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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.27 n.4 Brasília dez. 2007

 

EXPERIÊNCIAS

 

O resgate do vínculo mãe-bebê: estudo de caso de maus tratos

 

The restoration of the link between mother and her baby: study case of child abuse

 

 

Carolina Marocco Esteves*; Edson Sá Borges**

Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo dedica-se a refletir sobre maus-tratos e a vinculação entre a mãe e seu bebê, sendo importante destacar que uma das principais conseqüências da má formação desse vínculo são os maus-tratos. O artigo expõe uma discussão teórico/prática relacionada aos aspectos teóricos da experiência clínica de dois anos de estágio profissional de Psicologia na enfermaria de queimados, no Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre. Foram estudados, durante o período, cinqüenta casos. O presente artigo descreve um dos atendimentos. O critério utilizado para a escolha foi a de que o caso é típico e oferece possibilidade de aprendizagem para o leitor. A abordagem utilizada no atendimento da díade foi a psicoterapia breve, com enfoque psicanalítico. Com base no acompanhamento desse caso clínico, pode-se concluir que a forma como a mãe atendida consegue se relacionar com o filho evidencia que a mesma se encontra incapacitada para desempenhar uma função materna adequada ao desenvolvimento da criança. Um dos fatores que contribui para isso é a história pregressa da mãe, observada durante os atendimentos psicológicos: doença mental devido a maus-tratos no passado. É importante destacar que o atendimento psicoterápico funcionou, no estudo, como um dispositivo de saúde e resgate desse vínculo. Diante desse quadro, elaborou-se uma proposta que tem como objetivo promover a saúde e/ou prevenir a doença, tanto do bebê quanto da mãe, iniciando o mais breve possível, o diagnóstico e o acompanhamento psicológico (ou psiquiátrico), que deverá ter continuidade após a internação e durante o desenvolvimento da criança.

Palavras-chave: Maus-tratos, Função materna, Relação mãe-bebê, Transgeracionalidade.


ABSTRACT

The objective of the present study is to describe child abuse and the link between the mother and her baby. It is important to emphasize that one of the consequences of child abuse is a bad development of the mother's link with the child. This paper presents the theoretical and methodological approaches used during at least two years of professional Psychology training in the burned (nursing) ward in the emergency section of a hospital in Porto Alegre. We studied fifty cases during the process. This study examined one of the cases with a study-case design. The criterion used for the choice is that the case is typical and offers the reader the possibility of learning. A brief psichotherapy based on psycoanalysis conducted the treatment of the dyads. Through the clinical case, the way the mother treated the baby showed that she is unable to develop proper maternal care. One of the factors that generates this situation was observed during the psychological treatment due to the mother's previous experiences: mental illness caused by abuse in the past. It is important to highlight that the psichotherapy treatment worked, in the study, as a means to provide health and to restore this link. We elaborated a proposal to promote health and/or to prevent illness on the mother and her baby, beginning as soon as possible in the hospital, with a diagnosis and psychological (or psychiatric) treatment that should be continued just after the discharge from the hospital as well as during the child development.

Keywords: Child abuse, Primary maternal care, Mother and baby relationship, Transgenerational.


 

 

Este artigo é resultado de uma experiência de dois anos, vinculada a uma situação de muita ansiedade e despreparo, que acabou evoluindo para uma grande vocação. Quando entrei na enfermaria de queimados pela primeira vez, não imaginava o quanto iria aprender e mudar meu modo de ser após começar a atender aqueles pacientes. As crianças, em especial, sempre me chamaram a atenção e, em conseqüência, foi através do atendimento dispensado a elas e a seus pais que acabei me deparando com a atividade pela qual me apaixonaria e à qual dedicaria toda a minha atenção.

 

Maus-tratos

A violência pode ser vista em nossa sociedade, dita "moderna", como uma forma de relação social: ela está diretamente ligada à forma de relação que as pessoas produzem e reproduzem. Ela acontece através de padrões, exclusões sociais e modos de vida, dentre outros fatores, que, no decorrer dos séculos, foram se impondo às sociedades.

Ao mesmo tempo em que a violência é expressa através das relações sociais, ela também está presente nas relações interpessoais, refletindo-se nas relações entre homens e mulheres, adultos e crianças. Nos casos de violência intrafamiliar (ou maus-tratos) contra crianças, que será o tema tratado neste trabalho, está se infringindo um direito à liberdade, à igualdade e, principalmente, à vida. Conforme assinala Adorno (1988), a violência é um tipo de manifestação que atenta contra a possibilidade de construção de sujeitos livres na sociedade e tem por referência uma vida reduzida, alienada: não há vida em sua plenitude; sendo assim, durante sua manifestação, ela preenche o espaço da liberdade, ameaça constantemente a vida e faz alusão à morte e à destruição.

Hoje em dia, é muito comum vermos, na sociedade, todo um movimento a favor da proteção dessas crianças, porém, na prática, os recursos oferecidos em relação à prevenção e ao atendimento da vítima ainda são muito precários, assim como o nível dos profissionais que trabalham com casos de maus-tratos. Como pude comprovar durante meu estágio no HPS, a maioria desses profissionais ainda não sabe ao certo como diagnosticar e ajudar essas crianças vítimas de violência.

São considerados maus-tratos, neste trabalho, com base nas idéias de Farinatti (1993), todos os atos cometidos contra a criança, bem como as omissões à sua proteção que ocasionem danos físicos, emocionais, intelectuais ou sociais efetuados pelos responsáveis por seu bem-estar.

Guerra (1998, p.32) chama de violência doméstica "todo ato ou omissão praticado contra crianças e adolescentes por seus pais, parentes ou responsáveis que, sendo capaz de causar danos físicos, sexuais e/ou psicológicos à vítima, implica, de um lado, uma transgressão do poder/dever de proteção do adulto e, de outro, uma coisificação da infância, isto é, uma negação do direito que crianças e adolescentes têm de ser tratados como sujeitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento".

Quando pensamos na violência intrafamiliar, é fundamental que nos reportemos ao conceito de família, que é abrangente e difere entre os autores. A maioria dos autores chama de família o primeiro grupo de pessoas ligadas por vínculos afetivos e/ou consangüíneos com o qual a criança tem contato. Ela tem o papel estabelecido socialmente de ensinar, proteger e satisfazer as necessidades básicas da criança durante sua vida. A família é o primeiro contato de socialização do indivíduo, e, de acordo com Guerra (1998), é a família que irá transmitir valores, costumes e formar a personalidade da pessoa.

