Introdução
Refletir sobre o suicídio nos coloca diante de um fenômeno complexo, multifatorial e de dimensões incalculáveis. O suicídio aponta para modos de estar no mundo que desvelam dificuldades em encontrar familiaridade, pertencimento e enraizamento, por isso, para pensarmos a seu respeito, é importante ampliarmos o olhar compreensivo para o mundo em que estamos inseridos.
No Brasil, estima-se que entre 2011 e 2016 tenham ocorrido 48.204 suicídios de jovens com idades entre 10 e 19 anos (Secretaria de Vigilância em Saúde, 2017). No que se refere ao suicídio de crianças, há uma escassez de dados que dificulta a compreensão desse fenômeno. Ao olharmos para o Mapa da Violência (Waiselfisz, 2014) observamos que há uma divisão entre a população jovem, de 16 a 29 anos, e não-jovem, menores de 15 e maiores de 29 anos. Com essa divisão, perdemos a possibilidade do acesso a dados mais específicos sobre o suicídio na infância. No entanto, com a Portaria nº 1.271, de 6 de junho de 2014, e sua posterior ampliação com a Portaria nº 204, de 17 de fevereiro de 2016, tornou-se obrigatório que serviços públicos e privados de saúde, educação, cuidado coletivo, instituições de pesquisa, rede de assistência social e conselhos tutelares realizem a notificação de casos de suicídio e tentativa de suicídio.
Como desdobramentos dessas notificações, tornou-se possível que o Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS) realizasse uma melhor divulgação dos dados de lesões autoprovocadas. De acordo com o último boletim divulgado pelo DATASUS (Secretaria de Vigilância em Saúde, 2021), registraram-se 6.727 notificações de lesões autoprovocadas entre a faixa etária que vai de 0 a 14 anos. Desse número, 5.394 foi referente a jovens de 10 a 14 anos, dado em consonância com as informações divulgadas pelo Mapa da Violência (Waiselfisz, 2014), que aponta que o suicídio na faixa etária dos 10 aos 14 anos cresceu 40% entre os anos de 2002 e 2012.
De acordo com a Secretaria de Vigilância em Saúde (2021), o suicídio e as autoagressões são estigmatizados e subnotificados. Angerami-Camon (2012) aponta que isso tem relação com a crença de que a infância é um momento da vida isento de dores existenciais. Há um mito ainda vigente em torno da infância feliz, que faz acreditar que esse período seja marcado somente por alegrias, brincadeiras e diversão, jamais por sofrimentos. Assim, pensar na possibilidade do suicídio infantil pode ser desalojador e, ao mesmo tempo, despertar o sentimento de descrença e incredulidade em torno da existência desse fenômeno.
Autores como Lima e Kovács (2011) refletem que há uma dificuldade da sociedade em falar com as crianças sobre a morte, pois se parte do pressuposto de que elas não entenderão e de que tudo o que for dito lhes será prejudicial. Assim, se falar sobre a morte com crianças gera incômodos, falar sobre a morte autoprovocada é ainda pior.
Paradoxalmente, ao mesmo tempo que se objetiva distanciar o assunto do universo infantil, ele encontra outros caminhos de aproximação. Observa-se, por exemplo, que o século XXI tem sido marcado pela inserção da temática entre o público infantojuvenil por meio do aparecimento de desafios, jogos e séries que acabam por incitar o suicídio nessa faixa etária, a exemplo do desafio da Baleia Azul, em 2017; da boneca Momo, em 2019; e, com menos repercussão, do Pateta, em 2020. Em 2017, houve o lançamento da série estadunidense 13 Reasons Why, e, ainda mais recentemente, em 2021, foi da série sul-coreana Round 6, sendo certo que ambas apresentavam enredos marcados por violências e suicídios, tendo atingido grande alcance entre o público infantojuvenil.
Este artigo é fruto de uma dissertação de mestrado cujo objetivo foi compreender a experiência de crianças que expressaram ideação ou tentativa de suicídio. Entendemos que ir ao encontro daquele que vive a experiência - nesse caso, as crianças - está em consonância com o modo de fazer pesquisa na fenomenologia, a qual compreende a importância de lançar luz sobre determinado fenômeno de modo que ele possa se desvelar. Para tal, inspiramo-nos na hermenêutica proposta pelo filósofo Martin Heidegger (2015), segundo o qual o ser humano se constitui como tal existindo e, por isso, estará em constante relação com o mundo, consigo mesmo e com os outros (Maux & Dutra, 2017).
Considerações metodológicas
A pesquisa foi realizada com duas crianças, Wendy e Hermione, que tinham 10 e 11 anos, respectivamente. Os encontros tiveram duração média de uma hora e foi utilizado um diário de afetações como estratégia de registro - visto que a gravação poderia constranger as crianças ao falar sobre suas experiências.
Foram realizados cinco encontros. No primeiro encontro, após se apresentar, a pesquisadora pedia que a criança também se apresentasse e questionava se ela sabia o porquê de estar ali. Em seguida, a pesquisadora falava sobre a pesquisa e convidava a criança a participar. No segundo encontro, convidava-a a fazer a leitura do livro Dudu e o mundo que ficou cinza. A história fala de Dudu, um menino de 10 anos que, após o surgimento de uma pequena bolinha cinza no meio da sua barriga, começa a ver seu mundo perder a cor. Aos poucos, aquilo que outrora fora tão importante para Dudu vai deixando de ser. O livro foi construído com o objetivo de convidar as crianças a refletirem sobre a vida e as angústias da existência.
No terceiro encontro, propunha-se à criança que fizesse um desenho ou utilizasse colagens como forma de expressão e registro das afetações que poderiam ter sido provocadas a partir da leitura do livro. Compreendemos que o desenho é um mediador que, assim como o brincar, expressa-se pelo símbolo e pela metáfora (Melo, Silva & Santanna, 2020). No quarto e quinto encontros, realizava-se o fechamento, a devolutiva dos materiais produzidos, conversando sobre eles, bem como realizando acolhimento e possíveis encaminhamentos necessários.
