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Psicologia: ciência e profissão

Print version ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. vol.26 no.4 Brasília Dec. 2006

 

ARTIGOS

 

Depois das grades: um reflexo da cultura prisional em tndivíduos libertos

 

Life after prison: the reflex of prison culture in free individuals

 

 

Mariana Leonesy da Silveira Barreto*

Faculdade Ruy Barbosa

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A vida do recluso é marcada por agressões físicas e psicológicas. A submissão do preso às experiências carcerárias repercute na assimilação da cultura prisional por meio de um processo descrito como "prisonalização", "prisonização" ou institucionalização. Estudado por sociólogos, psicólogos, psiquiatras, filósofos e juristas, o fenômeno se revela a maneira como os reclusos são moldados pelo ambiente institucional mesmo após a sua libertação. É a partir da "prisionalização" que as tradições, valores, atitudes e costumes impostos pela população carcerária são apreendidos pelos internos, como uma forma natural de adaptação ou até mesmo de sobrevivência ao rígido sistema prisional. Este trabalho visa a analisar o impacto da cultura prisional em indivíduos libertos. Para isso, foi realizado um estudo bibliográfico a fim de perceber de que modo e em que intensidade os aspectos da cultura penitenciária interferem na socialização do indivíduo. As transformações variam e atingem o egresso em diferentes níveis, tais como no hábito de comer e agir, e nas estruturas de linguagem. Esse impacto pode ocorrer em dimensões muito maiores, que variam desde o aumento da agressividade à extrema passividade. Como uma das conseqüências, tem-se o alto índice de pessoas que reincidem no crime; segundo INALUD/Brasil equivale a 70%

Palavras-chave: Prisionalização, Egressos, Instituição total, Cultura prisional.


ABSTRACT

The inmate life is marked by physical and psychological aggression. The submission to prison implies the assimilation of the prisonal culture, in a process described as prisionalization or institutionalization. Studied by sociologists, psychiatrists, philosophers and jurists, the phenomenon describes the way the inmates are molded by the institucional environment even after their release. Because of prisionalization, traditions, values, attitudes and habits are imposed by the jail population and they are apprehended by the interns as a natural way of adaptation, or even of survival. This work aims to analyze the impact of the prisional culture in former inmates. A bibliographical study was carried through, in order to perceive how and to which extent some aspects of the prisional culture interfere in the socialization of the individual. The transformations vary and affect the convicted in different levels, such as the habit of eating and acting and in the language structures. This impact can occur along many dimensions - some examples are the increase of aggressiveness or extreme passivity. One of the consequences is the high index of people who fall back in crime; according to INALUD/Brasil this index is equivalent to 70%.

Keywords: Prisionalization, Inmate, Total institution, Prisonal culture.


 

 

O conceito de liberdade individual não está relacionado, apenas, ao direito de ir e vir, mas, sobretudo, a todas as possibilidades de ação do indivíduo, como o direito de se expressar ou de contratar com quem lhe for conveniente, só para citar dois dentre infinitos exemplos. O princípio básico da liberdade humana - norteador das sociedades desde o advento da revolução das luzes - tem suas limitações como única forma de garantir outros direitos também muito importantes. Desse modo, o direito de livre expressão, por exemplo, tem como parede simbólica o direito à privacidade; o direito à liberdade de ação tem como obstáculos os direitos à vida e à integridade física. Ora, cada liberdade possui limites que precisam ser nitidamente estabelecidos.

A delimitação das liberdades individuais em nome de um direito maior - o bem comum - só foi possível a partir da comunicação entre os membros de um Estado. O objetivo era estabelecer regras fundamentais que promovessem "bem-estar social." Nesse sentido, o filósofo Beccaria (1985/2002, pp. 19-20), autor da obra Dos Delitos e das Penas, afirma:

Ninguém fez gratuitamente o sacrifício de uma porção de sua liberdade visando unicamente ao bem público [...]. Cada homem só por seus interesses está ligado às diferentes combinações políticas deste globo, e cada qual desejaria, se fosse possível, não estar ligado pelas convenções que obrigam os outros homens[...]. Cansados de só viver no meio de temores e de encontrar inimigos por toda parte, fatigados de uma liberdade que a incerteza de conservar tornava inútil, sacrificaram uma parte dela para gozar do resto com mais segurança. A soma de todas essas porções de liberdade, sacrificadas assim ao bem geral, formou a soberania da nação.

