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Construção psicopedagógica

versión impresa ISSN 1415-6954

Constr. psicopedag. vol.21 no.22 São Paulo  2013

 

(Re)construindo aprendizagens através da mediação do computador: um relato de experiência

 

(Re)constructing learning through the mediation of the computer: an experience report

 

 

Joelma Cristina SantosI; Maria de Fatima Aranha de Queiroz e MeloII

IBolsista de Iniciação Científica pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) e Graduanda em Psicologia. Universidade Federal de São João del-Rei;
IIPsicopedagoga, professora da Graduação e Pós-Graduação em Psicologia, Orientadora. Endereço para Contato: Joelma Cristina Santos e Maria de Fatima Aranha de Queiroz e Melo, Departamento de Psicologia, Campus Dom Bosco da Universidade Federal de São João del-Rei. Praça Dom Helvécio, 74, Fábricas - São João del-Rei/MG, CEP: 36.301-160 E-mail: cristina.joelma@gmail.com / fatimaqueiroz.ufsj@gmail.com  Universidade Federal de São João del-Rei

 

 


RESUMO

O relato de experiência aqui apresentado descreve como a mediação com o computador pode se constituir num recurso metodológico ainda pouco explorado em Psicopedagogia, num atendimento clínico que teve como principal objetivo adaptar e/ou experimentar estratégias visando à (re)construção das aprendizagens. Enfatiza-se também como este atendimento, pautado nos pressupostos teóricos da Epistemologia Convergente, trabalhou a identidade desta criança, abordando tanto conteúdos pedagógicos quanto aqueles mais ligados à sua história pessoal, por meio de jogos eletrônicos, programas e sites da Internet. Com base nos resultados observados, abre-se a discussão a respeito da utilização de outras possibilidades de intervenção no ambiente da clínica psicopedagógica, potencializando as novas tecnologias que tanto interesse despertam sobre as gerações atuais. Considera-se que estas podem, por isso, se caracterizar como um meio facilitador do processo de reestruturação psicopedagógica de crianças com dificuldades de aprendizagem.

Palavras-Chave: Dificuldades de aprendizagem, Psicopedagogia, Novas tecnologias, Epistemologia convergente.


ABSTRACT

The experience report presented here aims to describe how the mediation with the computer can be used as a methodological resource in Psychology. Therefore were performed a clinical care with the main objective to adapt and/or to experiment strategies, aiming the (re)construction of learning. Based on the theoretical assumptions of Convergence Epistemology, we seek to work a child's identity. From this perspective, it will approach the educational content related to the child's personal history through games, programs and websites. Based on the results observed, we open the discussion about the use of the possibilities of intervention in the Psychopedagogical clinical environment. We try to think how these new technologies are configured as a potent factor in education, since that arouse so much interest in current generations. It is also considered that these new approaches can work as a means of facilitating restructuring the psychopedagogical process of children with learning difficulties.

Keywords: Learning disabilities, Psychology, New technologies, Convergence epistemology.


 

 

Introdução

A Psicopedagogia se constitui num campo de investigação sobre o processo de construção do conhecimento em toda a sua complexidade, bem como sobre as dificuldades que esta construção apresenta. Para Bossa (1994), a psicopedagogia nasce da necessidade de uma melhor compreensão do processo de aprendizagem que, por ser um fenômeno complexo, precisa buscar conhecimentos em outros campos, criando, para seu objeto de estudo, uma condição de interdisciplinaridade. Trata-se de uma área de aplicação/construção de conhecimentos, ao mesmo tempo em que se constitui num campo de estudos. A autora (2002) se dedica à problematização do "fracasso escolar", tomando-o como um sintoma e levando em conta a sua dimensão social e sua singularidade, incluindo a escola como um dos possíveis agentes na produção do fenômeno. Numa perspectiva clínica, a Psicopedagogia assume um viés terapêutico, atuando na reabilitação de crianças com dificuldades de aprendizagem (Mamede Neves, 1987). Segundo Weiss (2010), uma dificuldade de aprendizagem é um sintoma que emerge da personalidade da criança em sua interação com o meio social, caracterizando-se como um desvio em relação a certas exigências do contexto em que se dá o processo ensino-aprendizagem.