De acordo com a ABRAPIA, a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8069, de 13/07/1990) dispõem-se a proteger a criança e o adolescente contra qualquer forma de maus-tratos, e determinam penalidades não apenas para os que praticam os atos, mas também para aqueles que se omitem.

A prevenção de maus-tratos é classificada, pela Organização Mundial de Saúde, em:

1. Prevenção primária: tem como objetivo a eliminação ou redução dos fatores sociais, culturais e ambientais que favorecem maus-tratos. Atua nas causas de violência doméstica.

2. Prevenção secundária: tem como objetivo a detecção precoce de crianças em situação de risco, o que impediria atos de violência e/ou sua repetição. Atua em situações já existentes.

3. Prevenção terciária: tem como objetivo o acompanhamento integral da vítima e do agressor.

Hutz (2002, apud Schmacker) concluiu que os fatores de risco mais implicados em negligência infantil são: tamanho da família (muitos filhos, bem como muitas gestações não planejadas), impulsividade, uso de drogas e falta de apoio social.

Em estudos realizados em relação aos principais autores das agressões, Azevedo (2001), Guerra (1998) e Farinatti (1993) observaram que as mães são autoras em 43% dos casos, seguidas pelos pais, com 33% dos casos pesquisados. Em 10% dos casos, as agressões são cometidas por ambos, enquanto, em 14% das ocorrências, são praticadas por outros responsáveis pelas crianças.

Uma das primeiras dificuldades enfrentadas pelo profissional que trabalha com crianças que sofreram maus-tratos é o próprio desconhecimento em relação ao assunto. Segundo Borges (1995, p.1), "a criança normalmente nos chega ou por uma situação de trauma orgânico (acidentes, doenças) ou por dificuldades emocionais das mais variadas (agressividade, dificuldades escolares, etc.). O mau-trato freqüentemente se apresenta disfarçado, e seus indícios só se farão presentes de forma secundária e indireta, como um grito de ajuda abafado, mascarado por outras queixas".

Na experiência como estagiária do Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre, deparei-me várias vezes com dúvidas em relação ao diagnóstico; existem casos em que a relação da criança com a família é visivelmente patológica, porém esse diagnóstico não é tão fácil de se fazer, principalmente porque questões contratransferenciais muito importantes interferem durante o atendimento. Borges (1995, p.1) acredita que essa "desinformação também se deva, em boa parte, a uma dificuldade em se estar aberto a VER e a se ENVOLVER com casos dessa natureza. E uma das principais razões são os sentimentos contratransferenciais que esses casos nos despertam".

Muitas vezes, durante minhas intervenções, tive que travar inúmeras discussões com os profissionais que realizavam comigo o atendimento de crianças vítimas de maus-tratos. A grande maioria se colocava em uma posição passiva em relação a essas crianças, abandonando o caso ou não dando continuidade ao acompanhamento da vítima após a alta hospitalar. Acredito que esses profissionais se colocam nessa posição justamente pelo fato de não quererem enxergar a violência em torno da criança, com o único objetivo de se protegerem contra o sofrimento e a sensação de impotência que essa situação gera. Porém, essa atitude prejudica diretamente a vítima, pois a mesma fica sem a proteção à qual tem direito e da qual necessita, e, em conseqüência, acaba fazendo com que o profissional deixe de procurar os meios para ajudá-la. A entrevista, por exemplo, é um instrumento que está ao nosso favor para diagnosticar os maus-tratos. Durante a entrevista, é fundamental que o profissional consiga diferenciar um ato negligente de toda uma história da criança cercada de maus-tratos. Ainda é uma discussão entre os autores e profissionais que trabalham nessa área o fato de um único ato negligente poder ser considerado mau-trato. Nesse sentido, deve-se verificar, durante a entrevista, os seguintes fatores na história dos pais: história de uma infância violenta, cuidados inadequados ou insuficientes durante a infância, história de pouco rendimento escolar, adolescência sem amigos, história de saída de casa muito cedo na infância, falta de família ampliada como apoio, uso de drogas ou álcool, passado criminal, doença mental, isolamento social. A observação da interação pais-filho, durante as intervenções psicológicas, é um dos fatores mais importantes para o diagnóstico de maus-tratos.

Dentro de um hospital de emergência, surgem, a toda hora, crianças que sofreram acidentes, sejam eles intencionais ou não. Para que possamos ajudar essas crianças, é necessária a realização de uma detalhada anamnese, com informações sobre a gravidez da mãe (planejada, não planejada) relação dos pais na época da gravidez, amamentação, hospitalizações anteriores, etc. É comum o informante cair em contradição, ao contar novamente a história do acidente, quando seu objetivo é proteger o agressor. É importante estar atendo a dados sem lógica, que não condizem com o tipo de ferimento apresentado pela criança. Acredito que nós, psicólogos, podemos lançar mão de um instrumento fundamental nesse momento: a intuição.

De acordo com a ABRAPIA, no Guia de Orientação para Profissionais de Saúde (1997), que tem como objetivo orientar os profissionais no diagnóstico de maus-tratos, o mesmo se subdivide em cinco categorias: maus-tratos físicos, sexuais, psicológicos, negligência e a síndrome de Munchausen por procuração (consiste em uma "doença" da criança que é usualmente fabricada pela mãe, através de histórias médicas falsas, alterações de registros ou de amostras para laboratórios, sendo que, de acordo com Farinatti (1993), a criança, inicialmente, encontra-se em posição passiva, porém, no decorrer do tempo, acaba assumindo uma posição simbiótica de co-autora das doenças).

Com o objetivo de pensar sobre a função materna em mães que maltratam, de alguma forma, os filhos, considera-se interessante aprofundar os aspectos, conscientes e inconscientes, que se relacionam com a gravidez e a maternidade.

 

A formação do apego e do vínculo entre mãe/bebê

O conceito de família, nos tempos modernos, passa por uma série de controvérsias e transformações. Durante meu estágio, tive a oportunidade de entrar em contato com diversas famílias, que se encontravam em diferentes condições sociais e possuíam histórias de vida distintas, e acredito ser muito difícil conseguir conceituar algo tão abrangente. A formação do vínculo da criança com a família acontece desde a gestação, e é fundamental para que a criança consiga desenvolver-se de maneira saudável.