Indivíduos que, por diferentes motivos, não obedecem às limitações de liberdade básicas para a constituição de uma sociedade, são tolhidos em sua liberdade de ir e vir; a pena restritiva de liberdades é o pilar punitivo do Código Penal brasileiro. A Constituição Federal estabelece, em seu art. 5º, caput, a liberdade de ir e vir, que, todavia, pode ser violada para proteger interesses maiores, como a segurança de uma comunidade e o direito de punir do Estado. A prisão é, portanto, integrante do código de condutas de Direito penal, e, em regra, ocorre quando o indivíduo superdimensiona suas liberdades em detrimento de outros valores humanos.

O que leva um indivíduo a ignorar a lei e não ter como óbice os direitos dos outros? Explicações referentes a essa problemática são respondidas por meio de três modelos teóricos fundamentais: o biológico, o psicológico e o social. O modelo biológico explica a conduta criminosa como conseqüência de transtornos, patologias e disfunções genéticas. Essa teoria é muito criticada, em decorrência do determinismo biológico e pela exclusão dos fatores sociais e políticos para a compreensão do crime (Molina, 1992).

O comportamento delituoso também foi explicado a partir de uma perspectiva psicológica. Essa concepção teórica assinalava que o crime era motivado por um ato voluntário, que associava a subjetividade e os desejos do agente criminoso ao delito cometido. A teoria psicológica esteve muito presente nos tribunais do júri durante o século XIX. No entanto, a dificuldade em julgar o criminoso por meio de fenômenos inconscientes foram fatores que limitaram a utilização dessa concepção (Bitencourt, 2003). O modelo sociológico, por sua vez, enfatiza a relação dos fenômenos sociais, econômicos e políticos como fatores propulsores do comportamento criminoso (Molina, 1992).

A perspectiva social pode ser analisada a partir de diferentes acontecimentos relacionados à sociedade contemporânea. As normas constitucionais, por exemplo, não garantem à classe marginalizada o atendimento dos direitos básicos do cidadão; a falta de hospitais públicos e a carência de escolas de qualidade são apenas dois fatos que comprovam a não efetivação de deveres fundamentais do Estado. A supressão dos direitos civis demonstra a fragilidade e a redução da autoridade da lei, o que a torna passível de ser questionada e violada em decorrência da quebra de uma relação bilateral estabelecida entre o Estado e o cidadão comum. Ao mesmo tempo em que os deveres individuais obrigatoriamente devem ser cumpridos sob pena de punição, os direitos fundamentais básicos do cidadão não são atendidos. Nesse sentido, Calligaris (1998, p. 64) afirma: "Não há uma relação direta entre pobreza e criminalidade, mas sim, entre criminalidade e exclusão."

Esse debate é bastante amplo. Embora as estatísticas das prisões indiquem que a maioria dos reclusos são pessoas socialmente excluídas, há autores que explicam esse dado pela variação existente entre o rigor da lei e o grupo social do indivíduo. A lei apresenta-se mais branda para brancos e ricos e mais severa para negros e pobres, sendo as pessoas excluídas as que mais são submetidas aos tratamentos prisionais (Adorno, 2002).

A vivência no complexo carcerário traz conseqüências irreparáveis na vida do indivíduo. Estas não se limitam à vida existente no interior das grades, muito pelo contrário, mesmo após a libertação, o recluso sofre dificuldades em se adaptar à nova realidade, isso em virtude da assimilação da cultura prisional que muito se diversifica da sociedade liberta; como conseqüência, há um alto índice de reincidência criminal. De acordo com o INALUD/Brasil1, cerca de 70% da população carcerária que cumpriu a pena em regimes fechados retornou ao mundo do crime.

O presente trabalho visa a analisar de que forma e em que intensidade os aspectos da cultura prisional socializam o individuo e provocam modificações na subjetividade e nas práticas cotidianas dos libertos (Bitencourt, 1993; Foucault, 1975; Haney, 2001; Thompson, 1976/1998). Cabe ressaltar que as implicações psicopatológicas diagnosticáveis, tais como a esquizofrenia, a depressão, a síndrome do pânico e o distúrbio do humor, entre outras, não serão explanadas, embora muitas vezes sejam conseqüências irreversíveis apresentadas em decorrência do aprisionamento.

A preocupação deste trabalho é muito mais com as mudanças sutis que ocorrem nas ações cotidianas do recluso, mesmo após a sua libertação. As conseqüências produzidas pelo sistema prisional estão restritas aos limites do cárcere? Até que ponto a instituição prisional define as práticas cotidianas de cada um dos homens que ocupam aquele espaço? Quais são as práticas carcerárias rotineiras que massificam o indivíduo?