A análise dos dados produzidos nos encontros com as crianças fundamentou-se no paradigma interpretativo inspirado no círculo hermenêutico heideggeriano, método adaptado por autores como Azevedo (2013) e Maux e Dutra (2020) para pesquisas em psicologia. A hermenêutica heideggeriana é pensada como um método cujo caminho é a tematização e o desvelamento do Dasein, e não como uma técnica com objetivo de encontrar uma resposta fechada, marcada pelo controle e pela previsibilidade. Colocando a compreensão como inerente à existência e, logo, como modo de abertura por meio do qual estamos no mundo, Heidegger nos diz que toda compreensão é abertura de sentidos e, a partir desse horizonte, derivam-se possibilidades interpretativas. Dessa forma, a interpretação seria uma elaboração ou apropriação daquilo que foi apreendido a partir da compreensão, que se dá num movimento circular ininterrupto, marcado por três momentos: posição prévia, visão prévia e concepção prévia (Azevedo, 2013).
Pensando no fazer pesquisa, a posição prévia faz referência às ideias tidas a priori pelo pesquisador acerca da temática, por meio dos seus estudos ou do modo como o mundo chega até ele ao longo de sua existência. Já na visão prévia, a partir da abertura ao fenômeno, ocorre um recorte do que é alcançado na posição prévia como uma possibilidade de interpretação. Assim, poderão ser alcançados novos sentidos sobre o fenômeno, delimitando-se uma possibilidade interpretativa. Por fim, a concepção prévia diz da compreensão produzida como uma possibilidade interpretativa, a qual não esgota o fenômeno, por compreendê-lo circular e, por isso, ininterrupto. Assim, a compreensão como projeto traz à tona a descoberta de um sentido passível de ser articulado na abertura compreensiva (Azevedo, 2013).
Partindo da ontologia heideggeriana, fazer pesquisa à luz da fenomenologia é ir na contramão de uma lógica universalizante e de generalizações; não se trata de estabelecer hipóteses a priori, ou apontar relações de causa-efeito. Mas, sim, de o pesquisador assumir para si uma postura de completa abertura para as possibilidades que possam vir ao seu encontro, compreendendo o alvo de seu estudo não como objeto, mas como manifestação dos entes (Morais & Dutra, 2017). Quando fazemos um recorte para as pesquisas com crianças, Freitas (2015) aponta que “a fenomenologia, como método, permite-nos empreender, ou pelo menos tentar realizar, essa passagem da experiência do adulto à experiência da própria criança” (p. 36).
Tais momentos interpretativos foram adaptados para a pesquisa fenomenológica hermenêutica com crianças, desvelando-se nos seguintes modos de ver o fenômeno: a) o primeiro momento foi composto pelo registro descritivo da sessão e compreensões no diário de afetações, que se trata do registro narrativo daquilo que foi vivido durante o encontro com a criança; b) identificação de temas, de modo que, a partir dos registros e das afetações registradas no diário, colocamos em relevo as provocações suscitadas pelo momento hermenêutico de visão prévia e de revisão de literatura específica - conforme explicitado por Heidegger (2017), os temas, como possibilidades compreensivas, podem surgir como interpretações advindas do desvelamento existencial do Dasein, e, no momento que produzimos o recorte interpretativo do que foi compreendido na posição prévia e no recorte temático da visão prévia, essa interpretação já faz com que se adquira conceito, momento da concepção prévia; e c) diálogo com as reflexões feitas anteriormente, a partir da literatura, da ontologia heideggeriana e de demais referenciais, nos permitindo desvelar as compreensões do fenômeno tematizado, numa hermenêutica acerca das crianças com ideação ou tentativa de suicídio.
A pesquisa seguiu os parâmetros éticos previstos na Resolução nº 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde, que trata dos estudos envolvendo seres humanos, foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) com CAAE de número 5.018.159. Entre os cuidados éticos adotados, estão os assentimentos dos pais e das crianças para a participação na pesquisa, a privacidade e o uso de pseudônimos.
Resultados e discussão
A pesquisa foi realizada com duas meninas, Hermione, 11 anos, aluna de escola pública, e Wendy, 10 anos, aluna de escola particular. Ambas residem no estado do Rio Grande do Norte e se tornaram participantes da pesquisa após contato realizado por suas mães, que tomaram conhecimento do estudo a partir de divulgação nas redes sociais. As conversas foram realizadas no consultório da primeira autora, ambiente de fácil acesso às participantes e favorecedor para realização da pesquisa.
Hermione
No primeiro contato, feito por ligação, a mãe de Hermione compartilhou a preocupação com a filha, falou de sua mudança de comportamento durante a pandemia e do alerta feito pela escola devido ao conteúdo das redações da criança, que apontavam sofrimentos.
No encontro com Hermione, ela chegou tímida, tinha uma expressão que parecia assustada e desconfortável, de quem talvez não soubesse ao certo o que esperar daquele espaço e da relação com a pesquisadora. Hermione demonstrou dificuldade em falar livremente sobre si, parecia que falar sobre si a um outro que simplesmente quisesse escutá-la, sem julgamentos, era novo. Aos poucos, a criança foi se desvelando. Nos momentos iniciais, a menina compartilhou a sua experiência durante a pandemia:
Foi ruim. Não tinha muito o que fazer, eu não sou muito boa em fazer amigos, não gosto muito de falar com as pessoas, eu ficava só. . . . A maioria do tempo eu ficava no meu quarto mesmo, mexendo no celular, era por ele que eu ouvia música e assistia. Também era no meu quarto que eu dançava, mas meu pai não quer que eu fique com a porta fechada, aí eu não tenho privacidade para ficar sozinha e dançar. Isso me incomoda muito!
Com essa fala, Hermione nos conta sobre a solidão de ser criança em tempos de pandemia. Afastada da escola e das demais atividades presenciais de sua rotina, as possibilidades de interação foram reduzidas. A solidão foi sendo desvelada como uma dolorosa medida de proteção. Para Hermione, o virtual não se apresentou como possibilidade para a manutenção dessas relações, apresentadas como frágeis. Isso aponta para a possibilidade compreensiva da pandemia ter, para algumas crianças, intensificado uma solidão que já fazia parte dos modos de ser-com. O Dasein, ontologicamente, é ser-com. Sempre estamos em relação, ainda que esta possa se dar de forma indiferente.