De acordo com Bowlby (1990), não se pode falar a respeito de uma conduta de apego até que haja evidência de que o bebê não somente reconhece sua mãe como tende a comportar-se de modo a manter proximidade com ela. O comportamento do apego é considerado por Bowlby como algo de importância equivalente aos comportamentos de acasalamento e parental.

O mesmo autor assinala que "nenhuma forma de comportamento é acompanhada de sentimento mais forte do o que comportamento de apego. As figuras para as quais ele é dirigido são amadas, e a chegada delas é saudada com alegria. Enquanto uma criança está na presença incontestada de uma figura principal de apego ou tem-na ao seu alcance, sente-se segura e tranqüila. Uma ameaça de perda gera ansiedade, e uma perda real, tristeza profunda; ambas as situações podem, além disso, despertar cólera" (Bowlby, 1990, p.224).

Para Debray (1988), tornar-se mãe ou pai reaviva, em todo indivíduo humano, desejos antigos experienciados em suas reminiscências infantis ao verem os pais como adultos todo-poderosos, pois foram eles que decidiram o seu nascimento e que apontaram o que poderia ou não ser feito ou como deveriam agir em determinadas situações. A criança é totalmente dependente dos pais, não possui autonomia, e tem, assim, que "obedecer" a todos os seus mandos e desmandos, e não tem, portanto, outra solução senão esperar ter maturidade suficiente para ser capaz de tomar as próprias decisões.

De acordo com Klaus, Kennell e Klaus (2000), constituem fatos importantes para a formação do vínculo: planejamento da gravidez, aceitação da gravidez, conscientização dos movimentos do feto, percepção do feto como uma pessoa separada, vivência do trabalho de parto, nascimento, ver o bebê, tocar o bebê, cuidar do bebê e aceitar o bebê como uma pessoa individual na família. Os autores defendem a idéia de que, observando e estudando a mãe e o pai durante cada um desses períodos, podemos reunir as peças que formam a base do relacionamento pais-bebê. Para Catão (2002) e Winnicott (2000), a função materna não é obrigatoriamente desempenhada pela mãe biológica; assim, outra pessoa pode executá-la tão bem quanto a própria mãe biológica, sendo que a falta desses cuidados, nos primeiros tempos de vida de um bebê, o coloca em risco.

Winnicott (2000) traz uma importante contribuição quando assinala que a mãe (ou o cuidador) se comunica com seu bebê essencialmente através de gestos, sorrisos e vocalizações. Quando a interação obtém êxito, dá oportunidade à mãe de compreender as demandas do filho, o que proporciona seu desenvolvimento físico e mental de forma sadia. A sensibilidade da mãe para compreender os sentimentos e as necessidades do bebê é alcançada no final da gravidez. Tal estado possibilita que a mãe (ou cuidador) possa identificar-se com esse bebê, adaptar-se às suas necessidades e compreender as suas demandas. Conforme o autor, essa comunicação é essencialmente não-verbal, caracterizada pelo olhar e pelo contato físico. Para Winnicott (2000), a boa evolução dos estágios posteriores do desenvolvimento depende principalmente de bons resultados nos primeiros contatos do bebê com a mãe ou cuidadora. De acordo com o autor, a identificação primária do bebê é o início de tudo, sendo nesse momento que a criança estabelece sua condição de ser, de existir. Nesse processo, está implicada a base de saúde mental do indivíduo. O autor afirma que o bebê, logo que nasce, é alguém que necessita de maternagem para que possa existir, ressaltando que, onde encontramos o bebê, encontramos a maternagem, e que, sem ela, não existiria nenhum bebê. Conforme Winnicott, o ambiente (que é representado pela mãe) é o fator que torna possível o desenvolvimento do self do bebê, e faz com que ele aceite a realidade como uma aliada nos processos maturativos da sua personalidade.

O autor segue afirmando que, no caso de o bebê não receber o cuidado de que necessita, ele passa por um grande sofrimento psíquico, que prejudica diretamente a sua formação vincular. Essas angústias são representadas por sensações de vazio, de desintegração e dissociações entre o corpo e o psíquico. Winnicott ressalta que a amamentação é um exemplo importante de um dos primeiros meios de comunicação e formação de vínculo entre a mãe e seu bebê. No entanto, algumas mães não se sentem aptas a amamentar os filhos, sendo que, muitas vezes, sua dificuldade tem ligação direta com os conflitos pelos quais passaram quando crianças. Nesse caso, o autor recomenda que não se force uma situação, atitude que provavelmente não será bem sucedida, mas sim, que se promovam novas maneiras através das quais a mãe terá contato com seu bebê. Muitos dos aspectos importantes da amamentação estão presentes também no uso da mamadeira, como, por exemplo, a troca de olhares entre a mãe e o bebê, que é um aspecto fundamental no estágio de desenvolvimento primário.

A partir das idéias sustentadas pelos autores, é possível perceber que é fundamental que o bebê e a criança tenham o suporte e o carinho da mãe ou de alguém que consiga desempenhar esse papel e, caso isso não aconteça, a saúde mental e física dos mesmos estará profundamente comprometida.

Em casos de diagnóstico de maus-tratos, é importante que, antes de qualquer julgamento ou pré-conceito, o profissional consiga estimular o vínculo da família com a criança, porque, bem ou mal, é com essas pessoas que ela vive e que, muitas vezes, busca como modelo referencial. A primeira atitude que temos, ao ver uma vítima de maus-tratos, é que ela estaria melhor em uma instituição do que com sua família, porém a decisão deve ser tomada após bastante reflexão.

Farinatti (1993) também defende a idéia de que, antes de se pensar na retirada da criança de casa, é fundamental que se invista nas relações da família, com vistas a uma reestruturação familiar e ao trabalho de reforçar o vínculo da vítima com os pais. Porém, não se pode negar que existem casos em que as crianças devem ser criadas fora de seu lar, tamanho é o risco que a família apresenta. Acredito que cada situação deva ser estudada profunda e individualmente, e faz-se necessário analisar separadamente cada criança e cada família. Para que isso aconteça da melhor forma possível, é importante saber lidar com nossas idéias pré-concebidas e julgamentos.