À guisa de procurar reflexões e ponderações a respeito de todos esses questionamentos, foi realizada uma pesquisa que utilizou como método a revisão bibliográfica, por meio da qual se adotou uma abordagem multidisciplinar com obras do ramo do Direito penal e também da Filosofia, Sociologia, Psicologia e psiquiatria.

Este trabalho, portanto, tem como objetivo desenvolver reflexões importantes sobre as conseqüências das estruturas do sistema prisional brasileiro mesmo após a sua libertação, a fim de perceber a intensidade dos traumas e suas possíveis implicações na vida cotidiana do interno em decorrência da sua submissão à instituição presidiária (Bitencourt, 1993; Foucault, 1975; Haney, 2001; Thompson, 1976/1998).

O mundo do recluso é marcado por violências e agressões, não apenas de ordem física como também moral. A submissão do preso a essas experiências tem, como uma das suas conseqüências, a assimilação da cultura prisional pelo interno por meio de um processo descrito como "prisionalização", "prisonização" ou institucionalização. O fenômeno foi estudado por sociólogos, psicólogos, psiquiatras, entre outros, e revela a forma como os reclusos são moldados e transformados pelo ambiente institucional em que vivem (Bitencourt, 1993; Haney, 2001; Thompson, 1976/1998).

É a partir da "prisionalização" que as tradições, valores, atitudes e costumes impostos pela população carcerária são aprendidos e assimilados pelos reclusos como uma forma natural de adaptação ou até mesmo de sobrevivência ao rígido sistema prisional. Ao longo do tempo, as experiências de injustiça, violência, entre outras vivenciadas no complexo carcerário, tornam-se "naturalizadas" em decorrência da internalização. Esse processo atenua o sofrimento do preso e funciona como um mecanismo de defesa que possibilita o sujeito a acostumar-se com as condições de vida que lhe são impostas (Bitencourt, 1993; Haney, 2001; Thompson, 1976/1998).

A "prisionalização", na maioria das vezes, ocorre de forma inconsciente. Os reclusos não percebem que estão sendo submetidos a esse processo, e, por isso, poucas são as pessoas que optam por sucumbir ou não às transformações vinculadas a esse fenômeno (Bitencourt, 1993; Haney, 2001; Thompson, 1976/1998).

As mudanças gradativas que ocorrem na forma de falar, comer e agir são algumas expressões que demonstram a influência da cultura carcerária no indivíduo. A intensidade da "prisionalização" é diferenciada e depende de muitos fatores, entre eles, da duração da pena e da aceitação incondicional dos dogmas e dos princípios da sociedade carcerária (Bitencourt, 1993). Thompson (1976/1998) afirma que, apesar de existirem níveis diferentes de "prisonização", nenhum indivíduo que tenha se submetido à vivência carcerária permanece ileso a alguns dos fatores vinculados a essa cultura, tais como: a adoção de um linguajar próprio, o reconhecimento de que suas necessidades não são satisfeitas e o eventual desejo de arranjar uma ocupação.

A diferença entre o mundo livre e o mundo prisional torna questionável a função da estrutura prisional, uma vez que os valores e a rotina do recluso no estabelecimento penitenciário são completamente diferentes dos da sociedade liberta. A discrepância existente entre esses dois mundos dificulta a adaptação do recluso em sua reinserção ao mundo liberto. Thompson (1976/1998) descreve esse fenômeno da seguinte forma: A prisonização corresponde à assimilação dos padrões vigorantes da penitenciária, estabelecidos precipuamente pelos internos mais endurecidos, mais persistentes e menos propensos a melhoras. Adaptar-se à cadeia destarte significa, em regra, adquirir as qualificações e atitudes do criminoso habitual. Na prisão o interno mais desenvolverá a tendência criminosa do que a anulará ou suavizará.

Além da probabilidade de o interno se tornar mais violento a partir da sua experiência no complexo carcerário, ele vivencia opressões morais após a sua libertação, pois a sua identidade passa a ser constituída a partir da concepção de ex-presidiário. Dessa forma, o egresso sofre dificuldades em desempenhar papéis sociais. Muitas vezes, há o afastamento dos amigos, dos familiares e da vida laboral, pois poucas são as pessoas que confiam nos indivíduos que se submeteram às experiências carcerárias (Bitencourt, 1993). Sentimentos como os de insegurança e submissão são revivenciados; a sociedade torna a excluir aquele que já fora excluído, o que aumenta a probabilidade da reincidência do crime, já que o indivíduo não se percebe como parte de um grupo social.

