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Construção psicopedagógica

versão impressa ISSN 1415-6954versão On-line ISSN 2175-3474

Constr. psicopedag. v.18 n.16 São Paulo jun. 2010

 

ARTIGOS

 

O desenvolvimento da competência do leitor no enfoque da Psicologia Sócio-Histórica

 

The developement of the reader’s compentence in focus of Socio-Historical Psychology

 

 

João Palma Filho1,I; Lucia Ghiringhello2,II

I Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
II Universidade Paulista

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O tema leitura, no sentido de letramento, foi abordado a partir da mediação e das relações interpessoais. Definimos como objetivo oferecer uma contribuição para a elaboração de projetos na educação infantil e no ensino fundamental que propiciem à criança condições para realizar por si só a seleção das obras de seu interesse e promover a leitura pelo prazer de ler. Foram apresentados alguns conceitos da Psicologia Sócio-Histórica com o propósito de aprofundar a análise do tema e destacamos a importância da contribuição da família para o desenvolvimento da competência do leitor.

Palavras chave: Leitura, Letramento, Família, Psicologia Sócio-Histórica.


ABSTRACT

The theme reading, in the sense of literacy, was approached from mediation and interpersonal relations. We set an objective to provide an input to the development of projects in early childhood education and elementary education conducive to the child, able to achieve by itself, the selection of the works of their interest and promote reading for pleasure reading. We present some concepts of the Socio-Historical Psychology in order to further examine the issue and highlight the importance of the family contribution to the development of the competence of the reader.

Keywords: Reading, Literacy, Family, Socio-Historical Psychology.


 

 

Introdução

Dentre as possibilidades de análise do tema leitura, parece-nos importante focar nossa atenção na mediação, que proporciona as condições adequadas para o letramento.

O conceito de letramento tem entre seus significados o caráter de utilização da leitura no contexto em que a pessoa vive. Desse modo, no decorrer desse trabalho, ao mencionarmos leitura estaremos empregando o sentido de letramento.

A mediação também nos leva a pensar na qualidade das relações interpessoais estabelecidas com o leitor, a nosso ver extremamente significativas para o desenvolvimento do hábito de leitura.

Além disso, com base na Psicologia Sócio-Histórica, entendemos que a mediação e as relações interpessoais estão presentes desde o início da aprendizagem da linguagem no primeiro grupo social com ao qual a criança estabelece vínculos: a família. Pensar nessa perspectiva também favorece compreender a existência de um conjunto de relações que envolvem educando, família e educador de uma maneira indissociável.

Isso porque, fragmentar as relações entre educando, família e educador, significa a nosso ver a perda de um conjunto de contribuições para investigar o percurso do leitor, por entendermos que a criança exerce influência e é influenciada pelo contexto em que vive. Portanto, ao se falar de relações interpessoais entre educador e educando, não se pode perder de vista que a família também estará presente todo momento, tanto nas reproduções, quanto nos comportamentos que divergem da família, em decorrência das reavaliações promovidas pela criança.

 

Objetivo

Essas ponderações iniciais nos levam ao propósito de contribuir para a elaboração de projetos na educação infantil e no ensino fundamental que propiciem à criança condições para realizar por si só a seleção das obras de seu interesse e promover a leitura pelo prazer de ler.

 

A escolha do percurso teórico

Em face de nosso percurso observar as relações interpessoais, bem como a mediação, parece-nos adequado promover uma análise com o olhar da Psicologia Sócio-Histórica. Ela nos parece atraente em virtude de nos oferecer uma análise comprometida com as relações sociais e a maneira como aprendemos, mediada pelo outro mais experiente, portanto, uma teoria afinada com o objetivo do presente artigo. Os autores escolhidos, Vygotsky, Luria e Leontiev, são os principais representantes dessa maneira de pensar sobre o desenvolvimento humano. Lembramos, por oportuno, que a Psicologia Sócio-Histórica também é conhecida como Teoria Histórico-Cultural, entretanto, o presente artigo não pretende contemplar possíveis diferenças de interpretação entre ambas.

Vamos então promover um breve comentário desta teoria, principalmente em relação ao tema que nos propomos abordar, para depois apresentarmos possibilidades de trabalharmos a questão do letramento.