A seguir, trataremos de um assunto fundamental no estudo de maus-tratos, principalmente se o profissional trabalha com a idéia de fortalecer os vínculos familiares e entender um pouco melhor a história da família.

 

A herança que se passa de geração para geração - transgeracionalidade

Dentre alguns dos fatores citados neste trabalho destinados a facilitar o surgimento de maus-tratos contra a criança, o fator transgeracional é um assunto que se destaca e que vem ganhando cada vez mais espaço para estudo na sociedade atualmente.

De acordo com Escosteguy (1997), o conceito de transgeracionalidade vem sendo cada vez mais usado no entendimento da dinâmica das relações entre mãe-bebê. A autora define o conceito como "uma transferência - normal ou patológica - realizada sobre o bebê, impondo-lhe, dessa forma, a partir de outra(s) geração(s), a marca, para melhor ou para pior, de experiências psicológicas oriundas dos genitores" (1997, p. 49).

Fraiberg, Adilson e Shapiro (1994) destacam que não é possível afirmar que os genitores que foram maltratados, no momento em que se tornarem pais, serão guiados em seu comportamento por seus sofrimentos e feridas ou encontrarão a oportunidade, na maternidade e na paternidade, de fazer algo diferente de seus pais.

Para os autores, o acesso aos seus sofrimentos infantis é um meio potente para a prevenção da repetição de maus-tratos nos futuros pais. No entanto, a repressão e o isolamento dos afetos são fatores favoráveis para a identificação com o agressor e com o sedutor.

Segundo Fraiberg, Adelson e Shapiro (1994), mesmo nas famílias em que os vínculos de amor são intensos, os conflitos do passado dos pais podem aparecer. Tais eventos intrusivos passam despercebidos na relação familiar, sendo que nem os pais nem as crianças têm o seu vínculo ameaçado.

Em outras famílias, no entanto, os autores salientam que a relação entre os pais e o bebê é constantemente invadida por esses fantasmas do passado. Eles criam aborrecimentos para as crianças principalmente nos setores da alimentação, do sono, da aprendizagem, da higiene ou da disciplina em função dos pontos conflituosos na vida dos pais. É importante salientar ser fundamental procurar a ajuda de um profissional nesses casos, pois, mesmo que o vínculo seja sólido, os pais podem se sentir perdidos diante das invasões de experiências passadas. No entanto, esses pais têm grande dificuldade de pedir ajuda. Espontaneamente, os pais não terão vontade alguma de formar aliança com o profissional, afinal, para eles, nós é que parecemos estranhos e intrusivos, não seus fantasmas.

Na minha experiência no hospital com esse tipo de caso, logo que chegava para conversar com os pais das crianças, os mesmo reagiam como se eu estivesse invadindo seu espaço e o da criança com as perguntas que fazia. A grande maioria, no entanto, no decorrer dos atendimentos, tornava-se mais flexível e acabava trazendo seus "fantasmas" para o atendimento.

O profissional deve estar atento a alguns sinais que o bebê pode apresentar, quando exposto a esses "fantasmas", sendo que a hospitalização pode ser um momento importante na investigação dessas relações patológicas estabelecidas na família. Deve-se observar a manifestação de sinais precoces de carência afetiva por parte da criança, além de sintomas graves de maus-tratos e lacunas no seu desenvolvimento. Fraiberg, Adelson e Shapiro afirmam que essas crianças carregam nas costas o difícil passado dos pais desde o nascimento, como se o genitor estivesse condenado a repetir seu passado trágico com o filho.

Para encerrar a revisão bibliográfica, é importante salientar que todo profissional que trabalha com crianças deveria se sentir envolvido nessa luta que travamos diariamente, no meu caso, em um hospital, para que seus direitos sejam atendidos. O estudo e o entendimento dinâmico de como acontecem essas relações devem estar sempre presentes na nossa prática diária, sendo que é a partir desse embasamento teórico juntamente à nossa vontade de proteger e ajudar essas crianças que podemos começar a falar de fato em experiência clínica.

 

Histórias de uma enfermaria de queimados...

Dentre as situações clínicas vivenciadas em um hospital de trauma, a mais dramática e angustiante que já experienciamos foi o atendimento psicológico de crianças queimadas que foram vítimas de maus-tratos, internadas na Unidade de Tratamento Intensivo de Queimados, no Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre. A base de nossa atividade reside na importância do diagnóstico e do manejo psicoterápico psicanaliticamente orientado, sem esquecer a questão da dimensão humana no estabelecimento de um holding mais criativo.

Primeiramente, é importante caracterizar a queimadura em si. Conforme Borges (1995), é uma lesão causada por agentes externos (fogo, choque elétrico, agentes químicos, calor ambiental intenso, entre outros) que provoca a destruição de pele e, por vezes, dos tecidos e das inervações abaixo da mesma. A lesão é caracterizada em sua profundidade e extensão. Quanto à profundidade, existem as queimaduras de 1°, 2° e 3° graus, sendo esse último o mais grave e o que envolve mais riscos para a vida do paciente. Quanto à extensão, normalmente se calcula uma área lesada atribuindo-se um número representativo da mesma (por exemplo, 60% de área queimada), que se distribui entre pequeno, médio e grande queimado. O maior risco envolve os pacientes grande queimados, com queimaduras de 2° e 3° graus. É interessante enfatizar que o índice de óbitos para um paciente grande queimado gira em torno de 15 a 18%. Outro fator grave que merece todos os cuidados é a queimadura de face, onde, muitas vezes, ocorre inalação por parte da criança, com possibilidade de queimadura das vias aéreas, sendo que o prognóstico, na maioria das vezes, se encaminha para a entubação do paciente. É importante também falar a respeito dos procedimentos realizados nos pacientes queimados, que se tornam mais difíceis quando os pacientes são crianças. O banho é dado duas vezes ao dia, com o objetivo de remover a pele lesada e a secreção ali depositada. É um procedimento extremamente doloroso para a criança, que já se encontra em um momento difícil e sofrido devido à hospitalização e à queimadura. Finalmente, ocorrem as idas ao bloco cirúrgico para a realização do debridamento (procedimento em que se retira a pele lesada) e da enxertia (procedimento em que é retirado um pedaço de pele não queimada de uma parte do corpo, que é colocada por cima da pele lesada) nos casos que forem necessários.