Nas relações familiares, a criança conta que as preocupações do pai e da mãe são diferentes; são questões que se afinam com os sentidos encontrados na trama de significados de cada um: “Meu pai fica dizendo que eu preciso me aproximar de Deus, que eu não rezo. Minha mãe já se preocupa com outras coisas. A preocupação dela é que eu tenha depressão e queira morrer”. O olhar do pai se volta para questões religiosas, como se a aproximação com Deus pudesse distanciar o suicídio do horizonte de possibilidades da filha, pensamento que encontra respaldo no mito de que o suicídio é falta de Deus. A mãe, por outro lado, olha pelo viés da psicopatologia e teme que, assim como ela, a filha também tenha depressão e queira morrer. As preocupações dos pais parecem silenciar o que de fato pode estar em jogo para a criança. A menina se queixa por não ser escutada e compreendida, e comenta: “É por isso que eu não conto as coisas para eles, eles não entendem. Só meus amigos me entendem, eu só converso com eles porque eles já viveram isso, meus pais, não”.
Para a criança, quando não é possível encontrar na família um espaço de familiaridade e pertencimento que lhe permita sentir-se compreendida, as relações entre os pares tornam-se ainda mais importantes. Essas relações abrem mundos, pois apresentam a criança a outros modos de ser-com, trazendo a possibilidade de elas encontrarem entre si apoio e compreensão para compartilhar aquilo que vivem e que pode ser gerador de angústia e inquietações. Assim, por permitirem que as crianças dividam suas dores e sejam compreendidas, as relações entre os pares podem ser importantes para que elas se sintam pertencentes e para que, ao compartilhar o peso de ser quem se é, possam também dividi-lo, fortalecendo-se diante daquilo que para elas é projeto.
Na sequência dos encontros, Hermione foi apresentada ao recurso do livro Dudu e o mundo que ficou cinza. A obra foi exposta como uma possibilidade para aquele dia e prontamente aceita pela criança. Após a leitura, a menina comentou sobre a mudança do personagem ao longo do livro e disse achar que aquilo seria algo que pudesse acontecer na vida real. Nas últimas folhas, há uma pergunta sobre o que o leitor diria caso se encontrasse com Dudu, ao que Hermione respondeu: “Eu diria a ele para ter calma, que é só uma fase e que as coisas vão melhorar”.
Diante do vivido e sentido por ela, a fala de Hermione pode ser compreendida como uma comunicação para si mesma da possibilidade de esperançar tempos melhores. Para Critelli (2006), são as emoções que nos revelam como as coisas nos afetam e como somos tocados por elas. A autora explica que “as emoções mostram ao eu que ele não é nem pode ser o outro e vice-versa. A emoção dá ao eu a noção do seu estar-situado como si mesmo no mundo” (p. 105). Assim, questionada se já havia se sentido de forma semelhante, compartilhou: “Sim, de querer sumir, desaparecer, de ficar triste”.
Sobre como foi sentir-se daquela forma, Hermione fala: “Foi ruim. Eu chorava. Me sentia só, não tinha ninguém para conversar, tinha meus pais, mas eu não falava para eles porque não queria que eles ficassem preocupados comigo”. Nesses momentos, nomeados como “ruins”, Hermione pensava em morrer: “Eu lembrava do meu avô e do meu irmão [falecidos]. Me dava vontade de encontrar com eles”.
Em razão da condenação ao silenciamento familiar, que reproduz os sentidos de um tempo em que o sofrimento infantil não encontra lugar, Hermione se vê só para lidar com aquilo que sente. Em meio a seu próprio sofrimento, sua fala aponta para a fantasia infantil de que morrer possibilitaria o reencontro com aquele que se foi (Pasternack, 1983). Na história de Hermione, a morte vai sendo compreendida como possibilidade de reencontro com figuras amadas, apaziguamento de sofrimentos e inquietações.
A menina também relata uma das conversas que teve com seu irmão, na qual ele narrou detalhes que até então lhe eram desconhecidos a respeito da morte de outro irmão. Sobre isso, ela conta:
Depois que ele morreu começaram a ir lá em casa, ameaçavam minha mãe, queriam que ela pagasse as dívidas dele. Eu só soube disso depois… Meu irmão me contou que uma vez minha mãe foi até a ponte, ela queria se matar, queria se jogar de lá. Ele disse que ela só não fez isso porque lembrou de mim, que se ela se matasse ninguém cuidaria de mim.
A respeito de como se sentiu diante dessa revelação, falou:
Foi muito ruim! Eu fiquei triste. Minha mãe é tudo para mim. Assim, eu fiquei feliz porque ela lembrou de mim e não pulou porque não ia ter quem cuidasse de mim. Se ela tivesse pulado eu não ia aguentar, eu faria a mesma coisa.
A pandemia retirou de Hermione suas ocupações cotidianas, desvelando as fragilidades do viver. Em sua fala, ela desvela a angústia do que se anunciou: a finitude, revelada por meio da história do irmão assassinado, das ameaças sofridas por sua família, do desvelamento do poder-morrer da mãe, em sua ideia suicida, e da revelação de que é por ela que a mãe vive. Tais aspectos convocaram Hermione a se aproximar da finitude como temporalidade, mas, ao mesmo tempo, lançaram-na à vulnerabilidade de viver, e ao fardo de ser por quem alguém vive. Desamparada em meio às incertezas que se anunciavam e ao mundo que ia sendo desvelado como inóspito, mergulhou na angústia, solidão e escuridão de seu quarto.
A criança se afina ao tédio profundo, tal como o pensava Heidegger (2015). Compreendemos que essa afinação denuncia o caráter de apatia e desinteresse por si mesmo, como se aquilo que diz da sua existência não mais a tocasse e houvesse um descerramento de mundo. Feijoo (2011) nos diz que o tédio é uma “tonalidade afetiva fundamental e, portanto, descerradora de mundo, desperta em nós uma total suspensão do horizonte do existir, um esvaziamento radical do tempo que ao suprimir-se, nenhuma possibilidade aparece como tal” (p. 52).