Um conceito bastante importante para nos ocuparmos inicialmente é o de desenvolvimento humano na interpretação da Psicologia Sócio-Histórica. Conforme Leontiev (s/d)

Podemos dizer que cada indivíduo aprende a ser um homem. O que a natureza lhe dá quando nasce não lhe basta para viver em sociedade. É-lhe ainda preciso adquirir o que foi alcançado no decurso do desenvolvimento histórico da sociedade humana. (p.285)

O segmento em destaque nos diz muito acerca da maneira como a Psicologia Sócio-Histórica compreende o desenvolvimento humano. Para Leontiev (s/d) o indivíduo detém as condições biológicas básicas, a partir das quais irá desenvolver o seu processo de aprendizagem. Serão as condições das relações sociais, no curso do seu desenvolvimento, capazes de viabilizar a apropriação da cultura. Isso ocorre inicialmente na família.

Porém, não basta o simplesmente oferecer as condições objetivas - materiais - mas importa pensar na maneira como são estabelecidas as condições subjetivas, ou seja, referentes às relações interpessoais, por exemplo, entre pais e filhos. A interpretação do desenvolvimento humano torna imprescindível a contribuição da linguagem. Esta, quando associada ao pensamento, irá viabilizar um salto qualitativo no desenvolvimento, dado que amplia as possibilidades de apropriação da cultura humana, com a contribuição do outro mais experiente. Essa ampliação diz respeito à nova maneira de se apropriar da cultura, na medida em que torna possível a apropriação dos significados e dos sentidos inicialmente associados ao mundo material - experiência concreta – e vai se dirigindo aos poucos ao pensamento mais elaborado e abstrato.

A linguagem constitui-se num tema caro à Psicologia Sócio-Histórica. Conforme Luria (2005)

[...] sob a influência da linguagem dos adultos, a criança distingue e estabelece objetivos para seu comportamento: ela repensa as relações entre os objetos; ela imagina novas formas de relação criança-adulto; reavalia o comportamento dos outros e depois o seu [...] (p. 25).

O aspecto da influência nos leva a pensar também em termos de qualidade das relações interpessoais, pois será de fundamental importância o estabelecimento de relações que favoreçam o desenvolvimento da criança.

Além da qualidade, a questão da reavaliação do comportamento tem a devida atenção de Luria (opus cit.). Para esse autor, a criança não é simples produto da relação, por exemplo, dela com seus pais, mas o processo de reavaliação do comportamento dos outros será fundamental para posteriormente observar seu próprio comportamento e elaborar sua própria reavaliação. Dessa maneira, a Psicologia Sócio-Histórica compreende que devemos considerar as questões de processo envolvidas na relação entre adulto e criança, mas não devemos pensar numa idéia rasa de criança-produto.

Nesse momento, parece-nos oportuno apresentar um ponto de vista importante na Psicologia Sócio-Histórica para que não se pense numa apropriação da cultura e reprodução social, numa perspectiva meramente mecanicista.

Considerar que o homem se apropria da cultura nesse enfoque significa pensar nas relações e nos processos numa perspectiva social e histórica, porquanto rica como a própria história do desenvolvimento humano, não simplesmente um registro cronológico e passivo gravado na memória das pessoas. A leitura do desenvolvimento humano a partir da teoria de Vygotsky, com as contribuições de Luria e Leontiev, favorece uma análise mais cuidadosa da amplitude e da profundidade do desenvolvimento de cada homem, implicando num reconhecimento de que cada ser humano é um universo em relação psíquica com outros universos humanos.

Para que se tenha idéia da importância dessas considerações, faremos um breve comentário acerca do conceito “brincar” na perspectiva da Psicologia Sócio-Histórica e, após comentar sobre esse conceito, iremos estabelecer relações com o processo de desenvolvimento do leitor.

Conforme Leontiev (1998) o brincar constitui-se numa atividade que estabelece conexões com importantes mudanças levando a um nível mais elevado de desenvolvimento. Na medida em que a criança brinca, ela realiza ações, cujas operações (meio pelo qual realiza) vão significar a apropriação de uma atividade. Por exemplo, ela se apropria das ações para se montar um cavalo e sair dando voltas, realizando inicialmente com um cavalo de brinquedo, e quando se apropriou dessas ações deixa de lado seu brinquedo e vai em direção a outro que lhe desperta atenção. Assim prossegue até o momento em que busca ações lúdicas mais abstratas, como, por exemplo, brincar das atividades de professor ou de médico, envolvendo a dimensão das relações sociais.