A Psicopedagogia inspirada na Epistemologia Convergente (Visca, 1987) busca integrar as contribuições teóricas e empíricas da Psicologia Genética, da Psicanálise e de Psicologia Social Argentina, concebendo a aprendizagem como uma construção que se apóia tanto em aspectos dinâmicos como estruturais do sujeito. Assim, compreende que todo "processo de aprendizagem transcende a estruturação cognitiva porque requer a afetização do objeto e transcende, também, a afetividade, visto que implica na utilização de operações cognitivas" (Visca, 1991, p. 49). Como ressalta Lajonquière (1989), apesar de a Psicologia Genética e da Psicanálise se constituírem como perspectivas irredutíveis, isto não significa dizer que estas são incompatíveis. Desta forma, na fronteira entre as duas abordagens, encontram-se relações possíveis que permitem o diagnóstico e o tratamento das dificuldades de aprendizagem, de modo a abranger toda a dimensão cognitiva sem ignorar a dramática subjetiva.

Na clínica psicopedagógica, por meio de um processo diagnóstico que pode envolver entrevistas familiares, anamneses, materiais lúdicos, provas, testes psicométricos e/ou projetivos, busca-se formular hipóteses sobre a etiologia da dificuldade de aprendizagem e traçar as possíveis vias de um tratamento. O atendimento clínico em Psicopedagogia aqui relatado buscou utilizar, como instrumentos de mediação na (re)construção de aprendizagens de uma criança com queixa de dificuldades de aprendizagem, jogos eletrônicos, programas e sites da Internet. O principal objetivo era possibilitar que a criança estabelecesse uma relação mais interessada e menos apreensiva com os conteúdos escolares, de forma que estes pudessem ser incorporados por ela. Assim, considera-se, conforme Queiroz e Melo (2011) sob o ponto de vista da Teoria Ator-Rede (TAR), que a aprendizagem só faz sentido para a criança quando o que é aprendido é visto por ela como útil e quando ela pode, justamente por isso, dispor desse conhecimento para produzir efeitos sobre si mesma e sobre o mundo.

A informática e as novas tecnologias têm desempenhado um papel relevante nas aprendizagens e, como ressalta Weiss (2010), têm se configurado como elementos importantes no desenvolvimento, no enriquecimento das funções cognitivas e, obviamente, das funções afetivas que estão articuladas com esses processos, apontando a necessidade de o psicopedagogo utilizar o computador como mais um meio capaz de possibilitar observações e intervenções na clínica psicopedagógica.

Segundo Weiss (2010), o computador pode ser usado durante a avaliação das condições pedagógicas e/ou nas sessões lúdicas centradas na aprendizagem, permitindo que sejam obtidas informações acerca do funcionamento cognitivo e emocional, da postura corporal e do nível pedagógico da criança. A autora destaca a necessidade de se fazer um uso mais amplo do computador, uma vez que, além de abarcar mais possibilidades e estratégias de pensamento que alguns testes de inteligência, as propostas apresentadas no computador possibilitam também a emergência de mecanismos projetivos inconscientes, observados em testes como o HTP e o CAT, por exemplo.

No relato aqui apresentado, destaca-se, ainda, como um atendimento, focado principalmente nas dificuldades de aprendizagem específicas da criança atendida, foi conduzido, visando a atingir, cada vez mais, os aspectos afetivos e identitários da criança. Procurou-se, deste modo, ir além da dimensão cognitiva, utilizando as preferências da criança como uma porta de entrada para a realização do trabalho. Segundo Pain (1989), as situações de aprendizagem devem se adaptar às possibilidades reais da criança, considerando-se sua estruturação mental, suas estratégias, seus conhecimentos prévios, seu meio cultural e seus interesses pessoais, buscando facilitar uma maior autonomia por parte dela. No caso relatado, o fio condutor do atendimento foi, antes de tudo, a afirmação dos aspectos positivos que faziam parte da experiência de vida da criança.