Durante os momentos em seu quarto, a menina conta que lia histórias como forma de se imaginar sendo uma daquelas personagens. Questionada sobre como seria se sua história também fosse um livro, Hermione reflete e responde que seria de “drama, terror e comédia”. Lembrando do que dizem Pompeia e Sapienza (2011), no sentido de que “a corporeidade também está na origem da possibilidade de que, por meio da arte, o homem seja capaz de ampliar a sua apresentação de significados e possa transmiti-los aos outros” (p. 90), a pesquisadora pergunta se a criança poderia fazer um desenho que retratasse como se sentia nesses momentos. Hermione concorda e faz três desenhos, um para cada momento descrito.
No desenho do terror, intitulado de “insegurança”, a menina descreve que: “Terror foi no início, quando eu não entendia o que estava acontecendo e só ficava muito triste e chorava. Drama e comédia é agora, as coisas às vezes estão engraçadas e às vezes acontecem outras coisas mais difíceis”.
Heidegger (2015) refere-se ao terror como uma das tonalidades afetivas fundamentais. Feijoo (2011) explica:
São as tonalidades, como situações-limite que abrem mundo, horizontes, de modo a lançar a existência em um espaço de possibilidade, já que o mundo só encontra o seu descerramento próprio a partir de tais afinações que atravessam a totalidade do ente, sem serem localizáveis em lugar algum em particular (p. 44).
Na trama de Hermione, o terror surge como esvaziamento de sentidos previamente sedimentados, a partir do qual ocorre uma abertura de mundo que é desalojadora, mas possibilita a conquista da experiência de algo que outrora estava encoberto. Na sequência, o momento trazido pela criança é o da “comédia”, referindo-se a ele como “felicidade”.
Sobre o último desenho, drama, descreveu-o como “sad” (tristeza). Os desenhos referidos como drama e comédia anunciam a inospitalidade e impermanência de um viver que acontece a cada momento. Sendo assim, é possível que os afetos e vivências ponham-se a vir-a-ser, já que a existência, como nos dizia Heidegger (2015), não está fechada e encerrada em si.
A partir das narrativas suscitadas com os desenhos, Hermione nos conta sua história, iniciando o relato dizendo que “quase morreu antes mesmo de nascer”. Explica que durante a sua gestação, sua mãe sofreu duas quedas, que provocaram sangramentos e o risco de uma perda gestacional. Sobre isso, a menina reflete que não sabe como teria sido para a mãe caso algo acontecesse: “Como minha mãe ficaria se eu não tivesse nascido?”, “O que aconteceria?”. Quando perguntada sobre como seria para ela, se pensava nisso, Hermione responde que não e explica: “Acho que para mim não faria diferença, eu não teria nascido”.
A fala da menina chama a atenção por indicar um ser-para-a-mãe que parece anteceder o ser-para-si. Como se, sentenciada a viver para que a mãe viva, a criança compreendesse o seu próprio viver como destinado à existência materna. Em seu jogo existencial, Hermione parece colocar a mãe no centro enquanto se retira de cena. Tal movimento indica um encobrimento de quem se é, assumindo um modo indiferente no cuidado consigo e uma preocupação substitutiva pela mãe. Vivendo para que o outro viva. Existir para que a existência do outro seja sustentada. Seria isso possível?
Ao final dos encontros com a pesquisadora, a criança verbalizava que tinha gostado de estar ali, que se sentia mais leve ao falar e que reconhecia que aquele era um espaço sem julgamentos, em que era possível ser do modo que quisesse.
Wendy
No primeiro momento com a criança, quando a pesquisadora leu o título da pesquisa e explicou sobre o que se tratava, a menina abaixou o rosto e deu um sorriso triste, parecia que, silenciosamente, ela anunciava que aquele tema lhe era próximo. Wendy contou:
É porque, há um tempinho, cerca de três ou quatro meses, eu tive alguns problemas… não sei se chegou a ser depressão. Minha mãe queria me colocar no psicólogo, pra ver se eu melhorava, aí ela teve essa oportunidade e eu vim pra cá.
Ao se apresentar para a pesquisadora, a menina diz:
Olha, eu tenho 10 anos, mas não me considero tendo 10 anos. As pessoas quando me veem também não acham que eu tenha 10 anos. Eu não tenho uma vida de uma criança de 10 anos, tenho a vida de uma pessoa de 14-16 anos.
Questionada sobre o que achava que a diferenciava de uma criança de dez anos, respondeu: “Muita coisa! Corpo, altura, maturidade”. Ao falar sobre a maturidade, Wendy explica que as suas vivências promoveram um desencontro entre o que seria o tempo cronológico, relativo ao passar dos anos, e o tempo experiencial, que diz daquilo que ela viveu. Tal fala corrobora com a explicação de Cytrynowicz (2000) sobre o tempo da criança ser o Chrónos, pois, segundo a autora, a relação entre a criança e o tempo se dá a partir da sua relação com suas próprias experiências. Nessa perspectiva, apenas as teorias desenvolvimentistas não nos permitem considerar a singularidade da existência, a qual pode fazer com que uma criança tenha contato com experiências além ou aquém do que seria cronologicamente esperado. Talvez por isso Wendy nos conte sobre o seu ser-criança com uma idade maior do que de fato tem.
Em suas narrativas, a menina conta que mora com a mãe e a avó materna, mas que a convivência é difícil pois há muitas brigas em casa. Relata que os conflitos acontecem entre a mãe e a avó e que, às vezes, é preciso que a avó vá para a casa de outro familiar para que as brigas cessem. A respeito disso, comenta:
Eu gosto de ter minha avó comigo, mas também gosto de ver minha mãe feliz.. . .Minha mãe é uma pessoa difícil, não vou mentir, mas eu tento compreender ela… Agora mesmo ela acabou de brigar comigo, eu tava ali fora [na recepção], você chegou e ela falou “Guarde esse celular!”, perguntou se eu queria apanhar ali na frente de todo mundo… sempre que isso acontece eu não tenho para onde ir… claro que eu amo minha mãe, mas tem atitudes dela.