 

Sistema prisional brasileiro

O funcionamento das estruturas presidiárias no modelo atual não fornece recursos adequados aos internos. Nos presídios, a alimentação é precária, o comércio de drogas, assim como o abuso sexual, são práticas comuns, as celas são superlotadas, o número de reclusos é superior à capacidade de acomodação e as instalações de esgotos são mal projetadas. Direitos básicos relacionados à dignidade humana, como a possibilidade de higiene, são frontalmente desrespeitados, já que, nos presídios, há carência até mesmo de sabonetes, escovas e pastas de dente, o que contribui para a disseminação de doenças (Leal, 1998).

O quadro torna-se ainda mais delicado no momento em que consideramos o aumento progressivo do índice de "aprisionamento". Segundo o DEPEN2 (2006), em 1992, a taxa de reclusão era equivalente a 0,7% da população brasileira; em 2003, esse valor aumentou para 17%. Isso significa que, durante dez anos, a população prisional aumentou de 114.337 para 308.304 reclusos. Além disso, foi observado, pelo mesmo órgão indicado, que, no segundo semestre de 2003, uma média de 9.391 indivíduos eram incluídos no sistema carcerário, ao passo que 5.987 eram liberados. Esse valor indica que, por ano, uma média de 41.928 reclusos são acrescidos à população carcerária.

A superlotação das prisões, as condições de vida a que os presos são submetidos e a violência existente no interior dos cárceres tornam aversivo o ambiente do recluso. O interno tem a sensação de constante patrulhamento. A sensação de vigilância, o poder disciplinar e o medo da reação policial diante de qualquer ato intempestivo são fatores que oprimem o indivíduo e acabam por modelar uma identidade, de forma que o interno permaneça passivo. Ao recluso, resta apenas a possibilidade de ser servil e de se submeter ao sistema prisional, tornando mais eficiente a relação "docilidade-utilidade". Segundo Foucault (1975, p. 119),

O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula, o recompõe. Uma "anatomia política", que é também igualmente uma "mecânica de poder", está nascendo; ela define como se pode ter o domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas segundo a rapidez e a eficácia que se determinam. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos dóceis. Para a sociedade, o mundo que está atrás das grades do presídio pouco interessa. Há uma repetição constante da ideologia camuflada de que a culpa individual atenua as obrigações do Estado e da sociedade. Por isso, os maustratos nas cadeias são menos condenáveis, pela sociedade, do que os maus tratos às crianças, por exemplo. Independentemente da questão da culpa, o fato é que esse descuido deixa o recluso muito mais vulnerável e coloca-o numa situação de desamparo, de exposição à violência policial e carcerária, o que pode causar momentos de tensão e agressividade. As condições ambientais vivenciadas pelos apenados não fornecem nenhum tipo de benefício. Em vez disso, tornam-no mais violento, agressivo e propício a vícios e degradações. O caráter corretivo e reabilitador da pena não é contemplado, pelo contrário, dados indicam o alto índice de reincidência nos presídios assim como o aprendizado de novas artimanhas para cometer atos delituosos. Nesse sentido, a finalidade do sistema prisional torna-se questionável, pois não cumpre sua função pensada, desde o século XIX, de meio de correção e reabilitação do sujeito (Bitencourt, 1993). A rotina do presídio socializa o sujeito de maneira diversificada. A violência e a opressão, assim como o convívio com os reclusos, são fatores que interferem na sua identidade.

Mesmo diante do cenário de liberdade, o indivíduo não encontra alternativas de sobrevivência. Sua identidade é configurada a partir da formação de uma representação social de "ex-presidiário." O estigma causa um problema de identidade social virtual, pois a criação de rótulos inferioriza um grupo e subjuga-o, a fim de proporcionar a auto-afirmação dos demais (Goffman, 1963).

A incorporação dessa ideologia pelo estigmatizado reduz o nível de identidade real do sujeito, pois ele vivencia um processo de não aceitação, no qual se cria um mecanismo de defesa em que todas os acontecimentos ruins são projetados ao seu atributo físico ou psíquico peculiar (Goffman, 1963).

As conseqüências do interno dentro de uma penitenciária não se restringem ao ambiente carcerário. Mesmo liberto, ele ainda é vítima de preconceitos sociais, que tornam difícil a convivência com o mundo externo às grades.

 

Depois das grades

Nas penitenciárias brasileiras, os altos paredões cercados com arames farpados limitam dois mundos antagônicos, o da liberdade e o do confinamento. As portas fechadas, as proibições, o cerceamento e a impossibilidade do recluso em conviver com o ambiente social externo ao cárcere são alguns dos aspectos que definem o presídio como uma instituição total (Goffman, 1987).