Levando em consideração esses conceitos da Psicologia Sócio-Histórica, podemos elaborar algumas reflexões acerca da atividade de leitura. Assim como o brincar, a leitura pode seguir o caminho da atividade mais concreta, como por exemplo, os pais podem realizar a leitura de livros infantis com seus filhos e, com isso, o outro mais experiente faz uma mediação de maneira a tornar possível a realização da atividade pela própria criança, principalmente se os pais encontrarem meios para tornar essa experiência agradável.

Para esclarecer melhor a expressão ‘experiência agradável’, vamos destacar a pesquisa de Galvão (2003). Essa autora pesquisou sobre a possibilidade de se ouvir e aprender a ler em grupo, a partir de literatura de cordel nas décadas de 1930 a 1950, em Recife/PE. No seu trabalho, ela comenta que a leitura junto aos pesquisados dizia respeito ao lazer. Galvão (2003, p.92) destaca que a

[...] dimensão estética e literária das histórias, ou seja, o fato de os poemas provocarem prazer e emoção aparece como ponto principal para a maior fruição do objeto de leitura.

A autora observou o entusiasmo dos entrevistados ao lembrarem-se das histórias. Essa maneira de se aprender a ler, empregando-se um método sui generis, fora da escola, foi significativa para aquele grupo. A pesquisadora constatou que as pessoas riam, compartilhavam a leitura, e quem não sabia, aprendia com o outro mais experiente. São letras ou palavras que foram aprendidas durante aqueles encontros, tornando possível se apropriar daquelas histórias e, por conseguinte, de uma maneira de pensar.

Parece-nos encantadora essa maneira de ensinar a ler, partindo da alegria, da presença, do entusiasmo, da criatividade, e, sobretudo, do comparticipar a leitura. Essas características tão positivas de uma maneira de ensinar e aprender muitas vezes estão ausentes da nossa maneira de educar na escola. Nota-se, também, o quanto essa idéia de ensino deveria estar afinada com uma visão mais atual e o quanto uma história agradável pode significar a alegria no início da aprendizagem da leitura. Desnecessário dizer o quanto esses registros iniciais são importantes e podem se tornar indeléveis no campo emocional de uma criança.

Todavia, pode ocorrer também que a qualidade da relação entre educador e educando, ou entre pais e filhos, criem associações que não contribuam para o leitor desenvolver sua competência. Isso ocorre quando o professor ou o familiar, ao invés de contribuir para o desenvolvimento da competência do leitor “apenas o force a ler” (Corrêa, 2003, p.53). Nesse sentido, a realização da atividade de leitura estará associada a um comportamento estritamente comprometido com a obrigatoriedade, inviabilizando uma atitude favorável com a leitura, principalmente quando não houver forças para provocar essa obrigação. Lembramos aqui aquelas experiências infelizes com a leitura, quando o professor faz a escolha de uma obra para ser lida pelo aluno durante as férias e reclama o conteúdo em prova, após o retorno das aulas.

Observar se os alunos de uma classe continuam empolgados com a leitura, lá pelos doze anos de idade, pode-nos dizer muito sobre o percurso desses leitores. Não nos preocupamos aqui com os resultados das avaliações implementadas pelas políticas públicas de avaliação, mas com uma pergunta simples que pode ser formulada na sala de aula: Você leu, nesses anos, algum livro além do exigido pela escola?

Essa indagação também nos leva a pensar como foi o processo de ensino desses alunos. Será que foi considerada a necessidade de os alunos manterem contato com obras de diversos gêneros e que aprendessem a selecionar obras e autores de seu interesse? Como é possível fazer escolhas sem a experiência viva e concreta, como observamos acima nos nossos comentários acerca da importância do brincar? Temos que levar em conta o processo e não somente os resultados, principalmente porque, conforme comentamos inicialmente estamos preocupados com as relações interpessoais. Esta maneira de investigar é contemplada pela Psicologia Sócio-Histórica. Portanto, a atenção deve estar voltada para o desenvolvimento de maneira a buscar um aprimoramento do processo de alfabetização.

Evidentemente, neste artigo estamos também preocupados com o conceito de letramento, que significa o uso social da leitura e da escrita. Soares (2004) observa sobre

[...] a importância de que a alfabetização se desenvolva num contexto de letramento – entendido este, no que se refere à etapa inicial da aprendizagem da escrita, como a participação em eventos variados de leitura e escrita, e o consequente desenvolvimento de habilidades de uso da leitura e da escrita nas práticas sociais que envolvem a língua escrita, e de atitudes positivas em relação a essas práticas [...] (p. 16).

