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Psicologia: ciência e profissão

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Psicol. cienc. prof. vol.9 no.3 Brasília  1989

 

A repressão ao potencial criador

 

 

Eunice M. L. Soriano de Alencar

Professora do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília

 

 

Vivemos em uma sociedade que nos ensina, desde muito cedo, a controlar as nossas emoções, a resguardar a nossa curiosidade, a evitar situações que poderiam redundar em sentimentos de perda ou de fracasso. Aprendemos também, desde os nossos primeiros anos, a criticar as nossas idéias e a acreditar que o talento, que a inspiração, que a criatividade são o resultado de fatores sobre os quais temos pouco controle e que estariam presentes em apenas poucos indivíduos privilegiados. Aprendemos a não explorar as nossas idéias e a bloquear a expressão de tudo aquilo que poderia ser considerado ridículo ou motivo de crítica.

Outras aprendizagens ocorrem também desde os primeiros anos, contribuindo para falsificar a nossa percepção do mundo e de nossas possibilidades. Este aspecto foi bem lembrado por Schiff (4), que assim se expressou: "Quem não ouviu centenas de vezes: Não toque nisso! Venha imediatamente! Que teimosia! A cada instante de sua existência, a criança é confrontada a proibições, recomendações, reprovações, que tentam lhe fazer crer que ela seria incapaz de fazer algo por si só. Quando se torna adulta, esta velha criança tenderá a agir com os jovens, do mesmo modo que agiram com ela".

Premidos também por uma necessidade de ser aceitos, somos muitas vezes levados a anular as nossas idéias, a limitar as nossas experiências, a bloquear nosso crescimento. Este é um processo lento e gradual, que começa muito cedo na vida de cada criança, e que sofre o impacto de situações diversas ocorridas no seio da família e da escola. Um exemplo ilustrativo de uma dessas situações é a de um garoto que, a cada pergunta que fazia ao pai, recebia como resposta um encolher de ombros, ou um comentário do tipo "não me amole", "me pergunte depois, porque agora estou ocupado", "deixe de lado essas idéias e vai brincar". A criança aprende, desde muito cedo, que os comportamentos mais valorizados pelos seus pais, não são comportamentos que levam à exploração, à descoberta e mesmo ao crescimento, mas antes, comportamentos que levam ao conformismo, à passividade, à estereotipia.

Situações semelhantes são vividas pelo aluno na escola, onde professores, preocupados e pressionados a transmitir o conteúdo curricular, não encontram o tempo necessário para ouvir as indagações da criança, para aproveitar as suas idéias, para valorizar seus pontos de vista e para utilizar os recursos de sua extraordinária imaginação. Por outro lado, em uma pesquisa de nossa autoria (2), com uma amostra de 140 alunos de 3ª e 4ª séries de escolas de periferia, oriundos de famílias de baixa renda, surpreendeu-nos a elevada porcentagem de crianças que informaram que "tinham sempre perguntas que gostariam de fazer" (84%), "que gostavam de inventar jogos, brincadeiras, histórias ou poemas" (91%) e que "gostavam de tentar novas idéias e novas maneiras de fazer as coisas" (90%). Estes dados forneciam uma imagem bem distinta daquela apresentada pelos professores desses alunos, que, ao se referirem aos mesmos, destacavam a sua apatia, desinteresse e falta de motivação.

No contexto escolar, é também muito freqüente ouvir críticas severas ao trabalho do aluno e observar a inexistência de condições favoráveis à expressão de suas idéias e individualidade. Uma situação observada pela autora, que ilustra o que costuma ocorrer em uma sala de aula, foi a de uma professora de 3ª série que, após solicitar aos alunos para desenhar uma paisagem, comentou cada um dos desenhos feitos em termos bastante negativos, mostrando os trabalhos realizados individualmente para toda a classe e expressando a sua insatisfação e crítica diante de cada produto analisado.

Em nenhum momento refletiu esta professora sobre o impacto que poderia ter sobre a criança o fato de ver o seu trabalho criticado diante de todos os colegas, ou ouvir uma avaliação altamente depreciativa de algo que foi feito com empenho e esforço.

As conseqüências adversas ao nível de sentimentos de autodepreciação, fracasso e vergonha também não foram consideradas.