Ao longo dos encontros, Wendy apresenta uma família que traz modos de ser em relação marcados por comparação, julgamentos e ameaças. O ser-com em família vai sendo atravessado por violências, ora verbais, ora físicas. Ouvindo sua narrativa, parece-nos existir um desamparo familiar que leva Wendy a assumir um modo de cuidado substitutivo (Heidegger, 2015) perante essa família. Diante dos conflitos presenciados, ela assume um modo de estar com o outro que toma para si a responsabilidade de poder-ser pertencente a esse outro.
Sobre como se sente ao estar em casa, comenta:
Pra mim, eu só consigo ser feliz saindo de casa. Em casa eu tenho muitos problemas, na rua eu esqueço de tudo, eu rio, eu me divirto, eu corro, eu brinco, eu ando… eu esqueço os meus problemas de casa. Por isso que eu faço questão de sair sempre.. . .Eu não digo que é minha casa. Para mim, a minha casa é a rua. A minha casa não é uma casa… uma casa é onde tem pessoas que te acolhem, que te ajudam em todos os momentos, que confiam. Pra mim, não. A minha casa é um lugar de briga.
A criança aponta aspectos que em seu imaginário deveriam ser encontrados em uma casa: acolhimento, ajuda e confiança. Sem eles, a casa parece restringir-se a uma mera construção. Isso faz lembrar a noção ontológica de habitar heideggeriana (Heidegger, 2010), segundo a qual habitamos o espaço a partir da relação com ele estabelecida, o que envolve familiaridade e pertencimento. Machado (2021) nos ajuda a refletir que, “mais do que mero asseguramento ou estabilidade, a familiaridade enquanto morada, enquanto modo íntimo, tem o caráter de refúgio, de continência, acolhimento” (p. 46).
Wendy anuncia a necessidade de, transpondo muros, na rua, alcançar a liberdade de poder-ser-como-criança. Criança que brinca, corre, explora, tem amigos, pertence. Quando pensa em sua casa, a menina cita que sente “raiva e tristeza” e, assim como em outros momentos durante os encontros com ela, foi possível notar a mudança em sua voz, que ficou embargada. Diante do narrado, a menina comenta:
Sinto tristeza. Raiva eu tenho na hora que começam a falar de mim.. . .Ela [a mãe] veio dizer que eu sou a raça ruim do meu pai. Eu não gosto do meu pai, mas também não gosto quando falam dele.. . .Eu não gosto de sair do quarto quando minha mãe está agoniada, eu sinto que ela vai fazer alguma coisa comigo. . . .Eu acho que ela vai me bater, ela já falou que queria me matar, um monte de coisa. Falou que se pudesse eu nem existia mais.
Heidegger (2017) nos fala que o Dasein é o seu corpo e explica que “a corporeidade do homem está sempre em jogo” (p. 112). Partindo disso, compreendemos que Wendy desvela modos de ser-com marcados por violência e invasões, um corporar que, frente à possibilidade do encontro com o outro, vai significando o toque como temor. Lembramos, mais uma vez, do que o filósofo fala ao explicar que “o corporar copertence sempre ao ser-no-mundo. Ele codetermina sempre o ser-no-mundo, o ser-aberto” (p. 115). Assim, quando a criança traz em sua experiência as palavras da mãe sendo significadas como agressão, ela desvela uma experiência da existência em que está exposta sempre ao olhar do outro, e isso pode deixá-la à mercê do domínio e controle desse outro (Pompeia & Sapienza, 2011).
Elas [a avó e a mãe] falavam que meu pai não gostava de mim… Meu pai é igual a minha mãe, ele demonstra amor dando as coisas. Eu entendo ele, às vezes ele se sente culpado por não ser presente na minha vida, sempre que ele se sente culpado ele vai lá na minha casa e leva alguma coisa. Eu não gosto muito disso.. . .Por mim, eu pegava tudo que ele já me deu e trocava pelo amor dele, mas ele não consegue me dar amor.
E completa:
Ele mal vai me ver, não faz questão. Acho que eu vi ele há uns dois anos atrás. De vez em quando eu mando mensagem pra ele, pergunto como ele está, ele sempre fala que vai lá em casa. Ele falou que ia ontem, mas não foi. Ele sempre tem uma desculpa. Em 2020 eu chamei ele para o meu aniversário, ele disse que não ia porque estava com covid, mas eu vi que ele estava em um bar bebendo com os amigos. Eu vi pelos stories da minha mãe. Eu acho que até hoje ele não sabe que eu sei disso. Ele preferiu se divertir com os amigos do que com a própria filha. Agora eu não faço mais questão.
Como seres temporais e finitos, o aniversário marca a passagem do tempo e pode simbolizar a comemoração da vida. Para algumas crianças, essa é uma data esperada e festejada. De acordo com Heidegger (2015), somente um ser-com e para um ser-com é que o outro pode faltar. Na relação com o pai, Wendy frequentemente se (re)encontra com a falta. Ao não ser escolhida, a relação com o pai vai sendo desinvestida.
Meu pai não liga muito… Ele acha que eu não ligo, porque eu demonstro para ele que não ligo, mas na verdade eu ligo muito. Eu não quero que ele fique… triste… Eu me calo muito para a pessoa não ficar mal. Quando eu falo, eu falo muito. Eu guardo muito.
Assim, no encontro com a pesquisadora, esse espaço se apresenta à criança como possibilidade de falar livremente, Wendy falava sem pausas, quase sem respirar, como quem quer aproveitar o tempo e a escuta oferecida. Enquanto falava, era possível perceber uma tristeza na voz de menina, essa era a tonalidade afetiva com a qual a criança se afinava naquele momento. O “guardar muito”, referido por ela, parecia poder ser simbolizado por um nó em sua garganta, sentido pela pesquisadora, que naquele momento se tornava testemunha da narrativa. Mais uma vez, compreendendo que, sendo ontologicamente ser-com, há sempre uma relação entre pesquisador(a) e participante, um afetar e ser afetado a pesquisa fenomenológica busca compreender.