O trabalho da psicologia, realizado no Hospital de Pronto Socorro, parte do princípio de que todo trauma físico acaba acarretando algum tipo de trauma psicológico, isto é, o sentimento de identidade do indivíduo está significativamente alterado e rompido, por isso a importância do atendimento de todos os pacientes, principalmente o das crianças. O atendimento psicológico é feito a partir da internação do paciente na enfermaria, tem continuidade durante toda a hospitalização, que, na maioria das vezes, é longa e não tem prazo determinado para acabar.

Conforme Borges (1995), o banho é sempre um procedimento que merece ser trabalhado pela psicologia com a criança. O autor defende a idéia de que a criança se encontra muito assustada, e o fato de ser colocada em uma banheira ou mesa cirúrgica para ser lavada, de a lesão ter de ser esfregada, retirando-se a pele, e, em conseqüência, ocorrer o sangramento dessas partes lesadas, faz aumentar o seu medo, sua dor e angústia frente a esses procedimentos necessários. Acrescenta-se a isso o fato de os pais também estarem muito nervosos e culpados pelo acidente dos filhos. Na enfermaria de queimados, realizamos os atendimentos de todos os leitos, sem precisar da solicitação dos médicos para fazer o primeiro contato.

Pelo fato de não possuir privacidade nas enfermarias (muitas vezes o atendimento psicológico é interrompido para a realização de alguma intervenção médica), seria de se esperar que os pacientes fossem resistentes na hora de falar a respeito de si e de seus problemas, o que não acontece. Segundo Arena e Borges (1994, p.2), "seria de se esperar que essa mudança no enquadre técnico levasse a uma maior resistência do paciente ao atendimento. Contudo, o que encontramos é a situação oposta, pacientes mostrando-se receptivos em conseqüência do sofrimento frente à situação traumática".

A intervenção psicológica com pacientes queimados e familiares possibilita a expressão de seus sentimentos, angústias e medos bem como de suas expectativas, esperanças e planos para o futuro, o que abre um espaço para que possam aliviar o estresse que enfrentam (tão prejudicial para a adesão ao tratamento) e possam utilizar-se dos recursos psíquicos que se instauram na busca pela cura. Deve-se considerar, durante a intervenção, a idéia de danos corporais que a grande maioria dos pacientes desenvolve após a queimadura, considerando as alterações na imagem corporal do mesmo.

É fundamental que o terapeuta se sinta à vontade com o paciente (o que, inicialmente, é difícil para algumas pessoas, devido ao aspecto das lesões provocadas pela queimadura) e disponível para o paciente, e tenha também a capacidade de proporcionar um suporte emocional que Winnicott chama de holding. Para Winnicott (2000), fornecer o holding (sustentação) é uma das principais funções do psicólogo no hospital. É o seu conceito para os primeiros contatos maternos da mãe com a criança. Segundo ele, a função de sustentação é natural à mãe, baseando-se mais na sua empatia materna do que na sua capacidade de compreender. Também não podemos esquecer a importância de ter internalizado o setting terapêutico na hora de atender os pacientes nos leitos.

Borges (1995) aponta a importância de se realizar uma anamnese com a família, principalmente para observarmos o tipo de interação existente entre o familiar e o paciente. Alguns indícios são fundamentais para a avaliação do vínculo da criança com os pais, como, por exemplo, se os pais olham diretamente para a criança durante a entrevista ou se desviam o olhar e têm dificuldades de atender seu filho. Outro detalhe importante a ser observado é qual o contato corporal que esses pais tem com a criança, se a pegam no colo ou não. É fundamental escutar o relato dos pais de como foi o acidente bem como a versão da criança, e, nos casos de dúvida em relação ao acidente, é importante que essa investigação seja feita em separado. Caso a criança seja pequena e não consiga relatar o ocorrido, devemos buscar informações com familiares, vizinhos, amigos, Conselhos Tutelares, etc.

A seguir, realizarei a exposição de um caso, que foi selecionado dentre muitos que chegam diariamente à enfermaria de queimados. Como método de tratamento e entendimento dinâmico, utilizamos conjuntamente a psicanálise, a Psicologia do desenvolvimento e o trabalho social, sendo que as vantagens da utilização desses métodos foram muito grandes, tanto para as crianças e seus pais quanto para nós mesmos, que nos envolvemos diretamente com esses casos.

 

Vinheta clínica

Marcos1

Marcos, de 10 meses, foi internado na enfermaria de queimados, no Hospital de Pronto Socorro, transferido de um hospital do interior por queimadura de face, tronco e mãos. Em estado grave, veio acompanhado pela mãe, Sra. Marta, com o relato de ter se queimado após explosão em fogão a lenha, com tia de dezoito anos que tentava reacender o fogo com gasolina.

Segundo o relato da mãe, as crianças (Marcos e outra filha de três anos, Maria) costumavam ficar aos cuidados de uma tia, com quem tinham vínculo afetivo. A mãe é gestante, e informa não desejar essa gravidez. A mesma permaneceu com o filho, durante todo o período de internação, na UTI. Foi colocada a possibilidade de passar a noite em um abrigo para descansar melhor, mas não aceitou. Porém, durante alguns dias, foi descansar na casa de familiares de um paciente internado na UTI, alternando a rotina hospitalar com o pai, Fernando, que, após uma semana de internação do filho, compareceu ao hospital e, desde então, passou a acompanhar o bebê, com a companheira.

Na data de internação, um funcionário da Secretaria de Saúde da cidade onde a família residia subiu até a enfermaria para visitar a criança, e assustou-se com a gravidade do caso, pois os pais haviam informado que a criança estava bem, que havia se queimado pouco, o que gerou dúvidas, nas pessoas da cidade, sobre o fato de o acidente ter realmente sido de pouca extensão ou de os pais estarem minimizando o estado de saúde do filho. O mesmo funcionário informou também que os pais já possuíam histórico de negligência com os filhos no Município.

A mãe relata que a gravidez de Marcos não foi desejada por ela, porém o marido queria a criança. Afirma que não pôde amamentar o filho por ter sofrido infecção hospitalar, causada pelo fato de o parto do bebê ter ocorrido dentro do banheiro do hospital. Durante a anamnese realizada com o pai de Marcos, o mesmo revela que a mãe disse a ele que parou de amamentar a criança "porque o leite tinha secado".