Segundo Goffman (1987), as instituições totais possuem, como características, a ocupação de parte do tempo e do interesse dos integrantes, além de terem tendências de fechamento. Pela classificação do autor, o estabelecimento penitenciário está inserido no terceiro tipo de "instituição total3", que é aquela organizada com a finalidade de promover o "bem-estar social" e proteger a comunidade, já que pessoas isoladas não constituem um perigo imediato.

As instituições totais regulamentam o cotidiano do indivíduo. No presídio, todos os aspectos da vida do recluso são realizados em um mesmo local e sob uma mesma autoridade. As refeições, os dias de visita e o horário de entrada e saída nas celas são meticulosamente programados. As regras são estabelecidas hierarquicamente e atingem toda a população carcerária, tendo como objetivo manter a atividade produtiva da instituição (Goffman, 1987).

No interior do cárcere, os internos se submetem à violência local desde a sua entrada no sistema prisional, e é justamente essa a primeira etapa do processo de "prisionalização". Aspectos que compõem a identidade do sujeito, tais como as redes de relações compostas por amigos, familiares e trabalhos executados, são completamente afastados do recluso. As mudanças do mundo externo não são mais acompanhadas, e as práticas cotidianas anteriormente executadas são excluídas completamente de sua vida. Para Goffman (1987), o afastamento do convívio social é a primeira "mortificação do eu" imposta pelas instituições totais ao interno.

Assim que chega ao presídio, o apenado responde a uma série de perguntas básicas a respeito de informações pessoais, tais como nome, idade, sexo e registro geral. Em seguida, um número de matrícula é emitido. O sujeito é codificado, e a sua dignidade é retirada. O preso se submete a um processo de socialização demarcado pelos costumes compartilhados pela cultura da penitenciária. A internalização das regras do estabelecimento ocorre a partir do processo de admissão, rito de passagem que demarca a saída do preso do mundo externo e sua inserção na penitenciária. Nesse momento, ele é destituído de seus bens e os vínculos com o ambiente externo são rigorosamente substituídos por elementos institucionais. Merton4 (1948, apud Goffman, 1987, pp.27-28) comenta que

O processo de admissão pode ser caracterizado como uma despedida e um começo, e o ponto médio pode ser marcado pela nudez (...) Uma vez que o internado seja despojado de seus bens, o estabelecimento precisa providenciar pelo menos algumas substituições, mas estas se apresentam de forma padronizada, uniformes no caráter e uniformemente distribuídas. Tais bens distribuídos são claramente marcados como pertencentes à instituição.

As roupas uniformizadas, assim como os cortes de cabelo e as medidas de tratamento padronizadas para diferentes tipos de sujeito, são reflexos da perda da individualidade. Os indivíduos, sempre possuidores de personalidade e comportamento próprios, são igualados somente por terem cometido algum tipo de crime. Entretanto, o que se encontra nos presídios é uma completa ausência de diferenciação no que diz respeito ao cumprimento da pena, o que contribui de forma absoluta para a massificação dos indivíduos encarcerados. Esse tipo de tratamento contraria a Lei de Execução Penal, que estabelece, em seu art. 5º, a individualização da pena. O psiquiatra Frankl (1984, p. 53), que esteve presente em um campo de concentração, descreveu esse processo da seguinte forma:

[...] A vida experimenta a si mesma somente como partícula de uma massa enorme, e uma existência que se reduz ao nível de existência no rebanho. Sem poder pensar nem querer, as pessoas são tocadas ora para cá, ora para lá, ora são ajuntadas, ora dispersas como um rebanho de ovelhas. [...] Sentíamo-nos feito ovelhas num rebanho, que somente sabem, pensam e querem uma coisa: escapar aos ataques dos cães, e, num momento de paz, poder comer um pouco.

No entanto, para o mesmo autor, apesar da massificação a que o recluso se submete, é possível que o indivíduo tenha atitudes que reprimam a apatia, a irritabilidade e assumam atitudes alternativas, não sendo, assim, apenas um produto das condições ambientais vivenciadas. Para Frankl (1984, p. 66),

Quem, dos que passaram pelo campo de concentração, não saberia falar daquelas figuras humanas que caminhavam pela área de formatura dos prisioneiros, ou de barracão em barracão, dando aqui uma palavra de carinho, entregando ali uma lasca de pão? E mesmo que tenham sido poucos, não deixou de construir provas de que, no campo de concentração, pode-se privar a pessoa de tudo, menos da liberdade última de assumir uma atitude alternativa frente às condições dadas. Contudo, é imperioso ressaltar que, em um ambiente prisional, muitos são os fatores que contribuem para a ausência de sentimentos, e, desde a inserção do interno no estabelecimento carcerário, há a tentativa de desvincular todos os aspectos remetentes ao mundo externo do sujeito, como se estes fossem os responsáveis pela sua imersão ao mundo do crime. Na verdade, juntamente com as roupas, muitas vezes, aos poucos, o direito de ser humano, de sentir e de chorar, para a maioria dos prisioneiros, se esvai ao longo do tempo (Haney, 2001).