 

Relato de Experiência

Buscou-se, neste artigo, registrar e disponibilizar um relato da experiência vivenciada durante um diagnóstico interventivo das dificuldades de aprendizagem num Serviço de Psicologia Aplicada em estágio supervisionado cujo objetivo foi colocar à prova a utilização de recursos mediados pelo computador. O atendimento psicopedagógico da criança, com idade de 10 anos na época, que aqui será chamada de Vicente, ocorreu entre os meses de agosto de 2010 e junho de 2011, num total de 29 sessões, e, desde o início, adotou a proposta de um diagnóstico-interventivo. O diagnóstico-interventivo é um procedimento que parte do princípio de que a coleta de dados e a formulação de uma hipótese diagnóstica não são procedimentos inócuos, já implicando em movimentos de aproximação com as potencialidades e limitações trazidas pelo portador da queixa. Segundo Arzeno (1995), Ocampo (1990), Weiss (2010), a distinção entre diagnóstico e terapia é artificial em termos dos efeitos terapêuticos produzidos, pois já há uma mobilização do sujeito com relação ao que o aflige, há uma fantasia de doença e também uma fantasia de cura que se instrumentalizam com a ação desenvolvida pelo terapeuta, nos encontros desenvolvidos.

Inicialmente, foi realizada uma Entrevista Familiar Exploratória Situacional (E.F.E.S.), que consiste numa sessão conjunta com a criança e os pais, com o objetivo de compreender a queixa nos seus aspectos familiares e escolares, captar a expectativa da família em relação à atuação do psicopedagogo e perceber a aceitação e o envolvimento do paciente e de seus pais no processo (Weiss, 2008). Além disso, na E.F.E.S., é realizado o contrato, o enquadramento das sessões e as explicações sobre o atendimento. Neste caso, também foram feitos esclarecimentos de que parte do atendimento se constituiria em uma das etapas de uma pesquisa em andamento que visava investigar os efeitos da interação entre crianças com dificuldades de aprendizagem e jogos eletrônicos destinados à (re) construção de conhecimentos. Após todas as explicações necessárias ao início do processo, a responsável pela criança concordou que ela participasse do estudo e assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Ao longo do atendimento, aconteceram outras três sessões com a mãe da criança, a fim de fazer devolutivas das informações já obtidas e coletar novos dados, de forma a tornar o processo mais completo e integrado.

Vicente era filho único de pais separados e, no início do atendimento, cursava o 5º ano do Ensino Fundamental em uma escola pública. Na E.F.E.S., em que ele e sua mãe estavam presentes, foi trazida a queixa motivadora da procura por atendimento psicopedagógico, que estava centrada, principalmente, num baixo rendimento escolar (sobretudo em Matemática), numa certa "preguiça" para fazer as tarefas escolares em casa, em dificuldades de relacionamento com crianças de sua idade e inquietação intensa. Sobre esta agitação, a mãe contou que o filho já havia recebido o diagnóstico de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), e que este já fazia uso de medicação há aproximadamente dois anos. A mãe, entretanto, reclamou dos fortes efeitos colaterais que a criança vinha sofrendo com a utilização do medicamento prescrito, principalmente a sonolência excessiva, alegando, à época, que iria procurar outro médico para avaliar melhor o quadro clínico do filho. Vicente reconhecia suas dificuldades e concordava com a queixa feita pela mãe, sendo que, desde a E.F.E.S., foi possível perceber o seu grande interesse por carros e caminhões, o que podia ser, em boa parte, explicado por sua história pessoal: tanto o pai como o namorado da mãe, com quem ele mantinha um bom relacionamento, eram caminhoneiros.