A mãe de Marcos tinha dificuldade de pegar o filho no colo, não conseguia acalmar a criança quando se agitava e sentia dores e afastava-se do mesmo. Apesar de minhas intervenções em relação à importância de ela pegar o filho, de conversar e de cantar para ele, a mãe não se mostrava receptiva a essas idéias. Em determinada situação, durante uma intervenção psicoterápica, disse que a estagiária "não podia ver o bebê chorar", porque foi sugerido que ela cantasse para acalmar o filho. Deixava a criança sozinha durante os procedimentos na enfermaria e saía para fumar, dava mamadeira sem olhar o rosto da criança.

Durante o tratamento, a mãe apresentou uma conduta manipuladora, com hipótese de transtorno de personalidade. Paralelamente a esse fato, perceberam-se comportamentos que denotavam dificuldades de vínculo do casal com o bebê, tais como: não conseguir acalentar o filho com afeto, pouco tempo ao lado do leito e uma certa tranqüilidade e comodidade no Hospital, não demonstrando angústia com a permanência cotidiana na enfermaria. Durante a internação, foi possível observar fatores de risco como: baixo peso nutricional, dificuldades de vínculo materno, ausência de acompanhamento em serviço de saúde (mãe não apresentou o cartão de vacinação do filho, alegando tê-lo perdido).

Apesar de esse comportamento da mãe me despertar uma enorme indignação, durante uma supervisão, comecei a me dar conta das minhas dificuldades de seguir o tratamento da mãe e o do bebê devido aos sentimentos contratransferenciais que esse caso me causava.

Durante os atendimentos psicológicos na enfermaria, Marcos freqüentemente começava a chorar, não sendo atendido pela mãe. Esta parecia estar distante, absorta em seus pensamentos. Quando intervenho, dizendo que o bebê precisava de sua atenção para se acalmar, ela realiza um gesto meio distraído (começa a dar "tapinhas" na barriga do bebê) para consolar o filho, não olhando para a criança e logo depois desistindo. A minha vontade, naquele momento, era pegar a criança, cantar e tentar preencher o papel de uma mãe "suficientemente boa"; no entanto, esse gesto tranqüilizaria o bebê apenas naquele momento, e depois? Como seria quando voltasse para casa? Outro fato que me preocupava bastante era o de que ela estava grávida novamente, sendo observado, durante seus relatos, que a gravidez era completamente rechaçada. Frente à ausência de acompanhamento pré-natal, agendamos (serviço social e psicologia) uma consulta para avaliação do estado gestacional, porém ela se negou a ir à consulta e ainda atuou em relação ao agendamento, dizendo que não foram buscá-la e que havia sido maltratada no refeitório do hospital, sendo esse último o motivo de seu "sumiço" na hora de ir à consulta.

Comecei a observar essa conduta da mãe e a levantar uma questão importante para o diagnóstico: essa mãe não escuta o seu bebê porque tem dificuldades de olhar e escutar o filho?

Desde então, tentei me aproximar mais da mãe e entender sua história e o porquê dos maus-tratos em relação ao filho. No primeiro momento, ela teve dificuldades de falar sobre si mesma, parecendo não confiar em mim, mas, com o tempo e com a minha persistência, apesar de sua pouca receptividade, ela começou a se abrir comigo. Descobri que ela mesma tinha sido uma criança maltratada. Sua família era muito pobre e, desde cedo, ela trabalhava como papeleira (posteriormente foi descoberto, através do Conselho Tutelar, que Marta apresentava história de prostituição). Relatou que sempre quis sair de casa devido às agressões físicas que sofria por parte do pai, que "bebia muito". Contou que teve outro casamento, aos quinze anos, sendo que, desse casamento, nasceram outros dois filhos. A mesma não quis falar a respeito deles, apenas disse que a menina (de sete anos) morava com ela e que tinha mais um filho (de doze anos), que residia com a avó paterna. Quando ressaltei que devia ser muito difícil para ela sustentar uma família tão grande, a mesma relata que a avó paterna ajuda financeiramente, porém as duas "não se dão bem".

Em intervenção com o pai, o mesmo relata que foi abandonado pela mãe biológica quando nasceu, sendo deixado aos cuidados da tia, que chama de mãe. Demonstra grande raiva e descontentamento com a mãe biológica, que reside no fundo da casa de sua mãe de criação. Quando pergunto como é sua relação com ela, Fernando diz que só a cumprimenta, sem manter contato.

Com meu supervisor, resolvemos adotar um método de observações contínuas da relação mãe/bebê, com o principal objetivo de ajudar a mãe a reconhecer as necessidades e mensagens de seu bebê ao apontar a repetição do seu passado no presente, na relação com o filho.

Comecei a visitar mãe e filho diariamente, escutando e atentando para as dificuldades na formação do vínculo mãe/bebê. Realizava intervenções nos momentos em que a mãe falava a respeito de suas dores, e salientava que ela poderia e tinha potencial para fazer algo diferente com o filho, sem precisar repetir o que os pais haviam feito com ela. Destacava que, muitas vezes, seus gestos em relação ao filho deveriam vir acompanhados de um olhar em relação a ele, e ressaltava que era importante que a mãe se aproximasse cada vez mais do filho para tentar conhecer melhor seus sinais e pedidos.

Ela começou a se interessar um pouco mais por seu bebê nos momentos difíceis, como, por exemplo, no momento do banho e nos procedimentos hospitalares, e conversava com ele quando o mesmo se agitava e se sentia desprotegido, tentando acalmá-lo à sua maneira. O bebê, por sua vez, respondia com amor aos gestos afetuosos da mãe. Apesar da melhora na relação entre a mãe e o bebê, a mesma precisava de um atendimento regular e diário após a alta hospitalar, para que essas mudanças não se restringissem apenas à internação.

Realizando um trabalho com o serviço social, entramos em contato com o Conselho Tutelar da cidade, que relatou graves episódios de negligência da mãe com os filhos. De acordo com o conselheiro, Maria tinha um filho de dezoito anos que cumpria medida restritiva de liberdade por assaltos e roubos; outro, de doze anos, que possui dificuldades cognitivas e não conta com acompanhamento por parte da mãe, e, por fim, uma filha de sete anos, com câncer, que está sob os cuidados de outra família (apesar de relato da mãe, no hospital, de cuidar dessa filha, acompanhar o tratamento sistematicamente e também informar que a mesma estaria com a avó durante o período de internação de Marcos), bem como a existência de várias aplicações de medidas do Conselho Tutelar sem o acompanhamento adequado da mãe. Em contato com assistente social do Fórum de Passo Fundo, esta reitera tais informações e destaca o comportamento atuador da mãe bem como suas características de maus-tratos em relação aos filhos. O pai comporta-se como porta-voz das atuações da mãe e expõe a relação conjugal de forma fragilizada, sem um compartilhamento adequado das tensões experienciadas durante a internação. Parece mais afetivo e preocupado com o filho, mas apresenta o mesmo comportamento confortável na enfermaria.

