que se dê aos professores veteranos a possibilidade de redefinir seu próprio oficio, de ampliar as fronteiras daquilo que é possível; supõe alimentar neles a paixão de apropriar-se do real. Esse real mutante submete à prova a história do ofício e pede o esforço deles para manter vivo o seu ofício.
Paradoxalmente, é sustentando esses esforços dos professores veteranos que os formadores podem fazer os jovens professores aprenderem mais. Pois é esse envolvimento profissional que tem para os jovens um caráter formador: o esforço dos professores veteranos para se apropriar de seu oficio e, juntos, vencerem os seus limites, em vez de confessar, cada um indivualmente, os seus próprios limites a um especialista.
7. Como estabelecer as principais relações entre seu pensamento e os de Vygotski e Bakhtin?
Julgo que a concepção de atividade com que trabalho deve tanto a Bakhtin quanto o deve a Vygotski: a atividade é uma batalha sem trégua. Porque ela se dirige tanto a seu objeto como à atividade de outros sujeitos que incide sobre esse objeto. Essa é a definição de enunciado de Bakhtin. É essa a unidade de análise que tomo. Com base nisso, oponho-me com veemência à idéia de um Vygotski inscrito em um papel de uma engenharia prescritiva, seja na escola ou no trabalho. Do mesmo modo, Vygotski não é estritamente um psicólogo do desenvolvimento da criança ou da educação. Em vez disso, ele pretendia desenvolver a psicologia na direção de uma psicologia geral capaz de enfrentar os problemas práticos, junto com aqueles que convivem com esses problemas, tanto no trabalho como em outros âmbitos. Trata-se de algo que é contrário à psicologia ortopédica em que, com muita freqüência, ele é mantido prisioneiro.
Ele também não desejava acrescentar sua psicologia às psicologias existentes e, por isso, não podemos encerrá-lo em uma só tradição _ histórico-cultural, por exemplo _ paralela a outras tradições. Era sua intenção participar da criação de uma psicologia geral com todos os outros psicólogos, mas, para ele, o objetivo deveria ser prático: a seu ver, a psicologia, assim como a arte, se constitui como um instrumento psicológico a serviço do desenvolvimento do poder de agir dos sujeitos sobre si mesmos e sobre o mundo. Julgo que, para compreender a psicologia de Vygotski, é preciso ler Psicologia da Arte.5 Para nós, nossa disciplina também é, tal como a arte, uma forma de transformar nossa vida, uma maneira de viver outra coisa, um recurso para descobrir aquilo de que somos capazes. A leitura de Vygotski é inseparável da leitura da Ética, de Spinoza6. A psicologia é, para mim, a ciência do desenvolvimento de conceitos e do enriquecimento das emoções. Tal como a arte, ela deve servir ao cultivo de nossos afetos, dado que esses são a própria força motriz de nossa conduta.
Referência
Clot, Y. (1992). Le travail entre activité et subjectivité. Tese de Filosofia. Université de Provence. [ Links ]
Clot, Y.; Schwartz, Y. e Rocheur, J. Y. (1990). Les caprices du flux. Les mutations technologigues du point de vue de ceux qui les vivent. Le cas du groupe automobile PSA. Aix-en-Provence, Matrice. [ Links ]
Oddone, I; Re, A. e Briante, G. (1980). Redécouvrir l'experience ouvrière. Vers une autre psychologie du travail. Paris, Editons Sociales. [ Links ]
Spinoza, B. (1997). Ética. São Paulo, Nova Cultural [ Links ]
Vygotski, L. (1985). Pensée et langage. Paris, La Dispute. [ Links ]
______ (1999). Psicologia da Arte. Trad. de Paulo Bezerra. São Paulo, Martins Fontes. [ Links ]
Endereço para correspondência
Anna Rachel Machado
Professora do Programa de Estudos Pós-Graduados em
Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem da PUC-SP
E-mail: arachelmachado@uol.com.br
Yves Clot
Professeur de Psychologie au Conservatoire National
dês Arts et Métiers _ CNAM, Paris
Responsible de l'equipe de Clinique de l'Activité du
Laboratoire de Psychologie du Travail du CNAM
E-mail: clot@cnam.fr
Recebido em março de 2005
Aprovado em abril de 2005
*Tradução e notas de Adail Sobral
1 Oddone, Re e Briante (1980). Tradução do original italiano publicado em 1977 pela Einaudi. Posfácio de Yves Clot.
2 Clot (1992).
3 Vygotski (1985). Prefácio de Y. Clot, Apresentação de Lucien Sève. Trad.: Françoise Seve. [Ed. bras.: Pensamento e Linguagem. São Paulo, Martins Fontes, 1988. Trad. Paulo Bezerra.]
4 Clot., Schwartz e Rocheux (1990).
5 Vygotski (1999).
6 Spinoza (1997).