De início, estabelecemos com Vicente o enquadre de que, durante as sessões, seriam propostas atividades no computador, mas que alguns minutos de cada sessão seriam reservados para que ele pudesse usar o computador e a Internet livremente, de acordo com os seus interesses. Consideramos, assim, que estes momentos fortaleceriam a sua identidade e autonomia e ainda gerariam dados e informações relevantes para a compreensão do seu contexto vivencial e de sua relação com os instrumentos de mediação da aprendizagem. Além disso, tinham a finalidade de fazer com que o ocorrido nas sessões fizesse sentido para ele e facilitasse a criação de um bom vínculo terapêutico, motivando-o para o atendimento. Em decorrência destes momentos livres, observamos que as buscas de Vicente por fotos e vídeos na Internet sempre estavam relacionadas a carros e caminhões. Era possível perceber também que, até mesmo nos momentos em que estava fazendo coisas de seu interesse, Vicente mostrava bastante agitação motora, embora, quanto à concentração, notava-se que ele a mantinha por mais tempo em relação às outras atividades em que começava concentrado e, pouco tempo depois, dava sinais de desatenção.

O planejamento inicial para todas as sessões era o trabalho com jogos eletrônicos que contemplavam conteúdos pedagógicos. Entretanto, os obstáculos para trabalhar estes tipos de jogos começaram logo no início do atendimento quando, visando a abordar especificamente as dificuldades em Matemática, tentamos trabalhar com o jogo "Feche a Caixa", disponível no site da "Revista Nova Escola". O principal objetivo com este jogo era verificar o real grau de dificuldade de Vicente, considerando-se que o jogo exigia apenas a execução de cálculos de soma e subtração e tinha um caráter mais lúdico do que pedagógico. Além disso, buscamos avaliar até que ponto a sua dificuldade era realmente uma dificuldade e não somente uma "preguiça" de fazer as tarefas como havia sido mencionado por sua mãe na E.F.E.S. Nesta sessão, foi possível perceber que Vicente apresentava grandes dificuldades em fazer cálculos mentalmente, mesmo que simples, sendo que, algumas vezes, ele só chegava ao resultado certo por acaso (arriscando palpites e "chutando" números até acertar a resposta), ou após tentar realizar o cálculo diversas vezes, utilizando ora os dedos, ora lápis e papel. É importante ressaltar que parte desta dificuldade observada pode ter ocorrido devido à ansiedade inicial, uma vez que se tratava da primeira sessão, que estava abordando justamente o seu "ponto fraco", sendo ainda que o vínculo terapêutico não estava bem estabelecido. Na sessão seguinte, ele não quis jogar este jogo novamente, pois alegava ser "muito difícil" e ele queria "um jogo de continhas com caminhões". Assim, em seguida, foram realizadas várias sessões mais lúdicas que utilizaram atividades menos ansiogênicas para ele, como jogos de formação de palavras e de encaixe de peças, num estilo de quebra-cabeças. Em ambos, pudemos perceber que estas duas temáticas eram aquelas em que Vicente tinha facilidade e se saía muito bem, sentindo-se à vontade para jogá-los durante as sessões.

Tentando dar continuidade à proposta de abordar as dificuldades em Matemática observadas, optamos por trabalhar com outros jogos voltados para esta temática. No entanto, ele continuou apresentando muitas dificuldades, abandonando-os logo no início. Nesta mesma sessão, foi utilizado o jogo "Completando os números", encontrado no site "Escola Games", que possui três níveis de dificuldade com a proposta de colocar os números que completam os espaços da sequência numérica, seguindo uma lógica específica. Vicente chamou o nível fácil de "jogo de bebê" e foi direto ao nível mais difícil, no qual teve dificuldades, se adaptando melhor ao nível médio. Quando questionado sobre que tipo de jogo gostaria de jogar na sessão seguinte, ele disse que poderia ser qualquer um, desde que no mesmo nível de "Completando os números". Como aponta Pain (1989), a situação de aprendizagem deve se adequar ao que a criança pode fazer naquele momento do atendimento, ou seja, as atividades desenvolvidas nas sessões devem ser graduadas, de modo que elas assumam níveis sucessivos de dificuldade e sejam propostas de acordo com as possibilidades e limites da criança. Assim, deve-se partir do que a criança já sabe, tendo em vista que uma tarefa considerada muito fácil por ela pode não atrair seu interesse enquanto uma atividade muito difícil pode frustrá-la. Notamos que isto ocorreu nesta sessão em que Vicente achou os dois primeiros jogos difíceis - pois não estavam adequados às suas estratégias atuais - , enquanto que a primeira fase do terceiro jogo foi considerada fácil demais, uma vez que estava aquém dos conhecimentos que ele já possuía.