São situações como esta que contribuem para a formação de barreiras internas à própria expressão criativa e para uma visão limitada dos próprios recursos e habilidades. Elas permanecem vivas na memória do indivíduo, como podemos observar em uma professora, com muitos anos de experiência de ensino, que assim se expressou, ao refletir sobre a sua própria formação:

"Na escola em que me formei, sempre fui muito podada. Fui sempre muito criticada. Nunca tinha oportunidade de expressar a minha criatividade. Estudei em uma escola rígida, que tinha até palmatória, que só era certo o que a professora falava. Eu me sinto prejudicada pelas professoras que tive".

Diferindo das barreiras físicas que são tangíveis e facilmente detectadas, as barreiras mentais são construídas lentamente no decorrer da vida do individuo. Com a ajuda das pessoas que o rodeiam e que o fazem ver, através de uma risada, de um muchocho, ou de uma expressão fácial, que as suas idéias pouco valem, o indivíduo internaliza formas de pensar e tipos de pensamento que se tornam fortemente resistentes à mudança. Muitas dessas barreiras são desconhecidas do próprio sujeito, que não dispõe de recursos para lidar com atitudes mentais profundamente enraizadas, fruto da educação e das experiências vividas notadamente durante a sua infância. Por outro lado, sabemos que as correntes mais difíceis de romper são aquelas que trazemos dentro de nós mesmos.

Dentre as barreiras emocionais, que dificultam o aproveitamento de nossas possibilidades, salientam-se a apatia, a insegurança, o medo de parecer ridículo, o medo do fracasso e os sentimentos de inferioridade.

A apatia se traduz por uma descrença, indisposição ou desinteresse em se tentar aproveitar as próprias idéias ou mudar o curso de uma ação. Ela se expressa no comportamento de uma pessoa que encerra a sua idéia, dizendo para si mesmo ou para outros "não adianta tentar, porque eu sei que não vai dar certo" ou "não vale a pena o esforço, porque eu sei que não vai funcionar".

Também a insegurança é outra barreira emocional, que faz com que o indivíduo não leve avante uma idéia e a inibir a sua ação. Ela constitui a raiz do medo de fracassar, de cometer erros, de não ser bem-sucedido no processo de concretizar uma idéia nova ou levar avante o projeto. Este é outro fator que pode ser observado com frequência, levando o indivíduo a lançar mão das mais diversas justificativas para não dar início a um novo projeto, explorar novas possibilidades e realizações.

O medo de parecer ridículo ou ter a sua idéia alvo de deboches ou de críticas é um outro fator que também leva o individuo a abortar as suas idéias, antes mesmo de expressá-las, e a internalizar uma atitude crítica que estabelece fronteiras rígidas á expressão de novas idéias e pontos de vista.

De forma similar, sentimentos de inferioridade podem levar o indivíduo a cultivar o hábito de se perceber sempre em termos negativos, como incompetente e incapaz, sentimentos estes que são reforçados no meio em que o indivíduo vive, levando-o a se tornar alheio a qualquer esforço ou projeto que poderia contribuir para uma mudança em sua autopercepção.

A par de todas estas barreiras de natureza emocional, que constituem forças inibidoras a um pensamento mais flexível e inovador, é ainda muito comum o desconhecimento, por parte do indivíduo, de suas próprias habilidades e potencialidades. Não é raro ouvir expressões como "eu não tenho o menor jeito para...", "eu sei que não sou capaz de...", "eu não vou experimentar, porque não tenho as habilidades necessárias". Estas expressões refletem uma noção firme e inabalável das próprias limitações e que resistem a qualquer tentativa ou sugestão de mudança. O mais sério é que é comum tais afirmações serem feitas por pessoas que tiveram pouca ou nenhuma experiência em uma determinada área a respeito da qual tecem tais considerações, sem qualquer fundamentação na realidade, fruto apenas da pura imaginação. Entretanto, esta atitude mental constitui um dos determinantes mais poderosos do comportamento, limitando as áreas de atuação e de experimentação da pessoa.

Tais barreiras emocionais coexistem com outras da natureza cultural, presentes no meio em que o indivíduo vive. Em nossa sociedade predomina, por exemplo, a consideração da fantasia e da reflexão como perda de tempo, a resistência à mudança, a valorização da lógica e do raciocínio em detrimento do sentimento e da intuição, a ênfase exagerada na resposta correta, na solução conhecida, no fato certo.