Ao levarmos em conta a perspectiva da Psicologia Sócio-Histórica, somos instigados a compreender o quanto a família pode contribuir para o letramento na medida em que a qualidade das relações interpessoais favorece com as condições objetivas a apropriação do ato de ler e escrever. No lar, a criança poderá desenvolver atividades que digam respeito ao letramento, indo desde a colaboração para relacionar o que é necessário comprar nas idas ao supermercado, às leituras de gibis de seu interesse, produção de textos sobre ocorrências jocosas no ambiente familiar, histórias contadas pelos adultos, descrever o local onde mora, o capítulo da novela, entre outros, cujo teor está associado às práticas sociais, no âmbito da vida familiar.

Luria (1990) faz o seguinte comentário acerca do desenvolvimento humano associado às mudanças das práticas sociais:

Percebemos agora a falácia das velhas noções segundo as quais as estruturas fundamentais da percepção, representação, raciocínio, dedução, imaginação e consciência da própria identidade seriam formas fixas da vida espiritual que permanecem inalteradas em diferentes condições sociais. As características básicas da atividade mental humana podem ser entendidas como produtos da história social - elas estão sujeitas a mudanças quando as formas de prática social se alteram; são, portanto, sociais em sua essência. (Luria, 1990, p.218).

Pode-se entender o conceito de prática social associado a um pequeno grupo, como por exemplo, uma pequena comunidade, ou até mesmo uma família. Contudo, comentar sobre a mudança da prática social decorre de ações levadas à prática empregando providências para esse propósito. Na área da educação, são ações cuidadosamente planejadas, mas com um componente de flexibilidade, que respeitam o contexto, as condições cognitivas do grupo, considerando, sobretudo, o propósito da intervenção como transformador da realidade.

A nosso ver a alfabetização de alunos teria um grande acréscimo se houvesse projetos voltados para viabilizar a leitura no lar. Sabemos que, evidentemente, nem todas as famílias se envolveriam. Reconhecemos as dificuldades de uma escola atenta ao processo de seus alunos. Todavia, as mudanças significativas para favorecer uma criança desenvolver o hábito de leitura pelo prazer proporcionado por essa atividade, não sujeito somente aos momentos de obrigatoriedade, exige também algo além das condições materiais, mas observação e criatividade. Nesse aspecto, família e escola, atentas ao desenvolvimento cognitivo das crianças, podem desempenhar um importante papel. Sobretudo, com o reconhecimento por parte da escola das profundas implicações para o letramento das crianças, quando os pais participam da atividade de leitura. Corrêa (2003) observa que a

[...] família constitui, portanto, peça fundamental na transmissão do gosto pela leitura ou, melhor dizendo, na criação de condições que possibilitem a ela deixar uma herança cultural às crianças e jovens, e que eles possam, realmente, apropriar-se do gosto pelos livros [...] (p.72).

Essa herança decorre da construção de um percurso, de uma prática social, desenvolvida no seio da família, a partir de um trabalho adequado, planejado com o objetivo de envolver as famílias na leitura compartilhada no lar.

As palavras animadas de Luria (1990), ao afirmar que as características da atividade mental são essencialmente sociais, servem, também, para provocar indagações acerca das possibilidades humanas de ensino e aprendizagem, lembrando, por oportuno, que os limites que estabelecemos para ensinar o outro deixa explícito o nosso compromisso assumido com a educação. Pensar em estratégias para contribuir com a leitura no lar pode ser muito significativo, em virtude da necessidade de se considerar o contexto familiar do educando, bem como ponderar sobre a complexidade das ações envolvidas com a mediação para a atividade. Essa perspectiva aproxima-nos de uma maneira de pensar que associa as relações interpessoais na família ao desenvolvimento cognitivo do educando, bem como favorece a compreensão para a ampliação dos vínculos entre família e escola.

Além disso, também está afinada com o conceito de letramento porque a atividade de leitura passa a ser significativa não somente na escola, mas também no lar do educando. Essa maneira de compreender as relações se deve, sobretudo, ao conceito de mediação, necessário para a criança se inscrever no mundo dominado pela cultura.

O conceito de mediação é de fundamental importância para a Psicologia Sócio-Histórica. Para Vygotsky (2004) esse conceito está intrinsecamente associado às relações sociais. Segundo esse autor a realidade com a qual nos deparamos está mediada pelos signos, aprendidos com a linguagem, portanto, nas relações estabelecidas socialmente. O homem desenvolve suas funções psicológicas superiores, como por exemplo, memória, pensamento, imaginação e percepção, em decorrência dessa apropriação pela linguagem.