Em discussão da equipe de trabalho, foi definido que Marcos deveria ser transferido para sua cidade, devido à superlotação da enfermaria. Com meu supervisor, com o serviço social e com a equipe médica, foi tomada a decisão de não comunicar aos pais os fatos que foram descobertos, com o objetivo de evitar maiores atuações e até uma provável fuga dos pais do hospital, ficando essa abordagem para o momento de alta.

No dia da alta hospitalar, após cinco semanas de internação, realizei uma intervenção com a mãe, apontando sua melhora no relacionamento com o filho e a importância da permanência de suas atitudes positivas para o desenvolvimento sadio da criança. Falei, depois, a respeito das informações que o Conselho Tutelar havia passado para nossa equipe, informando que sua família continuaria sendo acompanhada pelo Conselho e pelo Fórum da cidade de origem após seu retorno. A mãe permaneceu calada a maior parte do tempo, porém enfatizava que "sabia cuidar bem de seu filho". Sugeri que, após o retorno à sua cidade, seria importante que tivesse alguém para conversar, como fazia comigo, e sugeri também que ela começasse um tratamento psicológico. Marta disse que tinha vontade de conversar mais tempo com alguém, aceitando o encaminhamento.

Entramos em contato com o Hospital, o Conselho Tutelar e o Fórum da cidade com o objetivo de acompanhar Marcos e sua família e avaliar, na cidade, a situação de guarda da criança frente à vulnerabilidade da sua relação com os pais. É importante indicar que a criança necessitará de cuidados especiais no tratamento das lesões de queimaduras (curativos, não exposição ao sol, uso de malha na cabeça, etc.) bem como um acompanhamento cuidadoso dos serviços caso se defina o seu retorno com os pais.

O encaminhamento para a avaliação pelo Conselho Tutelar tem, como objetivo principal, a realização detalhada de investigações sobre os cuidados referentes à saúde das crianças e adolescentes sob a guarda do casal, com a função de protegê-los de futuros riscos para a sua saúde. Entendendo a gravidade do ocorrido e os riscos de novas exposições, solicitamos o acompanhamento urgente para essa família, com a finalidade de avaliar e minimizar novos ciclos de maus-tratos que se demonstram recorrentes nos filhos e também no bebê que está para nascer.

 

Conclusão

Na situação acima descrita, qual foi a importância da presença do psicólogo ao lado dessa mãe e de seu bebê?

É fundamental que se olhe a mãe e o filho de forma clara, e muitas vezes carinhosa, amorosa, como emblema desse self, para superar a imagem rompida da mãe e para conseguir escutar o que está por trás de suas atitudes em relação ao filho. A importância está em poder criar um holding, ser pai e mãe suficientemente bons, tanto para o bebê quanto para a mãe, apaixonar-se por nossa função e por essa criança, encontrar vida num lugar rodeado de morte.

À luz do referencial teórico de Cramer e Palácio Espasa (1993), é possível reconhecer, a partir de terapias conjuntas breves (técnica utilizada no atendimento), a modificação, através da terapia, dos investimentos e representações que a mãe tem do filho. Isso opera, antes de tudo, no nível da redução das projeções parentais sobre o filho. Os autores relatam que o objeto focal da terapia é o investimento materno sobre o filho. Quando essa terapia é bem sucedida, constata-se que também se modificam os investimentos que o filho faz sobre a mãe, porém secundariamente às modificações feitas pela mãe. Assim, as modificações das interações entre mãe-filho (nas terapias interpretativas) serão secundárias a uma mobilização dos investimentos e representações que a mãe faz do filho. Os agentes terapêuticos específicos das terapias conjuntas breves mãe-bebê são, pois, os que modificam os investimentos que a mãe tem do bebê (e reciprocamente, embora de modo secundário, que o bebê tem da mãe).

É fundamental saber que, na psicoterapia de mães e bebês, o paciente em questão é a dupla, não apenas o bebê. Muitas vezes, encantamo-nos com a criança, e existe uma tendência natural de colocar a mãe no lugar de uma vilã e "destituí-la" de seu papel materno, porém não existe nada de terapêutico nessa atitude. Creio que a tarefa terapêutica é intensamente afetada, principalmente nos casos de violência contra a criança, pelo fenômeno chamado contratransferência.

É importante destacar, de acordo com Winnicott (2000), que, além de estudar o seu paciente, o terapeuta também deve estudar a natureza da carga emocional que recai sobre o seu trabalho. O autor assinala que não se podem evitar os sentimentos de ódio e temor diante do paciente, e, caso se torne necessário que ao analista sejam atribuídos sentimentos brutais, é melhor que ele esteja consciente e prevenido, pois é preciso tolerar que o coloquem nesse lugar.

É possível observar que, no caso relatado, inicialmente, minha presença era tida como algo ameaçador, sendo que, na maioria das vezes, a mãe não se mostrava disponível para o atendimento. Foi preciso entender o porquê dessa "rejeição" inicial e que sentimentos ela suscitava em mim. Tive que suportar ser colocada em um lugar de ódio e repulsa, o que foi extremamente difícil, para que posteriormente conseguisse estabelecer um vínculo com a paciente.

Essa situação e os maus-tratos fizeram com que eu sentisse um grande ódio por essas mães. Conforme Winnicott (2000), o terapeuta não deve negar o ódio existente dentro de si. O autor ressalta que o ódio deve ser percebido claramente, e mantido num lugar à parte para ser utilizado numa futura interpretação. O analista deve estar preparado para suportar a tensão quando não é bem recebido por seu paciente, no entanto, para consegui-lo, deve conhecer e aceitar seus próprios sentimentos de raiva e medo. O autor compara o lugar do terapeuta com o da mãe com um bebê recém-nascido ou que ainda nem nasceu.