Como nos diz Heidegger (2015), o Dasein alterna a sua existência entre momentos impróprios e próprios. Em sua fala, a criança traz uma narrativa que alterna entre o impessoal e o pessoal, no movimento de ocultar e desvelar. Sobre sua história, a menina conta que, por volta dos três a quatro anos, ela e a mãe saíram da casa da avó e foram morar em um outro lugar. Disse que a mãe sempre foi solteira e teve relacionamentos, mas fala especificamente sobre um ex-namorado que morou com elas durante uma época. Relata uma situação em que:
A gente se mudou uma vez para um lugar que era só dois cômodos, como ele passava muito tempo fora, eu dormia com a minha mãe. Quando ele passou a ficar mais tempo em casa, eu fui para o meu quarto. Meu quarto era aberto (sem porta) e eu ficava meio assim de me trocar. Quando eu comecei a parar com isso, teve uma vez que eu tava me trocando e vi que ele estava parado na porta olhando para mim, me vendo trocar de roupa. Eu comecei a gritar e minha mãe veio. Brigou com ele e ele fez “Oxe, eu só estava passando”. Mas minha mãe preferiu acreditar no namorado dela.. . .Isso aconteceu e eu tenho muito medo dele, tento evitar roupas curtas e passar onde eu sei que ele está. Quando eu tenho que passar, passo com roupas largas.
Em seu corporar, invadida pela culpa, a menina acredita que o seu corpo é responsável por provocar o desejo no outro. Tal fala desvela um horizonte histórico com significados previamente sedimentados que insistem em colocar a mulher, vítima de abuso sexual, no lugar de responsável e culpada. Wendy nos denuncia que meninas podem ter os seus corpos violados e ser culpabilizadas por isso.
Atualmente, o ex-padrasto trabalha em oficinas próximas à casa da sua avó, por isso:
Eu vou sozinha para a escola, é meio estranho. Sempre que ele me vê na rua tenta fazer algo comigo. Teve uma vez que eu estava na rua com meus amigos e ele acelerou o carro para passar por cima e me atropelar, meus amigos que me puxaram e eu fui pra calçada. Isso foi no começo desse ano.. . .Quando eu via que ele estava olhando, eu ia até o mercadinho. Pedia para entrar. Hoje eu não preciso mais entrar, por causa disso eu fiz karatê. Eu sei me defender. Eu tive que aprender a me defender por causa dele.
Em razão da vulnerabilidade e invisibilidade de seus testemunhos, Wendy encontrou modos de se proteger das ameaças vividas, tentando prover sozinha o cuidado e proteção dos quais necessita. Quando pequena, conta que passava o dia na creche. Lá dividia o espaço com outras crianças, algumas mais velhas. Conta que houve um dia em que pediu para ir ao banheiro, que não tinha portas, e, enquanto estava lá, chegou um outro menino de sua sala, de 11 anos, que tinha ido atrás dela. Chamou para brincar, entrou no banheiro e tentou abusar dela. Como reação, a menina começou a gritar, a professora foi até lá, entendeu o que estava acontecendo e o menino foi expulso. Diz lembrar que a genitora, quando soube, fez um “barraco” enorme na creche.
Contudo, conta que continuou nessa creche por muito tempo, parou de ir somente quando voltou a morar com a avó. Nessa época, relata que sofria bullying dos colegas de sala, inclusive do menino em questão. Além desses relatos, a menina narra uma terceira situação de abuso vivida durante a vida. Ela conta que, durante a pandemia, com a suspensão das aulas, ia para a casa da tia, onde também morava o seu tio:
E eu gostava muito dele. Mas nesse período da quarentena eu ia ainda mais pra lá, era perfeito porque eu estava sem aula. Só que eu percebi que ele começou a se aproximar de mim de um jeito muito diferente. Quando eu ia para lá, eu só andava de short, roupa curta. Era minha família, então eu imaginava que minha família não ia me julgar. Só que ele começou a tocar em mim, a fazer muita coisa comigo. Ele começava a dar em cima de mim, eu não gostava disso. Então eu parei de ir pra lá.
E continuou:
Quando eu falei disso com a minha mãe, ela falou que era mentira, que eu estava inventando coisa, que ele nunca ia fazer uma coisa dessas comigo. Foi por esse motivo que eu deixei de acreditar na minha mãe.. . .Eu acho que uma mãe deveria estar com a filha em todos os momentos, mas a minha mãe infelizmente não está lá. Eu passo por tudo sozinha.
O falar comunica mundos, permite que o outro se aproxime da experiência que só pertence a quem viveu. Rememoramos o que Morato (2013) diz, refletindo que o falar comunica a forma como foi tocado pelo mundo e como o compreende. Justamente por isso “o ouvir pode realizar-se como um mero escutar, não levando adiante qualquer crença e interrompendo a comunicação entre os falantes” (p. 14). Compreendemos que é isso que parece acontecer na relação mãe-filha: por não se sentir ouvida, há uma ruptura na comunicação. Diante da descrença, o falar se perde e muros são criados.
Cardinalli (2018) aponta que a experiência de violência pode evocar sensações de insegurança, imprevisibilidade e precariedade, sendo, por isso, difícil retomar a segurança e confiança no mundo como outrora era conhecido. De acordo com autores como Araújo (2002), antes de contar sobre a ocorrência de um abuso, a criança pode se encontrar diante de um dilema envolvendo sentimentos confusos, se ao contar recebe uma reação de incredulidade ou negação por parte da genitora, aquilo pode ser devastador para a criança.
Sobre a época em que a mãe começou a morar com o ex-companheiro, falou:
Foi quando vieram os pensamentos suicidas… Eu tentei me matar com remédios, não consegui. Eu peguei os remédios, coloquei tudo em cima da mesa, mas aí eu parei pra pensar que eu era nova, que eu não era pra fazer aquilo porque era tudo fase, mas era muito chato [referindo-se ao bullying]. Eu não entendia direito algumas coisas que falavam, mas eu sabia que eram coisas ruins. São coisas que eu levo até hoje.
Também foi nessa época que a mãe acabou o relacionamento com o ex-companheiro. No entanto, Wendy disse que no início foi ainda pior, pois ele passou a ir até a sua casa fazer ameaças:
Foi quando eu me arrependi de não ter me matado.. . .Eu tive acesso à internet muito cedo. Eu via que o povo se matava, eu via que aquilo era a solução. Eu vi que o remédio podia matar.. . .Minha madrasta dizia que eu era gorda, que quando eu crescesse eu ia me sentir um lixo. Eu chorava todo dia por causa disso.. . .Foi muito triste. Foi nesse dia que começaram meus pensamentos sobre suicídio. Quando ela começou a falar isso, foi na época que eu comecei a sofrer bullying na escola, as pessoas me chamavam de baleia, de um monte de coisa.