Porém, contrariamente do que se pensa, segundo Vygotsky (2001) nem todas as atividades realizadas implicam no desenvolvimento das funções psicológicas superiores, como exemplo, ele distingue

“[...] o desenvolvimento multilateral da educação especializada, das habilidades técnicas como escrever à máquina, andar de bicicleta, etc., que não revelam nenhuma influência substancial sobre o desenvolvimento. (p.334).

Desse modo, a aprendizagem promove o desenvolvimento multilateral na medida em que ela proporciona o desenvolvimento das funções psicológicas superiores.

Por sua natureza social, a aprendizagem, conforme Vygotsky (2001), tem seus momentos denominados “optimais”, que asseguram melhores condições para o desenvolvimento. Assim, podemos afirmar que os eventos sociais, antes mesmo da alfabetização que irão viabilizar o letramento, são profundamente marcantes para o desenvolvimento da criança. Esses eventos, quando envolvem a atividade de leitura no lar podem proporcionar, com a emoção, um avanço no desenvolvimento das funções psicológicas superiores.

Aproximar as famílias de projetos que envolvam a leitura torna-se realmente algo difícil e empolgante. Difícil porque estamos lidando, muitas vezes, com questões pessoais, lembranças nem sempre positivas acerca da aprendizagem, do envolvimento com a leitura, ou relacionadas à auto-estima e escola, ou ainda, todos esses fatores presentes na família. A questão da dificuldade refere-se, também, ao campo da experiência presente, em virtude da desistência da realização da leitura de fruição para si mesmo. Mas, isso nem sempre se torna objeto de atenção no cotidiano dos adultos, aqui no Brasil, em face dos baixos índices de leitura de nossa população.

Além disso, também temos o tempo transcorrido até a idade adulta, portando distante das condições mais propícias para o desenvolvimento do hábito de leitura. Justamente nesse ponto surge a empolgação. Pensar na superação das dificuldades dos pais em relação à leitura. Para esse fim, nos parece imprescindível levar em consideração os vínculos emocionais com os filhos, que favorecem condições adequadas para aprenderem a realizar a atividade de leitura no lar. Empolga, também, pensar em estratégias para promover a leitura no lar, com o propósito de atrair a criança para o hábito da leitura. Todavia, não podemos nos deter diante das ponderações sobre as dificuldades que se sobrelevam à empolgação, pois isso nos tornaria reféns de uma maneira de pensar enrijecida às possibilidades de potencializar a vida humana.

Essa nossa perspectiva de intervenção pode também ser aproveitada nos projetos de educação de crianças com déficit intelectual. Para elucidar um pouco sobre o que estamos falando, nos parece oportuno comentar sobre uma pesquisa realizada junto à APAE da cidade de Francisco Morato, em virtude de que um dos objetivos foi o de viabilizar a leitura no lar.

A pesquisa qualitativa de Palma Filho (2007), sob orientação da Profa. Dra. Lucia Ghiringhello, foi realizada junto a um grupo de 4 (quatro) mães de alunos com déficit intelectual da APAE daquela cidade. O método teve por base o trabalho de Baptista e Aguiar (2003), principalmente o caráter de pesquisa interventiva como possibilidade de produção de conhecimento.

Inicialmente foram convidados os pais e as mães. Os convites foram elaborados a partir do critério de maior assiduidade nos eventos promovidos pela Instituição, principalmente nas reuniões envolvendo pais e filhos. Contudo, compareceram somente das mães.

As ações foram cuidadosamente planejadas observando-se o desenvolvimento em relação à leitura, no qual se encontrava cada uma das participantes, pois constatamos logo no primeiro encontro que nenhuma delas possuía o hábito de leitura. Com isso, todas as etapas de planejamento partiam da realidade mais concreta para somente depois passarmos para o campo das relações.

Logo no primeiro encontro, envidamos esforços para criar vínculos com o grupo. Partimos da idéia de que as pessoas apreciam histórias bem contadas e, após envolvermos o grupo com essa idéia distante das questões da leitura, tomamos o cuidado de ler uma obra de literatura infantil, contendo somente imagens, que foram exibidas às mães durante a leitura, apresentando tal como seria possível realizar nos seus lares.

A leitura prévia que fizemos viabilizou trabalhar com três níveis de indagações sobre as histórias que iriam ler. Por exemplo, em relação ao que era observado propunha-se perguntar sobre o que estava acontecendo, particularidades sobre a interpretação elaborada, o que estava ocorrendo em relação a determinado personagem, o que sicrano estava fazendo e o que mais beltrano apreciou naquela página.