Ainda seguindo esta linha de atendimento, propôs-se o jogo "Feche a Caixa" novamente, mas, desta vez, oferecendo-se também o apoio do Material Dourado1 (Nota de Rodapé 1), a fim de que este pudesse auxiliar Vicente nos cálculos, permitindo-lhe um paralelo entre o concreto e o virtual, levando-se em conta a necessidade de um apoio ao pensamento, conforme previsto para realizar a transição entre os estágios, segundo Piaget (1986). Apesar de demonstrar um pequeno interesse pelas peças do Material Dourado e de trabalhar um pouco com elas, na maior parte das vezes, Vicente preferia utilizar os dedos para fazer os cálculos. Após outras sessões mais lúdicas e menos ligadas aos conteúdos de Matemática, ele mesmo pediu, numa sessão, para jogar o jogo "Feche a Caixa" juntamente com as peças do Material Dourado. Desta vez, Vicente jogou uma rodada inteira, utilizando ora os dedos, ora as peças do Material Dourado para fazer os cálculos. Ele apresentou um desempenho e um raciocínio lógico bem melhor do que nas vezes anteriores, sem reclamar do jogo, como habitualmente fazia. Observamos, assim, que quando a opção pelo jogo partiu do próprio Vicente, o nível de implicação e o foco na tarefa, além do rendimento, foram bem melhores do que em todas as outras vezes que o jogo foi colocado para ele. Podemos dizer que, nas ocasiões anteriores em que o jogo fez parte das sessões, este não fazia sentido para ele e não o mobilizava.

Seguindo a proposta de Fernández (2001), que aponta que o tratamento psicopedagógico deve envolver a (re)construção da identidade da criança e a diferenciação entre esta e os demais, buscamos trabalhar, especialmente com a (re)construção da identidade de Vicente, procurando fazer com que ele (re)construísse suas próprias identificações, diferenciando-se dos outros e reconhecendo o seu próprio querer e pensar. Optou-se por utilizar o desenho como um recurso, uma vez que este se constitui numa forma de expressão muito familiar, desapreensiva e comum para a maioria das crianças. Como aponta Pain (1989), provas projetivas, como o desenho, permitem que sejam observadas perturbações da identidade, além dos diversos recursos utilizados pela criança para a simbolização, a organização e a integração da fantasia. Como Vicente não gostava de desenhar com lápis e papel e a proposta do atendimento era a abordagem das dificuldades de aprendizagem através de recursos mediados pelo computador, foram utilizados sites e programas como o Paint, que permitiam que fossem feitos desenhos na tela por meio de movimentos com o mouse. Assim, numa das sessões, ao desenhar um caminhão com um motorista ao volante, foi pedido a Vicente que contasse uma história a partir do desenho, a fim de que a atividade não se encerrasse naquele momento e pudesse contribuir com informações para um maior entendimento do seu contexto vivencial. Entre os principais pontos da história narrada por ele, destaca-se que aquele caminhão desenhado levava lixo para ser reciclado e ser transformado em brinquedos e peças de computador. Além disso, Vicente disse que o motorista tinha sete filhos e a matéria que estes mais gostavam de estudar na escola era Matemática. Quando questionado se as crianças gostavam de Português também, ele respondeu que sim, mas que eles não eram bons em Português, apenas em Matemática. Em contraste à história relatada, Vicente tinha grandes dificuldades justamente em Matemática, apresentando bastante facilidade em Português.