Em seus relatos, a menina desvela uma relação com o corpo que vai sendo nomeada pelos outros. A partir de comentários alheios, vai compreendendo o seu corpo como inadequado. A criança nos conta do sofrimento sentido ao receber esses julgamentos e dos caminhos que busca para se afastar:
Eu já tentei me cortar, com cinco anos de idade. Sabia nem o que estava fazendo. Mas eu sabia que se me cortasse, ia machucar, e a minha intenção era ir pro hospital, era passar um mês no hospital para não precisar voltar para a escola.. . .Nessa época minha mãe não tomava remédio, quando ela soube disso, me chamou de um bocado de coisa e disse que aquilo tudo era drama. Que eu fazia aquilo para ganhar as coisas. Quando ela viu que não era drama, me colocou para fazer terapia.
Essa fala desvela a expressão de um sofrimento que faz a criança buscar formas de lidar com ele, ainda que para isso precise provocar algum ferimento em seu corpo. Em consonância com o que apontam Scavacini, Cacciacarro, Motoyama e França (2021), observamos a partir do relato de Wendy que nem toda lesão autoprovocada está necessariamente atrelada a uma ideação suicida.
Adiante, no terceiro encontro com Wendy, a pesquisadora perguntou à menina se poderia apresentá-la ao livro Dudu e o mundo que ficou cinza. O recurso foi trazido como possibilidade. Diante da afirmativa da criança, foi feita a leitura. Ao final, a pesquisadora perguntou o que a criança havia achado daquela história e ela respondeu:
Não sei, na parte em que ele falou que pensou em desistir, pareceu muito a minha história [A voz dela ficou embargada], na parte que eu falei que queria o remédio, essas coisas, mas o bom foi que ele teve os pais, eu tive que ir sozinha.
Nesse momento, o choro que parecia preso na garganta desde o primeiro encontro com a pesquisadora encontrou lugar. Mesmo com tanta abertura para falar de si, o encontro com a história de Dudu parece ter, de algum modo, tornado possível que o controle que parecia acompanhá-la em suas narrativas, numa tentativa de se distanciar do sentimento provocado por elas, pudesse dar lugar ao sentir.
Diante do que foi compartilhado, a pesquisadora comenta que parecia ter sido difícil para a menina passar por aquelas situações, ao que a criança responde: “Alguns acham que não, mas pra mim foi”. Wendy nos fala de um sofrimento que foi invisibilizado e desacreditado em diferentes momentos de sua vida. Fukumitsu (2014) nos lembra que “o sentido pertence ao ‘sentidor’, aquele que sente a dor” (p. 59); dessa forma, só quem sabe a intensidade do que é sentido é aquele que sente. Seria justo alguém diminuir, comparar ou menosprezar um sofrimento somente por ele não ser seu? Na vivência de Wendy, situações como essa parecem ter sido frequentes, advindo principalmente dos adultos a seu redor.
Na sequência, em uma das perguntas finais do livro, sobre o que diria a Dudu caso encontrasse com ele, ela responde: “Eu tentaria ajudar ele da melhor forma possível! Fazer ele se sentir especial! Coisa que ninguém fez por mim. Pra ele ver que ele é importante, que ele não precisa ir porque tem gente que ainda ama ele”.
Em outra pergunta do livro, que questionava se a criança já havia se sentido de forma semelhante, Wendy compartilha:
Eu não sei, acho que na hora eu não pensei em nada, mas hoje eu penso muito. Às vezes eu penso que seria melhor, porque, pra mim, eu sou um peso pra minha família,. . .eu sou algo que mudou a vida deles. Minha mãe faz eu sentir isso.. . .Eu tenho certeza que deixaria de ser um peso se partisse.
Pediu-se à criança que contasse como era se sentir daquela forma, e ela falou:
Parece que eu sou, tipo, um negócio que arruinou a vida.. . .Por isso que tento fingir ser uma pessoa que eu não sou, pra eu não achar que tô sendo um peso pra aquela pessoa. Não sei explicar. Eu sei que sou um peso.
Com essas falas, a menina desvela o fardo de existir, de ter-de-ser. Os sentidos lançados em sua trama, o ouvido e vivido na relação com os pais e com a família parecem ter feito o existir ser, por vezes, um fardo difícil de ser carregado. Sobre isso, lembramos do que diz Pompeia e Sapienza (2011) quando explicam que:
A indigência se mostra também naquilo que sentimos quando dizemos que algo está pesado para nós. Sermos corpo nos permite saber, desde crianças, que as coisas têm um peso. E a experiência do peso não acontece só com as coisas fisicamente concretas. As condições existenciais são impostas ao Dasein de um modo fundamental, e essa imposição aparece como alguma coisa que precisa ser suportada. O precisar suportar tem o caráter do peso: o peso de ter de suportar a imposição dos limites, das necessidades, das transformações que nunca param, dos acontecimentos indesejáveis, e isso em todos os aspectos da existência. A existência pesa (p. 84).
Os autores ainda completam que “quando o peso só é sentido como aprisionador, como impeditivo, existir se torna extremamente difícil” (p. 84). Podemos observar, nas narrativas de Wendy, que se sentir um peso refere-se a um aspecto restritivo da existência, que tolhe as suas possibilidades existenciais e as daqueles que estão ao seu redor.
A criança apresenta o pensar na morte como algo que a acompanha ao longo da vida, mas foi sendo mais estruturado à medida que ela foi crescendo. Wendy se refere ao conhecimento que tem hoje possibilitar que tente algo que possa ser mais eficaz e, por isso, é preciso se proteger dos pensamentos que novamente a fazem querer morrer. Pensamos que a morte se apresenta para a criança como um dar-se conta do seu caráter ontológico de ser-para-a-morte, que a faz encontrar nela um caminho para livrar-se do sofrimento. A menina conta: “Quero ter o meu futuro! Quero terminar meus estudos, quero ter a minha própria vida! Uma vida que eu não pense mais nisso de agora [em morrer]”.