A partir da segregação social do recluso, ele é submetido a novas experiências demarcadas pela cultura carcerária e pelo convívio com diferentes tipos de pessoas, tais como agentes penitenciários, e com indivíduos condenados por diferentes crimes. Os valores contidos nesse ambiente divergem das condutas sociais presentes no mundo externo; a exemplo, tem-se a valorização dos reclusos que possuem a capacidade de dominar e vencer os seus companheiros assim como de resolver conflitos por meio de atitudes violentas.

Muitas vezes os internos utilizam máscaras prisionais - The Prison Mask (Haney, 2001) -por meio das quais tentam camuflar os sentimentos de vulnerabilidade. No fundo, a maioria possui medo de ser explorada e dificuldade em confiar nas pessoas, o que pode repercutir numa alienação tanto de si como do outro e na possibilidade de elaborar um embotamento afetivo. Keve (1974,p.54), "prison is a barely controlled jungle where the agressive and the strong will exploit the weak, and the weak are dreadfully aware of it". A cada dia, o interno vivencia um período de "desaculturação."5 As práticas cotidianas anteriormente vivenciadas são substituídas pela assimilação de muitos aspectos presentes no ambiente penitenciário.

Para os aplicadores da pena, o abandono do mundo exterior tem caráter corretivo. Assim, métodos são estabelecidos para que haja a construção de um novo indivíduo, sendo este caracterizado por ser passivo e por obedecer às regras institucionais. Isso pode ser percebido por meio de um depoimento apresentado por Leal (1987, pp. 133-142): E... Está muito diferente do menino que conheci, logo que caiu nas mãos da Justiça. Engordou, exibe formas algo arredondadas; os olhos estão meio baços e, em geral, fitam o chão; curva-se com bastante servilidade diante das pessoas; a voz mostra um certo acento feminino; move-se com lentidão, cuidadosamente, quase que diria com receio; formalmente respeitoso, parece preocupado, em, por qualquer distração, deixar de cumprir algum comando regulamentar; na pequena conversa que teve com você, sugeriu uma intriga envolvendo um guarda e um companheiro. E... daquele jovem atrevido, enérgico, topetudo, independente, altivo, não restou nada. Foi uma bela regeneração.

A obrigatoriedade em cumprir os regulamentos existentes no cárcere limita a liberdade do recluso para realizar escolhas cotidianas. O interno, muitas vezes, apenas responde aos estímulos ambientais.

O controle do recluso por meio de um ambiente externo meticulosamente organizado para exercer o poder disciplinar torna o indivíduo dependente da instituição. A falta de autonomia pode ser refletida após a sua libertação, pois, com a retirada dos estímulos que controlam a vida do interno, ele se sente sem paradigmas para assumir decisões (Bitencourt, 1993; Haney 2001, Foucault, 1975). Da mesma forma, Thompson (1976/1998, pp. 50-61) descreve esse processo da seguinte forma:

Para o recluso, o clima assim coercitivo, decidir fazer isso ou aquilo, mesmo que seja dar um passo para a frente ou para trás, transforma-se num pesadelo [...] Lesionado, de maneira profunda, no senso de autodeterminação, hesitante sempre entre fazer e não fazer, o recluso habitua-se a esperar que tomem decisões por ele, e isso lhe caracteriza a personalidade.

Somando-se a isso, a auto-estima normalmente encontra-se comprometida até mesmo depois da sua libertação, em virtude do tipo de tratamento que é oferecido no interior do cárcere. A construção da identidade a partir da imagem de ex-presidiário torna o indivíduo inseguro e contribui para o sentimento de incapacidade para realizar simples atitudes (Bitencourt, 1993; Haney, 2001; Foucault, 1975; Thompson, 1976/1998).

As mudanças individuais que ocorrem na vida de pessoas que se submeteram às experiências prisionais são bastante diversificadas, e a deformação da identidade do sujeito não se restringe às sanções morais, em que os gestos de deferências são obrigatórios e as humilhações estão sempre presentes. O interno é agredido também fisicamente, não apenas pela equipe dirigente como também pelos colegas de cela. O ambiente carcerário é, assim, um local de intenso patrulhamento, onde os prisioneiros aprendem a estar em constante alerta para qualquer possibilidade de risco pessoal (Bitencourt, 1993; Haney, 2001; Foucault, 1975; Thompson, 1976/1998).