 

 

De forma a complementar as atividades de fortalecimento da identidade, foi proposta uma atividade em que Vicente teria que buscar na Internet imagens das coisas que ele mais gostava, montando um painel de figuras diversas. Ele gostou da proposta logo de início e a primeira imagem que procurou foi por "caminhão" e, em seguida, por "miniaturas de caminhão", dizendo possuir uma coleção em casa. Depois destes dois itens, Vicente disse que não sabia mais o que colocar e foi sugerido a ele que procurasse imagens de lugares onde ele tivesse ido de caminhão e sem caminhão. Ele aprovou a sugestão e passou imediatamente a procurar as uras, sendo que, ao colocar a imagem de um lugar que ele gostava de ir de caminhão, Vicente escolheu a foto panorâmica de uma cidade para onde o pai costuma viajar a trabalho e, algumas vezes, levá-lo. Ao procurar por um lugar que ele gostava, mas que não tinha ido de caminhão, ele contou sobre quando foi à cidade de Aparecida do Norte, há alguns anos, e escolheu uma foto em que a imagem de Nossa Senhora Aparecida estava sendo carregada em cima de um carro de bombeiros. Como se pôde perceber, o interesse de Vicente por caminhões esteve presente em toda a sessão e, mesmo quando se tentou focar em outros aspectos de sua vida, ele incluía esta temática como algo que teimava em permanecer como uma marca afirmativa de sua identidade.

Consideramos que, diante do crescente desinteresse de Vicente por jogos mais pedagógicos que ele frequentemente abandonava pouco depois de tê-los iniciado, o trabalho com jogos eletrônicos de carros e caminhões contribuiria para reforçar a sua identidade. Ao caminharmos pelas brechas dos interesses de Vicente, procuramos verificar ainda como ele reagia e como eram alguns aspectos de sua conduta diante de coisas que o agradavam mais. Assim, foram propostos alguns jogos de carros e caminhões, observando-se que ele apresentava a mesma inquietação motora trazida na queixa, mas era capaz de fazer os comandos necessários ao jogo, mostrando bastante desembaraço com o manejo do mouse, das setas e do teclado, concentrando-se e exibindo um bom desempenho. A partir deste momento, passaram a ser mesclados, nas sessões, os jogos de caminhões e os jogos mais pedagógicos. Apesar de os jogos mais voltados aos seus interesses ocuparem um lugar importante no processo, esta intervenção com jogos pedagógicos teve a função de fazer uma aproximação gradativa das atividades escolares, deslocando-o de sua zona de conforto, tendo em vista que ele só aceitava fazer aquilo que já sabia e o que se sentia seguro para fazer, evitando o que desconhecia. Vicente manifestava o que Visca (1991) chama de obstáculo epistemofílico, ou seja, uma falta de amor - involuntária - pelo conhecimento, devido ao medo de enfrentar qualquer situação nova, principalmente no campo da aprendizagem, repetindo situações que já lhe eram conhecidas e, portanto, não o ameaçavam.

Ainda aproveitando o fato de Vicente gostar de viajar e de fazer trajetos de caminhão nos jogos eletrônicos, foi apresentado a ele o site Google Maps, em que é possível localizar lugares específicos e visualizá-los por meio de mapas e fotos. Na primeira vez que o usou, ele foi instruído sobre como o site funcionava e logo se entusiasmou com a atividade, manejando bem os seus recursos, visualizando lugares já conhecidos, como casas de amigos e parentes, e comentando "que o site era fácil... que depois que a gente aprende fica fácil". O site foi utilizado em outras sessões, a pedido do próprio Vicente, podendo esta ser considerada uma estratégia que deu certo, uma vez que atraiu bastante o seu interesse, além de trazer para a sessão psicopedagógica elementos que estavam atrelados à sua bagagem vivencial.