O autor chama de preocupação materna primária à transformação sofrida pela mãe, nos meses finais da gravidez e nos subseqüentes, que objetiva a constituição de um duo unificado, ao permitir que a mãe possa sentir pelo filho. No momento em que se consegue estabelecer um vínculo saudável com a mãe, proporcionando uma abertura para que ela possa falar sobre suas questões, fantasias, medos, esperanças, infância, pais, futuro e, principalmente, o modo como se relaciona com os filhos, está se realizando uma maternagem em relação a ela; agora o terapeuta tem a função de ser uma mãe "suficientemente boa", e a mãe, a criança que necessita dessa maternagem, pois, na maioria das vezes, não a recebeu em sua infância. Assim começa a intervenção psicológica no próprio vínculo terapêutico para que, posteriormente, a mãe consiga modificar sua relação com a criança.

Retomando as idéias de Brazelton (1988), é possível observar, nos bebês bem cuidados, uma série de respostas afetivas e motoras em relação ao ambiente. É possível observar, nas crianças que foram vítimas de maus-tratos, que essas respostas se encontram retardadas, sendo muito importante a realização de atividades lúdicas que as incentivem a aprender mais sobre si mesmas e sobre o ambiente em que vivem. Nesse momento, é fundamental que a mãe seja chamada para essas atividades, para que ela participe ativamente do desenvolvimento de seu filho. Para Winnicott (2000), a boa evolução no desenvolvimento do bebê depende, principalmente, de bons resultados nos primeiros contatos do bebê com a mãe ou cuidadora (representam o ambiente). De acordo com o autor, a identificação primária do bebê é o início de tudo, sendo nesse momento que a criança estabelece sua condição de ser, de existir. Nesse processo, está implicada a base de saúde mental do indivíduo.

É interessante observar, no relato da mãe, que a mesma não amamentou seu filho, mesmo tendo conhecimento da importância da relação que se estabelece na amamentação, além dos fatores ligados à saúde do bebê. Winnicott (2000) ressalta que a amamentação é um dos primeiros meios de comunicação e formação de vínculo entre a mãe e seu bebê. No entanto, algumas mães não se sentem aptas a amamentar os filhos, sendo que, muitas vezes, as dificuldades têm ligação direta com os conflitos que passaram quando crianças. Nesses casos, o autor recomenda que não se force uma situação, mas sim, que se promovam novas maneiras através das quais a mãe terá contato com seu bebê.

No decorrer do caso clínico, foi possível observar que o fenômeno da transgeracionalidade acontece na família que apresenta maus-tratos. Sendo assim, é fundamental, ao profissional que trabalha nessa área de violência intrafamiliar, retomar a história dos pais e entender como eram as relações dos mesmos com seus próprios pais, para que, posteriormente, consiga intervir no vínculo familiar atual. Pode-se pensar, baseando-se na idéia de transgeracionalidade, que, caso ninguém intervenha nessa relação, essa criança poderá ser um futuro maltratador.

Deparamo-nos, assim, com a importância do diagnóstico precoce desses casos. Cramer e Palácio-Espasa (1993) assinalam que existe um notável potencial preventivo nas intervenções precoces junto às mães e seus filhos. Os autores afirmam que o processo de avaliação diagnóstica da família e da criança possui um enorme potencial terapêutico. Seria fundamental que as mães que foram maltratadas participassem, durante a gestação, de programas que trabalhassem a prevenção da saúde mental; acredito que um trabalho psicológico nesse aspecto já influenciaria na formação do vínculo entre a mãe e seu bebê. Muitas vezes, a psicoterapia breve durante a internação dá certo, como no caso de Marcos, em que a mãe conseguiu melhorar sua relação com o filho após ter conseguido vincular-se comigo. Porém, apesar da melhora na relação entre a mãe e o seu bebê, é fundamental enfatizar que a mesma deve seguir em atendimento regular e diário após a alta hospitalar, para que essas mudanças não se restrinjam apenas à internação.

No caso de Marcos, tive a oportunidade de acompanhar parte da gravidez de sua mãe durante a internação, sendo possível usar a situação do trauma e da hospitalização no sentido de prevenir maus-tratos posteriores. Após a alta hospitalar, além da continuidade no tratamento psicológico da mãe, é fundamental a não interrupção dos cuidados em relação à criança e à sua queimadura.

É fundamental destacar que cada profissional da área da saúde encontra, com o tempo, seu jeito de lidar com essas situações. Sugere-se que, em relação à criança, o profissional esteja disponível, conte histórias, sorria, segure a mão, dê um beijo, toque, sem se amedrontar, com a possibilidade de brincar e criar a cada encontro. É necessário que se esteja disponível para as angústias da mãe, tentar não julgar nem rechaçar sem ao menos conhecer a história da paciente, ajudar até mesmo a limpar a ferida quando sangra no banho, acompanhar a mãe e conseguir fazer com que ela também consiga enxergar e limpar suas feridas e suportar nosso próprio sofrimento.

Marcos e sua mãe sobreviveram, com suas tristezas e cicatrizes; reencontraram, em parte, seu jeito, aceitaram as modificações, não desistiram de viver e aprenderam a lidar com as mudanças (boas e ruins) que um acidente como esse pode trazer. A criança partiu, levando uma parte nossa, deixando uma perda que foi aceita, deixando uma lembrança, lembrança daquela terapeuta que se emocionou, sofreu e tentou ajudar.

Mesmo com a quebra do setting tradicional, sem a privacidade desejada, ainda assim vamos em frente, tentando criar condições, pois o que define a psicoterapia não é o ambiente em que ela é desempenhada, mas sim, o encontro dos desejos de seres humanos que precisam dessa interação com profissionais que se apaixonam por sua práxis e por sua particularidade. Nossa prática é a criatividade, que emerge da singularidade de cada novo atendimento.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Carolina Marocco Esteves e Edson Sá Borges
R. Heretiano Rocha, 76/302, 90690-350
Fone: (051)33811939 ou 91129970
E-mail: cacamarocco@ibest.com.br

Recebido 25/10/05
Reformulado 12/12/06
Aprovado 31/01/07

 

 

* Psicóloga, residente em Psicologia hospitalar e clínica do Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre
** Psicólogo do Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre.
1 Os nomes foram alterados para preservar a identidade dos pacientes e familiares.