Por outro lado, nesta segunda metade do século vinte, muitos avanços foram observados ao nível de diferentes ciências como a Psicologia, questionando a visão tradicional do homem e de suas possibilidades de crescimento. Poder-se-ia lembrar aqui, por exemplo, o Movimento da Potencialidade Humana, que, fundamentando-se em dados obtidos em pesquisas nas áreas de "biofeedback", parapsicologia e processos alterados da consciência, têm chamado a atenção para o imenso potencial do ser humano, o qual tem sido utilizado de forma muitíssimo limitada, permanecendo muitas capacidades inibidas por falta de estímulo, de encorajamento, de ambiente favorável a seu desenvolvimento.

De forma similar, os representantes da Psicologia Humanística têm chamado a atenção, entre outros aspectos, para: a) - o potencial humano para desenvolver-se, para tornar-se, para auto-realizar-se;b)-as diferenças individuais, ressaltando que os seres humanos têm talentos diversos, que merecem ser explorados e que devem ter condições para se desenvolver. Rollo May, um dos expoentes da Psicologia Humanística, no livro de sua autoria,A coragem de criar (3), ressalta, por exemplo, que não basta o impulso interno para a auto-realização; segundo ele, também importantes são as condições presentes na sociedade, a qual deve possibilitar à pessoa liberdade de escolha e açào, de tal forma que possa explorar novas idéias, novas possibilidades, reconhecendo e estimulando o potencial criador de cada indivíduo. O próprio título deste livro de Rollo May — A coragem de criar — nos faz reportar ao fato de que vivemos em uma sociedade, por vezes, tão castradora, que é preciso, com freqüência, coragem para expor as próprias idéias e para ousar novas propostas.

É necessário que os agentes socializadores reflitam sobre os seus papéis e sobre a extensão em que estariam contribuindo para diminuir as possibilidades de crescimento da criança e do aluno, levando-os a crer que os seus recursos e possibilidades sejam muito menores do que realmente são.

Para tal, muito contribuiria o conhecimento advindo de algumas pesquisas na área de criatividade, as quais têm descartado a visão da mesma como um dom presente em apenas alguns poucos indivíduos privilegiados, bem como a de que a criatividade dependeria apenas de fatores intrapessoais, substimando-se a enorme contribuição da sociedade como um todo, para o processo criativo. O papel das condições ambientais foi destacado, entre outros, por Stein (5) que assim se expressou:

"Estimular a criatividade envolve não apenas estimular o individuo, mas também afetar o seu ambiente social, e as pessoas que nele vivem. Se aqueles que circundam o indivíduo não valorizam a criatividade, não oferecem o ambiente de apoio necessário, não aceitam o trabalho criativo quando este é apresentado, então é possível que os esforços criativos do indivíduo encontrem obstáculos sérios, senão intransponíveis".

O que as pesquisas têm indicado também é que todo ser humano apresenta um certo grau de habilidades criativas, que podem ser desenvolvidas e aprimoradas através da prática e do treino. Dados obtidos em pesquisas com indivíduos altamente criativos sugerem ainda que a criação não é produto apenas de um lampejo de inspiração: a preparação do inndivíduo, sua disciplina, dedicação, esforço consciente, trabalho prolongado, são pré-requisitos importantes para a produção criativa (Nota A) (1).

Cabe a cada um de nós contribuir para a existência de condições mais adequadas para a expansão do talento e da criatividade e para uma visão mais otimista dos recursos e possibilidades de cada indivíduo.

 

NOTA

A — Para aqueles interessados no processo criador, sugiro a leitura de Alencar(1).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1 - ALENCAR E.M.L.S. - Psicologia da Criatividade. Porto Alegre, Artes Médicas, 1986.        [ Links ]

2.ALENCAR E.M.L.S., FLEITH. D.S., SHIMABUKURO. L. A. & NOBRE M.A. (no prelo) Efeitos de um programa de treinamento de criatividade para professores do ensino de 1º grau nas habilidades de pensamento criativo do aluno. Interamerican Journal of Psychology.        [ Links ]

3. MAY, R. A Coragem de Criar. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982.        [ Links ]

4. SCHIFF, M. - L'Intelligence Gaspillée. Inégalité Sociale, Injustice Scolaire. Paris, Editions du Sevil, 1982.        [ Links ]

5. STEIN M. I -Stimulating Creativity. Individual/Procedures. New York, Academie Press, 1974.        [ Links ]