Diante desta boa reação ao site, lançamos mão de uma nova estratégia. Considerando-se que, em seus momentos livres nas sessões, o que Vicente mais gostava de ver na Internet eram vídeos de caminhões, propôs-se que ele mesmo fizesse um vídeo no Windows Movie Maker, semelhante aos que ele buscava. Esta atividade teve como proposta o fortalecimento da identidade e da autonomia por meio da construção de algo próprio em que todos os detalhes pudessem ser escolhidos, dando a chance a Vicente de escolher e rejeitar o que quisesse na sua produção. Ao ser questionado sobre o que ele gostaria que tivesse no seu vídeo, ele prontamente respondeu "foto de carro". Iniciou a procura pelas imagens no site de buscas, escolhendo-as sem dificuldade. Ao longo da sessão, foram dadas as orientações sobre como montar o vídeo e sobre os efeitos possíveis, sendo que ele aprendeu bem rápido a salvar as imagens e a fazer a montagem, demonstrando interesse, principalmente, em acrescentar música e colocar o vídeo na internet. Foi possível perceber novamente a boa memória de Vicente em recordar os comandos bem como a sua capacidade de aprender rápido, porém, apesar de ser proposta outras vezes, tal atividade não trouxe o retorno planejado, pois não o motivou como o esperado, uma vez que ele ainda preferia assistir aos vídeos prontos na Internet ou continuar a acessar o Google Maps.

Seguindo esta linha de intervenção, conduzimos o atendimento, até o final, sempre revezando entre conteúdos pedagógicos e conteúdos lúdicos que atraíam o interesse e não despertavam a resistência de Vicente. Além disso, ao variar as estratégias e atividades, buscamos avaliar os efeitos que estas tinham sobre ele e verificar também quais eram mais produtivas. Deste modo, foi possível manter Vicente motivado a vir e participar das sessões bem como produzir diferenças na maneira como abordava as dificuldades no seu dia a dia, tanto em casa quanto na escola.

 

Discussão e Considerações Finais

A identificação do modelo de aprendizagem da criança que, como indica Fernandez (2001) e Weiss (2010), é o maior objetivo do diagnóstico psicopedagógico, caracteriza-se como um conjunto dinâmico que organiza os estilos, o ritmo e os vínculos estabelecidos com o conhecimento. Além disso, o modelo de aprendizagem estrutura as áreas de expressão, os hábitos adquiridos, o funcionamento da cognição e as motivações, ansiedades, defesas e conflitos da criança referentes às situações de aprendizagem. Observamos, com base no diagnóstico-interventivo e nos recursos de mediação com o conhecimento utilizados ao longo de quase um ano de atendimento, que Vicente apresentava baixa resistência à frustração, ficando desmotivado diante de pequenas dificuldades e que adotava a fuga como atitude de defesa, isto é, evitava atividades nas quais era preciso desenvolver ou aprimorar conhecimentos. No entanto, percebemos que, quanto a assuntos relacionados aos seus interesses, ele não demonstrava dificuldades e apresentava um ótimo desempenho, com boa memória e atenção. Sobre a agitação e a falta de concentração, percebemos que estas eram recorrentes na grande maioria das atividades, só sendo amenizadas em tarefas nas quais ele se interessava mais, como os vídeos de caminhão. Na maior parte do tempo, notamos que, mesmo inquieto, Vicente se saía bem nos jogos e que os iniciava com um bom nível de atenção, que depois ia declinando.

Ao longo do atendimento e por meio das diversas estratégias que tiveram o computador como recurso de mediação, percebemos que Vicente tinha muita disposição para fazer as coisas de que gostava, mas ficava "enrolando" para evitar fazer as coisas das quais não gostava. Além disso, nas atividades que considerava difíceis, era comum que ele rapidamente desistisse, sem nem querer ouvir explicações a respeito. Como apresentava dificuldades em Matemática, ele não se envolvia neste tipo de atividade, o que prejudicava o seu rendimento escolar e agravava ainda mais os seus problemas na matéria. Diante disso, o atendimento passou a se focar mais no fortalecimento da sua identidade e da sua autonomia, no sentido de valorizar o que ele fazia bem e a fim de encontrar um equilíbrio entre o que ele gostava e o que ele não gostava, visando a reforçar os dois aspectos. Foi pensando nisso, que os jogos de carros e caminhões, as atividades de busca em sites, os programas como o Paint e o Windows Movie Maker foram introduzidos nas sessões. Considerando os interesses que Vicente manifestava, tais atividades, em sua grande maioria, tiveram uma ótima aceitação da sua parte.