O corpo e a identidade do recluso são mortificados6. Após serem libertos, os ex-presidiários sentem dificuldade em estabelecer relações interpessoais como conseqüência das experiências carcerárias. O retorno ao mundo liberto é um período de transição que causa sofrimento ao indivíduo. A adaptação ao mundo livre exige uma ressignificação de crenças e valores na maioria das vezes antagônicos aos assimiladas durante o período de aprisionamento.

Se, no estabelecimento prisional, as pessoas devem ser passivas e submissas às regras institucionais, no mundo liberto, é importante que haja autonomia. Se, nas penitenciárias, os reclusos resolvem uma situação conflituosa por meio da força e da dominação, nas relações interpessoais do mundo externo, é preciso diplomacia. Se, nas celas, a desconfiança é um sentimento sempre presente, na vida familiar, é indispensável a confiança e o auxílio mútuo. Inúmeros são os aspectos que divergem entre uma cultura e a outra, o que torna o indivíduo estranho ao seu próprio local de origem, como pássaro que, após ser retirado e aprisionado em uma gaiola, não mais consegue retornar ao seu ambiente natural.

 

Conclusão

A dificuldade do recluso em se adaptar ao mundo torna pertinente o questionamento acerca da finalidade dos estabelecimentos penitenciários, uma vez que aspectos culturais do cárcere se diferenciam inteiramente do mundo liberto. Segundo a lei de execução penal, art. 10, a assistência ao preso e ao internado tem como objetivo prevenir o crime e orientar a volta do recluso à sociedade. No entanto, essas justificativas se apresentam como paradoxais, uma vez que, no modelo penitenciário atual, é comum que os reclusos se tornem mais violentos e, em conseqüência, menos adaptáveis ao mundo livre, pois os valores culturais do mundo livre muito se diversificam dos valores de um complexo carcerário.

Os internos adotam medidas agressivas que aumentam o índice de criminalidade nas prisões. No cárcere, eles assimilam ou aperfeiçoam técnicas de furtos e estelionatos, e aprendem artimanhas que facilitam a comercialização ilegal de substâncias psicoativas. Nesse sentido, a função da pena, como forma de prevenir o crime, não é atendida. Em vez disso, o indivíduo torna-se mais propenso a cometer delitos.

Somando-se a esse fato, os internos são submetidos a opressões físicas e psíquicas. Em liberdade, eles generalizam as experiências obtidas durante o período de reclusão e atribuem-nas ao seu novo cotidiano. Assim, após a retirada da estrutura penal, o ex-presidiário permanece desconfiado, sempre atento às possibilidades de riscos pessoais - em estado de vigília - e camufla os sentimentos de vulnerabilidade (Haney, 2001). A "mortificação do eu7" e a assunção de uma nova identidade dificultam a ressocialização do indivíduo; isso ocorre porque, embora os dois mundos - o da reclusão e o da liberdade - estejam submetidos a um mesmo Estado, o conjunto de regras, normas e condutas são diferente.

A partir dessa análise, a única justificativa atribuída para fundamentar o sistema penal nos parâmetros atuais é a punição retribuitiva, ou seja, o sistema penitenciário como uma forma de agir por meio da vingança e da punição, a fim de condenar o indivíduo por um dano que cometeu à sociedade. Nesse sentido, Picklee (2003, p.15) questiona:

Como é possível castigar, causar sofrimento, fazendo com que o castigo sirva de exemplo aos homens para que não pratiquem crimes, e, ao mesmo tempo, preparar aquele que delinqüiu para a vida em sociedade, para que ele retorne à sociedade recuperado, quer dizer, sem voltar a delinqüir?

A incongruência das justificativas penais é evidente, e, embora muitos juristas tenham escrito sobre isso, poucas foram as alterações desenvolvidas no ambiente penitenciário. Em geral, há pouco investimento do Estado no estabelecimento, e, para a sociedade, a violência a que o recluso está sendo submetido é pouco importante.

A opressão é também exercida após a retirada da estrutura penal. A sociedade marginaliza o recluso e configura um estigma a partir da construção de uma identidade pautada na imagem de ex-presidiário. Como uma das conseqüências, eles normalmente permanecem desempregados, sentem-se desamparados e com baixa auto-estima. Molina (1988,p.41) afirmam que:

a pena não ressocializa, mas estigmatiza, não limpa, mas macula, como tantas vezes se tem lembrado aos "expiacionistas", que é mais difícil ressocializar uma pessoa que sofreu uma pena do que outra que não teve essa amarga experiência, que a sociedade não pergunta porque uma pessoa esteve em um estabelecimento penitenciário, mas apenas se lá esteve ou não.