Em sua temporalidade, a criança apresenta uma história que traz o passado e o presente atravessados por sofrimentos que tornam difícil sustentar o existir. Diante disso, a criança se projeta em um futuro de possibilidades, com esperança de tempos melhores. Assim, quando sustentar a vida se torna difícil, pensar na existência como vir-a-ser se apresenta como caminho.
Mais adiante, foi perguntado o que teria na história se, ao invés de ser sobre Dudu, fosse sobre ela. A menina respondeu:
Não sei, acho que não seria uma história boa, acho que ela não teria o mundo colorido. Infelizmente eu ainda tenho o mundo cinza.. . .O cinza apareceu eu acho que eu tinha uns 4 anos de idade. Quando minha mãe começou a conhecer uns caras, quando minha mãe decidiu se mudar, me afastou da minha avó, me colocou na creche. Minha vida se tornou cinza bem naquele tempo, de lá pra cá as coisas só pioram. Pra mim, eu acho que o mundo só se tornaria colorido de novo se eu me fosse, ou se eu me afastasse da minha mãe. Pra mim, essa é a única solução. Como eu não tenho como me afastar da minha mãe, a minha solução é me afastar dela por pelo menos uma hora. É o que eu faço.
E completou: “O meu mundo ficaria colorido se eu ficasse longe da minha família. O meu mundo fica colorido quando eu estou com meus amigos ou com a família dos meus amigos”.
Ao final dos encontros, tentávamos compreender como Wendy estava diante de tudo que havia sido compartilhado, com certa frequência, a menina respondia:
Foi como tirar um peso das minhas costas.. . .Fazia muito tempo que eu queria conversar com alguém e não tinha com quem eu me abrir. Minha amiga se mudou, está morando em outra cidade, e minha prima... minha família não gosta dela, acha que ela é do capeta. Foi bom vir pra cá.
Morato (2013) explica que “a fala só pode articular uma compreensibilidade por sua dimensão do ouvir, constituinte básico do compreender, como apreender com” (p. 1). A autora comenta que “ouvindo, dizendo e calando, tira o véu e traz à luz a coisa mesma como realmente é. Por recolher e expressar, falar se constitui num desvelar o mundo, os outros e si mesmo” (p. 15). No espaço possibilitado pela pesquisa, Wendy se (re)encontrou com a sua história, seus afetos e, aquilo que outrora fora silenciado, encontrou escuta.
Considerações finais
A partir da pesquisa apresentada neste artigo, refletimos sobre o quanto é importante nos debruçarmos nos estudos acerca do sofrimento infantil, mais especificamente no que se refere ao suicídio de crianças, de modo a retirá-lo da invisibilidade que o cerca e avançar nos estudos sobre essa temática e no acolhimento do sofrimento infantil, que pensa na morte como caminho de apaziguamento das dores. Pensar na possibilidade do suicídio de crianças é, de acordo com Silva Filho e Minayo (2021), um triplo tabu, pois envolve morte, suicídio e suicídio infantojuvenil. Encontrar-se com o sofrimento infantil pode ser desalojador, iluminando afetos que se acreditava não serem pertencentes à infância, mas que reafirmam que o sofrimento é inerente à existência, independentemente da faixa etária.
Outro ponto a ser destacado refere-se ao fato de que todos os contatos recebidos foram de participantes meninas. O único possível participante menino que tivemos notícias foi por intermédio do Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (CAPSi), mas a família não autorizou a sua participação. Lembramos que, de acordo com o Ministério da Saúde (Secretaria de Vigilância em Saúde, 2021), os homens apresentam um risco 3,8 vezes maior para suicídio do que as mulheres. Diante disso, refletimos que uma possível explicação para a taxa de suicídio feminino ser menor pode ser a maior busca por ajuda para lidar com o seu sofrimento. Pensamos e nos questionamos se o sofrimento de meninos pode ser ainda mais encoberto e invisibilizado, suscitando a importância de estudos que vão nessa direção.
Refletindo sobre as participantes desta pesquisa, observamos que ambas tinham mães em sofrimento e apresentavam relações difíceis com seus pais. No tocante a isso, pareciam assumir modos substitutos de cuidados à família, responsabilizando-se por apaziguar conflitos familiares, preocupando-se com a saúde mental de suas genitoras, como se essas fossem tarefas que lhes coubessem. Suas narrativas foram marcadas pela solidão e desconfiança frente a um mundo que parecia não oferecer condições necessárias para garantir a sua segurança, expondo-as a ameaças e vulnerabilidades. Em suas tramas de significados, observamos que o suicídio não se desvela como comportamento impulsivo ou pontual, mas sim como uma possibilidade que parece acompanhá-las frente a um sofrimento que fez morada em suas existências, esvaziando o sentido de se manterem em vida.
Nos encontros com Wendy e Hermione, as meninas contaram que falar e ser ouvida foi como “tirar um peso das costas”, expressão que nos lembrou o mito de Atlas, titã condenado a carregar o peso dos céus em seus ombros. Nas narrativas das crianças participantes também parece que há um peso maior do que é possível sustentar. Há um fardo que, na compreensão delas, parece não ser possível dividir com o outro. Assim como foi com Atlas, na trama de significados dessas meninas, parece não existir alguém disposto a ouvi-las sem desmerecer ou diminuir aquilo que por elas é sentido. Ao final dos encontros, relatando sentir que o peso que carregavam diminuiu, pensamos no que diz Morato (2013) quando explica que o ser-com se articula pelo ouvir e que ouvir é testemunhar aquilo que se desvela na fala, como um modo de corporar, de ser-com abrindo mundos.
Finalizamos este artigo resgatando a questão que nos movia no início desta pesquisa: haveria idade para morrer? Nos encontros com as crianças, compreendemos que não. É por ser um devir que a morte também se apresenta no horizonte de possibilidades de cada criança. Relembramos, por fim, que Heidegger (2015) dizia que a morte pertence àquele que vive, e isso independe de idade.