Diante de tudo o que foi exposto acima, pudemos observar como um atendimento psicopedagógico que buscava trabalhar, notadamente, as dificuldades em Matemática de uma criança, deslocou seu foco para os interesses e demandas trazidos por ela. Ressaltamos que isto se deu, sobretudo, pela necessidade de considerar as resistências que foram surgindo ao longo do processo e que mostraram a importância de se reconhecer o papel ocupado pela história pessoal da criança portadora da queixa de dificuldades de aprendizagem. Por meio da valorização de sua trajetória de vida, foi possível fortalecer a sua identidade e a sua autonomia, expressas em suas relações com o conhecimento. Da parte da pesquisadora estagiária, foi importante estar sensível e aprender com as resistências apresentadas no caso, que ocasionaram a reorientação de estratégias e renegociação de metas em prol de um melhor proveito do atendimento.

No presente artigo, destacam-se os jogos eletrônicos e as estratégias clínicas que fizeram uso da mediação do computador e que, em sua grande maioria, mostraram-se bem sucedidas e motivadoras. Enfatizamos ainda que todos os recursos usados estavam sendo constantemente avaliados, sendo que alguns deles foram desenvolvidos especificamente para atender ao caso desta criança diante dos desafios e demandas que surgiram com o decorrer do atendimento. Como sugerem Santos e Queiroz e Melo (2011), os recursos psicopedagógicos determinados a partir da interação com o computador devem sempre estar compatíveis com as particularidades de cada caso atendido, de modo que possam ser mais bem aproveitados e se adaptarem aos momentos vivenciados pela criança dentro do processo clínico.

Percebemos, no decorrer das sessões, uma melhora significativa nos aspectos que foram trazidos como demanda no início do atendimento. Numa tomada de consciência, ao final do atendimento, Vicente disse que as sessões tinham sido "legais" e que ele "era muito agitado e agora estava bom". Segundo ele e a sua mãe, o seu rendimento escolar tinha melhorado em todos os aspectos bem como nas situações relacionadas ao cumprimento das tarefas em casa ou no relacionamento familiar e com colegas. O atendimento teve continuidade, em nova etapa, a partir da ação de outro estagiário gerando um rico material que estará passível de publicação em outro artigo, podendo-se adiantar que os resultados obtidos estão sendo consolidados e ampliados num processo de construção de autoria que devolve a Vicente a potencialidade de protagonizar sua própria história e ressignificar seus vínculos com algumas aprendizagens.

Acredita-se que a inserção de novas tecnologias em atendimentos psicopedagógicos pode contribuir de forma diferenciada para a prática clínica, principalmente se os recursos forem diversificados, tais como os utilizados e citados (desenhos, jogos, buscas na Internet, vídeos etc.) no presente trabalho. Tendo em vista o contato crescente que as novas gerações têm com computadores e outros meios eletrônicos, estes não podem ser desconsiderados do contexto terapêutico, pois são, muitas vezes, capazes de despertar mais a atenção e o interesse do que os recursos tradicionais. Espera-se, com este artigo, incentivar o uso destas iniciativas no ambiente clínico bem como estimular outros relatos sobre a utilização de estratégias originais no tratamento das dificuldades de aprendizagem.

 

Referências

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Nota de Rodapé
1 O Material Dourado, idealizado pela médica e educadora italiana Maria Montessori, é um instrumento pedagógico confeccionado em madeira, que permite que as relações numéricas abstratas tenham uma percepção e manipulação a partir de material concreto. Ele é destinado a atividades de ensino das regras do sistema de numeração de base dez e dos métodos para efetuar as operações fundamentais (adição, subtração, multiplicação e divisão). O Material é constituído por cubos, barras, placas e um bloco, sendo que o bloco é formado por dez placas, a placa por dez barras e a barra por dez cubos.