Em relação ao que foi observado, cabia perguntar sobre as questões que envolvessem a memória, os personagens ausentes, cores, objetos presentes nas páginas anteriores. Num terceiro nível, seria possível indagar sobre a imaginação, como por exemplo, perguntar sobre o que acontecerá ou como terminará a história, porém deixamos clara a necessidade de se evitar a elaboração de correções nas conclusões de seus filhos, com o fim de libertá-los do propósito de acerto ou erro.

Foram realizados oito encontros, em que dialogávamos sobre as dificuldades, idéias e impressões que tiveram durante aquela semana. Promovemos inicialmente a construção de um processo em que os participantes se apropriaram de uma maneira de realizar a leitura no lar. Nos encontros, as mães levavam alguns livros de literatura infantil e devolviam os livros da semana anterior.

O mais empolgante foi que as próprias mães se libertaram das dificuldades iniciais com a leitura. Isso foi fundamental para os trabalhos. Num segundo momento, após a apropriação da maneira de se realizar a atividade, passaram a criar recursos próprios para ler com seus filhos. Chegaram ao ponto de algumas delas empregarem fantoches e impostação de voz, conforme os personagens dos livros. Outras passaram a escolher livros para si, além dos livros para lerem com seus filhos. Aos poucos outras pessoas das famílias foram se envolvendo com a leitura.

Foram evidenciadas mudanças decorrentes de uma prática social inovadora para os grupos familiares, mas, antes disso, houve o favorecimento de mudanças em si mesmas. Algumas mães despertaram o gosto pela leitura de fruição. Iniciaram sua atividade em grupo e prosseguiram após a apropriação da maneira de se realizar a leitura. O fato de desenvolverem a leitura de livros infantis no âmbito de seus lares, com seus filhos, resultou em profundas mudanças nas relações interpessoais.

Descobriram muito sobre seus filhos. A maneira como imaginavam, estavam atentos, memorizavam, se expressavam entre outros. Essas mudanças foram muito profundas junto àquele grupo, porque estamos falando de mães de pessoas com déficit intelectual, cuja qualidade das relações interpessoais foi significativamente favorecida pela atividade de leitura compartilhada.

Além disso, constatamos a ocorrência de mudanças não somente na qualidade da relação entre mães e filhos, mas também na relação entre família e escola. As mães que desenvolveram a atividade de leitura com seus filhos desenvolveram, também, uma maior atenção relativamente às atividades escolares, tais como tarefas, reuniões e tudo o mais desenvolvido na escola com implicações no lar. A nosso ver, o mais importante é que a leitura realizada no lar passou a ser significativa para os filhos. Surgiu a dimensão emocional associada à atividade, como, por exemplo, o tempo de convívio, disposição, atenção entre outros.

Assim, com base na Psicologia Sócio-Histórica, ao pensarmos em projetos com o fim de favorecer a leitura, se torna imprescindível considerar as circunstâncias para promover a mediação e a qualidade das relações interpessoais envolvidas na construção do percurso da criança como leitora. A nosso ver esses projetos devem envolver a família da criança de modo a integrar sua história com vivências agradáveis e de maneira que ela atribua um sentido especial à atividade de leitura.

Nessa perspectiva, o estudo da Psicopedagogia pode oferecer grandes contribuições para o desenvolvimento da competência do leitor, em virtude de seus conhecimentos abarcarem tanto a compreensão da dinâmica do quadro familiar, quanto o seu envolvimento na educação da criança. Desse modo, viabiliza uma análise mais profunda e abrangente dos propósitos da educação, principalmente por atribuir um alto grau de importância à qualidade das relações interpessoais na dimensão familiar, tão fundamental para o desenvolvimento da competência do leitor. Esse desenvolvimento significa, também, ampliar as condições para a criança se apropriar do mundo em que vive.

 

Referências

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Endereço para correspondência
João Palma Filho
E-mail: jpalmafilho@superig.com.br
Lucia Ghiringhello
E-mail: lghello@uol.com.br

 

 

1 Pedagogo pela PUC-SP, mestre em Psicologia pela Universidade S.Marcos e doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-SP. E-mail: jpalmafilho@superig.com.br
2 Doutora em Psicologia Clínica e docente da UNIP, Universidade Paulista. E-mail: lghello@uol.com.br

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