A tentativa de remediação do crime pelo sistema carcerário atual é inviável, e indica a necessidade de investimento em políticas públicas, que podem ser efetivadas a partir de três tipos de direcionamento: conjuntural, social e estrutural (Haney, 2001).

No âmbito conjuntural, as medidas deveriam ser executadas como um meio de prevenir e evitar fatores de risco que influenciam os indivíduos a cometerem crimes, tais como a redução da desigualdade social, o fornecimento de empregos e a melhoria da educação. A partir dessa perspectiva, Hughes (2004, pp. 93-102) afirma que: "A violência, nesse sentido, deixa de ser uma variável independente, devendo ser considerada uma das manifestações de um conjunto de injunções que comprometem a cidadania e a dignidade humana."

A análise da violência, não como causa, mas como conseqüência de problemas sociais, tem como implicação a responsabilidade da sociedade e do Estado em promover transformações. Contudo, a forma como a sociedade estigmatiza o ex-presidiário ou até mesmo um menino de rua denota a importância de efetivação de programas que promovam a inclusão social dos ex-presidiários na sociedade livre.

Um outro plano de ação estaria vinculado a transformações nos ambientes penitenciários, não como forma de humanizar os cárceres, mas sim, como um meio de reestruturá-los completamente. Se o sistema penitenciário atual não promove modificações no interno, e, em vez disso, torna-o mais violento, é de fundamental importância o investimento em estruturas prisionais, de forma a dar condições de vida adequadas, tais como alimentação, higiene, trabalho, não sendo retirada a dignidade do indivíduo que vivencia a reclusão.

Bitencourt, Haney e Thompson, entre outros autores, escrevem sobre a necessidade de desenvolver programas para a readaptação do preso à sociedade. Contudo, essa medida promove mudanças apenas nas conseqüências da experiência carcerária, e, apesar de ajudarem em certa medida, não promovem a reestruturação dos agentes que massificam e desumanizam.

Em sociedades fortemente marcadas com problemas econômicos e sociais, vige a ideologia de que é preciso amparar muitos outros excluídos antes de desenvolver mecanismos voltados para a população carcerária. Em certa medida, é um posicionamento bem fundamentado, já que a noção de culpa possibilita uma melhor compreensão das conseqüências do sofrimento. Todavia, não se deve perder de vista que uma penitenciária é um segmento de sociedade, e não se separa dela. Depois de cumprirem suas penas, os prisioneiros ultrapassarão os portões que os separam da parte "livre" da comunidade e trarão, para fora da cadeia, reflexos do que sofreram e enfrentaram dentro de suas celas.

Este trabalho teve como principal objetivo analisar as conseqüências do sistema prisional nos reclusos, mesmo após a sua libertação. Foi realizado um estudo bibliográfico abrangendo diferentes áreas do conhecimento. Para o aprimoramento da pesquisa, é de fundamental importância a elaboração de uma pesquisa empírica com ex-presidiários, uma vez que a "prisionalização" dificulta a socialização do indivíduo e contribui para o aumento da massa de excluídos, engatando um ciclo de criminalidade, violência e exclusão.

 

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Endereço para correspondência
Mariana Leonesy da Silveira Barreto
Tel: 8125-0187
E-mail:maribarreto@gmail.com

Recebido 18/04/06
Reformulado 11/10/06
Aprovado 28/11/06

 

 

* Estudante de Psicologia da Faculdade Ruy Barbosa.
1 KANH, Túlio. Programa integrado de prestação de serviço à comunidade: avaliando a experiência. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, n°20, p. 287, 1998.
2 Departamento Penitenciário Nacional: sistema penitenciário no Brasil-dados consolidados. Ministério da Justiça, 2006.
3 Conceito utilizado por Goffman in: Manicômios, Prisões e Conventos. 2ª ed. São Paulo: Ed. Perspectiva AS, 1987.
4 MERTON, T. "The seven Storey Mountain." New York Harcourt, Brace and Company, 1948, pp. 290-91.
5 "A prisão é uma selva meticulosamente controlada, onde o agressivo e o forte exploram o fraco, e o fraco está assombrosamente consciente deste processo". Keve.
6 GOFFMAN. 2ª ed. São Paulo: Ed. Perspectiva AS, 1987.
7 Conceito utilizado por GOFFMAN in:
Manicômios, Prisões e Conventos. 2ª ed. São Paulo: Ed. Perspectiva AS, 1987.